ANDREI TARKOVSKI - Instituto Moreira Salles
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ter-se fiel à vocação realista do cinema, o narrador<br />
comporta-se aqui como um observador<br />
discreto e quase invisível no meio da ação.<br />
Nenhuma solução especialmente marcante da<br />
fotografia, da montagem ou da interpretação<br />
desloca a atenção de dentro da cena para o<br />
recurso formal usado para construí-la. É assim<br />
todo o tempo, menos em dois breves (mas<br />
fundamentais) instantes destes dois episódios:<br />
a conversa de Roublev com o grego Teófanes<br />
depois do massacre, na igreja de Vladimir, e a<br />
conversa de Roublev com Boriska, depois da<br />
festa de inauguração do sino. Roublev e Teófanes<br />
se encontram numa outra dimensão.<br />
Aparentemente vemos um pesadelo de Andrei:<br />
temos uma diferente movimentação da<br />
câmera e dos personagens. Os desaparecimentos<br />
e reaparecimentos de Teófanes na imagem<br />
confundem a noção de espaço do espectador.<br />
Ele está à direita, sai da imagem porque a<br />
câmera se move em torno de seu eixo numa<br />
panorâmica, e logo retorna à imagem pela<br />
esquerda, como se tivesse se deslocado mais<br />
rápido que a câmera, por cima ou por trás<br />
dela. O que eles dizem igualmente confunde<br />
a noção de espaço do espectador, pois Roublev,<br />
surpreendido ao ver Teófanes com vida,<br />
conversa com ele como se estivesse diante de<br />
um fantasma, como se estivesse ele também,<br />
Andrei, morto, ou numa outra dimensão em<br />
que espaço e tempo obedecem a uma outra lógica.<br />
É também numa possível outra dimensão<br />
que se realiza o diálogo entre Roublev e<br />
Boriska. Não aquele mesmo outro-lugar em<br />
que se encontraram Roublev e Teófanes, não<br />
propriamente naquela espécie de limbo que se<br />
segue à destruição de Vladimir. Com Roublev<br />
e Boriska estamos num equivalente à segunda<br />
realidade da arte, o que é possível perceber menos<br />
no que os personagens dizem do que na<br />
composição das imagens. Elas sublinham os<br />
diálogos de modo a que eles soem como algo<br />
mais que uma conversa entre dois personagens<br />
quaisquer. Ali, como num sonho, o sonhador<br />
se divide em duas, três ou mais figuras, temos<br />
uma quase direta representação do realizador,<br />
uma espécie de autorretrato divido em dois.<br />
Na realidade, Boriska, Teófanes e Roublev parecem<br />
compor um autorretrato tripartido de<br />
Tarkovski.<br />
Em O assalto Teófanes diz a Roublev que a<br />
humanidade é má em si mesma e que aos artistas,<br />
dentro dela mas numa segunda realidade,<br />
resta a tarefa de retratar o mundo tal como ele<br />
é. Atacar a violência não tem sentido, é como<br />
“É errado dizer que o artista procura o seu tema.<br />
O tema amadurece dentro dele como um fruto e começa a exigir uma<br />
forma de expressão. É como um parto.<br />
O poeta não é senhor da obra que produz, mas um escravo dela”.