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Linhas da vida e associativismos feministas: “a voz - Fazendo ...

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Os feminismos latino-americanos e suas múltiplas temporali<strong>da</strong>des no século XX. ST 40<br />

Suely Gomes Costa<br />

UFF<br />

Palavras-Chave: feminismo, <strong>associativismos</strong>, metodologias políticas.<br />

<strong>Linhas</strong> <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> e <strong>associativismos</strong> <strong>feministas</strong>: <strong>“a</strong> <strong>voz</strong> <strong>da</strong>s mulheres”.<br />

Seminário direitos <strong>da</strong> reprodução: Rio de Janeiro, 22 de setembro de 1984.<br />

Na história dos feminismos, dois discursos: num passado, não tão distante, o dos<br />

silêncios e, num próximo, o dos ruídos do e sobre o corpo feminino "[...]por ser estratégico no<br />

jogo demográfico, passa a ser um centro de saberes mais apurados, de poderes mais articulados<br />

e, consequentemente, lugar de um discurso superabun<strong>da</strong>nte, ás vezes até verborrágico" 1 . Esse<br />

discurso superabun<strong>da</strong>nte" está numa publicação sobre o Seminário dos Direitos <strong>da</strong><br />

Reprodução, em 22 de setembro em 1984, na Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro<br />

(ALERJ), dia nacional pela descriminilização do aborto, evento de “trezentas mulheres e<br />

cinqüenta homens [...]” 2 . Lucia Arru<strong>da</strong>, feminista e deputa<strong>da</strong> do PT (RJ), promotora do<br />

evento, diz: "A nossa pretensão [...], é de tentar fortalecer a política feminina, construindo a<br />

<strong>voz</strong> <strong>da</strong>s mulheres". E um discurso: "Quando falamos em reprodução, assim como em<br />

demografia, estamos falando do corpo feminino, desse corpo que engravi<strong>da</strong>, toma<br />

anticoncepcional, faz abortos clandestinos; enfim do corpo que vive em si mesmo, na prática,<br />

to<strong>da</strong>s as questões relativas à reprodução. Explica: "Não queremos uma política oficial de<br />

reprodução que manipule nossos corpos. Esperamos poder vivenciar neste Encontro a questão<br />

feminina e do direito á reprodução como um movimento de libertação". Esses são temas <strong>da</strong>s<br />

agen<strong>da</strong>s <strong>feministas</strong> do Brasil dos anos 80, do discurso “superabun<strong>da</strong>nte” a que se refere Perrot.<br />

A publicação descreve o Seminário, com mais de vinte grupos de mulheres, dois de homens e<br />

crianças, essas aos cui<strong>da</strong>dos de recreadoras. Expõe um ideário comum na história dos<br />

feminismos de outras partes do mundo. A esfera íntima, essa é a novi<strong>da</strong>de, é sua pauta política.<br />

Metodologias de reflexão e ação adota<strong>da</strong>s, de notável efeito multiplicador, associam mulheres<br />

(por vezes, com homens) em “oficinas” que tornam públicas questões priva<strong>da</strong>s, como em<br />

outros lugares do mundo, indica Ergas. Práticas assemelha<strong>da</strong>s tornam visíveis "experiências<br />

femininas que ‘apaga<strong>da</strong>s <strong>da</strong> história’ – [...] depois passam <strong>da</strong>s narrativas parciais <strong>da</strong> 'herhistory'<br />

para a reescrita de análises gerais" 3 . Nas herhistories, estão experiências sexuais e<br />

reprodutivas, cotidianas, agora apropria<strong>da</strong>s por práticas <strong>feministas</strong>, em tradições inventa<strong>da</strong>s.<br />

Há mu<strong>da</strong>nça de discursos, de identi<strong>da</strong>des <strong>feministas</strong> e de sociabili<strong>da</strong>des 4 . Assuntos<br />

1


segre<strong>da</strong>dos por mulheres, em geral, na intimi<strong>da</strong>de e em pequenos grupos, tornam-se discursos e<br />

procedimentos "metodológicos". Por isso, as mulheres os reconhecem e com eles se<br />

identificam. Portam códigos de linguagem reconhecíveis, reescritos e propagados em redes<br />

<strong>feministas</strong> locais e internacionais. No Brasil, esses códigos estão na"linha <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>" –<br />

metodologia de reflexão e ação que se dissemina a partir de fins dos anos 70 do século XX.<br />

Nos 80, dela derivam discursos e ações de grande impacto social pouco avaliado. Muito <strong>da</strong><br />

documentação sobre ela não está em arquivos públicos, mas em coleções priva<strong>da</strong>s, de restritos<br />

acessos. Nas lutas por redemocratização do país, o peso atribuído aos movimentos de mulheres<br />

advém desse discurso "superabun<strong>da</strong>nte" sobre corpos femininos. Mulheres "de esquer<strong>da</strong>" -,<br />

caso <strong>da</strong>s do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e organiza<strong>da</strong>s no Centro <strong>da</strong> Mulher Brasileira<br />

(CMB) -, deslocam discursos e ações <strong>da</strong>s "lutas gerais" próprias à orientação partidária para<br />

"questões sempre ausentes do mundo institucional e político" 5 . Nem sempre vínculos<br />

partidários originais subsistem 6 . Algumas mulheres ficam no CMB, mas, também, em outros<br />

espaços, vivendo novas sociabili<strong>da</strong>des políticas, tendo por foco as questões <strong>da</strong> reprodução.<br />

Também atraem e agregam mulheres sem passagem por quaisquer espaços de militância e/ou<br />

inicia<strong>da</strong>s nos partidos em formação. Há indícios de que essa geração de <strong>feministas</strong> compõe-se<br />

de jovens militantes que, entre os anos 60 e 70, busca liber<strong>da</strong>de sexual 7 . Diásporas de<br />

militantes de esquer<strong>da</strong> ocorrem por essas novas agen<strong>da</strong>s e sob o processo de parti<strong>da</strong>rização<br />

dos movimentos sociais. O Seminário e o discurso "superabun<strong>da</strong>nte" sobre corpos e o aborto,<br />

uma antiga tragédia, são uma invenção dessas mulheres 8 . Branca Moreira Alves, Dan<strong>da</strong> Prado,<br />

Hildete Pereira Alves, Maria José de Lima, Leonor N. Paiva, engaja<strong>da</strong>s nas lutas <strong>da</strong> esquer<strong>da</strong><br />

pela redemocratização do país, estão , ao mesmo tempo, naquelas pela descriminilização do<br />

aborto. Esse grupo fun<strong>da</strong> e representa a Casa <strong>da</strong> Mulher do Rio de Janeiro, sem sede, um<br />

biombo e um modo especial de criar lugares de associação feminista. Agrega militantes e<br />

organiza discursos e ações em torno dos direitos <strong>da</strong> reprodução. Como capital social, dispõe <strong>da</strong><br />

experiência dos meetings; sabe como debater com mulheres, em feiras livres e na periferia na<br />

ci<strong>da</strong>de do Rio de Janeiro. Ganha reconhecimentos. No segundo concurso de projetos de<br />

pesquisa <strong>da</strong> Fun<strong>da</strong>ção Carlos Chagas, em 1982, Hildete obtém um financiamento e faz<br />

pesquisa sobre aborto. Com outro financiamento, o grupo compra um projetor e realiza o<br />

filme: "Cícera, um destino de mulher" de Eunice Gutman, basea<strong>da</strong> na historia de aborto de<br />

Jacilene, propaga<strong>da</strong> pela imprensa. Edita, entre 1983 e 1985, nove números do jornal<br />

emblematicamente chamado "Sexo finalmente explícito" e três números <strong>da</strong> revista<br />

"Impressões". Próximo de Cristina Tavares, deputa<strong>da</strong> federal, o grupo atua nos rumos do<br />

projeto de descriminilização do aborto. Em março de 1983, esse grupo estará presente na<br />

organização de um congresso de mulheres em Copacabana para discussão <strong>da</strong> sexuali<strong>da</strong>de e do<br />

2


aborto. Questões <strong>da</strong> reprodução no Brasil adensam as agen<strong>da</strong>s <strong>feministas</strong>, como, em tempos<br />

anteriores, em outras regiões do mundo. Membros desse grupo comporão a delegação<br />

brasileira do encontro internacional de Amster<strong>da</strong>n, em julho de 1984; a partir dele, a noção de<br />

direitos reprodutivos se propaga. A publicação sobre o Seminário relata-o com detalhes.A<br />

mobilização é do gabinete de Lucia Arru<strong>da</strong>, deputa<strong>da</strong> do PT, eleita no Rio de Janeiro para um<br />

man<strong>da</strong>to feminista. O evento é suprapartidário, <strong>da</strong>í os "convites para todos os contatos<br />

individuais de ca<strong>da</strong> gabinete e cartazes [...] espalhados por escolas, universi<strong>da</strong>des, instituições<br />

de saúde e [...] órgãos de comunicação". A deputa<strong>da</strong> e suas assessoras Fernan<strong>da</strong> Carneiro e<br />

Angela Borba e o deputado Godofredo Pinto (PMDB) e também seus assessores Marcos<br />

Gomes e Paulo Roberto, seus organizadores, fazem uma associação feminina e masculina nas<br />

questões <strong>da</strong> reprodução. G.Pinto, eleito deputado com apoio do sindicato de professores do<br />

Rio de Janeiro, é o "parceiro certo" ; e sua presença obedece a uma estratégia explícita: "O<br />

interesse político nessa parceria tem origem numa velha expectativa e batalha <strong>feministas</strong> em<br />

atrair para o movimento as professoras – categoria ativa no desenvolvimento dos papéis<br />

sexuais de uma socie<strong>da</strong>de - e que ele poderia viabilizar". A capa do documento traz a figura<br />

feminina ao lado <strong>da</strong> masculina; a contracapa inverte as mesmas figuras, sugerindo a relação<br />

entre os sexos, pelo direito e pelo avesso. O incentivo à presença de homens, algo "inusitado,<br />

representando na ver<strong>da</strong>de, o assumir de uma postura até então relega<strong>da</strong> a um segundo plano:<br />

também aos homens é preciso interessar sobre sua sexuali<strong>da</strong>de e sua relação com a<br />

reprodução", justifica-se, pois, "(...) num evento feminista onde se objetivava, principalmente,<br />

<strong>da</strong>r <strong>voz</strong> às mulheres, era fun<strong>da</strong>mental que os homens ouvissem os resultados". A decisão de<br />

mesclarem homens e mulheres em oficinas foi revoga<strong>da</strong>; sem indicar a razão. Quarenta e duas<br />

enti<strong>da</strong>des "(...) sindicatos, associações de moradores e enti<strong>da</strong>des em geral" 9 , presentes,<br />

evidenciam redes: uma mesma participante está em mais de uma instituição, mas nem sempre<br />

to<strong>da</strong>s combinações associativas estão registra<strong>da</strong>s. Vários lugares associam as mesmas<br />

<strong>feministas</strong> nessa conjuntura. Há no evento a decisão de propagar a "linha <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>", defini<strong>da</strong><br />

como "ideal de encontro – a troca, com a emoção de descobrir-se, semelhantes e diferentes".<br />

Narra Martha Zanetti, então jornalista, mais tarde terapeuta, sua experiência inaugural<br />

"durante uma palestra sobre sexuali<strong>da</strong>de feminina, em Belo Horizonte em 1979, no 1º.<br />

Encontro <strong>da</strong> Mulher Mineira" 10 . Sobre essa experiência inicial, com uma platéia de 80<br />

mulheres, diz Marta:"“[..]tracei uma linha num quadro negro imenso e pedi às mulheres<br />

presentes:Vamos colocar nesta linha os momentos importantes de nossa<br />

sexuali<strong>da</strong>de?”Descreve o evento:"Uma hora depois o quadro estava repleto de desejos,sonhos,<br />

príncipes encantados, monstros, namoros, casamentos, separações, velhice, menopausa,<br />

abortos, menstruações..." Em 1980, o jornal Brasil Mulher convi<strong>da</strong> o CEAMI – nessa época,<br />

3


Martha, Cristina e Vitória - para um trabalho sobre sexuali<strong>da</strong>de com 30 mulheres, em Vila<br />

Parque União, periferia do Rio de Janeiro:"E lá vamos nós outra vez de linha <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, só que<br />

desta vez em pequenos grupos". Entre 1979 e início dos 80, no Brasil, essa prática política se<br />

alastra. Algo assemelhado já ocorrera na história dos feminismos, segundo Ergas, numa<br />

prática designa<strong>da</strong> "toma<strong>da</strong> de consciência", inicial e largamente usa<strong>da</strong> por mulheres norteamericanas,<br />

por volta de 1966-1967: "uma técnica fun<strong>da</strong>mental em torno <strong>da</strong> qual se<br />

construíram os feminismos contemporâneos" 11 . Essa metodologia "caracterizava-se - nas<br />

palavras de uma ativista – por se centrar em torno do trabalho <strong>da</strong>s 'células <strong>da</strong> bitch session'".<br />

Detalha<strong>da</strong> num documento que "circulava entre as activistas americanas, a 'expansão<br />

progressiva <strong>da</strong> consciência' incluía 'reconhecimento e testemunhos pessoais' e mesmo 'contrainterrogatório',<br />

modos de relação "[...] a partir de 'testemunhos individuais' e análises <strong>da</strong>s<br />

'formas clássicas de resistência' [...]" e de conscientização. Narra Y. Ergas: "A célula de uma<br />

bitch session incluía também 'começar a parar: superar a repressão e a desilusão', através de<br />

processos que envolviam a análise dos medos de ca<strong>da</strong> participante e 'desenvolvimento de uma<br />

teoria feminista radical' Como na linha <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, esse trabalho era acompanhado por uma<br />

"formação específica em organização <strong>da</strong> toma<strong>da</strong> de consciência, de modo que qualquer mulher<br />

participante de uma bitch session pudesse tornar-se por sua vez uma organizadora de outros<br />

grupos". Nem todos os movimentos <strong>feministas</strong> usaram essa metodologia, mas a toma<strong>da</strong> de<br />

consciência, indica ela, "foi apenas o primeiro de uma série de métodos, frequentemente<br />

devedores <strong>da</strong>s práticas e conceitos psicanalíticos, destinados a aprofun<strong>da</strong>r a percepção<br />

individual do eu e a orientar o comportamento cotidiano". Ergas descreve um método italiano<br />

que sucede ao norte-americano, designado como "prática do inconsciente" pretendendo<br />

"son<strong>da</strong>r e reconstruir as profundezas <strong>da</strong> auto-percepção individual do eu", num discurso<br />

impregnado do conhecimento "“psi” que se expande e se vulgariza, como no Brasil dos anos<br />

60 12 . A "toma<strong>da</strong> de consciência" mu<strong>da</strong> antigos gestuais. Lembra Ergas que, na Europa, o<br />

punho cerrado e erguido, signo <strong>da</strong> esquer<strong>da</strong>, é substituído pelo símbolo <strong>da</strong> vulva sugeri<strong>da</strong> com<br />

as mãos. A apropriação política de referências psicanalíticas também se verifica no Brasil; sob<br />

o advento <strong>da</strong> pílula anticoncepcional novos dilemas sexuais estão em discursos sobre<br />

sexuali<strong>da</strong>de em periódicos femininos, em colunas de aconselhamento "psi", caso de Carmem<br />

<strong>da</strong> Silva e, depois, na TV, em1980, de Marta Suplicy que, ícone desse tempo, abre o<br />

Seminário 13 . Avalia mu<strong>da</strong>nças: o trato do prazer, desejo, direitos <strong>da</strong> mulher, um “escân<strong>da</strong>lo" à<br />

época de seu programa na TV, "[...]já está incorporado, assimilado pela população". Adverte:<br />

“Mas, ao mesmo tempo está tudo na teoria". Alerta para riscos de apropriações de ideais<br />

<strong>feministas</strong> em discursos contra as mulheres: “A ideologia não mudou: segure seu homem!<br />

Mais uma obrigação na vi<strong>da</strong>: o orgasmo compulsório". Sobre o planejamento familiar, destaca<br />

4


os confrontos entre controlistas e natalistas: "um desastre porque não levaram a na<strong>da</strong>".<br />

Contraria análises correntes, considerando "decentes" as posições do governo brasileiro em<br />

encontros internacionais sobre população. Revê conceitos sobre a BENFAM: "Enquanto os<br />

teóricos discutem lá na cúpula o que deve ser feito, o mulherio aqui em baixo está adorando a<br />

BENFAM exatamente porque ela faz esterilização, que é o que elas querem". Protege-se de<br />

críticas: "Não estou defendendo a BENFAM, mas ela não vai catar a laço as mulheres para<br />

fazer esterilização, ela tem para quem administrar seus serviços”. Sabe que mulheres foram<br />

esteriliza<strong>da</strong>s sem saber, mas que “[...] também tem muitas mulheres que querem ter acesso a<br />

tudo isso”. O projeto de descriminilização do aborto, informa, está parado no Congresso<br />

Nacional. Doze deputados - todos homens “[...] votaram contra a apreciação do assunto[...]".<br />

Com cerca de três milhões de abortos por ano, diz, a aplicação <strong>da</strong> lei brasileira é uma garantia<br />

de serviços públicos de saúde às mulheres pobres, únicas penaliza<strong>da</strong>s. Duvi<strong>da</strong> <strong>da</strong> quali<strong>da</strong>de do<br />

PAISM, mas sua posição é de “[...] <strong>da</strong>r força ao projeto”. O documento registra a dinâmica <strong>da</strong><br />

linha <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>. Ca<strong>da</strong> grupo de reflexão, com dez membros e seus coordenadores, forma-se ao<br />

acaso; na chega<strong>da</strong> á ALERJ, participantes recebem senhas colori<strong>da</strong>s. Juntam-se, segundo<br />

cores, pessoas desiguais em i<strong>da</strong>de (de 18 anos a 40 anos), diferentes em formação profissional<br />

(40% com curso superior; 60% professoras e 33% <strong>da</strong> área de saúde), em raça/etnias, em<br />

classes sociais e experiência política (47% sem qualquer militância; 86,6% sem filiação<br />

partidária). Falam de suas vi<strong>da</strong>s íntimas, coordena<strong>da</strong>s, em geral, por duas pessoas treina<strong>da</strong>s em<br />

estimular <strong>“a</strong> <strong>voz</strong>” de ca<strong>da</strong> participante, com liber<strong>da</strong>de, embora,em alguns momentos, sob<br />

vigilância: "Todo grupo de reflexão necessita de uma coordenação (...)" 14 . E, explica:<br />

"Dificul<strong>da</strong>des aparecem [...]" – há emoções fortes e mudez que"[...] devem ser enfrenta<strong>da</strong>s<br />

[...]”. A fraseologia política <strong>da</strong> linha é de publicização <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> priva<strong>da</strong>, mas numa reflexão<br />

sobre a "condição feminina", que, nem sempre, elimina a experiência masculina: "A linha <strong>da</strong><br />

vi<strong>da</strong> é o levantamento <strong>da</strong> ideologia de um grupo através <strong>da</strong> representação individual <strong>da</strong><br />

vivência de ca<strong>da</strong> participante – lembranças, fatos, experiências vivi<strong>da</strong>s e compartilha<strong>da</strong>s na<br />

infância na adolescência, juventude, maturi<strong>da</strong>de, velhice – falando como sentiu ou como sente<br />

a expectativa de menstruação, concepção, contracepção, gravidez/parto, gravidez/aborto e<br />

menopausa". Mas “cronologizar” etapas ou ciclos de vi<strong>da</strong> <strong>da</strong>s mulheres, exige adequações para<br />

os homens. No primeiro caso, podem incidir sobre a biologia dos corpos, em experiências de<br />

concepção e contracepção, mas os depoimentos masculinos têm outras características, por<br />

isso, "no desenrolar <strong>da</strong> tarefa, (os homens) falaram de suas vi<strong>da</strong>s, relembraram nascimentos<br />

famílias, escola brincadeiras, namoros. Amores, trepa<strong>da</strong>s e medos”. Da narrativa, retiram-se<br />

elementos para traçar a linha de vi<strong>da</strong> do grupo, uma síntese de experimentos, de expectativas<br />

de mu<strong>da</strong>nças e de ação macro-política. Busca-se “vencer medos” e "empoderar"... 15 Sistemas<br />

5


de poder e dominação vividos constroem códigos políticos enunciados : ao final <strong>da</strong> linha, são<br />

lidos e expostos registros escritos sobre a experiência de ca<strong>da</strong> grupo. Nesse universo<br />

levantado, avalia M.Zanetti : “(...) entramos em um processo de reflexão sobre as questões<br />

morais, culturais, sociais, políticas, econômicas. Um encontro muito íntimo, sério, repleto de<br />

humor, trocas. Somos mulheres, temos <strong>voz</strong>. Temos história”. O cálculo de resultados futuros é<br />

análogo ao descrito por Ergas como “toma<strong>da</strong> de consciência”:"Quatro trocam experiências <strong>da</strong><br />

linha <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> com quarenta, as quarenta se preparam para trocar com quatrocentas". Nos anos<br />

80, as linhas se multiplicam no Brasil. Serve á busca de superação do Programa Materno-<br />

Infantil e á implantação do PAISM, em 1983, com base na perspectiva <strong>da</strong> integrali<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s<br />

mulheres como sujeitos 16 . O verso <strong>da</strong> contracapa <strong>da</strong> publicação anuncia uma "reivindicação<br />

atendi<strong>da</strong>" sobre a assistência pública ao aborto 17 . A despenalização do aborto não se<br />

concretiza. Mas as linhas <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> associam mais e mais mulheres, sobretudo, as profissionais<br />

de saúde, em torno <strong>da</strong> implantação do PAISM. No Rio de Janeiro, são apropria<strong>da</strong>s em uni<strong>da</strong>des<br />

de atenção primária, como técnicas de capacitação de pessoal em educação e saúde. Treinam<br />

"agentes comunitárias de saúde", caso <strong>da</strong> Rocinha na ci<strong>da</strong>de do Rio de Janeiro e, na déca<strong>da</strong><br />

seguinte, são "práticas de educação em saúde" 18 . Essas experiências sistematizam a noção de<br />

integrali<strong>da</strong>de que serve á macro-política de saúde e a rumos <strong>da</strong> VIII Conferêncoia Nacional de<br />

Saúde e <strong>da</strong> Constituição de 1988 19 . Contudo, desven<strong>da</strong> e oculta: mulheres são pensa<strong>da</strong>s como<br />

biologicamente irmana<strong>da</strong>s, desconsiderando as desigual<strong>da</strong>des entre elas, por propagar o ideal<br />

<strong>da</strong> "sorori<strong>da</strong>de" e um vasto imaginário sobre "soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>des" entre mulheres, escondendo<br />

processos de dominação entre elas 20 . O discurso "superabun<strong>da</strong>nte" sobre os corpos segue na<br />

Revista Estudos Feministas, entre 1992 e 2002: 25% dos trabalhos aí publicados tratam de<br />

temas <strong>da</strong> reprodução 21 . Como nos feminismos <strong>da</strong> Europa e dos EUA, na defesa de direitos,<br />

as lutas prosseguem, mas se diversificam; separam e associam mulheres por afini<strong>da</strong>des<br />

temáticas, profissionais e outras, agora, reconhecendo diferenças e desigual<strong>da</strong>des entre elas e,<br />

desse modo, em atuações as mais varia<strong>da</strong>s, com destaque para as do SOS Corpo do Rio de<br />

Janeiro, do OAB-Mulher e do CEAMI - a que Martha Zanetti, então, se vincula. 22 . Aqui e,<br />

conforme Ergas, em outros lugares do mundo, conheceram diásporas, “[...] tornaram-se<br />

relativamente autônomos [...]", desenvolvendo temáticas e terminologias,"[...] identificando<br />

problemas-chaves e demonstrando capaci<strong>da</strong>des próprias para recrutar militantes e desencadear<br />

mobilizações com fins determinados".Afirmaram sua própria legitimi<strong>da</strong>de e impuseram novas<br />

agen<strong>da</strong>s ás novas esquer<strong>da</strong>s com seus problemas próprios, atingindo “[..]uma longevi<strong>da</strong>de que<br />

a maior parte <strong>da</strong>s próprias organizações políticas não consegue atingir”. Nesse discurso<br />

“superabun<strong>da</strong>nte” sobre os corpos, os movimentos <strong>feministas</strong> contam muito sobre as culturas<br />

políticas<br />

6


1 PERROT, M. Os silêncios do corpo <strong>da</strong> mulher. IN: MATOS, M. Izil<strong>da</strong> S. de; SOIHET, R. (Org.). O corpo<br />

feminino em debate São Paulo: Editora UNESP, 2003, p. 13-28; p. 13.<br />

2 ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA. Estado do Rio de Janeiro. Seminário dos Direitos <strong>da</strong> Reprodução. Rio de Janeiro: ALERJ,<br />

1985, p.3.<br />

3 ERGAS,Y. “O sujeito mulher. O feminismo dos anos 1960-1980”. In DUBY, Georges e PERROT, Michelle. História <strong>da</strong>s<br />

Mulheres no Ocidente. Porto: Afrontamento. v. 5, 1995, p. 583-611; p. 599-600.<br />

4 HOBSBAWM, E., RANGER, T. (Org.). Trad. de C. C. Cavalcanti. São Paulo: Paz e Terra. 1984.<br />

5 ASSEMBLÉIA..p. 3. Publicação de 21 páginas, razão pela qual citações de páginas deixam de referencia<strong>da</strong>s.<br />

Ver: COSTA, S.G.. Repensando o PAIMSCA. Em Pauta - Revista <strong>da</strong> Facul<strong>da</strong>de de Serviço Social <strong>da</strong> UERJ, Rio<br />

de Janeiro: UERJ, 1999, n.1, p. 109-122, nov.1999. SOIHET, R.; COPIO. Flávia E. O Centro <strong>da</strong> Mulher<br />

Brasileira (CMB) e suas experiências nos anos 1970-1980. In FERREIRA, J.; REIS, D. A. (org.). As esquer<strong>da</strong>s no<br />

Brasil. 2006 (no prelo). Ver ain<strong>da</strong> : DELPHY, C. “Feminismo e Recomposição <strong>da</strong> Esquer<strong>da</strong>”. Revista Estudos<br />

Feministas Vol.2 N.3. Rio de Janeiro: CIEC-UFRJ, 1994. PINTO, C. R. J. Uma história do feminismo no Brasil.<br />

São Paulo, Editora Fun<strong>da</strong>ção Perseu Abramo, 2003. SARTI, C. A. “O feminismo brasileiro desde os anos 1970:<br />

revisitando uma trajetória”. Estudos Feministas. Florianópolis,CFH/CCE/UFSC:Vol.12(2):35-50,maioagosto/2004.<br />

RAGO, M. “Os feminismos no Brasil: dos <strong>“a</strong>nos de chumbo ‘à era global” Labrys, estudos<br />

<strong>feministas</strong>. Nº 3, janeiro/julho 2003, p.5. www.unb.br/lh/his/gefem.<br />

6 Entrevista concedi<strong>da</strong> por Suely Gomes Costa a Joana Maria Pedro em 17/02/2004.<br />

7 NECKEL, R. Pública vi<strong>da</strong> íntima : a sexuali<strong>da</strong>de nas revistas femininas e masculinas (1969-1979). Tese de<br />

doutorado. Programa de Estudos Pós-Graduados em História. PUC/SP, 2004.<br />

8 Informações presta<strong>da</strong>s por Hildete Pereira de Melo, em abril de 2006.<br />

9 A representação institucional <strong>da</strong>s coordenações de grupos, mostram participantes com apenas uma<br />

vinculação institucional como Ana Rower, Berenice Ribeiro, Ely Santos e Lucia Helena Souza Martins do<br />

Centro <strong>da</strong> Mulher Brasileira (CMB); Angela Oliveira do Grupo de Mulheres do PMDB; Flavia Cavalcanti,<br />

Ma<strong>da</strong>lena Guilhon e Rose Menchise do Grupo de Mulheres do PT, Maria José de Lima do Coletivo de Mulheres<br />

do Rio; Gabriela <strong>da</strong> Silva Leite do Grupo de Mulheres do Mangue; Comba Marques Porto, Hildete Pereira de<br />

Melo e Leonor Nunes Paiva <strong>da</strong> Casa <strong>da</strong> Mulher do Rio de Janeiro; Maria Rita Taulois e Mariska Ribeiro do<br />

IDAC (Instituto de Ação Cultural); Nilce e Rita Andréa do SOS Mulher do Rio de Janeiro ; Elizabeth de Andrade<br />

Romeiro, Maria Celeste do Grupo de Saúde Nós Mulheres; Maria Neomi de Oliveira Knor <strong>da</strong> Comissão Feminina<br />

do Sindicato dos Professores; Valdo Felinto do CEAMI,Vânia Silveira <strong>da</strong> Assessoria <strong>da</strong> vereadora Benedita <strong>da</strong><br />

Silva, e Vitória Pamplona, apenas registra<strong>da</strong> como Psicóloga. Com dupla representação estão: Bertine Carlos<br />

Bezerra, simultaneamente do CMB e do Grupo de Saúde Nós Mulheres; do mesmo modo, Claudia Barcellos,<br />

Cristina Viana e , Martha Zanetti são do CEAMI e do Grupo de Saúde Nós Mulheres; Fernan<strong>da</strong> Carneiro <strong>da</strong><br />

Assessoria de Lucia Arru<strong>da</strong> e do Grupo de Saúde Nós Mulheres. Sem representação, consta James Lewis, como<br />

coordenador do Encontro de Homens<br />

10 A supervisão do Seminário é de Cristina Viana e Martha Zanetti, ambas do CEAMI. Em folder divulgado na<br />

REDEFEM em Salvador, 2005, M. Zanetti prosseguiu como terapeuta, nessa perspectiva.<br />

11 ERGAS, Y.Op. cit. p.583 a 611. Na p. 610, como fontes para estudo do “ carácter central <strong>da</strong>s ‘práticas de<br />

toma<strong>da</strong> de consciência’ para as <strong>feministas</strong> contemporâneas”, indica: Catherine A. Kinon, Feminism, Marxism,<br />

Method and the State Signs, 1982, p 515 -544, and Drude Dahlerup, (ed.). The New Women’s Movement:<br />

Feminism and Political Power in Europe and the USA, Londres, Sage, 1986”.<br />

12 BORGES, D.T. Bonatti. A cultura “psi” <strong>da</strong>s revistas femininas (1970-1990).. Dissertação de mestrado em<br />

História.Universi<strong>da</strong>de Estadual de Campinas, 1998. Agradeço à Roselane Neckel essa indicação.<br />

13 CIVITA, L. T. (org.). O melhor de Carmem <strong>da</strong> Silva. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1994.<br />

14 Em 1984, coordenando uma “linha <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>”, para o PAISM, no Centro de Saúde Santa Rosa, em Niterói, fui<br />

adverti<strong>da</strong> por um psicólogo de “riscos” de “práticas psicanalíticas”, por “perigosas” na estabili<strong>da</strong>de emocional<br />

<strong>da</strong>s pessoas, estando sujeita à advertência do Conselho Regional de Psicologia.<br />

7


15 VARIKAS, E. “‘O Pessoal é Político’: desventuras de uma promessa subversiva”. Tempo, Rio de Janeiro, Vol.<br />

2, nº 3, 1997. Ver, ain<strong>da</strong>,PERROT, M. et al. A história <strong>da</strong>s mulheres. Cultura e poder <strong>da</strong>s mulheres: ensaio de<br />

historiografia. Gênero, Niterói: EdUFF, 2001, v. 2, n. 1, p. 7-30, 2001.<br />

16<br />

Ver:FONSECA SOBRINHO, D. <strong>da</strong>. Estado e população: uma história do planejamento familiar no Brasil. Rio<br />

de Janeiro: Rosa dos Tempos: FNUAP, 1993.<br />

17 Lei estadual n. 832 de 7 de janeiro de 1985. O projeto é de Lucia Arru<strong>da</strong>; a lei assina<strong>da</strong> por L. Brizola,<br />

governador, e Eduardo de A. Costa, Secretário de Estado de Saúde, fixa, no Rio de Janeiro, a obrigatorie<strong>da</strong>de à<br />

rede de serviços de saúde do Estado ao aborto nos casos previstos em Lei, sob pressões políticas e religiosas.<br />

18 UNICEF. Programa Regional Mulher no Desenvolvimento. Rocinha, mães e vi<strong>da</strong>s – Depoimentos. Rio de<br />

Janeiro: Editorial Alhambra, 1985. ENSP. Práticas de Educação em Saúde. Programa de Assistência Integral à<br />

Saúde <strong>da</strong> Mulher. In: Panorama ENSP. Centro de Saúde Escola Germano Sinval Faria. Rio de Janeiro: 1992.<br />

19 . Ver: ÁVILA, M. B. Direitos reprodutivos: uma invenção <strong>da</strong>s mulheres reconcebendo a ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia.<br />

Mandrágora, NETMAL/UMESP, São Paulo, 1997, n.4, p. 11-16, 1997. CORRÊA, S.. PAISM: uma história sem<br />

fim. Revista Brasileira de Estudos de População, Campinas, 1993, v. 10, n. 1/ 2, p. 3-12, jan/dez 1993.<br />

20 Ver: COSTA, S. G.. Movimento de mulheres: a linha <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> como forma de reflexão e ação. Temas Sociais<br />

n.193, p.1-35. Rio de Janeiro: CBCISS, 1985. Id. Repensando o PAIMSCA. Em Pauta - Revista <strong>da</strong> Facul<strong>da</strong>de de<br />

Serviço Social <strong>da</strong> UERJ, Rio de Janeiro: UERJ, 1999, n.1, p. 109-122, nov.1999. Id. Proteção Social, materni<strong>da</strong>de<br />

transferi<strong>da</strong> e lutas pela saúde reprodutiva. Estudos Feministas, Florianópolis/SC: CFH/CCE/EFSC, 2002, v. 10, n.<br />

2/2002, p.301-24.<br />

21 DINIZ, D.; FOLTRAN, P. Gênero e feminismo no Brasil: uma análise <strong>da</strong> Revista Estudos Feministas. Estudos<br />

Feministas/UFSC/CCH, CCE V. 12 N. Esp.l/2004, p. 245-254: Florianópolis, 2004.<br />

8

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