11.10.2013 Views

Questões de gênero na literatura e na produção ... - Fazendo Gênero

Questões de gênero na literatura e na produção ... - Fazendo Gênero

Questões de gênero na literatura e na produção ... - Fazendo Gênero

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

<strong>Questões</strong> <strong>de</strong> <strong>gênero</strong> <strong>na</strong> <strong>literatura</strong> e <strong>na</strong> <strong>produção</strong> cultural para crianças. ST 54<br />

Iara Tatia<strong>na</strong> Bonin<br />

UFRGS<br />

Palavras-Chave: Histórias em quadrinhos; etnia; <strong>gênero</strong>.<br />

APRENDENDO SOBRE MASCULINIDADE E FEMINILIDADE<br />

NO EMBALO DA REDE DO PAPA-CAPIM<br />

Este trabalho tem como “porta <strong>de</strong> entrada” as Histórias em Quadrinhos e nele proponho<br />

problematizar discursos sobre os povos indíge<strong>na</strong>s em histórias do Papa-Capim, perso<strong>na</strong>gem criado<br />

por Maurício <strong>de</strong> Sousa. O protagonista <strong>de</strong>stas histórias é um menino indíge<strong>na</strong> que, junto com sua<br />

turma, constitui o núcleo a partir do qual o autor <strong>na</strong>rra histórias ligadas à <strong>na</strong>tureza.<br />

Partindo das <strong>na</strong>rrativas do Papa-Capim proponho, neste texto, problematizar discursos sobre<br />

masculinida<strong>de</strong> e feminilida<strong>de</strong>. As histórias <strong>de</strong>ste perso<strong>na</strong>gem, situadas num contexto <strong>de</strong> vida<br />

indíge<strong>na</strong>, participam <strong>de</strong> um amplo conjunto <strong>de</strong> práticas que nos ensi<strong>na</strong>m sobre quem são/ como<br />

<strong>de</strong>vem ser “os índios” e, neste mesmo movimento, informam sobre quem somos nós/ como<br />

<strong>de</strong>vemos ser. Estas <strong>na</strong>rrativas, en<strong>de</strong>reçadas especialmente para crianças, colaboram para construir e<br />

distinguir sujeitos femininos e masculinos, <strong>na</strong>turalizando lugares sociais.<br />

Para compor esta análise reuni 23 revistas e alma<strong>na</strong>ques <strong>de</strong> Maurício <strong>de</strong> Sousa que trazem<br />

histórias do Papa-Capim e sua turma, publicadas nos anos <strong>de</strong> 1995 a 2005, conforme dados<br />

apresentados <strong>na</strong> bibliografia.<br />

Partindo da análise <strong>de</strong> Foucault (1999) penso que aquele que lê (uma obra <strong>de</strong> arte, um livro,<br />

um filme, uma fotografia, uma história em quadrinhos) entra <strong>na</strong> ce<strong>na</strong> e ao construí-la é construído, é<br />

subjetivado pelos discursos que no texto operam e, neste mesmo jogo, posicio<strong>na</strong>do como sujeito. A<br />

leitura do texto vai constituindo uma leitura dos objetos, dos acontecimentos, das coisas <strong>de</strong>scritas -<br />

no roteiro, no cenário, <strong>na</strong> história –, e está ancorada em noções tidas como verda<strong>de</strong>iras num tempo,<br />

num contexto, numa cultura. A linguagem constrói “realida<strong>de</strong>s”, sujeitos, posições a serem<br />

ocupadas, instituindo oposições binárias.<br />

Em um <strong>de</strong> seus textos, Larrosa (1994) afirma que apren<strong>de</strong>r os nomes das coisas é a melhor<br />

maneira <strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r a olhar. Nomear é uma operação implicada em relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r, porque quem<br />

nomeia ocupa um lugar, assim como quem é nomeado. E ao <strong>de</strong>screver, traduzir, explicar as coisas,<br />

estamos produzindo sentidos, produzindo sujeitos, produzindo-nos como sujeitos <strong>de</strong> <strong>de</strong>termi<strong>na</strong>dos<br />

discursos.<br />

Narrar e <strong>de</strong>screver os povos indíge<strong>na</strong>s é conferir-lhes um lugar, que é relacio<strong>na</strong>l, em um<br />

mo<strong>de</strong>lo que põe no centro a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> e <strong>na</strong> periferia as diferenças, subordi<strong>na</strong>ndo-as. No texto a<br />

centralida<strong>de</strong> da cultura, Hall (1997) afirma que “a cultura global necessita da ‘diferença’ para


prosperar – mesmo que ape<strong>na</strong>s para convertê-la em outro produto cultural para o mercado mundial”<br />

(p. 19, grifos do autor).<br />

Aquilo que nos parece “<strong>na</strong>tural” <strong>na</strong> criança, no adulto, no índio, no negro, <strong>na</strong> mulher, no<br />

homem, é construção cultural e faz sentido porque se articula nesta re<strong>de</strong> <strong>de</strong> significações que vamos<br />

construindo e que nos vão construindo cotidia<strong>na</strong>mente. Discursos que operam a partir <strong>de</strong> regras, que<br />

são dadas por um conjunto <strong>de</strong> questões: quem po<strong>de</strong> falar; o que po<strong>de</strong> falar; para quem; em quais<br />

circunstâncias. Relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r-saber que <strong>de</strong>finem quem está autorizado a nomear/<strong>de</strong>screver as<br />

coisas do mundo e a partir <strong>de</strong> que conjunto <strong>de</strong> saberes.<br />

CONSTRUÇÕES GENERIFICADAS...<br />

As histórias do Papa-Capim, a<strong>na</strong>lisadas neste estudo, mobilizam discursos, colaborando para<br />

instituir significados para feminilida<strong>de</strong> e masculinida<strong>de</strong>. Aquilo que as teorizações <strong>de</strong> <strong>gênero</strong> têm<br />

apontado como sendo <strong>na</strong>turalizações <strong>de</strong> lugares sociais, a partir das quais as diferenças são<br />

<strong>de</strong>finidas pela a<strong>na</strong>tomia, pela biologia, como se fossem coisas do domínio da <strong>na</strong>tureza e não da<br />

cultura.<br />

O fato é que apren<strong>de</strong>mos a ser homens e mulheres <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o momento em que <strong>na</strong>scemos e ao<br />

longo <strong>de</strong> nossas vidas, aprendizagens estas que se processam em diversas instituições sociais, tais<br />

como a família, a escola, as mensagens midiáticas, os grupos <strong>de</strong> que fazemos parte, as histórias<br />

cotidia<strong>na</strong>s contadas informalmente. No enten<strong>de</strong>r <strong>de</strong> Meyer (2001) a noção <strong>de</strong> <strong>gênero</strong> reforça a<br />

necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se pensar que há muitas formas <strong>de</strong> sermos mulheres e homens, ao longo do tempo,<br />

ou no mesmo tempo histórico, em diferentes grupos ou segmentos sociais. (p. 32)<br />

Concordando com esta autora, penso <strong>na</strong> noção <strong>de</strong> <strong>gênero</strong> como plural, dinâmica e<br />

constitutiva das relações sociais significadas por jogos <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r. Cada cultura elege certos traços<br />

distintivos que constituem, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o <strong>na</strong>scimento, sujeitos para agirem masculi<strong>na</strong>mente ou<br />

femini<strong>na</strong>mente, sendo que diferentes mecanismos atuam <strong>na</strong> “normalização” das relações <strong>de</strong> <strong>gênero</strong>.<br />

Nas <strong>na</strong>rrativas do Papa-capim, a<strong>na</strong>lisadas neste trabalho, é possível i<strong>de</strong>ntificar marcadores a<br />

partir dos quais os <strong>gênero</strong>s são <strong>na</strong>rrados. Em termos mais gerais, a própria presença <strong>de</strong><br />

protagonistas femininos e masculinos constitui importante indicador das relações <strong>de</strong> <strong>gênero</strong>. Em 12<br />

das 24 histórias aparecem ape<strong>na</strong>s perso<strong>na</strong>gens masculinos – e em algumas <strong>de</strong>las é somente o Papa-<br />

Capim. Em seis histórias aparecem meninos e meni<strong>na</strong>s, sendo estas últimas perso<strong>na</strong>gens<br />

secundários. Em 10 histórias aparecem perso<strong>na</strong>gens adultos – índios ou não-índios – e estas<br />

<strong>na</strong>rrativas me fazem pensar no modo como cada sujeito é construído <strong>na</strong>s ce<strong>na</strong>s.<br />

Há, a meu ver, uma distinção evi<strong>de</strong>nte entre o “mundo dos meninos” e o “mundo das<br />

meni<strong>na</strong>s”. Papa-capim aparece em algumas histórias como único perso<strong>na</strong>gem, e em outras ele se<br />

envolve em aventuras cujos protagonistas são somente os meninos. São caçadas, pescarias,


inca<strong>de</strong>iras <strong>na</strong> floresta, encontros com caçadores, turistas, exploradores, ou ce<strong>na</strong>s em que se<br />

<strong>de</strong>param com o espaço urbano (ou se encontram com turistas, cientistas, fotógrafos). Estas histórias<br />

atribuem aos meninos à ação, a aventura, a ousadia e a coragem. As meni<strong>na</strong>s aparecem como<br />

perso<strong>na</strong>gens coadjuvantes sendo que o cenário ocupado por elas é o doméstico. Brincar <strong>de</strong> casinha,<br />

brincar <strong>de</strong> fazer comida, <strong>de</strong> cuidar das crianças, domesticar animais <strong>de</strong> pequeno porte, enfeitar-se<br />

com flores e coisas da <strong>na</strong>tureza, são ações comuns empreendidas pelas meni<strong>na</strong>s.<br />

Nos quadros <strong>de</strong>stas <strong>na</strong>rrativas, as mulheres adultas são mães, “femini<strong>na</strong>mente” envolvidas<br />

em ativida<strong>de</strong>s domésticas. Elas aparecem, <strong>na</strong>s histórias a<strong>na</strong>lisadas, executando tarefas “do lar”,<br />

cozinhando, varrendo, lavando, recebendo produtos <strong>de</strong> caça e <strong>de</strong> pesca, carregando potes. As<br />

mulheres não-índias, que entram em ce<strong>na</strong> em algumas histórias, são apresentadas também em<br />

cenários domésticos, realizando ativida<strong>de</strong>s consi<strong>de</strong>radas femini<strong>na</strong>s. Na história Um ursinho para<br />

Jurema uma família acampa próximo à al<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> Papa-Capim. Nos quadros iniciais a família<br />

estrutura o acampamento – o pai monta a barraca enquanto a mãe e a filha aparecem organizando as<br />

panelas e a comida. Numa seqüência posterior a mãe costura o braço do ursinho <strong>de</strong> pelúcia <strong>de</strong> sua<br />

filha enquanto o pai sai para caçar.<br />

Na história Papa-Capim encontra Chico Bento o perso<strong>na</strong>gem e seu amigo Cafuné saem pela<br />

mata e chegam ao sítio <strong>de</strong> Chico Bento. No caminho Papa-Capim se machuca e é socorrido. Na<br />

casa do sítio, o perso<strong>na</strong>gem fica aos cuidados da mãe <strong>de</strong> Chico Bento, que lhe faz curativos, prepara<br />

alimentos, cercando-o <strong>de</strong> cuidados “mater<strong>na</strong>is”. Construídas como figuras conciliadoras e passivas,<br />

em geral as mulheres e meni<strong>na</strong>s não participam das “ce<strong>na</strong>s <strong>de</strong> ação” que quase sempre se<br />

<strong>de</strong>senrolam <strong>na</strong> mata – espaço masculino. Há, porém, histórias em que mulheres ou meni<strong>na</strong>s<br />

provocam conflitos, como em O gran<strong>de</strong> Caçador, que inicia com um grupo <strong>de</strong> meni<strong>na</strong>s caçoando<br />

<strong>de</strong> Papa-Capim porque ele não consegue ser um bom caçador. Outro exemplo em que a figura<br />

femini<strong>na</strong> escapa <strong>de</strong>sta representação conciliadora é quando sua atenção é disputada por perso<strong>na</strong>gens<br />

masculinos, como ocorre em Potira. Embora ela seja <strong>de</strong>scrita como meiga e <strong>de</strong>licada, sua presença<br />

provoca disputas entre os jovens da al<strong>de</strong>ia – e a ação, portanto, é atribuída aos homens.<br />

A vida doméstica é reservada à mulher indíge<strong>na</strong>, o mesmo ocorrendo com a maternida<strong>de</strong>,<br />

vista como algo inerente à condição femini<strong>na</strong>. Colocadas neste lugar, as perso<strong>na</strong>gens das histórias<br />

do Papa-Capim colaboram com aquilo que Meyer (2005, p. 151) chama <strong>de</strong> “politização<br />

contemporânea do feminino e da maternida<strong>de</strong>”, um conjunto <strong>de</strong> dispositivos e <strong>de</strong> investimentos para<br />

constituir <strong>de</strong>termi<strong>na</strong>dos modos <strong>de</strong> ser mulher e <strong>de</strong> ser mãe. Ao a<strong>na</strong>lisar programas <strong>de</strong> educação em<br />

saú<strong>de</strong> a autora conclui que estes investimentos funcio<strong>na</strong>m para subjetivar mulheres, posicio<strong>na</strong>ndoas<br />

no cuidando da prole e <strong>na</strong> garantia <strong>de</strong> um ambiente saudável. E como a <strong>produção</strong> <strong>de</strong> sujeitos<br />

femininos e masculinos acontece em uma re<strong>de</strong> <strong>de</strong> práticas e <strong>de</strong> discursos, po<strong>de</strong>-se afirmar que a<br />

leitura <strong>de</strong> histórias em quadrinhos que posicio<strong>na</strong>m meni<strong>na</strong>s e meninos/ mulheres e homens nesta


mesma lógica são produtivas, elas colaboram para <strong>na</strong>turalizar construções culturais, produzir e fixar<br />

posições sociais <strong>de</strong> <strong>gênero</strong>.<br />

Narrativas como estas tor<strong>na</strong>m visível o funcio<strong>na</strong>mento <strong>de</strong> atributos sociais masculinos e<br />

femininos – construídos como par binário. Homens e mulheres são <strong>de</strong>scritos a partir <strong>de</strong> condutas, <strong>de</strong><br />

práticas, <strong>de</strong> atitu<strong>de</strong>s, <strong>de</strong> modos <strong>de</strong> ser que estariam <strong>na</strong> “essência” <strong>de</strong>sses sujeitos. Às mulheres<br />

cabem gestos <strong>de</strong>licados, a fragilida<strong>de</strong>, a afetivida<strong>de</strong>, o trato com as coisas da casa, o cuidado das<br />

crianças. Aos homens cabe a ousadia, a força, a racio<strong>na</strong>lida<strong>de</strong>, a coragem, a aptidão física, a<br />

“conquista” do mundo exterior (para além do espaço privado), o provimento <strong>de</strong> bens e alimentos<br />

(caça, coleta, pesca, construção, estruturação do espaço...). Ao <strong>na</strong>rrar em oposição homem/mulher,<br />

as histórias do Papa-Capim articulam outros bi<strong>na</strong>rismos como por exemplo<br />

racio<strong>na</strong>lida<strong>de</strong>/sensibilida<strong>de</strong>; força/<strong>de</strong>lica<strong>de</strong>za; ativida<strong>de</strong>/passivida<strong>de</strong>.<br />

Na história intitulada Perdidos..., um casal <strong>de</strong> turistas não consegue encontrar o caminho<br />

para casa e acaba encontrando-se com Papa-Capim no meio da floresta. A história tem diversos<br />

quadros <strong>de</strong> ação, nos quais o homem toma a iniciativa, luta contra feras, procura ajuda, consola e<br />

mulher que aparece in<strong>de</strong>fesa, histérica, amedrontada. As ce<strong>na</strong>s <strong>de</strong> ação são marcadas pela força,<br />

coragem e racio<strong>na</strong>lida<strong>de</strong> masculi<strong>na</strong> – <strong>na</strong> figura do homem ou <strong>de</strong> Papa-Capim – e pela frágil<br />

condição femini<strong>na</strong>, que grita, chora e pe<strong>de</strong> socorro.<br />

Em O pequeno Cauí o suposto di<strong>na</strong>mismo do mundo masculino indíge<strong>na</strong>, em oposição à<br />

monotonia do mundo feminino é apresentado <strong>de</strong> maneira bastante evi<strong>de</strong>nte. No início da história<br />

um bebê indíge<strong>na</strong> está em uma re<strong>de</strong> e, escapando ao olhar protetor da mãe, segue o pai,<br />

envolvendo-se em aventuras, perigos e muita ação, <strong>na</strong>s quais o pai se esforça para mantê-lo a salvo.<br />

Nos quadros fi<strong>na</strong>is o pai <strong>de</strong>volve o bebê à mãe, que comenta não enten<strong>de</strong>r por que ele não fica<br />

sossegado <strong>na</strong> re<strong>de</strong>. Um balão traduz o pensamento do bebê: “aqui é tão chato, não acontece <strong>na</strong>da”,<br />

enquanto a ce<strong>na</strong> mostra a mãe sentada ao chão, com feições entristecidas, preparando alimentos,<br />

num cenário quase vazio.<br />

A construção <strong>de</strong> sujeitos generificados ocorre <strong>de</strong> forma relacio<strong>na</strong>l, em relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r. O<br />

que se procura instituir são i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s fixas, que suturam o sujeito à estrutura social. Louro (1997)<br />

a<strong>na</strong>lisa os lugares sociais <strong>de</strong> <strong>gênero</strong> como sendo padrões ou regras arbitrárias que uma socieda<strong>de</strong><br />

estabelece para seus membros e que produzem sujeitos com <strong>de</strong>termi<strong>na</strong>dos comportamentos, atitu<strong>de</strong>s<br />

e modos <strong>de</strong> relacio<strong>na</strong>mento.<br />

Discutindo a noção <strong>de</strong> <strong>gênero</strong>, Meyer (2005) conclui que ela se constrói em relação e opera<br />

como um organizador da socieda<strong>de</strong> e da cultura, processo que engloba todas as práticas a partir das<br />

quais se distinguem os sujeitos femininos e masculinos, marcando os corpos e dotando-os <strong>de</strong><br />

distinções quanto ao sexo e a sexualida<strong>de</strong>. <strong>Gênero</strong> é, então, constituinte <strong>de</strong> sujeitos e <strong>de</strong> relações <strong>de</strong><br />

po<strong>de</strong>r, produtor e produzido <strong>na</strong> linguagem.


Partindo <strong>de</strong>ste referencial, é importante indagarmos quais nos ensi<strong>na</strong>m sobre <strong>gênero</strong> e quais<br />

discursos estão implicados nestas construções. As <strong>na</strong>rrativas do cotidiano, da mídia, da escola, da<br />

<strong>literatura</strong>, dos quadrinhos, entre tantas outras, colaboram <strong>na</strong> <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> lugares sociais, <strong>na</strong>rrando<br />

práticas a<strong>de</strong>quadas (ou normais) para cada sujeito, ocupando seu lugar.<br />

Os quadrinhos do Papa-Capim colaboram para marcar <strong>de</strong>termi<strong>na</strong>dos modos <strong>de</strong> ser sujeito –<br />

feminino ou masculino – investimento que funcio<strong>na</strong> porque se articula a outros artefatos, a outros<br />

saberes, a um conjunto <strong>de</strong> práticas e processos <strong>de</strong> aprendizagem que nos constroem para sermos o<br />

que somos. E as <strong>na</strong>rrativas nos ensi<strong>na</strong>m sobre ser mulher e homem, meni<strong>na</strong> e menino, regulando<br />

práticas, autorizando atitu<strong>de</strong>s, preferências para uns e interditando-as para outros. Estas histórias<br />

ensi<strong>na</strong>m sobre quem pensa e quem executa, quem é ativo e quem é passivo, quem é protagonista e<br />

quem é coadjuvante. As coisas parecem ser o que são/ o que sempre foram, pois as <strong>na</strong>rrativas não<br />

problematizam sua historicida<strong>de</strong> e as relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r a partir das quais se constroem os lugares <strong>de</strong><br />

sujeito.<br />

QUADROS DE “BELEZA FEMININA”<br />

Santos (1998), Sant’An<strong>na</strong> (2002), Meyer (2005), entre outros, tem produzido estudos sobre<br />

corpo, numa abordagem pós-estruturalista, e têm ressaltado que no corpo se imprimem marcas<br />

distintas, valorações culturais que não são <strong>na</strong>turais, mas fabricadas <strong>na</strong> cultura, em relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r.<br />

Produzem-se formas <strong>de</strong> conceber o corpo, e variadas práticas <strong>de</strong> cuidado vão sendo instituídas<br />

como “<strong>na</strong>turais” e indispensáveis para mantê-lo saudável. E isso se produz em diferentes discursos,<br />

por variados meios, entre os quais <strong>de</strong>staco, neste texto, as histórias em quadrinhos, que colaboram<br />

neste empreendimento, fazendo circular certos jeitos <strong>de</strong> ser criança – meni<strong>na</strong> ou menino – e <strong>de</strong> ser<br />

mulher e homem. As histórias do Papa-Capim têm como cenário a vida indíge<strong>na</strong>, mas organizam os<br />

<strong>gênero</strong>s a partir <strong>de</strong> construções próprias da cultura a partir da qual estão sendo <strong>na</strong>rrados estes povos.<br />

É interessante observar que os corpos femininos <strong>de</strong>senhados nestas histórias têm, em geral,<br />

traços mais retos, sem muitas curvas – escapando ao apelo usual <strong>de</strong> feminilida<strong>de</strong>, expresso em<br />

traços curvilíneos, jovens e magros, marcado nos corpos <strong>de</strong> algumas outras perso<strong>na</strong>gens <strong>de</strong><br />

Maurício <strong>de</strong> Sousa. No entanto, quando as histórias do papa-Capim fazem alusão à beleza femini<strong>na</strong><br />

ou à práticas <strong>de</strong> embelezamento, articulam-se outros discursos e concepções estéticas. Nas histórias<br />

que tratam <strong>de</strong> mulheres indíge<strong>na</strong>s belas, elas são <strong>de</strong>senhadas com traços que associam beleza ‘a<br />

magreza. Também as mulheres não-índias que aparecem <strong>na</strong>s histórias – e que <strong>na</strong> <strong>na</strong>rrativa cativam<br />

os perso<strong>na</strong>gens principais - são <strong>de</strong>finidas a partir <strong>de</strong> concepções estéticas valorizadas pela cultura<br />

oci<strong>de</strong>ntal, <strong>na</strong> atualida<strong>de</strong>.<br />

Observando discursos midiáticos - anúncios publicitários, revistas femini<strong>na</strong>s, programas <strong>de</strong><br />

TV –, bem como discursos da ciência, da medici<strong>na</strong> e do cotidiano, po<strong>de</strong>-se afirmar que a beleza<br />

femini<strong>na</strong> é associada a corpos magros, altos, jovens, maquiados, mo<strong>de</strong>lados, sem as marcas do


tempo, sem cicatrizes, sem história. Vários textos <strong>na</strong>rram e constituem os corpos, articulando<br />

discursos e subjetivando-nos, em especial, ao discurso do corpo magro como corpo belo.<br />

É importante ressaltar que <strong>na</strong>s histórias em quadrinhos, como em qualquer <strong>na</strong>rrativa, operam<br />

diferentes discursos, que ora se reforçam, ora se opõem. Nas ce<strong>na</strong>s <strong>de</strong> algumas histórias <strong>de</strong>sfilam<br />

noções <strong>de</strong> beleza diferentes, a exemplo da história Feio ou Bonito. Trata-se <strong>de</strong> uma <strong>na</strong>rrativa em<br />

que Papa-Capim e seu amigo Cafuné estão perdidos <strong>na</strong> mata e encontram povos nomeados como<br />

“esquisitos”. Cada quadro apresenta um biotipo distinto, corpos gordos e magros, altos e baixos,<br />

nus e vestidos, e cada qual imprime seu olhar sobre os perso<strong>na</strong>gens Papa-Capim e Cafuné,<br />

afirmando serem eles feios, estranhos, magros <strong>de</strong>mais, gordos <strong>de</strong>mais, brancos ou bronzeados<br />

<strong>de</strong>mais. Embora inicie marcando quem é “normal” e quem é “esquisito”, a <strong>na</strong>rrativa parece <strong>de</strong>slocar<br />

noções estéticas, apresentando enfoques diferentes em culturas diversas. É interessante observar que<br />

há certo exagero ao <strong>de</strong>senhar corpos gordos, altos ou baixos, que serve como marcador da<br />

diferença, permitindo pensar que, mais do que registrar, é necessário caricaturá-las, tor<strong>na</strong>ndo-as<br />

exóticas.<br />

Nas palavras <strong>de</strong> Woodward (2000), “o corpo é um dos locais envolvidos no estabelecimento<br />

das fronteiras que <strong>de</strong>finem quem nós somos, servindo <strong>de</strong> fundamento para a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>” (p. 15). No<br />

pólo oposto à i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> são situados os outros, para os quais se reserva os atributos que não<br />

<strong>de</strong>sejamos para nós mesmos.<br />

Para fi<strong>na</strong>lizar, diria que as histórias do Papa-Capim dão o que pensar. Elas fazem pensar <strong>na</strong>s<br />

práticas que nos subjetivam e nos posicio<strong>na</strong>m em relações sociais. Permitem pensar <strong>na</strong> importância<br />

<strong>de</strong> problematizar, em cada tempo, em cada contexto, em cada socieda<strong>de</strong>, como/através <strong>de</strong> quais<br />

mecanismos e com que efeitos se constituiu – e se constitui – noções sobre certo/errado,<br />

saudável/doente, bonito/feio, estético/grotesco, normal/anormal. Problematizar estas construções<br />

discursivas, indagando sobre relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r-saber que operam produzindo os corpos, produzindo<br />

sujeitos, produzindo i<strong>de</strong>ntificações (mesmo que transitórias), po<strong>de</strong> ser uma das maneiras <strong>de</strong> alargar<br />

o foco do olhar.<br />

A análise das produções do Papa-Capim me inspirou a pensar, como Homi Bhabha (2003)<br />

<strong>na</strong> importância <strong>de</strong> nos permitirmos escutar <strong>na</strong>rrativas outras – e <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejarmos que sejam<br />

produzidas e que circulem histórias <strong>de</strong> sujeitos posicio<strong>na</strong>dos no pólo fraco da oposição que<br />

construímos para or<strong>de</strong><strong>na</strong>r as coisas do mundo, num esforço para estabelecer outras conexões, outras<br />

relações, outras formas possíveis <strong>de</strong> <strong>na</strong>rrar aos outros e a nós mesmos.


REFERÊNCIAS<br />

BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: UFMG, 2003.<br />

FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências huma<strong>na</strong>s. 8 ed. São Paulo:<br />

Martins Fontes, 1999.<br />

HALL, Stuart. A centralida<strong>de</strong> da cultura: notas sobre as revoluções <strong>de</strong> nosso tempo. Educação &<br />

Realida<strong>de</strong>, Porto Alegre, v. 22, n. 2, jul./<strong>de</strong>z., 1997. p. 15-46.<br />

LARROSA, Jorge. Tecnologias do eu e educação. In: SILVA, Tomaz Ta<strong>de</strong>u. O sujeito da educação:<br />

estudos foucaultianos. Petrópolis: Vozes, 1994.<br />

LOURO, Guacira Lopes. <strong>Gênero</strong>, sexualida<strong>de</strong> e educação: uma perspectiva pós-estruturalista. 3ªed.<br />

Petrópolis: Vozes, 1997.<br />

MEYER, Dagmar E. Escola, currículo e <strong>produção</strong> <strong>de</strong> diferenças e <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> <strong>gênero</strong>. In:<br />

SCHOLZE, Lia (Org.)<strong>Gênero</strong>, memória e docência. Porto Alegre: Prefeitura Municipal <strong>de</strong> Porto<br />

Alegre, Secretaria Municipal <strong>de</strong> Educação, 2001. p. 29-34.<br />

______. Educação, saú<strong>de</strong> e politização da maternida<strong>de</strong>: olhares <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a articulação entre Estudos<br />

Culturais e Estudos <strong>de</strong> <strong>Gênero</strong>. In: SILVEIRA, Rosa H. (Org). Cultura, po<strong>de</strong>r e educação: um <strong>de</strong>bate<br />

sobre Estudos Culturais em educação. Canoas: Ed. ULBRA, 2005. pp.145-163<br />

SANT’ANNA, Denise B. Transformações do corpo: controle <strong>de</strong> si e uso dos prazeres. In: rago, M.<br />

Orlandi, L.B.L. e Veiga-Neto, A. Imagens <strong>de</strong> Foucault e Deleuze: ressonâncias nietzschia<strong>na</strong>s. Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro: DP&A, 2002. p. 99-110.<br />

SANTOS, Luís Henrique S. Um olhar caleidoscópico sobre as representações culturais <strong>de</strong> corpo. Porto<br />

Alegre: UFRGS, 1998. Dissertação ( Mestrado em Educação) – Programa <strong>de</strong> Pós Graduação em<br />

Educação, Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Educação, UFRGS, Porto Alegre, 1998.<br />

WOODWARD, Kathryn. I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> e diferença: uma introdução histórica e conceitual. In: SILVA,<br />

Tomaz Ta<strong>de</strong>u (Org). I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis, Vozes,<br />

2000. p. 7-72.<br />

REVISTAS EM QUADRINHOS ANALISADAS NESTE TRABALHO:<br />

CASCÃO (alma<strong>na</strong>que). A visita. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Globo, n. 75, 2003.<br />

CHICO BENTO. O talento <strong>de</strong> cada um. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Globo, n. 222, 1995.<br />

________.O encrenqueiro. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Globo,n. 224, 1995.<br />

________. O melhor caçador da al<strong>de</strong>ia. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Globo,n. 227, 1995.<br />

________. Quando crescer. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Globo,n. 372, 1997.<br />

________(alma<strong>na</strong>que). Presente i<strong>de</strong>al. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Globo,n.62 , 2001.<br />

________(alma<strong>na</strong>que). Estilo selvagem. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Globo,n. 63, 2001.<br />

________(alma<strong>na</strong>que). Perdidos. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Globo,n. 64, 2001.<br />

________. O gran<strong>de</strong> caçador. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Globo,n. 370, 2001.<br />

________. O mistério. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Globo,n. 371 , 2001.<br />

________. Pega o tatu. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Globo,n. 412, 2002.<br />

________(alma<strong>na</strong>que). Papa-Capim encontra Chico Bento. Rio <strong>de</strong> Janeiro:Globo,n.82 , 2004.<br />

________. Pagando o maior sapo. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Globo,n. 83, 2004.<br />

________(alma<strong>na</strong>que). Roubo do fogo. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Globo,n. 85, 2004.<br />

________. Sonhos que sonhamos dormindo. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Globo,n. 432, 2004.<br />

________. A imagem. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Globo,n. 438, 2004.<br />

________. Esse rio é perigoso. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Globo,n. 441, 2004.<br />

________. Cuidado com o Mbãe-Tatá. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Globo,n. 442, 2004 .<br />

________. Um ursinho para Jurema. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Globo,n. 445, 2005.<br />

________. Potira. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Globo,n. 338, ?<br />

MAGALI (alma<strong>na</strong>que). O pequeno Cauí. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Globo,n. 47, 2005.<br />

MÔNICA (alma<strong>na</strong>que). Feio ou bonito? Rio <strong>de</strong> Janeiro: Globo,n.17, 2002.

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!