A estrutura do enredo em 'Vidas Secas' - Eutomia
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Revista <strong>Eutomia</strong> - Ano III - Volume 1 - Julho/2010<br />
1<br />
A <strong>estrutura</strong> <strong>do</strong> enre<strong>do</strong> <strong>em</strong> ‘Vidas Secas’<br />
Resumo:<br />
Este artigo analisa a <strong>estrutura</strong> <strong>do</strong> enre<strong>do</strong> <strong>do</strong> romance Vidas Secas, de Graciliano Ramos.<br />
Nossa intenção é discutir os graus de dependência e autonomia apresenta<strong>do</strong>s pelos planos<br />
narrativos, quan<strong>do</strong> considera<strong>do</strong>s <strong>em</strong> separa<strong>do</strong> e <strong>em</strong> relação com o to<strong>do</strong> <strong>do</strong> romance. Para<br />
tanto, verificar<strong>em</strong>os a presença de relações de causalidade, b<strong>em</strong> como a completude de ação<br />
observada nos contos que compõ<strong>em</strong> a narrativa total da obra.<br />
Palavras-chave: Vidas secas. Enre<strong>do</strong>. Autonomia. Dependência.<br />
Artigo 11<br />
Abstract:<br />
This essay analyzes the plot structure of the novel Barren lives, by Graciliano Ramos. Our<br />
intention is to discuss the degrees of dependence and autonomy presented by the narrative<br />
plans, when considered in th<strong>em</strong>selves and in relation to the whole novel. To <strong>do</strong> so, the<br />
presence of causality relations will be verified, as well as the action completeness observed in<br />
the short stories that compose the Work’s complete narrative.<br />
Key-Words: Barren lives. Plot. Autonomy. Dependence.<br />
I – Autonomia e dependência no enre<strong>do</strong> de Vidas Secas.<br />
Vidas secas integra a segunda geração modernista, conhecida como fase regionalista, perío<strong>do</strong> que teve<br />
como principal objetivo retratar a realidade social brasileira; Graciliano Ramos começa a produção desse<br />
romance com o conto “Baleia” e a partir dele vai construin<strong>do</strong> o enre<strong>do</strong> que narra, <strong>em</strong> terceira pessoa, o<br />
sofrimento de uma família de retirantes nordestinos composta pelo casal Fabiano e sinhá Vitória, os <strong>do</strong>is<br />
meninos e a cadela da família. Essas personagens segu<strong>em</strong> s<strong>em</strong> rumo pela caatinga, sofren<strong>do</strong> toda sorte de<br />
int<strong>em</strong>péries promovidas pela seca e pelo descaso social; são indivíduos que viv<strong>em</strong> à marg<strong>em</strong> da sociedade e têm<br />
todas as suas possibilidades de ascensão minguadas pelas condições inóspitas <strong>do</strong> espaço geográfico e indiferença<br />
das autoridades constituídas. Vidas secas é um romance composto por contos, que foram posteriormente<br />
converti<strong>do</strong>s <strong>em</strong> capítulos para compor um enre<strong>do</strong> uno; essa característica confere à obra certa singularidade. Ao<br />
to<strong>do</strong> são treze capítulos escritos de forma aleatória com relação à disposição final <strong>do</strong> livro.<br />
Nessa perspectiva, o objetivo deste artigo é analisar a <strong>estrutura</strong> <strong>do</strong> enre<strong>do</strong> de Vidas secas (RAMOS,<br />
2000). Para isso, investigar<strong>em</strong>os o nível de autonomia das suas partes com relação ao to<strong>do</strong> e o grau de<br />
dependência que estas traz<strong>em</strong> ao ser<strong>em</strong> analisadas dentro <strong>do</strong> contexto geral da narrativa. Com esse intento,<br />
far<strong>em</strong>os um recorte na obra e usar<strong>em</strong>os, com maior ênfase, três <strong>do</strong>s seus treze capítulos, “Baleia”, “O Solda<strong>do</strong><br />
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Amarelo” e “Cadeia”, onde de forma sucinta sublinhar<strong>em</strong>os os trechos que melhor se apresentar<strong>em</strong> ao nosso<br />
propósito.<br />
Para fundamentar nossa arguição sobre o enre<strong>do</strong> de Vidas secas, partir<strong>em</strong>os de um comentário feito<br />
por Mourão a respeito <strong>do</strong> estilo modernista que, segun<strong>do</strong> ele, Graciliano utiliza ao compor o referi<strong>do</strong> romance:<br />
[...] rompen<strong>do</strong> com o processo inventivo mais conserva<strong>do</strong>r, acabou pon<strong>do</strong> de pé uma <strong>estrutura</strong><br />
diante da qual falec<strong>em</strong> to<strong>do</strong>s os critérios esqu<strong>em</strong>atiza<strong>do</strong>res que pretendam distinguir entre<br />
princípio, meio e fim. O drama focaliza<strong>do</strong> não evolui <strong>em</strong> qualquer senti<strong>do</strong>. (MOURÃO, 1997,<br />
p. 119-120).<br />
Nessa fala, Mourão nos afirma, com certo exagero de ve<strong>em</strong>ência, que o romance Vidas secas v<strong>em</strong><br />
romper com o modelo tradicional até então vigente, no que se refere à forma narrativa; estamos diante de um<br />
rearranjo que apresenta como cerne de sua organização o redimensionamento <strong>do</strong>s el<strong>em</strong>entos que compunham a<br />
estética tradicional (de direcionamento aristotélico). Assim como outros autores modernistas, Graciliano<br />
promove uma quebra no princípio de linearidade, que era um <strong>do</strong>s critérios <strong>do</strong> enre<strong>do</strong> aristotélico no qual “a<br />
tragédia é imitação, não de pessoas, mas de uma ação [...]”. Analisan<strong>do</strong> a assertiva de que se imita ação e não<br />
pessoas e ten<strong>do</strong> como ponto de partida a pr<strong>em</strong>issa da equivalência entre ação e sequência de acontecimentos,<br />
pode-se dizer que esta apresenta uma <strong>estrutura</strong> com início, meio e fim, o que v<strong>em</strong> convergir para a causalidade e<br />
linearidade <strong>do</strong>s fatos, fazen<strong>do</strong> dessa conexão uma questão primordial ao enre<strong>do</strong> clássico, conforme nos elucida<br />
Aristóteles (1997, p. 26): “Assentamos que a tragédia é a imitação de uma ação acabada e inteira [...]. Inteiro é o<br />
que t<strong>em</strong> começo, meio e fim. [...]”.<br />
Diante dessa constatação aristotélica de que a ação deve apresentar-se de forma inteira e com as suas<br />
partes b<strong>em</strong> definidas, pod<strong>em</strong>os verificar a importância creditada à sequência <strong>do</strong>s acontecimentos; é esse<br />
encadeamento que promove a dependência entre as partes da narrativa, dependência no senti<strong>do</strong> de que, para ter<br />
significação, cada parte <strong>do</strong> plano da história precisa estar relacionada a outra, de mo<strong>do</strong> que a sua disposição no<br />
contexto e o seu entendimento estão atrela<strong>do</strong>s a esse princípio de linearidade. Assim nos reitera Ricoeur com a<br />
afirmativa de que<br />
[...] o muthos é a imitação de uma ação una e completa. Ora, uma ação é una e completa se t<strong>em</strong><br />
um começo, um meio e um fim, isto é, se o começo introduz o meio – peripécia e<br />
reconhecimento – conduz ao fim e se o fim conclui o meio. (RICOEUR, 1993, p. 34).<br />
Essa relação de dependência era uma constante no enre<strong>do</strong> clássico, to<strong>do</strong>s os fatos se interligavam numa<br />
<strong>estrutura</strong> fixa onde a narrativa tinha o seu traça<strong>do</strong> preestabeleci<strong>do</strong>; a ação era o ponto central e estava inserida<br />
<strong>em</strong> um t<strong>em</strong>po cronológico <strong>em</strong> que to<strong>do</strong>s os fatos se ligavam para culminar<strong>em</strong> na conclusão. Uma elaboração<br />
horizontal na qual os episódios apresentariam uma disposição alicerçada por relações de causa e efeito s<strong>em</strong> que<br />
nenhum el<strong>em</strong>ento viesse a divergir desse conjunto, ou seja, to<strong>do</strong>s os eventos estariam organiza<strong>do</strong>s <strong>em</strong> uma<br />
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crescente e conti<strong>do</strong>s no desenho da narrativa. A respeito dessa <strong>estrutura</strong> simétrica na qual se configurava o<br />
enre<strong>do</strong> clássico, Ricoeur faz a seguinte colocação:<br />
[...] a intriga só podia ser concebida como uma forma facilmente legível, fechada sobre si<br />
mesma, simetricamente disposta de um la<strong>do</strong> a outro de um ponto culminante, apoian<strong>do</strong>-se<br />
sobre uma ligação causal fácil de identificar entre o enlace e o desenlace, <strong>em</strong> suma, como uma<br />
forma <strong>em</strong> que os episódios seriam claramente <strong>do</strong>mina<strong>do</strong>s pela configuração. (RICOEUR,<br />
1995, p. 17)<br />
De acor<strong>do</strong> com Mourão, não é possível, <strong>em</strong> Vidas secas, assinalar critérios de sequência, uma vez que<br />
cada um <strong>do</strong>s contos pode ser li<strong>do</strong> <strong>em</strong> separa<strong>do</strong>, logo, se não há seguimento e n<strong>em</strong> disposição simétrica entre os<br />
episódios, não há, portanto, relação de causa e efeito entre os acontecimentos; esse não sequenciamento entre as<br />
ações é o que promove a autonomia das partes da narrativa, conferin<strong>do</strong>-lhe um caráter desmontável, já que estas<br />
não compõ<strong>em</strong> uma unidade sequencial <strong>em</strong> que to<strong>do</strong>s os pontos <strong>do</strong> enre<strong>do</strong> necessit<strong>em</strong> estar interliga<strong>do</strong>s para,<br />
dependen<strong>do</strong> dessa unicidade, ter<strong>em</strong> significa<strong>do</strong> completo.<br />
Uma fabulação auto-destrutiva se consome com regularidade à nossa frente, num ritmo, não de<br />
vorag<strong>em</strong>, mas de tranquila persistência, de laboriosa desmontag<strong>em</strong>. Não se compõe uma<br />
narrativa, compõ<strong>em</strong>-se narrativas nucleares, seccionadas, desde que coisa alguma ocorre <strong>em</strong><br />
perspectiva. Os fatos, de um mo<strong>do</strong> geral, terminam <strong>em</strong> si, não surgin<strong>do</strong> para ocupar lugar<br />
numa cadeia de acontecimentos e quan<strong>do</strong>, excepcionalmente, têm a faculdade de gerar<br />
consequência, a curto prazo essas se verificam ou a sua expectativa é desfeita, desarman<strong>do</strong><br />
incontinenti a curiosidade <strong>do</strong> leitor. (MOURÃO, 1971, p. 119)<br />
T<strong>em</strong>os, portanto, segun<strong>do</strong> Mourão um enre<strong>do</strong> episódico forma<strong>do</strong> por vários quadros que, de certa<br />
forma, se <strong>em</strong>anciparam <strong>do</strong> to<strong>do</strong> e não exerc<strong>em</strong> influência direta uns sobre os outros, ou seja, por ter<strong>em</strong> si<strong>do</strong><br />
escritos <strong>em</strong> separa<strong>do</strong> e <strong>em</strong> formato de contos, traz<strong>em</strong> uma <strong>estrutura</strong> completa onde um acontecimento não<br />
depende necessariamente de outro para se fazer entender; não t<strong>em</strong>os uma narrativa una, mas sim células<br />
independentes que apresentam autonomia <strong>em</strong> termos de senti<strong>do</strong>. Dessa forma, os capítulos tornam-se<br />
independentes e pod<strong>em</strong> ser li<strong>do</strong>s desirmana<strong>do</strong>s. No entanto a afirmativa de que a obra Vidas secas é um<br />
“romance desmontável” i , composto por “narrativas nucleares” e que suas partes não traz<strong>em</strong> relação entre si,<br />
parece-nos um equívoco, pois a narrativa <strong>em</strong> questão é antes uma composição circular na qual, sutilmente, os<br />
capítulos vão se resgatan<strong>do</strong> e se interligan<strong>do</strong>.<br />
Os capítulos de Vidas secas constitu<strong>em</strong>, se toma<strong>do</strong>s <strong>em</strong> separa<strong>do</strong>, histórias completas que contêm <strong>em</strong> si<br />
senti<strong>do</strong> pleno; usar<strong>em</strong>os, para ex<strong>em</strong>plificar essa completude de ação, o conto “Baleia” que descreve <strong>em</strong> uma<br />
narrativa linear a morte da cachorra. Pod<strong>em</strong>os dividi-lo <strong>em</strong> três momentos: 1) a apresentação <strong>do</strong> fato central da<br />
narrativa, que é a <strong>do</strong>ença de Baleia; 2) a tomada de decisão de Fabiano <strong>em</strong> matá-la e a angústia da família diante<br />
da constatação; e 3) o delírio e morte da cachorra.<br />
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No parágrafo que inicia o conto, t<strong>em</strong>os a descrição da enfermidade da cachorra, onde nos é dada a<br />
constatação <strong>do</strong> seu esta<strong>do</strong> e a iminência da sua morte se evidencia; essa descrição v<strong>em</strong> como informação<br />
introdutória da ação central e traz os motivos que servirão de respal<strong>do</strong> aos atos posteriores:<br />
A cachorra Baleia estava para morrer. Tinha <strong>em</strong>agreci<strong>do</strong>, o pêlo caíra-lhe <strong>em</strong> vários pontos, as<br />
costelas avultavam num fun<strong>do</strong> róseo, onde manchas escuras supuravam e sangravam, cobertas<br />
de moscas. As chagas da boca e a inchação <strong>do</strong>s beiços dificultavam-lhe a comida e a bebida.<br />
(RAMOS, 2000, p. 85)<br />
A partir da introdução, os acontecimentos se suced<strong>em</strong> <strong>em</strong> uma crescente <strong>em</strong> que a tensão inicia com a<br />
decisão tomada por Fabiano de sacrificar o animal: “Então Fabiano resolveu matá-la” (RAMOS, 2000, p. 85).<br />
Na sequência sinha Vitória leva os meninos para dentro da casa; angustiada tenta esconder o fato e se convencer<br />
de que essa é a única alternativa, “Ela também tinha o coração pesa<strong>do</strong>, mas resignava-se: naturalmente a decisão<br />
de Fabiano era necessária e justa. Pobre da Baleia” (RAMOS, 2000, p. 86.); enquanto isso Fabiano se prepara<br />
para a execução. Todas essas ações, envoltas <strong>em</strong> muita <strong>em</strong>oção, evolu<strong>em</strong> para o clímax, momento <strong>em</strong> que<br />
Fabiano consegue efetuar o disparo e atingir Baleia. “Ouvin<strong>do</strong> o tiro e os lati<strong>do</strong>s, sinha Vitória pegou-se à<br />
Virg<strong>em</strong> Maria e os meninos rolaram na cama, choran<strong>do</strong> alto. Fabiano recolheu-se. Baleia fugiu precipitada [...]”<br />
(RAMOS, 2000, p. 87). Da tomada de decisão de Fabiano ao instante <strong>em</strong> que o tiro é desferi<strong>do</strong> pode ser<br />
considera<strong>do</strong> como o desenvolvimento da narrativa. No terceiro e último momento <strong>do</strong> conto, que chamar<strong>em</strong>os<br />
aqui de desfecho, começa com o delírio de Baleia, logo depois que ela é ferida, e vai encerrar a narrativa com a<br />
morte da personag<strong>em</strong>.<br />
Baleia queria <strong>do</strong>rmir. Acordaria feliz, num mun<strong>do</strong> cheio de preás. E lamberia as mãos de<br />
Fabiano, um Fabiano enorme. As crianças se espojariam com ela, rolariam com ela num pátio<br />
enorme, num chiqueiro enorme. O mun<strong>do</strong> ficaria to<strong>do</strong> cheio de preás, gor<strong>do</strong>s, enormes.<br />
(RAMOS, 2000, p. 91)<br />
Dessa forma, o conto ii <strong>em</strong> questão segue a <strong>estrutura</strong> <strong>do</strong> enre<strong>do</strong> clássico, onde a narrativa t<strong>em</strong> ação<br />
completa com início, meio e fim, e os acontecimentos são apresenta<strong>do</strong>s de forma linear, poden<strong>do</strong> ser<br />
considera<strong>do</strong> como autônomo <strong>em</strong> relação aos d<strong>em</strong>ais contos que compõ<strong>em</strong> a obra. No entanto, se formos<br />
analisá-lo inseri<strong>do</strong> no contexto geral <strong>do</strong> romance, encontrar<strong>em</strong>os relação de continuidade e dependência com<br />
outros momentos da unidade textual, <strong>em</strong> especial pelo fato de a personag<strong>em</strong> Baleia, transitar por toda a<br />
narrativa, com a única exceção <strong>do</strong> capítulo “O solda<strong>do</strong> amarelo”, funcionan<strong>do</strong>, assim, como um fio que une as<br />
partes para acentuar a unidade <strong>do</strong> enre<strong>do</strong>. Vale ressaltar, no entanto, que uma forma de leitura (episódica) não<br />
descarta a outra (causal/linear), na verdade, elas funcionam como compl<strong>em</strong>entares, uma vez que o romance se<br />
presta a ambas.<br />
É importante mencionar que Baleia participa de to<strong>do</strong>s os capítulos que anteced<strong>em</strong> o da sua morte e<br />
posteriormente é l<strong>em</strong>brada com certo sau<strong>do</strong>sismo pelas outras personagens; logo, os capítulos posteriores a este,<br />
por fazer<strong>em</strong> alusão ao fato, não poderiam ser desloca<strong>do</strong>s s<strong>em</strong> que isso resultasse <strong>em</strong> modificações no enre<strong>do</strong>, o<br />
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que v<strong>em</strong> reiterar a presença de linearidade no mesmo. Como ex<strong>em</strong>plo da continuidade da personag<strong>em</strong> e<br />
consequent<strong>em</strong>ente <strong>do</strong> conto, tom<strong>em</strong>os três momentos pertencentes respectivamente aos capítulos “Contas”, “O<br />
mun<strong>do</strong> coberto de penas” e “Fuga”.<br />
[...] Pensou na mulher, nos filhos e na cachorra morta. Pobre de Baleia. Era como se ele tivesse<br />
mata<strong>do</strong> uma pessoa da família. (p. 98). Se a cachorra Baleia estivesse viva, iria regalar-se. (p.<br />
114). [...] Fabiano l<strong>em</strong>brou-se da cachorra Baleia, outro arrepio correu-lhe a espinha, o riso<br />
besta esmoreceu. (RAMOS, 2000, p. 123).<br />
Outro aspecto que nos parece relevante para verificarmos a presença da linearidade textual é o meio<br />
onde a obra é veiculada; por se tratar de um livro impresso no qual a sequência está, de certa maneira,<br />
estabelecida pela marca da horizontalidade contida na imposição tirânica das linhas, essa <strong>estrutura</strong> influencia o<br />
leitor a ter uma visão linear <strong>do</strong> enre<strong>do</strong>, mesmo que a este seja reserva<strong>do</strong> o direito de pular capítulos ou iniciar<br />
sua leitura de forma aleatória; mas, caso isso aconteça, a probabilidade de essa leitura tornar-se incompleta é<br />
maior (a ideia de incompleta está relacionada ao rompimento com o modelo tradicional de narrativas, no qual<br />
pre<strong>do</strong>mina a <strong>estrutura</strong> de início, meio e fim). Conclui-se, portanto, com isso, que a obra impressa t<strong>em</strong> como<br />
característica interna o princípio da linearidade, sen<strong>do</strong> assim apresenta o que Bellei (2005) denomina de<br />
“unit<strong>em</strong>poralidade”, ou seja, no texto impresso o leitor é leva<strong>do</strong> a começar a leitura na primeira página e<br />
terminar na última, obedecen<strong>do</strong> à forma predeterminada pelo autor. No entanto, se esta mesma obra for lida na<br />
forma de hipertexto, onde o leitor t<strong>em</strong> a promessa de total liberdade ofertada pelas várias possibilidades de links,<br />
nos quais não há um decurso a seguir, certamente essas relações de linearidade, observadas anteriormente,<br />
seriam quebradas pela independência que o leitor t<strong>em</strong> para escolher o seu roteiro de leitura; essa escolha consiste<br />
<strong>em</strong> selecionar e descartar alternativas, s<strong>em</strong> que esse processo venha afetar o entendimento da história. iii<br />
Com relação à dependência de senti<strong>do</strong>, pod<strong>em</strong>os verificá-la ao analisar os contos “Cadeia” e “O solda<strong>do</strong><br />
amarelo”, uma vez que este segun<strong>do</strong> faz referências e chega a citar trechos <strong>do</strong> anterior, o que lhes confere uma<br />
relação de causalidade obrigan<strong>do</strong>-os, de certa forma, a manter sua fixidez na disposição da obra. Em “Cadeia”<br />
Fabiano vai à feira na cidade e encontra-se pela primeira vez com o solda<strong>do</strong> amarelo que o convida para jogar<br />
um trinta-e-um. Fabiano resolve aban<strong>do</strong>nar o jogo e sai s<strong>em</strong> se despedir <strong>do</strong> solda<strong>do</strong> que o segue e o <strong>em</strong>purra;<br />
Fabiano tenta se defender: “Voss<strong>em</strong>ecê não t<strong>em</strong> o direito de provocar os que estão quietos.” (RAMOS, 2000, p.<br />
29), mas é preso, apanha e passa a noite na cadeia.<br />
No conto “O solda<strong>do</strong> amarelo”, t<strong>em</strong>os o relato <strong>do</strong> segun<strong>do</strong> encontro entre Fabiano e o mesmo solda<strong>do</strong>,<br />
que acontece na caatinga. Quan<strong>do</strong> Fabiano está à procura <strong>do</strong> vestígio de alguns animais, depara-se com o<br />
solda<strong>do</strong> e sente intenso desejo de vingança. Há aqui a única marca explícita de t<strong>em</strong>poralidade <strong>em</strong> toda a obra<br />
“[...] deu de cara com o solda<strong>do</strong> amarelo, que um ano antes, o levara à cadeia [...]” (RAMOS, 2000, p. 99),<br />
mostran<strong>do</strong> que os fatos decorri<strong>do</strong>s até ali compreend<strong>em</strong> o perío<strong>do</strong> de um ano, sugerin<strong>do</strong> assim que estes<br />
ocorreram <strong>em</strong> ord<strong>em</strong> cronológica, tornan<strong>do</strong>-os dessa forma, mesmo que parcialmente, sequenciais. Além da<br />
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ideia de cronologia, t<strong>em</strong>os indícios de causalidade entre os contos, é o caso <strong>do</strong> momento <strong>em</strong> que Fabiano<br />
reconhece o solda<strong>do</strong> como inimigo: “[...] Viu apenas que estava ali um inimigo.” (RAMOS, 2000, p. 100); essa<br />
identificação não se justificaria s<strong>em</strong> que fosse estabelecida uma relação com as ações descritas anteriormente <strong>em</strong><br />
“Cadeia”, essa necessidade de retomada a eventos precedentes explicita o atrelamento que um conto t<strong>em</strong> com o<br />
outro, essa amarração é um <strong>do</strong>s motivos que os faz<strong>em</strong> compl<strong>em</strong>entares <strong>em</strong> termo de significação. T<strong>em</strong>os,<br />
portanto, a marca da dependência e da continuidade de uma narrativa na outra para, <strong>em</strong> conjunto, formar<strong>em</strong><br />
uma narrativa única, como observa Ataíde no comentário a seguir:<br />
A narrativa é composta de narrativas menores. Do entrelaçamento destas é que surge aquela.<br />
Em Vidas secas isto é muito níti<strong>do</strong> devi<strong>do</strong> ao mo<strong>do</strong> de <strong>estrutura</strong>ção <strong>do</strong>s capítulos; cada um é<br />
um episódio e a justaposição <strong>do</strong>s capítulos dá a narrativa total. (ATAÍDE, 1977, p. 199)<br />
Outro da<strong>do</strong> que deve ser observa<strong>do</strong> <strong>em</strong> termos de dependência de senti<strong>do</strong> entre os <strong>do</strong>is episódios são as<br />
citações das falas <strong>do</strong> solda<strong>do</strong> (<strong>em</strong> “Cadeia”) transpostas na íntegra para o conto “O solda<strong>do</strong> amarelo”: “Toca pra<br />
frente”. (RAMOS, 2000, p. 102); “Desafasta”. (RAMOS, 2000, p. 105); tu<strong>do</strong> isso acresci<strong>do</strong> de r<strong>em</strong><strong>em</strong>orações,<br />
nas quais Fabiano resgata a surra e a noite de cadeia para justificar o seu desejo de investir contra o solda<strong>do</strong>, que<br />
agora aparecia indefeso diante dele no meio da caatinga; essas retomadas atestam que os <strong>do</strong>is contos estão<br />
interliga<strong>do</strong>s e se compl<strong>em</strong>entam, dependen<strong>do</strong> assim mutuamente para ter<strong>em</strong> pleno senti<strong>do</strong>. Logo, to<strong>do</strong>s os<br />
el<strong>em</strong>entos acima referenda<strong>do</strong>s perderiam muito <strong>do</strong> seu significa<strong>do</strong> se considera<strong>do</strong>s fora <strong>do</strong> contexto geral da<br />
obra. Candi<strong>do</strong> faz a seguinte observação ao falar dessa relação “solidária” que existe na <strong>estrutura</strong> <strong>do</strong> romance:<br />
[...] Com efeito, é constituí<strong>do</strong> por cenas e episódios mais ou menos isola<strong>do</strong>s, alguns <strong>do</strong>s quais<br />
foram publica<strong>do</strong>s como contos; mas são na maior parte por tal forma solidários, que só no<br />
contexto adquir<strong>em</strong> senti<strong>do</strong> pleno. (CANDIDO, 1992, p. 45)<br />
É possível, portanto, dizer que os contos <strong>em</strong> Vidas secas se fund<strong>em</strong> forman<strong>do</strong> assim um único enre<strong>do</strong><br />
uma vez que, sen<strong>do</strong> analisa<strong>do</strong>s no contexto, apresentam-se liga<strong>do</strong>s a uma <strong>estrutura</strong> geral onde há uma relação de<br />
continuidade entre eles que certifica a unidade da obra. Com relação a essa unidade <strong>do</strong> romance, Bueno faz o<br />
seguinte comentário:<br />
[...] Se a leitura de Vidas Secas evidencia que um capítulo não dá seqüência imediata ao capítulo<br />
anterior, por outro la<strong>do</strong> também evidencia um ritmo geral da narrativa que nos deixa uma forte<br />
impressão de unidade. Ou seja, <strong>em</strong>bora não haja propriamente uma contigüidade entre os<br />
capítulos, há uma continuidade que garante a unidade <strong>do</strong> romance que vai além de simples<br />
referências que um capítulo faz aos outros. (BUENO, 2006, p. 649). [grifos <strong>do</strong> autor]<br />
Diante <strong>do</strong> exposto torna-se assertivo dizer que há relação de dependência entre os capítulos de Vidas<br />
secas e essa dependência resulta na unidade <strong>do</strong> enre<strong>do</strong>, o que significa dizer que a independência das partes só<br />
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pode ser atribuída se essas for<strong>em</strong> lidas <strong>em</strong> separa<strong>do</strong>. Desse mo<strong>do</strong>, t<strong>em</strong>os uma obra formada por contos que, se<br />
isola<strong>do</strong>s <strong>do</strong> contexto, apresentam <strong>estrutura</strong> completa, poden<strong>do</strong> ser considera<strong>do</strong>s como autônomos, mas se<br />
analisa<strong>do</strong>s no contexto são dependentes entre si e, para sua significação ser integral torna-se necessário que essas<br />
ligações sejam estabelecidas, pois t<strong>em</strong>os uma história que se referencia e se resgata ao longo da narrativa; logo, a<br />
alternância de sua disposição causaria alteração no to<strong>do</strong>.<br />
É importante ressaltar que a própria disposição <strong>do</strong>s capítulos traz <strong>em</strong> si, mesmo que implicitamente, uma<br />
relação de causalidade e dependência; tom<strong>em</strong>os como ex<strong>em</strong>plo para isso a ordenação <strong>do</strong>s capítulos “Mudança”<br />
e “Fuga” que, se analisa<strong>do</strong>s na ord<strong>em</strong> que aparec<strong>em</strong> no livro, conflu<strong>em</strong> para uma conotação negativa <strong>do</strong> enre<strong>do</strong><br />
por “fechar” a obra com a narrativa de mais um malogro das personagens, no entanto, se fizermos a inversão da<br />
ord<strong>em</strong>, colocan<strong>do</strong> o último como primeiro e vice-versa, ter<strong>em</strong>os uma mudança de perspectiva que passa da<br />
desesperança, onde há um total cerceamento de possibilidades, para a esperança, que faz surgir um traço de<br />
expectativa. Essa modificação poderá ser inferida, a princípio, pelo significa<strong>do</strong> <strong>do</strong>s vocábulos que dão título aos<br />
referi<strong>do</strong>s capítulos e, obviamente, <strong>em</strong> uma análise mais detida pelas situações que se destacam nesses <strong>do</strong>is<br />
momentos da obra: <strong>em</strong> “Mudança” t<strong>em</strong>os os primeiros indícios de que vai chover, enquanto <strong>em</strong> “Fuga” culmina<br />
a presença da seca e a necessidade de partir torna-se evidente, esses <strong>do</strong>is momentos representam ainda os<br />
movimentos de chegada e partida das personagens com relação à fazenda, lugar que se apresenta como local de<br />
possível acolhida e estabilidade; esses apontamentos vêm, por conseguinte, reiterar a ideia de mutação de<br />
perspectiva atrelada à inversão da disposição <strong>do</strong>s capítulos.<br />
REFERÊNCIAS:<br />
ARISTÓTELES. Poética. In: ARISTÓTELES; HORÁCIO; LONGINO. A poética clássica. Tradução de<br />
Jaime Bruna. 7. ed. São Paulo: Cultrix, 1997.<br />
ATAÍDE, V. de. Vidas Secas: articulação narrativa. In: BRAYNER, S. [org.]. Fortuna Crítica II - Graciliano<br />
Ramos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977.<br />
BELLEI, S. L. P. Hipertexto e literatura. In: Intermídias. Ano 2, n. 5 e 6. 2005. Disponível <strong>em</strong>:<br />
http://www.intermidias.com/txt/ed56/Literatura_Hipertexto%20e%20Literatura_Sergio%Bellei.pdf. Acesso<br />
<strong>em</strong> 27 de agosto de 2009.<br />
BUENO, L. Uma história <strong>do</strong> romance de 30. São Paulo: Editora da Unicamp, 2006.<br />
CANDIDO, A. Ficção e confissão: ensaios sobre Graciliano Ramos. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992.<br />
MOURÃO, R. Estruturas, ensaio sobre o romance de Graciliano. 2. ed. Rio de Janeiro: Arquivo, 1971.<br />
RAMOS, G. Vidas secas. 80. ed. Rio de Janeiro: Record, 2000.<br />
RICOEUR, P. T<strong>em</strong>po e narrativa. Tradução de Marina Appenzeller. Campinas-SP: Papirus, 1995.<br />
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i Essa expressão foi usada por Rub<strong>em</strong> Braga ao se referir à <strong>estrutura</strong> da obra, <strong>em</strong> “Vidas Secas”, Diário de Notícias, 14 de ago de 1938, 1º.<br />
Supl<strong>em</strong>ento, p.3. (apud BUENO 2006, p. 642).<br />
ii Foi concebi<strong>do</strong> como conto para posteriormente ser converti<strong>do</strong> <strong>em</strong> capítulo e fazer parte <strong>do</strong> romance.<br />
iii É importante mencionarmos que mesmo o hipertexto oferecen<strong>do</strong> um número amplo de combinações possíveis entre os episódios,<br />
elas não são inesgotáveis; logo, n<strong>em</strong> a linha é totalmente impositora n<strong>em</strong> o hipertexto garante liberdade absoluta.<br />
8<br />
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