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representações visuais das mulheres nos ... - Fazendo Gênero

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<strong>Fazendo</strong> gênero e rompendo fronteiras – ST 50<br />

Profª. Drª. Regina Maria da Cunha Bustamante 1<br />

Introdução<br />

Toalete feminina na antigüidade tardia: entre imagem e escritos 2<br />

Na Antigüidade, a imagem se inseria, ainda mais profundamente que a escrita, na vida cotidiana,<br />

recontando narrativas míticas e familiarizando seus integrantes uns com os outros através de<br />

<strong>representações</strong> de situações idealiza<strong>das</strong> e vivencia<strong>das</strong>. Neste trabalho, atentou-se para o sentido da<br />

imagem de um mosaico. A imagem foi vista como uma ferramenta de comunicação na medida em<br />

que transmite uma mensagem. Na leitura do discurso imagético do mosaico, abordaram-se suas<br />

condições de produção e cotejou-se com os discursos escritos, relacionando-o a sociedade, sua<br />

cultura e seus códigos de linguagem. As imagens apresentam uma narrativa a partir de um<br />

repertório comum de elementos estáveis e constantes da sociedade vigente. Muitas vezes, elas<br />

acentuam significativamente o aspecto construtivo e identitário da representação, provocando<br />

associações sistemáticas que servem para significar determinado objeto ou grupo, atribuindo-lhe<br />

qualidades elabora<strong>das</strong> socioculturalmente. Condizente com esta diretriz, a análise do mosaico<br />

centrou-se na questão de gênero, compreendido como uma divisão cultural dos sexos, construída<br />

histórica e socialmente, enquanto uma interação entre homens e <strong>mulheres</strong> ao longo do complexo<br />

contexto cultural mediterrâneo. Considerou-se gênero como um elemento constitutivo <strong>das</strong> relações<br />

sociais funda<strong>das</strong> sobre as diferenças, isto é, mais uma maneira de significar relações de poder.<br />

1. Traçando o contexto de produção do discurso imagético<br />

O mosaico selecionado decorava o vestíbulo de uma grande sala de banho privativo de uma<br />

residência na África Proconsular (atual Tunísia), antigo território cartaginês, que se tornou a 1 a .<br />

província romana na África do Norte. De notória importância econômica para Roma, esta região<br />

desenvolveu uma intensa vida urbana, em parte herdada dos púnicos. A elite provincial, cuja<br />

riqueza advinha <strong>das</strong> propriedades fundiárias, manifestou seu estilo de vida e seu ideário na<br />

decoração de suas residências urbanas e rurais, valendo-se de um repertório visual disseminado e<br />

conhecido pela sociedade para ressaltar o seu prazer de viver, poder e prestígio social. Sendo do<strong>nos</strong><br />

<strong>das</strong> grandes herdades, controlavam a exploração agrícola e a comercialização da tríade mediterrânea<br />

(trigo, oliveira e vinha) e dominavam a vida social e política local. Eram eles também os clientes<br />

majoritários dos mosaístas da região.<br />

Na África do Norte, já havia uma tradição púnica na arte dos mosaicos. Depois da destruição de<br />

Cartago (146 a.C.), houve uma interrupção desta tradição, embora subsistisse em algumas cidades<br />

púnicas. Por volta do final do séc. I e do início do II, mosaístas norte-africa<strong>nos</strong> criavam mosaicos


geométricos em preto e branco com padrões muito simples, similares aos mosaicos italia<strong>nos</strong> do<br />

mesmo período. Somente a partir de meados do séc. II, os mosaístas da região começaram a se<br />

libertar da estética italiana. Distinguiram-se pela adoção da policromia, pela decoração vegetal<br />

sofisticada e pelas temáticas relaciona<strong>das</strong> à vida cotidiana, principalmente, aos aspectos caros à elite<br />

local, que comissionavam os mosaicos. O séc. IV e boa parte do V foram o período áureo do estilo<br />

musivo norte-africano; o mosaico selecionado é deste período: sua datação é do início do séc. V.<br />

Ele foi confeccionado com tesselas colori<strong>das</strong> em fundo branco e apresenta a toalete feminina.<br />

2. Cotejando o discurso imagético com os escritos<br />

No mosaico, destaca-se a figura de uma mulher, que está numa posição de prestígio: foco da ação,<br />

sentada, ricamente vestida e ornada e sendo servida por outras duas <strong>mulheres</strong>. O centro do mosaico<br />

enfatiza o esmero no adorno, situação típica do universo feminino associado à beleza. Apresenta-se<br />

a fase final do tocador quando a senhora, assessorada por duas servas, enfeita-se com jóias (colar de<br />

pérolas, brincos, numerosas pulseiras e tiara colorida no cabelo). O banho em si, motivo mais<br />

diretamente relacionado à função do cômodo do mosaico, está apenas insinuado por numerosos<br />

acessórios: um par de sandálias, uma caixa com toalhas, uma bacia em forma de concha univalve,<br />

uma ânfora, dois baldes e uma caixa hexagonal com uma pequena corrente. Em vista da exigüidade<br />

de espaço para desenvolver todos os aspectos desta imagem, optou-se por fazer um recorte na cena<br />

do adorno feminino, que ocupa uma posição de destaque no mosaico, não abordando assim a<br />

questão do banho e seus apetrechos.<br />

No mosaico, o tocador da senhora lembra o da deusa do amor e da beleza, Vênus/Afrodite, uma <strong>das</strong><br />

mais populares divindades no panteão clássico. Nos textos escritos (e.g. Hino Homérico para<br />

Afrodite II, 5-11), eram as Horas que ajudavam a deusa, enquanto, <strong>nos</strong> textos imagéticos<br />

(monumentos funerários, afrescos, mosaicos...), eram os Cupidos. No mosaico, esta função era<br />

realizada pelas servas que seguram o cofre <strong>das</strong> jóias e estendem o espelho para a senhora. Assim, os<br />

comanditários do mosaico exaltavam as virtudes, o poderio e o carisma da divindade e também se<br />

beneficiavam de uma parcela do seu triunfo e benesses. Era uma maneira de se aparentar, se situar e<br />

se identificar. A reprodução deste modelo revela a cultura clássica entre a elite; mesmo com a<br />

cristianização do Império, estava presente e era valorizada na decoração doméstica. O seu uso era<br />

fator de distinção e enobrecedor, pois permitia se identificar, se lembrar da “sua memória” e se<br />

colocar ao lado daqueles que podiam e sabiam se lembrar: reconheciam-se apenas os que tinham<br />

uma história que sabiam contá-la para seduzir e se fazer respeitar.<br />

Neste mesmo contexto, há uma outra narrativa mítica sobre o adorno feminino que se aproxima do<br />

modelo venusiano: a criação de Pandora, a 1 a . mulher. Nos relatos hesiódicos (Teogonia vv. 581-<br />

585; Os trabalhos e os dias vv. 42-105), Pandora foi moldada da terra e da água por Hefesto e<br />

adornada com auxílio de outros deuses, por ordem de Zeus, como punição da raça humana, que


ecebera o fogo divino roubado por Prometeu. Cada um dos deuses lhe atribuiu um dom, dentre<br />

eles: a graça, o desejo e as “preocupações devoradoras de membros” por Afrodite e a capacidade de<br />

persuadir, seduzir e dissimular por Hermes. Pandora foi cingida por Atenas, as Graças e a Persuasão<br />

lhe puseram colares e as Horas, uma coroa de flores. Assim, tal qual no nascimento de<br />

Vênus/Afrodite, a 1 a . mulher mortal também se destacou pelo adorno visando o seu embelezamento<br />

e potencializando o seu “ardiloso” poder de sedução.<br />

Os escritos roma<strong>nos</strong> também trataram do adorno feminino, seja “ficcional” (e.g., A arte do<br />

cosmético feminino de Ovídio e a Sátira VI de Juvenal) ou “realisticamente”. Um exemplo foi a<br />

revogação da lei Ópia em 195 a.C. Esta lei estabelecia um limite à posse de quantidade de ouro pela<br />

mulher e lhe proibia o luxo no vestir. Com as constantes guerras, as propriedades foram reparti<strong>das</strong><br />

entre os membros sobreviventes da família, em sua maioria, <strong>mulheres</strong> e crianças. Além disso,<br />

muitos roma<strong>nos</strong> morreram intestados e, de acordo com a Lei <strong>das</strong> XII Tábuas (V, 4), a herança era<br />

distribuída entre filhos e filhas. Assim, a riqueza em poder <strong>das</strong> <strong>mulheres</strong> aumentou<br />

significativamente e foi ostensivamente mostrada (Plutarco. Vida de Catão, o Velho 18; Políbio.<br />

História XXI, 36, 6-10). As aristocratas manifestaram-se publicamente contra a lei Ópia (Tito<br />

Lívio. História de Roma XXXIV, 2-7). A supressão da lei foi justificada através da tradicional<br />

divisão entre os gêneros: ao homem, a política e a guerra e à mulher, o adorno e a beleza, sendo,<br />

portanto, natural que as <strong>mulheres</strong> se enfeitassem. A posição contrária defendia que as <strong>mulheres</strong><br />

deviam se submeter aos seus maridos, não se manifestar, se restringir ao ambiente doméstico,<br />

manter o decoro, a discrição e a simplicidade. Ao final, a lei Ópia foi ab-rogada (POMEROY, 1987:<br />

199-205). Tentou-se reproduzir o modelo tradicional feminino da Atenas Clássica, o da mélissa<br />

(mulher-abelha): passividade, submissão ao homem, silêncio, fragilidade, debilidade, sedentarismo,<br />

abstenção dos prazeres corporais (o sexo apenas para a procriação de filhos legítimos,<br />

preferencialmente do sexo masculino), atividades domésticas e exclusão da vida social, pública e<br />

econômica, restrição do cotidiano feminino ao interior do gineceu. A historiografia contemporânea<br />

questiona a reprodução deste modelo, sobretudo, presente <strong>nos</strong> escritos de origem masculina,<br />

preocupados em regrar especialmente o comportamento <strong>das</strong> esposas bem-nasci<strong>das</strong>, prescrevendo-<br />

lhes um modelo de recato e discrição (LESSA, 2001).<br />

Este paradigma também foi reproduzido <strong>nos</strong> discursos cristãos (BROWN, 1990; SALISBURY,<br />

1995). Tertuliano (O toucador <strong>das</strong> <strong>mulheres</strong> I, 1, 1-2), por exemplo, considerava que jóias,<br />

maquiagens, tinturas e tecidos eram de origem satânica, sig<strong>nos</strong> da ambição que se contrapunha a<br />

humildade, verdadeira essência da boa cristã. Para esta, o seu adorno incorruptível eram as virtudes<br />

cristãs que a preparavam para o matrimônio com Deus (Ibid. II, 13, 7). Para mulher pagã, que se<br />

dedicava a estes artifícios, o seu destino era a condenação no Dia do Juízo Final, pois toda atividade<br />

humana, que objetivava transformar a natureza <strong>das</strong> coisas, pressupunha um atentado contra a obra


divina, essencialmente perfeita (Ibid. II, 7). O luxo, trazido de diferentes regiões (Ibid. II, 8, 1-2),<br />

estava mais associado às <strong>mulheres</strong> (Ibid. II, 12, 2), como já apresentava Plínio, o Velho (História<br />

Natural XXI, 18, 84), que denunciou a fuga de recursos do Império Romano com a importação<br />

deste tipo artigo. Para Tertuliano (Ibid. I, 7, 2), o desejo insaciável de possuir jóias era considerado<br />

ostentatório, perdulário, cobiçoso e vão. Por sua vez, para Clemente de Alexandria, as jóias eram<br />

ornamentos próprios <strong>das</strong> meretrizes (Pedagogo II, 10, 121-122 e 127). As <strong>mulheres</strong> deviam se<br />

preocupar somente com o embelezamento interior através do adorno <strong>das</strong> boas obras, como referido<br />

por Paulo (Tim. 2, 9-11). To<strong>das</strong> as pedras preciosas, que exercem uma profunda fascinação sobre<br />

<strong>mulheres</strong> levianas, não se comparariam à única pedra santa: o Logós de Deus, chamado de pérola<br />

pelas Escrituras, ou seja, Jesus (Ibid. II, 12, 118, 3-5). De maneira similar, posicionou-se Jerônimo,<br />

que se correspondia com <strong>mulheres</strong> aristocratas, exortando-as a adotarem o ascetismo em sua vida<br />

familiar. 3 O gênero feminino era considerado naturalmente afeito a atrair o homem ou a buscar o<br />

prazer (Ep. 128, 2); seu comportamento era inclinado ao coquetismo e à lascívia (Ep. 130, 8). Para<br />

seduzir os homens, as <strong>mulheres</strong>, além de pintarem os olhos, rosto e cabelo, usavam jóias (Ep. 107).<br />

Os textos cristãos, inseridos num contexto polêmico e apologético, tenderam a apresentar a<br />

sociedade romana como luxuriosa e depravada moralmente por esta riqueza.<br />

No mosaico, a rica vestimenta feminina é claramente exposta e valorizada. A senhora traja um<br />

vestido longo e suntuoso, próprio a uma aristocrata casada. A roupa inseria-se na esfera da<br />

civilização humana com suas distinções sociais, diferenciando-se da nudez <strong>das</strong> divindades. Assim,<br />

Vênus/Afrodite, imagem da felicidade terrena e sensual, era quase sempre representada nua,<br />

oferecendo o seu corpo ao olhar de todos em atitude provocativa. Mas, a senhora do mosaico mostra<br />

apenas seus braços nus, insinuando sensualidade, mas, sobretudo, riqueza em virtude do bracelete e<br />

<strong>das</strong> várias pulseiras. Sua vestimenta permite inferir riqueza e autoridade. Ela imitava o imperador 4<br />

no seu faustoso vestuário. Na Antigüidade Tardia, os imperadores deixaram de exibir seu poder<br />

incontestável através da exposição do corpo nu e passaram a fazê-lo pelas vestimentas pesa<strong>das</strong><br />

(BROWN, 1990: 360). A roupa da senhora é um signo visível da riqueza da elite provincial.<br />

O cristianismo criticou o vestuário luxuoso. Agostinho, apesar de ciente da distinção entre a roupa<br />

do rico e a do pobre, lembrava que a pele era idêntica (Serm. 61, 2). Por sua vez, para Clemente de<br />

Alexandria (Pedagogo II, 10, 106, 4), não havia diferença sexual quanto à única missão da roupa:<br />

cobrir e proteger o corpo <strong>das</strong> diferenças de temperatura. Entretanto, reconhecia que se devia adotar<br />

um adendo que escondesse a masculinidade dos olhares femini<strong>nos</strong>, salvaguardando as <strong>mulheres</strong> <strong>das</strong><br />

tentações. Mas, não manifestou o mesmo receio com os homens, talvez por considerá-los mais<br />

resistentes às tentações e/ou por não ser uma característica cultural exigida pela sociedade vigente.<br />

Este autor fez uma única concessão à mulher: tecidos mais macios que os dos homens. O traje<br />

feminino era criticado principalmente pelo seu luxo (Ibid. II, 10, 107, 3). As roupas colori<strong>das</strong> e


chamativas eram para <strong>mulheres</strong> provocantes, participantes de bacanais e outras mascara<strong>das</strong> (Ibid.<br />

II, 10, 108, 1). Os gastos com vestuário feriam o pudor feminino e afetavam a economia familiar<br />

(Ibid. 10, 111, 1), além de provar que estas <strong>mulheres</strong> valiam me<strong>nos</strong> que as coisas raras e caras que<br />

compravam, pois não reconheciam o que era realmente belo e bom (Ibid. II, 10, 115, 4-5).<br />

Jerônimo considerou que certas <strong>mulheres</strong> eram “escravas do mundo” por portarem pesados vestidos<br />

de seda mesmo com o calor e o incômodo (Ep. 66, 13). Quando converti<strong>das</strong> ao cristianismo, deviam<br />

se vestir com tecidos humildes (Ep. 107) e usar roupas simples somente para proteger seu corpo <strong>das</strong><br />

intempéries e da nudez, nunca para exibições impudicas (Ep. 127). Aconselhava que as “jóias” de<br />

uma mulher deviam ser “o jejum, o rosto pálido e os vestidos descuidados” (Ep. 79).<br />

Segundo Marrou (1979: 17-23), houve uma verdadeira “revolução do vestuário” durante a<br />

Antigüidade Tardia. No período clássico, utilizava-se uma grande peça de tecido flexível, presa por<br />

um colchete ou fíbula e sem mangas. Porém, no decorrer da Antigüidade Tardia, a veste principal<br />

por dentro da toga, a túnica, passou a ter costuras continua<strong>das</strong> e a ser solidamente fixada ao corpo,<br />

constituindo-se muito me<strong>nos</strong> ampla que a antiga roupa. Tais mudanças não se limitaram à ordem<br />

plástica, mas ecoaram profundamente na atitude psicológica e até moral. Impôs-se uma outra<br />

definição do pudor, acompanhada de uma sublimação do erotismo.<br />

No mosaico, a senhora, além <strong>das</strong> jóias e do vestuário, também se destaca pelo penteado em coque,<br />

enfeitado por uma tiara. As outras <strong>mulheres</strong> do mosaico têm os cabelos presos numa touca, própria<br />

para o trabalho, o que Fantar (1994: 107) relaciona automaticamente à condição servil, enquanto o<br />

coque evoca sedução e ócio, situação própria da senhora.<br />

O cabelo foi considerado negativamente <strong>nos</strong> discursos cristãos. Tertuliano (O toucador <strong>das</strong><br />

<strong>mulheres</strong> II, 1) e Clemente de Alexandria (Pedagogo III, 2, 5, 1-4 e 6, 1-2) colocaram as tinturas, os<br />

penteados e os cuidados com a pele no mesmo nível da prostituição, oposta a castidade e pudicícia,<br />

próprias da moral cristã. Entretanto, o tingimento capilar não era apenas feminino (Clemente de<br />

Alexandria. Pedagogo III, 2). Havia também o frisado e as perucas (Jerônimo. Ep. 38, 3 e Clemente<br />

de Alexandria. Pedagogo II, 11). Mesmo quando as pagãs cobriam seus cabelos com véu, sendo<br />

este púrpura, atraíam os olhares de todos, o que não era conveniente a uma mulher decente<br />

(Clemente de Alexandria. Pedagogo II, 10, 114, 4). Estas deviam: abster-se de toda ostentação;<br />

cobrir a cabeça com véu para não mostrar os cabelos; manter o rosto velado, seguindo o prescrito<br />

em 1 Cor. 11, 7-10 (Ibid. II, 10, 114, 3); e escovar apenas os cabelos e prendê-los com uma presilha<br />

simples. O desprezo da beleza natural era considerado como uma ofensa ao Criador, descuidando-se<br />

por inteiro da beleza do coração e afetando a economia doméstica com a compra de cosméticos<br />

(Ibid. III, 6, 3-4). Recomendava-se, portanto, que as <strong>mulheres</strong> se afastassem destes artifícios se<br />

quisessem obter a salvação (Ibid. 2, 9, 1). Para Agostinho, o cabelo tornou-se signo do pecado


(Serm. 4, 14), um supérfluo (Serm. 62, 14), principalmente nas <strong>mulheres</strong> (Serm. 99, 13). Assim,<br />

cortar o cabelo foi visto como penitência (Serm. 112, 5).<br />

No mosaico, aparece ainda um outro atributo venusiano: o espelho, símbolo do próprio gênero<br />

feminino (♀), enquanto o masculino (♂) refere-se ao arco de Apolo. Frontisi-Ducroux e Vernant<br />

(1997: 9) consideram que, na Grécia Antiga, o espelho servia como um operador simbólico para<br />

pensar a relação entre os dois gêneros. Este objeto faz parte do universo e do espaço femini<strong>nos</strong>; se o<br />

espelho é portado pelo homem, o efeminiza (Ibid.: 56 e 59). Enquanto “o espelho masculino é o<br />

olho de um outro homem, seu semelhante e igual, em que cada um procura e encontra sua<br />

imagem” (Ibid.: 65), o espelho feminino é um objeto auto-reflexivo, egoisticamente apresentando a<br />

imagem da própria mulher, tal como no mosaico. Entre o espelho e a sua proprietária, a relação é<br />

permanente, permitindo uma constante contemplação (Ibid.: 55 e 59). O espelho tornou-se uma<br />

sinédoque da mulher, pois aparece como um prolongamento da mão feminina. Nos escritos, este<br />

objeto foi acentuado como produtor de falsos-semblantes, símbolo da vaidade e do orgulho,<br />

contrário ao recato e à discrição do modelo tradicional idealizado para as <strong>mulheres</strong>.<br />

A fertilidade feminina encontra-se presente no mosaico através <strong>das</strong> referências a Vênus/Afrodite,<br />

anteriormente explicita<strong>das</strong>. Na África do Norte, Vênus exerceu uma significativa fascinação tanto<br />

na elite quanto na população. Esta deusa estava intimamente relacionada à geração, ao despertar<br />

para vida e ao crescimento de plantas, constituindo-se numa divindade da fecundidade em to<strong>das</strong> as<br />

suas formas. Por isso, Vênus era popular entre os norte-africa<strong>nos</strong>, que a associaram a Astarté, a<br />

grande divindade da fertilidade e fecundidade, a quem adoravam no período cartaginês. Portanto,<br />

Vênus/Afrodite também estava associada aos ideais de fertilidade próprios da esposa e mãe.<br />

Conclusão<br />

Numa perspectiva intertexual entre o discurso imagético e os escritos, evidencia-se uma contradição<br />

sobre os ador<strong>nos</strong> femini<strong>nos</strong> (jóias, vestido, cabelo e espelho). Enquanto os escritos criticam<br />

qualquer tipo de artifício feminino, no mosaico analisado houve uma valorização.<br />

Tradicionalmente, o paradigma de comportamento recomendado às <strong>mulheres</strong> no mundo clássico – e<br />

apropriado em parte pelo cristianismo – pautou-se em diretrizes que privilegiavam sua atuação na<br />

esfera doméstica através da procriação, educação da prole e cuidados com a casa e, ao homem cabia<br />

o exercício político e militar na esfera pública. Tal idealização <strong>das</strong> <strong>mulheres</strong>, reproduzida<br />

principalmente pelos escritos, encontrou-se apenas parcialmente no discurso imagético do mosaico,<br />

questionando assim se este padrão desejado era praticado em sua íntegra. A iteração da crítica aos<br />

ador<strong>nos</strong> femini<strong>nos</strong> <strong>nos</strong> escritos pode ser indício da resistência <strong>das</strong> <strong>mulheres</strong> ao modelo tradicional.<br />

No mosaico, se, por um lado, têm-se categorias que inferem e reforçam positivamente o ideal de<br />

fecundidade e domesticidade associado comumente às <strong>mulheres</strong>, por outro, há categorias que<br />

valorizam o aspecto mundano da beleza e da sedução <strong>das</strong> <strong>mulheres</strong>, principalmente daquela


pertencente à elite, que os escritos tentaram “enquadrar”. Evidenciam-se então contradições,<br />

embates, negociações, táticas e astúcias nas relações de gênero durante a Antigüidade Tardia.<br />

Mesmo havendo um discurso normativo – estratégia da ordem estabelecida (Certeau, 1999: 99-100)<br />

– para o comportamento <strong>das</strong> <strong>mulheres</strong>, percebem-se “trilhas” heterogêneas ao sistema hegemônico<br />

onde se infiltram e se esboçam as astúcias de interesses e de desejos diferentes – a tática, a “arte<br />

dos fracos”, “determinada pela ausência de poder”, que se contrapõe à estratégia “organizada<br />

pelo postulado do poder” (Ibid.: 97, 100-102). Se a senhora aparece com maior possibilidade para<br />

romper o citado modelo tradicional, do qual era o alvo prioritário <strong>nos</strong> discursos escritos, abrindo<br />

espaço para uma representação “transgressora” como bela e sedutora, por outro lado, este aspecto<br />

“transgressor”, através <strong>das</strong> roupas, jóias e ociosidade, reforça a imagem de riqueza e de poder da<br />

elite terratenente, a qual a senhora pertence. Assim, aos temas relativos ao feminino, encontra-se<br />

também o da distinção social que demarca a riqueza senhorial. Os modos de representação visual<br />

<strong>das</strong> <strong>mulheres</strong> no mosaico analisado foram, portanto, construções socioculturais criando<br />

significações sobre o poder, gerando e mantendo suas hierarquias em diferentes níveis.<br />

Referências Bibliográficas<br />

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1 Filiação Institucional: Membro do Laboratório de História Antiga (LHIA) e do Programa de Pós-graduação em<br />

História Comparada (PPGHC) / UFRJ. Bolsista de Produtividade do CNPq.<br />

2 Palavras-chave: Antigüidade Tardia; <strong>Gênero</strong>; Adorno Feminino. Simpósio Temático: n o . 50.<br />

3 Além da importância do papel da mulher na vida familiar, havia também aspectos econômico, social e político em<br />

controlar as aristocratas: dotes, transferências de propriedades, alianças políticas e de influência nas famílias do grupo<br />

dirigente da sociedade.<br />

4 A reprodução do modelo imperial também se evidencia na posição majestática da senhora: ela está sentada numa<br />

poltrona. A mobília doméstica caracteriza a privacidade e domesticidade que contrastam com o espaço exterior e<br />

público do homem em suas atividades política e militar. Veyne (1998: 23-37) destaca a relação entre a poltrona e a<br />

mulher, como símbolo de sua posição de senhora da casa. No mosaico, a posição sentada da senhora contrasta com a<br />

<strong>das</strong> outras <strong>mulheres</strong>, que a ela se dirigem e a servem. Estas estão de pé em atividade servil, numa clara distinção social.

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