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Comida de Mãe - Fazendo Gênero - UFSC

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criança foi internada no hospital por ter tomado iogurte. A bebida tinha sido comprada pelo<br />

padrasto, no “rancho” do mês. Ele comprou um pote para cada criança da casa, para que nenhuma<br />

<strong>de</strong>las tivesse tratamento diferenciado.<br />

Convivendo com as famílias do Morro da Caixa pu<strong>de</strong> perceber a importância central da casa<br />

da mãe e do caráter ritual do almoço <strong>de</strong> domingo. Woortmann (1986) cita o trabalho <strong>de</strong> Souto <strong>de</strong><br />

Oliveira com operários do Rio <strong>de</strong> Janeiro, <strong>de</strong>stacando essa refeição semanal. Segundo o autor, o<br />

almoço <strong>de</strong> domingo se distinguiria do almoço dos outros dias da semana por ser um momento em<br />

que o operário po<strong>de</strong> comer “mais” – por estar associado a um dia <strong>de</strong> lazer e <strong>de</strong>scanso – e comer<br />

“melhor” – pela presença <strong>de</strong> uma carne “melhor”, como o churrasco, ou um assado ao invés <strong>de</strong><br />

cozido. O almoço <strong>de</strong> domingo se caracterizaria principalmente pela presença do pai <strong>de</strong> família no<br />

almoço. Entre as famílias que pesquisei, o almoço <strong>de</strong> domingo se distinguiria das outras refeições<br />

da semana pelo tipo <strong>de</strong> comida que é preparada, assim como nas famílias <strong>de</strong> operários cariocas, e<br />

pela presença dos filhos na casa dos pais, especialmente na casa das mães. Nesse sentido, a mãe – e<br />

não o pai, como apontado no trabalho <strong>de</strong> Souto <strong>de</strong> Oliveira – é a figura ritualmente privilegiada.<br />

As refeições – principalmente os almoços – são momentos <strong>de</strong> sociabilida<strong>de</strong>. Mas no “comer<br />

junto” também aparecem as individualida<strong>de</strong>s, que são respeitadas pela mãe. É na comida, que a mãe<br />

prepara tentando respeitar o gosto <strong>de</strong> cada um dos filhos e do marido, que a individualida<strong>de</strong> se<br />

reflete. Entre minhas interlocutoras, era bastante recorrente a idéia <strong>de</strong> que “cada um tem seu gosto”.<br />

Assim, cabe à mulher que prepara a comida – particularmente à mãe – a <strong>de</strong>tenção <strong>de</strong>ste saber. O<br />

gosto tem uma base biológica – pertence a um conjunto “olfativo-gustativo”, mas também cultural.<br />

Flandrin, citado por Maciel (2001), afirma que “se os órgãos evoluem ao ritmo da natureza, as<br />

percepções, elas, evoluem ao ritmo das culturas” (1998). Cada cultura estabelece regras e critérios<br />

conforme, entre outros fatores, “o que é chamado ‘gosto’, este conjunto <strong>de</strong> ‘sensibilida<strong>de</strong> e<br />

percepção’, para usar as palavras <strong>de</strong> Matty Chiva (1979:4), on<strong>de</strong> a sensação gustativa traz uma<br />

“dupla conotação - informação e emoção - inscrita num dado contexto sócio-cultural” (Maciel<br />

2001). Há uma analogia entre gosto e conhecimento, como nos lembra Maciel (2001): saber e sabor<br />

têm uma origem parecida, do latim sapere, que significa “ter gosto”, o que nos leva a concluir que<br />

ter conhecimento e ter sabor se confun<strong>de</strong>m. Entendo que o conhecimento que a mãe <strong>de</strong>senvolve<br />

sobre os gostos dos filhos lhe confere po<strong>de</strong>res e autorida<strong>de</strong> na família.<br />

A preparação da comida envolve a ocultação <strong>de</strong> alguns <strong>de</strong> seus procedimentos. A cozinha é,<br />

portanto, o território do segredo. Simmel enten<strong>de</strong> o segredo como uma forma <strong>de</strong> distribuição social<br />

do conhecimento que diferencia os indivíduos (entre aqueles que sabem e os que <strong>de</strong>sconhecem) e<br />

cria uma relação social específica, uma relação <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r, regida por uma tensão que se dissolve na<br />

revelação. Deste modo, oscila-se constantemente entre níveis <strong>de</strong> revelação e <strong>de</strong> ocultação (2002). O<br />

mistério em torno da informação, segundo o autor, ajuda a criar a “falácia <strong>de</strong> que tudo o que é<br />

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