23.10.2014 Views

Liberdade em Hegel à Luz de Kant

Liberdade em Hegel à Luz de Kant

Liberdade em Hegel à Luz de Kant

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

LIBERDADE EM HEGEL À LUZ DE KANT<br />

Alexandre Haen<strong>de</strong>l Lima França Cabral *<br />

RESUMO<br />

A diferença no conceito <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> nos pensamentos <strong>de</strong> <strong>Kant</strong> e <strong>Hegel</strong> levam a<br />

conseqüências b<strong>em</strong> diversas. <strong>Kant</strong> fundamenta a liberda<strong>de</strong> na vonta<strong>de</strong> do sujeito<br />

enquanto coisa <strong>em</strong> si, ao passo que <strong>Hegel</strong> a transporta para a realida<strong>de</strong>,<br />

concretizada na figura do Estado. Para a compreensão <strong>de</strong>ssa divergência, é <strong>de</strong><br />

essencial importância enten<strong>de</strong>r as soluções encontradas por <strong>Kant</strong> e <strong>Hegel</strong> para a<br />

conciliação entre dois conceitos aparent<strong>em</strong>ente opostos: a necessida<strong>de</strong> e a<br />

liberda<strong>de</strong>. Da resolução <strong>de</strong>ste aparente conflito, <strong>de</strong>corre a resposta para a questão<br />

<strong>de</strong> on<strong>de</strong> resid<strong>em</strong> os valores mais essenciais, a dignida<strong>de</strong> e o fim último do ser<br />

humano.<br />

Palavras-chave: <strong>Kant</strong>. <strong>Hegel</strong>. <strong>Liberda<strong>de</strong></strong>.<br />

1 INTRODUÇÃO<br />

A liberda<strong>de</strong> é um conceito fonte no pensamento jurídico <strong>de</strong> <strong>Kant</strong> e <strong>Hegel</strong>,<br />

pois s<strong>em</strong> liberda<strong>de</strong>, não é possível o Direito. Entretanto, <strong>Kant</strong> partiu <strong>de</strong> um enfoque<br />

transcen<strong>de</strong>ntal, característica <strong>de</strong> todo seu pensamento filosófico, fixando no sujeito a<br />

fonte da liberda<strong>de</strong>. <strong>Hegel</strong>, pelo contrário, buscou ressuscitar a ontologia através <strong>de</strong><br />

seu processo dialético, ao tentar transportar a liberda<strong>de</strong> para fora do sujeito,<br />

colocando-a no mundo.<br />

As diferenças nos pensamentos <strong>de</strong> <strong>Kant</strong> e <strong>Hegel</strong> não são meramente<br />

formais, n<strong>em</strong> o sist<strong>em</strong>a criado por <strong>Hegel</strong> é apenas compl<strong>em</strong>entar ao <strong>de</strong> <strong>Kant</strong>. Na<br />

verda<strong>de</strong>, as conseqüências da perspectiva <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> <strong>em</strong> <strong>Hegel</strong> são b<strong>em</strong> distintas,<br />

pois se <strong>em</strong>basa <strong>em</strong> um fundamento bastante diferente.<br />

Neste sentido, porque <strong>Hegel</strong> e <strong>Kant</strong> procuraram respon<strong>de</strong>r a mesma<br />

questão, qual seja, a da possibilida<strong>de</strong> da coexistência, na mesma realida<strong>de</strong>, <strong>de</strong><br />

* Advogado, especialista <strong>em</strong> Filosofia Mo<strong>de</strong>rna do Direito pela UECE/ESMP.


2<br />

necessida<strong>de</strong> e liberda<strong>de</strong> que, a princípio, são contraditórias, faz-se importante não<br />

somente compreen<strong>de</strong>r as diferenças conceituais entre ambos, mas sobretudo, as<br />

conseqüências <strong>de</strong>correntes <strong>de</strong> seus modos <strong>de</strong> pensar para que se possa concluir,<br />

por fim, qu<strong>em</strong> está com a razão.<br />

2 LIBERDADE EM KANT<br />

Antes <strong>de</strong> <strong>Hegel</strong> e <strong>Kant</strong>, havia na filosofia um <strong>em</strong>bate entre dois lados<br />

opostos: os <strong>em</strong>piristas (sensualistas) e os dogmáticos (intelectualistas). Os primeiros<br />

afirmavam que nada existia para além dos objetos da experiência, e que tudo o mais<br />

era ilusório, imaginação. Os intelectualistas diziam que, na verda<strong>de</strong>, os objetos da<br />

experiência não passavam <strong>de</strong> mera aparência, cuja realida<strong>de</strong> supr<strong>em</strong>a habitava no<br />

campo das idéias.<br />

Ambos não conseguiam, entretanto, fazer prevalecer <strong>de</strong>finitivamente<br />

seus pontos <strong>de</strong> vista, pois apesar <strong>de</strong> ser<strong>em</strong> opostos, possuíam argumentos<br />

igualmente lógicos e congruentes, <strong>de</strong> forma que “[...] pod<strong>em</strong>os, <strong>em</strong> qualquer caso<br />

d<strong>em</strong>onstrar, com igual evidência, proprieda<strong>de</strong>s diametralmente opostas, s<strong>em</strong><br />

po<strong>de</strong>rmos distinguir quais as verda<strong>de</strong>iras e quais as falsas.” (KANT, 2001, p.18) A<br />

estes conflitos da razão consigo mesma, <strong>Kant</strong> <strong>de</strong>u o nome <strong>de</strong> antinomias.<br />

O equívoco principal, para que ambos os posicionamentos não<br />

chegass<strong>em</strong> a uma verda<strong>de</strong> <strong>de</strong>finitiva, era, segundo <strong>Kant</strong>, o fato <strong>de</strong> tentar<strong>em</strong> atribuir<br />

à experiência a idéia <strong>de</strong> absoluto, incondicionado, algo nunca possível <strong>de</strong> alcançar<br />

através dos objetos <strong>em</strong>píricos, s<strong>em</strong>pre condicionados pela sensibilida<strong>de</strong> e pelo<br />

entendimento. Estes, segundo <strong>Kant</strong>, são as estruturas a priori do sujeito que, <strong>em</strong><br />

verda<strong>de</strong>, condicionam o conhecimento dos objetos fornecidos pela experiência.<br />

Se os objetos da experiência não são tal como aparec<strong>em</strong>, pois reflet<strong>em</strong><br />

apenas a forma como o sujeito os percebe e enten<strong>de</strong> <strong>de</strong> acordo com sua estrutura a<br />

priori, todas as leis naturais e as noções <strong>de</strong> espaço e t<strong>em</strong>po não faz<strong>em</strong> parte das<br />

coisas <strong>em</strong> si, mas tão-somente do fenômeno, que é modo pelo qual o sujeito<br />

experimenta os objetos. As coisas <strong>em</strong> si, na verda<strong>de</strong>, são incognoscíveis, pois<br />

apesar <strong>de</strong> dar<strong>em</strong> suporte externo à existência dos fenômenos, afetando as


3<br />

estruturas a priori <strong>de</strong> entendimento e sensibilida<strong>de</strong> subjetivas, não são por elas<br />

alcançadas.<br />

Se os objetos da experiência são condicionados pela estrutura a priori do<br />

sujeito, a coisa <strong>em</strong> si é incondicionada. As leis da necessida<strong>de</strong>, da causalida<strong>de</strong><br />

natural, não a alcançam, pois são apenas formas a priori <strong>de</strong> como o entendimento<br />

do sujeito regula o fenômeno. Segundo a lei da causalida<strong>de</strong> natural, toda causa é<br />

simultaneamente efeito <strong>de</strong> uma causa prece<strong>de</strong>nte, s<strong>em</strong> que se possa verificar<br />

qualquer exceção na experiência, <strong>de</strong>vido ao próprio fato <strong>de</strong> pertencer ao modo como<br />

o sujeito a enten<strong>de</strong> a priori. Não po<strong>de</strong>ria haver, portanto, uma causa livre,<br />

in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nt<strong>em</strong>ente <strong>de</strong> qualquer outra causa que tenha lhe dado orig<strong>em</strong>.<br />

Diante disto, <strong>Kant</strong> afirma que o hom<strong>em</strong> possui, enquanto ser <strong>em</strong> si,<br />

vonta<strong>de</strong> livre, pois esta não advém do mundo fenomênico que ele próprio regula<br />

com base <strong>em</strong> suas estruturas a priori. Todavia, ao se perceber como fenômeno, o<br />

hom<strong>em</strong> se sujeita a todo tipo <strong>de</strong> necessida<strong>de</strong>s e inclinações advindas do mundo<br />

sensível, afetando sua vonta<strong>de</strong> que, caso não estivesse sujeita a tais tipos <strong>de</strong><br />

influências, agiria s<strong>em</strong>pre e necessariamente <strong>em</strong> conformida<strong>de</strong> com a razão pura. 1<br />

Se a razão pura, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nt<strong>em</strong>ente <strong>de</strong> qualquer experiência, dita as leis<br />

da vonta<strong>de</strong> livre dos seres racionais, estas precisam ter a forma <strong>de</strong> qualquer lei<br />

natural: a universalida<strong>de</strong>. Surge então a fórmula <strong>de</strong> uma ação, que precisa ser<br />

incondicionada <strong>em</strong> relação a qualquer objeto da experiência, pois é necessária por si<br />

mesma, <strong>de</strong> acordo com o seguinte mandamento: “age como se a máxima da tua<br />

ação <strong>de</strong>vesse se tornar, pela tua vonta<strong>de</strong>, lei universal da natureza.” (KANT, 2006,<br />

p.52). Este enunciado é o que <strong>Kant</strong> chama <strong>de</strong> imperativo categórico, uma ord<strong>em</strong> que<br />

a razão pura dá a toda vonta<strong>de</strong> imperfeita, sujeita às inclinações e necessida<strong>de</strong>s<br />

provenientes do mundo dos sentidos, para que aja <strong>de</strong> acordo com sua liberda<strong>de</strong><br />

ínsita, sua real natureza, que resi<strong>de</strong> no mundo das coisas <strong>em</strong> si.<br />

1 Segundo <strong>Kant</strong> (2001, p. 78-79), “chama-se puro todo o conhecimento ao qual nada <strong>de</strong> estranho se<br />

encontra misturado. Porém, um conhecimento é <strong>de</strong>nominado sobretudo absolutamente puro, quando<br />

não se encontra nele, <strong>em</strong> geral, nenhuma experiência ou sensação; quando é, por conseguinte,<br />

possível completamente a priori... a razão é a faculda<strong>de</strong> que nos fornece os princípios do<br />

conhecimento a priori. Logo, a razão pura é a que contém os princípios para conhecer algo<br />

absolutamente a priori.”


4<br />

3 LIBERDADE EM HEGEL<br />

A solução <strong>de</strong> <strong>Hegel</strong> para o probl<strong>em</strong>a da liberda<strong>de</strong> foi bastante diferente<br />

<strong>em</strong> relação ao pensamento kantiano. <strong>Hegel</strong> percebeu que, na verda<strong>de</strong>, ao pensar o<br />

mundo das coisas <strong>em</strong> si separado do mundo dos fenômenos, <strong>Kant</strong> alijou a razão<br />

pura <strong>de</strong> toda a experiência, conce<strong>de</strong>ndo à primeira toda a realida<strong>de</strong> e verda<strong>de</strong><br />

incondicionadas, enquanto o mundo sensível não era senão fruto da experiência<br />

regulada pelas estruturas a priori do sujeito, s<strong>em</strong>pre condicionada, finita e separada<br />

do mundo da razão pura. Enquanto a experiência sensível nunca fornece a<br />

possibilida<strong>de</strong> da existência <strong>de</strong> uma causa livre, pois toda a natureza é regida pela<br />

necessida<strong>de</strong>, somente no mundo inteligível das coisas <strong>em</strong> si, insuscetível <strong>de</strong><br />

qualquer intuição sensível, haveria <strong>de</strong> fato liberda<strong>de</strong>.<br />

<strong>Hegel</strong> notou que <strong>Kant</strong>, ao concentrar nas estruturas a priori e na razão<br />

pura todos os el<strong>em</strong>entos reguladores da realida<strong>de</strong>, condicionou todas as verda<strong>de</strong>s<br />

ao próprio sujeito, excluindo dos objetos da experiência sua importância com relação<br />

à <strong>de</strong>terminação da verda<strong>de</strong>. Segundo <strong>Hegel</strong>, a razão não se encontra tão apenas no<br />

sujeito (Espírito Subjetivo), mas também <strong>em</strong> tudo do que <strong>de</strong>la provém e se<br />

materializa no mundo sensível (Espírito Objetivo). Como observa Marilena Chauí,<br />

para <strong>Hegel</strong>, a razão:<br />

[...] não é n<strong>em</strong> exclusivamente razão objetiva (a verda<strong>de</strong> está nos objetos)<br />

n<strong>em</strong> exclusivamente subjetiva (a verda<strong>de</strong> está no sujeito) mas ela é a<br />

unida<strong>de</strong> necessária do objetivo e do subjetivo. Ela é o conhecimento da<br />

harmonia entre as coisas e as idéias, entre o mundo exterior e a<br />

consciência, entre o objeto e o sujeito, entre a verda<strong>de</strong> objetiva e a verda<strong>de</strong><br />

subjetiva.(CHAUÍ, 2000, p.99)<br />

Como <strong>Hegel</strong> conseguiu então unir objetivo e subjetivo <strong>em</strong> um só sist<strong>em</strong>a,<br />

integrando liberda<strong>de</strong> ao mundo das necessida<strong>de</strong>s? Através <strong>de</strong> um processo<br />

<strong>de</strong>nominado dialética, <strong>de</strong>senvolvido por ele na obra Ciência da Lógica.


5<br />

3.1 Processo Dialético<br />

Utilizando-se do processo dialético, <strong>Hegel</strong> parte <strong>de</strong> um ponto abstrato,<br />

progredindo <strong>em</strong> uma seqüência cada vez mais complexa até chegar ao concreto,<br />

construindo um todo sist<strong>em</strong>ático e orgânico. Para <strong>Hegel</strong>, os conceitos a priori que<br />

resid<strong>em</strong> na estrutura do entendimento humano não apenas regulam no sujeito o<br />

conhecimento dos objetos da experiência como fenômenos, pois:<br />

[...] ele radicaliza a tese no sentido <strong>de</strong> que os conceitos lógicos apriorísticos<br />

não são apenas condição <strong>de</strong> nosso conhecimento das coisas, mas eles são<br />

a condição <strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong> das próprias coisas – ele <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> um I<strong>de</strong>alismo<br />

objetivo (ontológico) não apenas um I<strong>de</strong>alismo subjetivo (epistêmico).”<br />

(SOARES, 2009, p.11)<br />

Por esta razão, <strong>Hegel</strong> acredita que os próprios conceitos a priori do<br />

entendimento constitu<strong>em</strong> as coisas como elas são <strong>em</strong> si, partindo dos conceitos<br />

mais el<strong>em</strong>entares e in<strong>de</strong>terminados da realida<strong>de</strong> até chegar às suas <strong>de</strong>terminações<br />

mais complexas, ao todo, incondicionado e universal, o Espírito absoluto.<br />

Para que isto seja possível, é preciso i<strong>de</strong>ntificar o conceito mais<br />

el<strong>em</strong>entar, abstrato e in<strong>de</strong>terminado do entendimento humano, a partir do qual todos<br />

os outros <strong>de</strong>v<strong>em</strong> <strong>de</strong>rivar necessariamente. Este conceito <strong>de</strong>ve ser totalmente<br />

in<strong>de</strong>finido, pois não po<strong>de</strong> ser limitado por qualquer outro conceito prece<strong>de</strong>nte. Deste<br />

modo, o único conceito que po<strong>de</strong> ser completamente in<strong>de</strong>finido é aquele que <strong>em</strong> si<br />

mesmo nada <strong>de</strong>termina, mas serve para a <strong>de</strong>terminação <strong>de</strong> todos os d<strong>em</strong>ais<br />

conceitos: o SER. De fato, quando se diz que algo é, não se atribui a este algo<br />

qualquer <strong>de</strong>finição, mas s<strong>em</strong> o verbo SER nenhuma <strong>de</strong>finição seria possível. Com<br />

efeito, “o conceito do Ser, enquanto tal, não contém nada <strong>de</strong> específico, nada <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>terminado, nenhuma <strong>de</strong>finição. Ele inclui tudo e exclui nada.” (SOARES, 2009,<br />

p.16)<br />

Contudo, não é suficiente que se i<strong>de</strong>ntifique qual seja o conceito-princípio,<br />

pois é preciso que se saiba também <strong>de</strong> que forma todos os d<strong>em</strong>ais conceitos são<br />

necessariamente <strong>de</strong>le <strong>de</strong>rivados. <strong>Hegel</strong> então imaginou que este processo <strong>de</strong>ve ser<br />

o mais simples possível, pois caso haja qualquer complexida<strong>de</strong>, as relações entre os


6<br />

conceitos não são estabelecidas <strong>de</strong> forma necessária, mas sim contingente. A única<br />

relação necessária por meio da qual um conceito <strong>de</strong>riva necessariamente <strong>de</strong> outro é<br />

a negação, que produz invariavelmente seu oposto lógico.<br />

Do conceito <strong>de</strong> SER, ao ser aplicada a negação, surge o conceito do<br />

NADA. Porém, se a negação é utilizada novamente ao conceito <strong>de</strong> NADA, retornase<br />

ao conceito <strong>de</strong> SER, num ciclo que se repete ao infinito. Para resolver este<br />

probl<strong>em</strong>a, é necessário que <strong>de</strong>sta relação surja um novo conceito, não mais da<br />

negação dos dois primeiros, mas <strong>de</strong> sua síntese, pela negação da relação <strong>de</strong><br />

negação dos conceitos <strong>de</strong> SER e NADA. Desta união <strong>de</strong>corre o conceito <strong>de</strong><br />

“DEVIR”.<br />

Com efeito, o SER que tudo inclui e o NADA que tudo exclui não pod<strong>em</strong><br />

existir ao mesmo t<strong>em</strong>po na realida<strong>de</strong>, pois ambos são contraditórios. Algo real <strong>de</strong>ve<br />

surgir <strong>de</strong>stes dois conceitos, que é justamente o conceito <strong>de</strong> DEVIR, unindo<br />

internamente o SER e o NADA num processo constante <strong>de</strong> transformação. De fato,<br />

o SER e o NADA são conceitos in<strong>de</strong>terminados, pois o NADA, ao negar o SER<br />

in<strong>de</strong>terminado, também é in<strong>de</strong>terminado. Porém, quando associados no conceito <strong>de</strong><br />

DEVIR, dão orig<strong>em</strong> à auto<strong>de</strong>terminação. Por isto, o DEVIR é consi<strong>de</strong>rado conceitoprincípio,<br />

pois enquanto os conceitos originários <strong>de</strong> SER e NADA são<br />

in<strong>de</strong>terminados e contraditórios, o DEVIR é o único conceito <strong>de</strong>terminante que<br />

reflete a realida<strong>de</strong>.<br />

3.1.1 Dialética e <strong>Liberda<strong>de</strong></strong><br />

Ao ser transportado para a realida<strong>de</strong>, o DEVIR, segundo <strong>Hegel</strong>, se reflete<br />

na estrutura do sujeito, na autoconsciência, que pensa a si mesma, o “eu penso”,<br />

como objeto do seu próprio pensar, colocando-se para si como uma outra <strong>de</strong> si. Ao<br />

relacionar-se consigo mesmo como objeto <strong>de</strong> seu próprio pensamento, o sujeito se<br />

auto<strong>de</strong>termina, o que constitui sua própria liberda<strong>de</strong>.<br />

Diante disto, enquanto para <strong>Kant</strong> a liberda<strong>de</strong> provém <strong>de</strong> uma vonta<strong>de</strong><br />

advinda do mundo das coisas <strong>em</strong> si, apesar <strong>de</strong> ser afetada por impulsos, inclinações<br />

e necessida<strong>de</strong>s advindos do mundo sensível, para <strong>Hegel</strong> ela se origina do conceito


7<br />

<strong>de</strong> DEVIR, que faz parte <strong>de</strong> uma realida<strong>de</strong> que não distingue o sensível das coisas<br />

<strong>em</strong> si, pois o sensível já reflete como as coisas realmente são. Se <strong>em</strong> <strong>Kant</strong> a razão e<br />

a liberda<strong>de</strong> são próprias do mundo incognoscível das coisas <strong>em</strong> si (mundo<br />

inteligível), <strong>em</strong> <strong>Hegel</strong> a realida<strong>de</strong> é uma só, <strong>de</strong> modo que “o que é racional é real e o<br />

que é real é racional”. (HEGEL, 1997, p. XXXVI).<br />

Do conceito <strong>de</strong> DEVIR, como conceito-princípio que se transporta para a<br />

realida<strong>de</strong> como conceito-sujeito, surge, ao se relacionar para além <strong>de</strong> seus limites<br />

com um outro sujeito, o conceito <strong>de</strong> DASEIN (sujeito distinto). Desta interação, o<br />

processo dialético <strong>de</strong> negação e síntese (suprassunção) se esten<strong>de</strong> para além do<br />

DEVIR (sujeito), até o incondicionado, a Idéia Absoluta, o LOGOS absoluto, o fim<br />

último para o qual caminha toda a humanida<strong>de</strong> na história. Isto porque, <strong>em</strong> oposição<br />

ao DEVIR, como Espírito Subjetivo, a liberda<strong>de</strong> (<strong>em</strong> si) que lhe é intrínseca precisa<br />

se manifestar no Espírito Objetivo, que é a efetivação <strong>de</strong>ssa liberda<strong>de</strong> (para si) no<br />

mundo através do Direito. No entanto:<br />

[...] a unida<strong>de</strong> ou harmonia entre objetivo e o subjetivo, entre realida<strong>de</strong> das<br />

coisas e o sujeito do conhecimento não é um dado eterno, algo que existiu<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> todo o s<strong>em</strong>pre, mas é uma conquista da razão e essa conquista a<br />

razão realiza no t<strong>em</strong>po. A razão não t<strong>em</strong> como ponto <strong>de</strong> partida essa<br />

unida<strong>de</strong>, mas a t<strong>em</strong> como ponto <strong>de</strong> chegada, como resultado do percurso<br />

histórico que ela própria realiza. (CHAUI, 2000, p.100)<br />

O resultado da plena efetivação da liberda<strong>de</strong> subjetiva no Espírito<br />

Objetivo se ass<strong>em</strong>elha à <strong>de</strong>scrição <strong>de</strong> reino dos fins ou reino da liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong>scrito<br />

por <strong>Kant</strong>, segundo o qual todos agiriam única e necessariamente <strong>em</strong> conformida<strong>de</strong><br />

com a razão pura. Como b<strong>em</strong> interpreta Henrique Vaz, “é possível <strong>de</strong>scobrir a<br />

<strong>em</strong>ergência <strong>de</strong> um sentido objetivo que aponta, exatamente, para o horizonte <strong>de</strong><br />

uma realização, s<strong>em</strong>pre mais efetiva, para o kantiano reino da liberda<strong>de</strong>.” (VAZ,<br />

1982 apud SOARES, 2000, p. 208).


8<br />

O Espírito, <strong>em</strong> verda<strong>de</strong>, é um só fenômeno 2 , o próprio LOGOS 3 divino que<br />

caminha no <strong>de</strong>correr da história, tomando cada vez mais consciência <strong>de</strong> si mesmo<br />

ao concretizar progressivamente a liberda<strong>de</strong> no mundo até sua total manifestação.<br />

Por isto “a história é, <strong>de</strong> acordo com o conceito da sua liberda<strong>de</strong>, o <strong>de</strong>senvolvimento<br />

necessário dos momentos da razão, da consciência <strong>de</strong> si e da liberda<strong>de</strong> do espírito,<br />

a interpretação e a realização do espírito universal.” (HEGEL, 1997, p. 307). Ao<br />

tomar consciência <strong>de</strong> si, <strong>de</strong> sua infinitu<strong>de</strong>, o Espírito reconhece a si mesmo como<br />

absoluto e manifesta esta intuição na história através da imag<strong>em</strong> na arte, do<br />

sentimento na religião e do pensamento puro na filosofia.<br />

3.2 <strong>Liberda<strong>de</strong></strong> e Necessida<strong>de</strong><br />

Resta saber como a liberda<strong>de</strong> po<strong>de</strong> se exteriorizar no Espírito Objetivo,<br />

s<strong>em</strong> entrar <strong>em</strong> contradição com a causalida<strong>de</strong> natural, <strong>de</strong>terminada pela<br />

necessida<strong>de</strong>. Para <strong>Kant</strong>, o mundo sensível era necessariamente regido pela<br />

necessida<strong>de</strong> natural, pois “a liberda<strong>de</strong> é uma mera idéia cuja realida<strong>de</strong> objetiva <strong>de</strong><br />

modo algum po<strong>de</strong> ser exposta segundo leis naturais, e portanto <strong>em</strong> qualquer<br />

experiência possível.” (KANT, 2006, p. 91). <strong>Hegel</strong>, pelo contrário, discorda <strong>de</strong> <strong>Kant</strong>,<br />

pois, segundo ele, ao lado da causalida<strong>de</strong> natural existe a possibilida<strong>de</strong> da liberda<strong>de</strong><br />

ser real, quer dizer “a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>la ser um princípio <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminação <strong>em</strong><br />

espaço e t<strong>em</strong>po, algo que po<strong>de</strong> ‘realizar-se’, po<strong>de</strong> tornar-se objetivo <strong>em</strong> espaço e<br />

t<strong>em</strong>po – o que era impensável <strong>em</strong> <strong>Kant</strong>.” (SOARES, 2009, p. 24). Isto porque, além<br />

da causalida<strong>de</strong> natural, a dialética, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> surge o conceito <strong>de</strong> DEVIR, também é<br />

real.<br />

2 No ensinamento <strong>de</strong> Chaui (2000, p. 302), “<strong>Hegel</strong> ampliou o conceito <strong>de</strong> fenômeno, afirmando que tudo o que<br />

aparece só po<strong>de</strong> aparecer para uma consciência e que a própria consciência mostra-se a si mesma como<br />

conhecimento <strong>de</strong> si, sendo ela própria um fenômeno. [...] <strong>Hegel</strong>, por sua vez, aboliu a diferença entre a<br />

consciência e o mundo, porque dissera que este nada mais é do que o modo como a consciência se torna as<br />

próprias coisas, tornado-se mundo ela mesma, tudo sendo fenômeno: fenômeno interior – a consciência – e<br />

fenômeno exterior – o mundo como manifestação da consciência nas coisas.”<br />

3 De acordo com Abbagnano (2007, pp. 293, 294), “a concepção <strong>de</strong> que D. [Deus] se revela e ao mesmo t<strong>em</strong>po<br />

se realiza no mundo, mais precisamente na necessida<strong>de</strong> racional do mundo, é fundamental no romantismo. Sua<br />

melhor expressão está <strong>em</strong> <strong>Hegel</strong>. [...] essa revelação, não é só revelação, é a realização <strong>de</strong> D. como<br />

autoconsciência por ele atingida no hom<strong>em</strong>. [...] A realida<strong>de</strong> plena <strong>de</strong> D. consiste <strong>em</strong> reconhecer-se realizado no<br />

mundo e através do mundo.”


9<br />

3.2.1 Vonta<strong>de</strong><br />

Falta ainda <strong>de</strong>svendar como é possível, no mesmo sujeito, <strong>de</strong> acordo com<br />

<strong>Hegel</strong>, coexistir<strong>em</strong> necessida<strong>de</strong> natural e liberda<strong>de</strong>. Isto é viável porque, segundo<br />

ele, a vonta<strong>de</strong> é inicialmente “o el<strong>em</strong>ento <strong>de</strong> pura in<strong>de</strong>terminação ou da pura<br />

reflexão do eu <strong>em</strong> si mesmo, e nela se esvanece toda a limitação, todo o conteúdo<br />

[...] a infinitu<strong>de</strong> ilimitada da abstração e da generalida<strong>de</strong> absolutas, o puro<br />

pensamento <strong>de</strong> si mesmo.” (HEGEL, 1997, p. 13) Nesta fase, a liberda<strong>de</strong> é negativa,<br />

pois é a abstração <strong>de</strong> toda e qualquer <strong>de</strong>terminação ou conteúdo, é a liberda<strong>de</strong> do<br />

vazio.<br />

Porém, “ao mesmo t<strong>em</strong>po, o Eu é a passag<strong>em</strong> da in<strong>de</strong>terminação à<br />

diferenciação, a <strong>de</strong>limitação e a posição <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>terminação específica que passa<br />

a caracterizar um conteúdo e um objeto. Po<strong>de</strong> este conteúdo ser dado pela natureza<br />

ou produzido a partir do conceito do espírito.” (HEGEL, 1997, p. 14-15). Neste ponto,<br />

<strong>Hegel</strong> aproxima-se <strong>de</strong> <strong>Kant</strong>, pois separa a liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> qualquer conteúdo ou objeto<br />

(como <strong>Kant</strong> no imperativo categórico, que vinculou a ação moral <strong>de</strong> uma vonta<strong>de</strong><br />

livre tão-somente ao imperativo, s<strong>em</strong> ligação a qualquer objeto). Para <strong>Hegel</strong>, o<br />

conteúdo da vonta<strong>de</strong> é acrescentado posteriormente, e po<strong>de</strong> ser dado pela natureza<br />

ou produzido pelo espírito. Isto significa que, <strong>em</strong> última instância, a vonta<strong>de</strong> é livre<br />

(ilimitada), e nela pod<strong>em</strong> se manifestar quaisquer conteúdos (limitações), tanto<br />

inclinações, <strong>de</strong>sejos e instintos naturais, como um <strong>de</strong>ver <strong>de</strong>terminado pela razão.<br />

Estes dois momentos un<strong>em</strong>-se a um só, <strong>em</strong> que o Eu particular, enquanto sujeito,<br />

t<strong>em</strong> consciência <strong>de</strong> si como universal.<br />

A vonta<strong>de</strong> adquire forma ao se <strong>de</strong>terminar e se exterioriza, realizando o<br />

fim <strong>de</strong>terminado pelo sujeito. Segundo o filósofo, “no espírito, tal como é <strong>em</strong> si e<br />

para si, a <strong>de</strong>terminação torna-se sua proprieda<strong>de</strong> a sua verda<strong>de</strong> (Enciclopédia, 363),<br />

e a relação com o exterior, que está na simples consciência do exterior, apenas<br />

constitui o lado fenomênico da vonta<strong>de</strong>...” (HEGEL, 1997, p. 18). O conteúdo dado a<br />

esta forma é, “por um lado, um fim interior e subjetivo na vonta<strong>de</strong> que imagina, por<br />

outro lado, um fim realizado por intermédio da ação que transpõe o sujeito no<br />

objeto.” (HEGEL, 1997, p. 18).


10<br />

3.2.1.1 Vonta<strong>de</strong> e Necessida<strong>de</strong><br />

Para <strong>Hegel</strong>, o conteúdo da vonta<strong>de</strong> s<strong>em</strong>pre é <strong>de</strong>terminado inicialmente<br />

pela natureza, através <strong>de</strong> instintos, <strong>de</strong>sejos e tendências. A este nível, a liberda<strong>de</strong><br />

não se materializa (não se torna objeto para si mesma), pois t<strong>em</strong> existência apenas<br />

negativa (<strong>em</strong> si mesma). De acordo com o filósofo, “a realida<strong>de</strong> <strong>em</strong> si ou realida<strong>de</strong><br />

conceitual <strong>de</strong> algo é uma existência ou um fenômeno diferente do que é para si.”<br />

(HEGEL, 1997, p. 18). Enquanto não se materializa como objeto para si mesmo, a<br />

liberda<strong>de</strong> <strong>em</strong> si é apenas uma faculda<strong>de</strong>, pois representa somente a possibilida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> se tornar ser para si. Isto porque, para <strong>Hegel</strong>, a verda<strong>de</strong> é a concretização do<br />

conceito, cuja realida<strong>de</strong> materializada é a Idéia. Por isto, nesta fase, “se limita o<br />

intelecto ao que há <strong>de</strong> abstrato na liberda<strong>de</strong> s<strong>em</strong> alcançar a sua idéia e a sua<br />

verda<strong>de</strong>.” (HEGEL, 1997, p. 19). A forma da vonta<strong>de</strong> é <strong>em</strong> si mesma racional e livre,<br />

mas seu conteúdo é estabelecido pela natureza.<br />

Somente quando a vonta<strong>de</strong> se manifesta no sujeito, a diversida<strong>de</strong><br />

in<strong>de</strong>terminada <strong>de</strong> instintos se singulariza <strong>em</strong> uma <strong>de</strong>cisão, na realização <strong>de</strong> instintos<br />

<strong>de</strong>terminados. No entanto, somente “para a inteligência que pensa, o conteúdo e o<br />

objeto são o universal, e ela mesma se comporta como ativida<strong>de</strong> universal.”<br />

(HEGEL, 1997, p. 19). Apenas quando a vonta<strong>de</strong> se ergue ao pensamento e dá aos<br />

seus fins a generalida<strong>de</strong> própria da universalida<strong>de</strong>, a liberda<strong>de</strong> <strong>em</strong> si se materializa<br />

para si, tornando-se conteúdo <strong>de</strong> si mesma <strong>em</strong> uma vonta<strong>de</strong> objetiva infinita. Isto<br />

porque, enquanto a vonta<strong>de</strong> estiver presa aos instintos, ela é finita para si,<br />

permanecendo infinita e universal apenas formalmente <strong>em</strong> si, acima <strong>de</strong> seu<br />

conteúdo instintivo, s<strong>em</strong> manifestar sua infinitu<strong>de</strong> como conteúdo objetivo para si na<br />

realida<strong>de</strong> exterior.<br />

O livre-arbítrio surge quando o sujeito reflete sobre si mesmo, tomando<br />

consciência <strong>de</strong> que sua vonta<strong>de</strong> é livre <strong>de</strong> todo e qualquer conteúdo, pois este, seja<br />

interno ou externo, lhe está subordinado. Por isso, “a reflexão, generalida<strong>de</strong> e<br />

unida<strong>de</strong> formais da consciência <strong>de</strong> si, é a certeza abstrata que a vonta<strong>de</strong> t<strong>em</strong> da sua<br />

liberda<strong>de</strong> [...].” (HEGEL, 1997, p. 22) Os instintos representam uma prisão, da qual o<br />

sujeito auto-reflexivo se reconhece como livre.


11<br />

Para se tornar realmente livre, o sujeito sente a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se libertar<br />

<strong>de</strong> seu <strong>de</strong>terminismo instintivo natural. Porém, para <strong>Hegel</strong>, isto não se faz através da<br />

eliminação dos instintos, mas <strong>de</strong> sua purificação. De acordo com suas próprias<br />

palavras:<br />

Aplicada aos instintos, a reflexão traz-lhes a forma da generalida<strong>de</strong><br />

representando-os, medindo-os, comparando-os uns com os outros, também<br />

com as suas condições e suas conseqüências e ainda com a manifestação<br />

total <strong>de</strong>les (felicida<strong>de</strong>). Assim os purifica exteriormente <strong>de</strong> sua ferocida<strong>de</strong> e<br />

barbárie. Ao produzir-se esta universalida<strong>de</strong> do pensamento, a cultura<br />

adquire um valor absoluto. (HEGEL, 1997, p. 25).<br />

Os fins então tomam a forma da universalida<strong>de</strong>, como no pensamento <strong>de</strong><br />

<strong>Kant</strong>. Há, entretanto, uma diferença notável com relação ao imperativo categórico e<br />

o pensamento <strong>de</strong> <strong>Hegel</strong>. Enquanto <strong>em</strong> <strong>Hegel</strong> os instintos são levados a um grau <strong>de</strong><br />

universalização pelo pensamento, sendo eles a condição para a própria vonta<strong>de</strong>, <strong>em</strong><br />

<strong>Kant</strong>, para que uma ação seja moral <strong>em</strong> conformida<strong>de</strong> com o imperativo categórico,<br />

a ação precisa ser totalmente incondicionada, e não só universal. O imperativo da<br />

razão or<strong>de</strong>na que a ação seja levada a efeito in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nt<strong>em</strong>ente das inclinações,<br />

instintos ou <strong>de</strong>sejos pessoais. Se <strong>em</strong> <strong>Hegel</strong> os instintos são a condição para a<br />

vonta<strong>de</strong>, que precisa ser universalizada, o imperativo categórico, enquanto ação<br />

incondicionada, é impossível. Para <strong>Hegel</strong>, o <strong>de</strong>ver surge <strong>de</strong>pois, quando:<br />

[...] o hom<strong>em</strong> toma consciência que só po<strong>de</strong> satisfazer sua subjetivida<strong>de</strong><br />

através da conservação do todo. Para tanto, precisa renunciar sua<br />

subjetivida<strong>de</strong>, a<strong>de</strong>quando ‘o seu saber (Wissen)’, ‘o seu querer (Wollen)’, e<br />

‘o seu fazer (tun)’ com um modo universal e se façam m<strong>em</strong>bros da ca<strong>de</strong>ia<br />

<strong>de</strong>ssa <strong>de</strong>pendência. (SOARES, 2009, p. 140).<br />

O hom<strong>em</strong>, neste sentido, é para <strong>Hegel</strong> <strong>em</strong>inent<strong>em</strong>ente egoísta, pois, se<br />

conserva o universal, o todo, só o faz porque é através <strong>de</strong>le que po<strong>de</strong> satisfazer a si<br />

próprio. Qualquer sacrifício feito <strong>em</strong> favor do todo é, na verda<strong>de</strong>, um serviço<br />

prestado a si mesmo. No entanto, <strong>Hegel</strong> afirma que, ao purificar os instintos, que:


12<br />

[...] <strong>de</strong>v<strong>em</strong> reconhecer-se como o sist<strong>em</strong>a racional <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminação<br />

voluntária [...] a vonta<strong>de</strong> que existe <strong>em</strong> si é verda<strong>de</strong>iramente infinita porque<br />

é ela própria o seu objeto e não constitui, portanto, para si n<strong>em</strong> um outro<br />

n<strong>em</strong> um limite mas, antes, um regresso a si. Ela não é, pois, pura<br />

possibilida<strong>de</strong>, disposição, potência (potencia), mas o infinito atual (infinitum<br />

actu) porque a existência do conceito ou o seu objeto exterior é a própria<br />

interiorida<strong>de</strong>. (HEGEL, 1997, p. 24 e 27).<br />

Ao reconhecer os instintos como “sist<strong>em</strong>a racional <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminação<br />

voluntária”, <strong>Hegel</strong> é a<strong>de</strong>pto do princípio da heteronomia da vonta<strong>de</strong>. Isto significa<br />

que a vonta<strong>de</strong>, <strong>em</strong> si mesma, não é autônoma, mas <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> instintos e que<br />

sua liberda<strong>de</strong>, na verda<strong>de</strong>, se limita a “purificar” estes instintos, dando-lhes a forma<br />

<strong>de</strong> universalida<strong>de</strong>. Em <strong>Kant</strong>, pelo contrário, para uma vonta<strong>de</strong> livre “<strong>de</strong>ve faltar aqui,<br />

completamente, a impulsão, e <strong>de</strong>veria essa própria idéia ser <strong>de</strong> um modo inteligível<br />

a impulsão ou aquilo por que a razão toma originalmente interesse; mas fazê-lo<br />

concebível é justamente um probl<strong>em</strong>a que não pod<strong>em</strong>os solucionar.” (KANT, 2006,<br />

p. 94) Isto porque, <strong>em</strong> <strong>Kant</strong>, a liberda<strong>de</strong> precisa ser totalmente incondicionada,<br />

guiada tão-somente pela razão pura que, <strong>em</strong> si mesma, <strong>de</strong>ve tomar interesse por<br />

seus fins. Entretanto, como a fonte <strong>de</strong>sta vonta<strong>de</strong> livre incondicionada é pura<br />

(in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte da experiência), não po<strong>de</strong> ser dada na experiência como proveniente<br />

<strong>de</strong> quaisquer causas sensíveis que a condicionariam, sejam instintos, inclinações ou<br />

<strong>de</strong>sejos, porque é estritamente racional, e não sensível. A liberda<strong>de</strong> <strong>em</strong> <strong>Hegel</strong>,<br />

apesar <strong>de</strong> universal quando confere generalida<strong>de</strong> aos instintos, não é autônoma e<br />

incondicionada.<br />

3.2.1.2 Vonta<strong>de</strong> e <strong>Liberda<strong>de</strong></strong><br />

<strong>Hegel</strong> então busca a autonomia e o incondicionado da liberda<strong>de</strong> fora do<br />

indivíduo, numa estrutura que este constrói para satisfazer suas próprias<br />

necessida<strong>de</strong>s e preservá-las: o Estado. Para chegar até ele, o indivíduo passa<br />

primeiramente pelas instituições da família e da Socieda<strong>de</strong> Civil, que se un<strong>em</strong> no<br />

todo organizado do Estado.


13<br />

Na família, o indivíduo satisfaz suas necessida<strong>de</strong>s no próprio seio da<br />

economia familiar, <strong>de</strong>vido a um laço sentimental natural <strong>de</strong> amor entre pais e filhos.<br />

Quando o indivíduo atinge a maiorida<strong>de</strong>, se <strong>de</strong>sliga da <strong>de</strong>pendência familiar e<br />

precisa satisfazer suas necessida<strong>de</strong>s na Socieda<strong>de</strong> Civil. O primeiro princípio <strong>de</strong>sta<br />

é a pessoa, que:<br />

[...] é um conjunto <strong>de</strong> necessida<strong>de</strong>s, cujo fim é a sua própria particularida<strong>de</strong> e<br />

a satisfação dos seus <strong>de</strong>sejos, e o segundo princípio – resultante do primeiro<br />

– é a universalida<strong>de</strong>; uma vez que a particularida<strong>de</strong>, <strong>em</strong> busca <strong>de</strong> satisfazer<br />

seu egoísmo, entra <strong>em</strong> relação com outras particularida<strong>de</strong>s, <strong>de</strong> tal modo que<br />

cada um se afirma e se satisfaz por meio da outra, que é condição <strong>de</strong><br />

efetivação <strong>de</strong> seus fins. (SOARES, 2009, p. 136)<br />

Ao se integrar à Socieda<strong>de</strong> Civil, o indivíduo precisa se adaptar ao<br />

sist<strong>em</strong>a <strong>de</strong> <strong>de</strong>pendência universal, que interliga os sujeitos uns aos outros, como<br />

meios para satisfazer<strong>em</strong> mutuamente suas necessida<strong>de</strong>s. Deste modo, o indivíduo<br />

passa a trabalhar para a satisfação das necessida<strong>de</strong>s do todo, enquanto este lhe<br />

retribui satisfazendo suas necessida<strong>de</strong>s. Porém, nesse nível, “é impossível criar uma<br />

universalida<strong>de</strong> que não seja contingente. Nesta esfera, sou <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte da<br />

causalida<strong>de</strong>, das circunstâncias, do arbítrio dos outros. Daí a extr<strong>em</strong>a <strong>de</strong>sord<strong>em</strong><br />

praticada na Socieda<strong>de</strong> Civil.” (SOARES, 2009, p. 138). A arbitrarieda<strong>de</strong>, na<br />

Socieda<strong>de</strong> Civil, não t<strong>em</strong> limites, sendo necessário que se estabeleçam leis para<br />

garantir o igual direito <strong>de</strong> todos, proteção <strong>de</strong> suas proprieda<strong>de</strong>s e dos interesses<br />

individuais, porque “na Socieda<strong>de</strong> Civil, todos os indivíduos têm interesses privados<br />

pelos quais se opõ<strong>em</strong> ao todo, e nenhum indivíduo po<strong>de</strong> ter a pretensão <strong>de</strong> ser uma<br />

fonte <strong>de</strong> direito.” (SOARES, 2009, p. 158-159).<br />

Diante da necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma lei universal, que regule a Socieda<strong>de</strong> Civil<br />

e garanta o direito dos indivíduos face à arbitrarieda<strong>de</strong> reinante, surge o Estado com<br />

o papel <strong>de</strong> garantir a efetivida<strong>de</strong> da lei na proteção dos interesses individuais.<br />

Enquanto na Socieda<strong>de</strong> Civil vigora o império das necessida<strong>de</strong>s, o Estado assegura<br />

a liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> seus integrantes, ocorrendo então uma síntese entre necessida<strong>de</strong>s e<br />

liberda<strong>de</strong> como dois momentos <strong>de</strong> uma mesma realida<strong>de</strong>.<br />

O Estado é, na verda<strong>de</strong>, um prolongamento da Socieda<strong>de</strong> Civil, sendo<br />

necessário para a conservação <strong>de</strong>sta. O Estado é a própria concretização da


14<br />

liberda<strong>de</strong>, que surge como necessida<strong>de</strong> do indivíduo para a preservação dos seus<br />

interesses na Socieda<strong>de</strong> Civil. Neste sentido, ele é a vonta<strong>de</strong> do hom<strong>em</strong> enquanto<br />

quer ser livre, a própria manifestação do Espírito Objetivo, da vonta<strong>de</strong> regida pela<br />

razão que lhe confere liberda<strong>de</strong>:<br />

[...] é o racional <strong>em</strong> si e para si: esta unida<strong>de</strong> substancial é um fim próprio<br />

absoluto, imóvel, nele a liberda<strong>de</strong> obtém o seu valor supr<strong>em</strong>o, e assim este<br />

último fim possui um direito soberano perante os indivíduos que <strong>em</strong> ser<strong>em</strong><br />

m<strong>em</strong>bros do Estado têm o seu mais elevado <strong>de</strong>ver. (HEGEL, 1997, p. 217)<br />

Se o Estado é a própria razão encarnada no mundo, não há verda<strong>de</strong> fora<br />

<strong>de</strong>le, e o indivíduo só atinge seus fins como m<strong>em</strong>bro do Estado, que é seu fim<br />

supr<strong>em</strong>o, condição e fim <strong>de</strong> quaisquer outros fins. No entanto, no Estado:<br />

[...] n<strong>em</strong> o universal t<strong>em</strong> valor e é realizado s<strong>em</strong> o interesse, a consciência e<br />

a vonta<strong>de</strong> particulares, n<strong>em</strong> os indivíduos viv<strong>em</strong> como pessoas privadas<br />

unicamente orientadas pelo seu interesse e s<strong>em</strong> relação com a vonta<strong>de</strong><br />

universal; <strong>de</strong>ste fim são conscientes <strong>em</strong> sua ativida<strong>de</strong> individual. (HEGEL,<br />

1997, p. 225-226).<br />

Isto significa que o Estado só existe <strong>de</strong>vido ao interesse dos indivíduos, e<br />

o interesse <strong>de</strong>stes só po<strong>de</strong> ser realizado porque existe o Estado. Como este é a<br />

própria concretização da liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong>terminada pela razão, os <strong>de</strong>veres que <strong>de</strong>le<br />

advêm são necessários e incondicionados, enquanto todas as necessida<strong>de</strong>s<br />

individuais são meramente contingentes, pois advêm do instinto “purificado”, que<br />

condiciona a vonta<strong>de</strong> humana. Isto porque no <strong>de</strong>ver para com o Estado, “o que<br />

importa é a relação do princípio, que não repousa <strong>em</strong> ‘coisas’, mas num universal, o<br />

da liberda<strong>de</strong> do hom<strong>em</strong>.” (SOARES, 2009, p. 189).<br />

Disto se segue que “o Estado é a marcha <strong>de</strong> Deus no mundo e o seu<br />

fundamento é o po<strong>de</strong>r da razão que se realiza como vonta<strong>de</strong>.” (HEGEL, 1997, apud<br />

SOARES, 2009, p. 186). Ele se manifesta subjetivamente como patriotismo, que é o<br />

sentimento:


15<br />

da confiança [...] e da certeza <strong>de</strong> que o meu interesse particular e o seu<br />

interesse substancial se conservam e persist<strong>em</strong> <strong>de</strong>ntro do interesse e dos<br />

fins <strong>de</strong> um outro (no caso, o Estado) e portanto, <strong>de</strong>ntro da sua relação<br />

comigo como indivíduo. Daí provém, precisamente, que o Estado não seja<br />

para mim algo <strong>de</strong> alheio e que, neste estado <strong>de</strong> consciência, eu seja livre.<br />

(HEGEL, 1997, p. 230)<br />

Com isto, <strong>Hegel</strong> retira do hom<strong>em</strong>, do Espírito Subjetivo, o seu próprio<br />

valor absoluto e o transfere para o Estado, o Espírito Objetivo. Isto porque no<br />

hom<strong>em</strong> a liberda<strong>de</strong> é apenas abstrata, e como para <strong>Hegel</strong> “o que é racional é real e<br />

o que é real é racional”, somente no Estado a liberda<strong>de</strong> é concreta, real e<br />

verda<strong>de</strong>ira.<br />

4 KANT E LIBERDADE EM HEGEL<br />

Há uma íntima relação entre o imperativo categórico, a autonomia da<br />

vonta<strong>de</strong> <strong>em</strong> <strong>Kant</strong> e o Estado <strong>de</strong> <strong>Hegel</strong>. Em <strong>Kant</strong> o sujeito, enquanto ser racional, t<strong>em</strong><br />

uma vonta<strong>de</strong> capaz <strong>de</strong> se <strong>de</strong>terminar in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nt<strong>em</strong>ente <strong>de</strong> instintos, inclinações<br />

ou necessida<strong>de</strong>s, porque advém do mundo das coisas <strong>em</strong> si, on<strong>de</strong> as leis da<br />

natureza, a “vonta<strong>de</strong> imediata e instintiva” <strong>de</strong> <strong>Hegel</strong> não existe, mas tão-somente a<br />

razão pura. A vonta<strong>de</strong> dos seres racionais, no mundo das coisas <strong>em</strong> si, se <strong>de</strong>termina<br />

necessariamente <strong>de</strong> acordo com a razão, pois nele não há quaisquer impulsões<br />

sensíveis. Isto lhe confere autonomia, pois a vonta<strong>de</strong> estabelece uma lei a si<br />

mesma, cuja forma, como a <strong>de</strong> toda lei natural, é a universalida<strong>de</strong>: “age como se a<br />

máxima da tua ação <strong>de</strong>vesse se tornar, pela tua vonta<strong>de</strong>, lei universal da natureza.”<br />

(KANT, 2006, p.52).<br />

O ser racional, <strong>em</strong> <strong>Kant</strong>, é um fim <strong>em</strong> si mesmo, pois ele próprio, pela sua<br />

vonta<strong>de</strong>, estabelece uma lei universal a que ele, como todos os d<strong>em</strong>ais, está<br />

subordinado. Isto lhe confere sua dignida<strong>de</strong>, pois, ao ser um fim <strong>em</strong> si mesmo, t<strong>em</strong><br />

valor absoluto e não po<strong>de</strong> ser tratado apenas como meio. Como todos os seres


16<br />

racionais são <strong>de</strong> valor absoluto, não há diferença essencial entre eles, <strong>de</strong> on<strong>de</strong><br />

provém sua igualda<strong>de</strong>.<br />

Entretanto, ao se manifestar no mundo sensível, os seres racionais se<br />

sujeitam a toda sorte <strong>de</strong> inclinações, impulsos e instintos, que tentam corromper a<br />

pureza e a autonomia <strong>de</strong> sua vonta<strong>de</strong>. O ser racional, então, se vê obrigado, por<br />

<strong>de</strong>ver, a agir <strong>em</strong> conformida<strong>de</strong> com a razão, contra suas próprias inclinações<br />

pessoais, para aten<strong>de</strong>r à lei <strong>de</strong> sua vonta<strong>de</strong> livre. Isto porque, enquanto ser sensível,<br />

não reflete o que é <strong>em</strong> si mesmo, pois é apenas um produto da experiência<br />

condicionada pela sua sensibilida<strong>de</strong> e entendimento. A lei <strong>de</strong> sua vonta<strong>de</strong> livre<br />

passa a ser então um imperativo, um <strong>de</strong>ver ser, que or<strong>de</strong>na a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma<br />

ação pela própria forma da lei, incondicionalmente, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nt<strong>em</strong>ente dos seus<br />

resultados.<br />

O hom<strong>em</strong>, portanto, enquanto ser racional, já é um fim <strong>em</strong> si mesmo, um<br />

valor absoluto, possuidor <strong>de</strong> uma vonta<strong>de</strong> livre e autônoma, essencialmente igual<br />

aos d<strong>em</strong>ais, pois as diferenças sensíveis não reflet<strong>em</strong> o que eles são <strong>em</strong> si. Se a lei<br />

<strong>de</strong> sua vonta<strong>de</strong> livre, que reflete a verda<strong>de</strong> do que ele é <strong>em</strong> si mesmo, é<br />

transgredida, não é por falta <strong>de</strong> reconhecimento <strong>de</strong> sua autorida<strong>de</strong>, mas <strong>de</strong>vido às<br />

influências do mundo sensível, pois, como diz <strong>Kant</strong>:<br />

[...] não há ninguém, n<strong>em</strong> mesmo o pior facínora, se habituado a usar a<br />

razão, que não <strong>de</strong>seje, quando se lhe apresentam ex<strong>em</strong>plos <strong>de</strong> retidão nas<br />

intenções, <strong>de</strong> perseverança na obediência <strong>de</strong> boas máximas, <strong>de</strong> compaixão<br />

e universal benevolência (ainda por cima unidas essas virtu<strong>de</strong>s a gran<strong>de</strong>s<br />

sacrifícios <strong>de</strong> interesses e <strong>de</strong> b<strong>em</strong>-estar), que não <strong>de</strong>seje, digo, ter também<br />

esses bons sentimentos. Mas não po<strong>de</strong> consegui-lo <strong>em</strong> virtu<strong>de</strong> <strong>de</strong> suas<br />

inclinações e apetites, <strong>de</strong>sejando todavia, ao mesmo t<strong>em</strong>po, libertar-se <strong>de</strong><br />

tais tendências que a ele mesmo oprim<strong>em</strong>. [...] ele t<strong>em</strong> consciência <strong>de</strong><br />

possuir uma boa vonta<strong>de</strong>, a qual constitui, segundo sua própria confissão, a<br />

lei para sua má vonta<strong>de</strong>, como m<strong>em</strong>bro do mundo sensível, reconhecendo<br />

a autorida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ssa lei ao transgredi-la. (KANT, 2006, p. 87)<br />

Para <strong>Hegel</strong>, pelo contrário, a liberda<strong>de</strong> é um produto da necessida<strong>de</strong>. A<br />

razão, no hom<strong>em</strong>, serve apenas para “purificar” seus instintos, civilizando-os,<br />

retirando-lhes a brutalida<strong>de</strong> para lhes conferir um grau <strong>de</strong> universalida<strong>de</strong> necessário<br />

à sua sobrevivência <strong>em</strong> comunida<strong>de</strong>, s<strong>em</strong> que <strong>de</strong>strua a si mesmo e aos d<strong>em</strong>ais. O<br />

hom<strong>em</strong>, nesta perspectiva, é um animal civilizado, um ser instintivo que, pelo uso da


17<br />

razão, elevou-se do grau <strong>de</strong> barbárie, possibilitando um nível <strong>de</strong> convívio mútuo, não<br />

como um b<strong>em</strong> <strong>em</strong> si, mas para a satisfação <strong>de</strong> seus próprios interesses, para o<br />

atendimento <strong>de</strong> suas próprias necessida<strong>de</strong>s.<br />

Devido à anarquia, à falta <strong>de</strong> ord<strong>em</strong> e o perigo <strong>de</strong> ver seus interesses<br />

lesados <strong>em</strong> uma Socieda<strong>de</strong> Civil, on<strong>de</strong> cada um utiliza os d<strong>em</strong>ais como meios para<br />

satisfazer suas necessida<strong>de</strong>s através da troca <strong>de</strong> produtos e serviços, o sujeito<br />

sente a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> resguardar suas proprieda<strong>de</strong>s e <strong>de</strong> proteger a Socieda<strong>de</strong><br />

Civil do caos interno, <strong>de</strong>vido ao predomínio dos mais fortes sobre os outros. O<br />

Estado então se faz necessário, como uma extensão da Socieda<strong>de</strong> Civil, para<br />

manter a ord<strong>em</strong>, estabelecer leis e assegurar aos indivíduos a sua liberda<strong>de</strong> frente<br />

aos d<strong>em</strong>ais.<br />

O Estado, <strong>em</strong> <strong>Hegel</strong>, torna-se o que o hom<strong>em</strong> não consegue ser<br />

concretamente, a própria liberda<strong>de</strong>, <strong>de</strong> modo que o hom<strong>em</strong> sozinho não é capaz <strong>de</strong><br />

ser um fim <strong>em</strong> si mesmo, mas apenas no Estado, pois somente nele t<strong>em</strong> seu fim. O<br />

Estado adquire então um valor absoluto, pois integra os homens <strong>em</strong> sua estrutura,<br />

passando a ser ele próprio um fim <strong>em</strong> si mesmo, o “infinito e racional <strong>em</strong> si e para<br />

si.” (HEGEL, 1997, p. 132).<br />

4.1 Conseqüências da <strong>Liberda<strong>de</strong></strong> <strong>em</strong> <strong>Hegel</strong><br />

<strong>Hegel</strong> usurpou do hom<strong>em</strong> toda a sua dignida<strong>de</strong>, seu valor absoluto como<br />

ser racional, a autonomia <strong>de</strong> sua vonta<strong>de</strong>, sua própria liberda<strong>de</strong> e a transferiu para o<br />

Estado, uma <strong>de</strong>rivação necessária do hom<strong>em</strong>, ou melhor, <strong>de</strong> seu:<br />

[...] <strong>de</strong>stino absoluto, ou se se quiser, o instinto absoluto do espírito livre,<br />

que é o <strong>de</strong> ter a sua liberda<strong>de</strong> como objeto (objetivida<strong>de</strong> dupla pois será o<br />

sist<strong>em</strong>a racional <strong>de</strong> si mesma e, simultaneamente, realida<strong>de</strong> imediata)<br />

(§26º), a fim <strong>de</strong> ser para si, como idéia, o que a vonta<strong>de</strong> <strong>em</strong> si – uma<br />

palavra, o conceito abstrato da idéia da vonta<strong>de</strong> – é, <strong>em</strong> geral, a vonta<strong>de</strong><br />

livre que quer a vonta<strong>de</strong> livre. (HEGEL, 1997, p. 30)<br />

O hom<strong>em</strong>, enquanto racionalida<strong>de</strong>, o Espírito Subjetivo, é apenas uma<br />

abstração, que só se torna concreta, real, quando se transporta para o Espírito


18<br />

Objetivo, o próprio Estado. <strong>Liberda<strong>de</strong></strong>, autonomia da vonta<strong>de</strong> e dignida<strong>de</strong> não são<br />

atributos do hom<strong>em</strong>, porque nele são apenas abstrações. Tudo o que faz do ser<br />

humano alguém, para além <strong>de</strong> sua animalida<strong>de</strong> instintiva “purificada” e<br />

universalizada, é o Estado.<br />

Os <strong>de</strong>sdobramentos <strong>de</strong>ste pensamento levam a resultados ainda mais<br />

inconseqüentes, pois, no pensamento <strong>de</strong> <strong>Hegel</strong>:<br />

[...] um povo se distingue do outro pela religião, tradição, costumes, o que<br />

acarreta um nível <strong>de</strong> esforço consciente. Eis porque não é possível unificar<br />

diferentes Estados por via <strong>de</strong> conquistas ou <strong>de</strong> procedimentos diplomáticos.<br />

Além do mais, cada um, para salvaguardar sua in<strong>de</strong>pendência, se torna<br />

hostil ao outro, criando uma situação conflitiva e, por esta ‘individualida<strong>de</strong>’, o<br />

cidadão é capaz <strong>de</strong> <strong>de</strong>spojar-se da vida e da proprieda<strong>de</strong> <strong>em</strong> proveito do<br />

interesse conjunto. (SOARES, 2009, p. 199).<br />

O Estado, ao <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r seus interesses na guerra, fortalece sua unida<strong>de</strong><br />

ética, auferindo po<strong>de</strong>r, vigor e saú<strong>de</strong>. A guerra, <strong>em</strong> verda<strong>de</strong>, é bastante saudável e<br />

até mesmo necessária para o Estado e para o progresso da humanida<strong>de</strong>, pois ela<br />

assegura: “a saú<strong>de</strong> moral dos povos <strong>em</strong> sua indiferença perante a fixação das<br />

especificações finitas e, tal como os ventos proteg<strong>em</strong> o mar contra a estagnação <strong>em</strong><br />

que os mergulharia uma in<strong>de</strong>finida tranqüilida<strong>de</strong>, assim uma paz eterna faria<br />

estagnar os povos.” (HEGEL, 2000, p. 298).<br />

Além disso, o Estado, na <strong>de</strong>fesa <strong>de</strong> seus interesses frente aos d<strong>em</strong>ais,<br />

não conhece limites n<strong>em</strong> princípios morais, porque é absoluto e soberano. Seu<br />

egoísmo é plenamente justificável, porque não existe nada superior a ele. Porque é<br />

a própria razão encarnada no mundo:<br />

É esta existência concreta, e não as numerosas idéias gerais consi<strong>de</strong>radas<br />

como mandamentos morais subjetivos, que o Estado po<strong>de</strong> erigir <strong>em</strong><br />

princípio <strong>de</strong> sua conduta. A crença na chamada injustiça inerente à política,<br />

na chamada oposição entre política e a moral, está fundada <strong>em</strong> falsas<br />

concepções da moralida<strong>de</strong> subjetiva, da natureza do Estado e da sua<br />

situação do ponto <strong>de</strong> vista moral subjetivo. (HEGEL, 1997, p. 305).


19<br />

Os Estados, por isso, manifestam, nas relações entre si, as mesmas<br />

características, necessida<strong>de</strong>s e inclinações instintivas do sujeito particular, como<br />

“paixões, interesses, finalida<strong>de</strong>s, talentos, virtu<strong>de</strong>s, violências, injustiças e vícios,<br />

mas elevado à mais alta potência que se possa assumir.” (HEGEL, 1997, p. 306).<br />

Tornam-se indivíduos supr<strong>em</strong>os, cuja vonta<strong>de</strong>, no âmbito internacional, <strong>de</strong>ve<br />

imperar pela força, quando não for do seu interesse a paz.<br />

Se os Estados representam a garantia da liberda<strong>de</strong> para os cidadãos,<br />

externamente manifestam os mesmos vícios que tencionam coibir internamente, e<br />

só po<strong>de</strong>rão ser julgados, segundo o filósofo, pelo “espírito universal, o espírito do<br />

mundo enquanto ilimitado, e é ele que exerce, ao mesmo t<strong>em</strong>po, sobre esses<br />

espíritos o seu direito (que é o direito supr<strong>em</strong>o) na história do mundo como tribunal<br />

do mundo.” (HEGEL, 1997, p. 306-307).<br />

O Espírito do mundo, para <strong>Hegel</strong>, constituído por todos os Estados <strong>em</strong><br />

conjunto, caminha através da história universal para alcançar níveis cada vez mais<br />

elevados <strong>de</strong> concretização da liberda<strong>de</strong>. A história é “o <strong>de</strong>senvolvimento necessário<br />

dos momentos da razão, da consciência <strong>de</strong> si e da liberda<strong>de</strong> do espírito, a<br />

interpretação e a realização do espírito universal.” (HEGEL, 1997, p. 307). O<br />

Espírito, o LOGOS divino, a própria razão, <strong>em</strong> seu movimento dialético, nega sua<br />

realida<strong>de</strong> presente para se concretizar, <strong>em</strong> síntese progressiva, <strong>em</strong> uma existência<br />

cada vez mais próxima da Idéia Absoluta, a total i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> entre Espírito Subjetivo<br />

e Objetivo, a liberda<strong>de</strong> plena.<br />

5 CONCLUSÃO<br />

O sist<strong>em</strong>a filosófico <strong>de</strong> <strong>Hegel</strong> parte do processo dialético para, a partir <strong>de</strong><br />

conceitos abstratos, chegar a <strong>de</strong>terminações cada vez mais concretas no mundo.<br />

<strong>Kant</strong>, pelo contrário, utilizou-se unicamente da razão pura, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong><br />

qualquer influência <strong>em</strong>pírica, para construir todo o arcabouço <strong>de</strong> sua filosofia prática,<br />

na qual se inclui a liberda<strong>de</strong> e uma moral pura.<br />

<strong>Hegel</strong>, ao afirmar que a vonta<strong>de</strong> humana é instintiva, rebaixou o hom<strong>em</strong> à<br />

condição animal, conferindo-lhe, no entanto, uma razão capaz <strong>de</strong> “purificar” a


20<br />

brutalida<strong>de</strong> e <strong>de</strong>smesura <strong>de</strong> seus instintos, tornando-o capaz <strong>de</strong> viver na Socieda<strong>de</strong><br />

Civil, on<strong>de</strong> todos prestam serviço uns aos outros, como meio <strong>de</strong> satisfazer suas<br />

próprias necessida<strong>de</strong>s. Neste sentido, o hom<strong>em</strong>, ao invés <strong>de</strong> um animal irascível e<br />

auto<strong>de</strong>strutivo, é transformado pela razão <strong>em</strong> um ser <strong>em</strong>inent<strong>em</strong>ente egoísta, que<br />

visa tão-somente a satisfação <strong>de</strong> seus instintos civilizados.<br />

Como não é possível viver <strong>em</strong> uma Socieda<strong>de</strong> Civil s<strong>em</strong> leis que regul<strong>em</strong><br />

a relação entre seus integrantes, <strong>de</strong>vido ao caos generalizado que se instalaria<br />

<strong>de</strong>vido ao predomínio dos mais fortes, à constante insegurança nas relações e à<br />

ameaça aos direitos mais básicos dos indivíduos, o Estado surge como extensão da<br />

Socieda<strong>de</strong> Civil, garantindo assim a liberda<strong>de</strong> e os direitos <strong>de</strong> seus integrantes<br />

frente aos d<strong>em</strong>ais.<br />

O Estado torna-se, na realida<strong>de</strong>, a própria encarnação da liberda<strong>de</strong> no<br />

mundo, a razão <strong>em</strong> si e para si, pois somente nele a vonta<strong>de</strong> humana é livre e quer<br />

a liberda<strong>de</strong>. Não se trata aqui, <strong>de</strong>ste modo, <strong>de</strong> uma liberda<strong>de</strong> genuína, mas apenas<br />

uma liberda<strong>de</strong> que serve como garantia da satisfação dos interesses pessoais <strong>de</strong><br />

cada um. Entretanto, s<strong>em</strong> o Estado, não há liberda<strong>de</strong> e, s<strong>em</strong> liberda<strong>de</strong>, não é<br />

possível a existência <strong>de</strong> uma Socieda<strong>de</strong> Civil s<strong>em</strong> que esta entre <strong>em</strong> colapso. Por<br />

isto, <strong>Hegel</strong> diz que, <strong>em</strong> verda<strong>de</strong>, Estado, Socieda<strong>de</strong> Civil e família faz<strong>em</strong> parte <strong>de</strong><br />

uma mesma realida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> um mesmo Espírito Objetivo, que s<strong>em</strong>pre existiu no<br />

mundo, apesar dos diferentes graus <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento, como razão que se<br />

concretiza na terra.<br />

A liberda<strong>de</strong>, garantida pelo Estado, é a fonte do Direito e o fim último <strong>de</strong><br />

todo ser humano. O Estado, que é a própria razão, torna-se o absoluto, um fim <strong>em</strong> si<br />

mesmo, pois ele estabelece as leis que reg<strong>em</strong> a liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> seus integrantes, quer<br />

dizer, dita seus próprios fins. O indivíduo per<strong>de</strong>, enquanto ser instintivo, seu valor<br />

absoluto, pois é incapaz <strong>de</strong>, por si mesmo, instituir as leis que o tornam livre. Sua<br />

dignida<strong>de</strong> é transferida para o Estado, que <strong>de</strong>ve ser <strong>de</strong>fendido e protegido, até<br />

mesmo com o sacrifício da vida, para a <strong>de</strong>fesa <strong>de</strong> sua própria razão <strong>de</strong> existir. S<strong>em</strong><br />

o Estado não há satisfação <strong>de</strong> interesses na Socieda<strong>de</strong> Civil e, s<strong>em</strong> esta, o indivíduo<br />

fica impossibilitado <strong>de</strong> satisfazer seus instintos, seu próprio egoísmo. Por isto, o<br />

Estado é, <strong>em</strong> realida<strong>de</strong>, uma extensão do Espírito Subjetivo dos indivíduos, que se<br />

exterioriza para o mundo, tornando-se Espírito Objetivo.


21<br />

O Estado, por sua vez, não é nada mais do que um outro indivíduo, que<br />

representa uma coletivida<strong>de</strong>, um povo, frente aos outros Estados. Como é a própria<br />

encarnação da razão, o LOGOS na terra, <strong>de</strong>sconhece quaisquer leis morais para a<br />

satisfação <strong>de</strong> seus interesses. Desta forma, possui os mesmos vícios, qualida<strong>de</strong>s e<br />

virtu<strong>de</strong>s <strong>de</strong> um ser instintivo, apenas com o agravante <strong>de</strong> ser<strong>em</strong> elevados ao grau<br />

extr<strong>em</strong>o. Enquanto internamente o Estado preten<strong>de</strong> garantir a liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> seus<br />

integrantes frente aos d<strong>em</strong>ais, pondo ord<strong>em</strong> e coibindo os excessos <strong>de</strong> seus<br />

integrantes, externamente ele se mostra igual ou mesmo pior do que os cidadãos,<br />

pois seu po<strong>de</strong>r é extr<strong>em</strong>amente superior, o que torna sua capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong>strutiva<br />

inigualável.<br />

<strong>Hegel</strong>, porém, não se satisfaz com este <strong>de</strong>sfecho <strong>em</strong> seu pensamento,<br />

pois algo <strong>de</strong>ve levar para um b<strong>em</strong>, para a concretização da liberda<strong>de</strong>, e não ao<br />

retorno à irracionalida<strong>de</strong>, do uso do po<strong>de</strong>r para a efetivação <strong>de</strong> propósitos<br />

meramente arbitrários. Imagina então que os Estados, <strong>em</strong> conjunto, faz<strong>em</strong> parte <strong>de</strong><br />

algo maior, o Espírito do mundo, que caminha pela história num progresso <strong>de</strong><br />

conscientização <strong>de</strong> si mesmo, on<strong>de</strong> a razão, o próprio Espírito, se materializa cada<br />

vez mais, tornando a liberda<strong>de</strong> cada vez mais efetiva e real. Ao fim, s<strong>em</strong> que se<br />

possa estabelecer uma previsão <strong>de</strong> quando ocorrerá, a tendência é a <strong>de</strong> que se<br />

instale na terra algo parecido com o reino dos fins ou reino da liberda<strong>de</strong> kantiano,<br />

on<strong>de</strong> não haverá mais conflitos entre indivíduos ou Estados e a liberda<strong>de</strong>, a razão, a<br />

Idéia Absoluta, serão plenamente concretizadas no mundo.<br />

Percebe-se claramente que, no pensamento <strong>de</strong> <strong>Hegel</strong>, on<strong>de</strong> os Estados<br />

são tão ou até mais imperfeitos do que os próprios indivíduos, um <strong>de</strong>sfecho que leve<br />

ao reino dos fins não é viável. Somente se, por ventura, os Estados tomass<strong>em</strong> uma<br />

consciência moral, po<strong>de</strong>ria haver a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> algo, pelo menos aproximado,<br />

se estabelecer na terra, mas, ao ser analisada <strong>em</strong> <strong>de</strong>talhes, percebe-se que a idéia<br />

do reino dos fins, como imaginada por <strong>Kant</strong>, não po<strong>de</strong>ria ser concretizada nestes<br />

parâmetros, pois a própria natureza do hom<strong>em</strong>, <strong>em</strong> <strong>Hegel</strong>, é concebida <strong>de</strong> uma<br />

forma diversa.<br />

<strong>Kant</strong> parte do princípio <strong>de</strong> que todo ser racional, <strong>em</strong> si mesmo, t<strong>em</strong> a lei<br />

que faz <strong>de</strong> sua vonta<strong>de</strong> livre, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nt<strong>em</strong>ente <strong>de</strong> quaisquer estruturas externas.<br />

Isto porque sua vonta<strong>de</strong>, proveniente do mundo das coisas <strong>em</strong> si, on<strong>de</strong> não há<br />

instinto, inclinações ou necessida<strong>de</strong>s, dá a lei a si mesma, <strong>de</strong>terminada pela razão


22<br />

pura. A vonta<strong>de</strong> obe<strong>de</strong>ce, ao estabelecer suas normas, a forma <strong>de</strong> toda lei natural: a<br />

universalida<strong>de</strong>. A fórmula <strong>de</strong> seu enunciado, então, impõe a prática <strong>de</strong> ações<br />

necessárias por si mesmas, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nt<strong>em</strong>ente dos resultados, conforme o<br />

seguinte mandamento: “age como se a máxima da tua ação <strong>de</strong>vesse se tornar, pela<br />

tua vonta<strong>de</strong>, lei universal da natureza.” (KANT, 2006, p.52).<br />

O ser racional, ao ser legislador <strong>de</strong> uma lei universal a que ele mesmo<br />

está submetido, é um fim <strong>em</strong> si mesmo. Disto provém sua dignida<strong>de</strong>, seu valor<br />

absoluto e sua essencial igualda<strong>de</strong> frente a todos os d<strong>em</strong>ais, pois não exist<strong>em</strong> graus<br />

<strong>de</strong> dignida<strong>de</strong>. Pelo contrário, <strong>em</strong> <strong>Hegel</strong>, todas estas características foram<br />

transplantadas para o Estado, um prolongamento, uma objetivação das qualida<strong>de</strong>s<br />

mais importantes, nobres e essenciais <strong>de</strong> todo ser humano.<br />

Se o ser racional, ao se manifestar no mundo sensível, sofre as<br />

influências <strong>de</strong> inclinações e <strong>de</strong> necessida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> toda espécie, nenhuma <strong>de</strong>las afeta<br />

sua essência íntima, sua realida<strong>de</strong> última como ser <strong>em</strong> si. Sua manifestação<br />

sensível não é nada mais do que um produto da experiência, condicionada por suas<br />

estruturas a priori <strong>de</strong> sensibilida<strong>de</strong> (espaço e t<strong>em</strong>po) e <strong>de</strong> entendimento (conceitos<br />

puros, categorias), que não reflete o que ele próprio é <strong>em</strong> si mesmo. <strong>Kant</strong> explica<br />

esta verda<strong>de</strong> ao d<strong>em</strong>onstrar que a lei da vonta<strong>de</strong> livre, que provém do mundo das<br />

coisas <strong>em</strong> si, t<strong>em</strong> sua autorida<strong>de</strong> reconhecida até pelo pior dos facínoras, que<br />

admite a lei, mas não cumpre seu <strong>de</strong>ver <strong>em</strong> <strong>de</strong>corrência <strong>de</strong> sua própria fraqueza<br />

diante <strong>de</strong> suas inclinações sensíveis, corrompendo sua vonta<strong>de</strong>.<br />

Diante disto, percebe-se uma notável diferença na liberda<strong>de</strong> <strong>em</strong> <strong>Kant</strong> e<br />

<strong>Hegel</strong>. Enquanto no primeiro ela torna o hom<strong>em</strong> um fim <strong>em</strong> si mesmo, um valor<br />

absoluto, digno e essencialmente igual aos d<strong>em</strong>ais, <strong>Hegel</strong> rebaixa o hom<strong>em</strong> à<br />

condição <strong>de</strong> animal civilizado, criando uma liberda<strong>de</strong> apenas para satisfazer os<br />

interesses <strong>de</strong> um hom<strong>em</strong> egoísta, cuja dignida<strong>de</strong> não se encontra concretamente<br />

<strong>em</strong> si mesmo, mas no Estado, pois este é a própria razão, um valor absoluto, a que<br />

todos os cidadãos estão submetidos. Este Estado não <strong>de</strong>ixa também <strong>de</strong> ser imoral,<br />

pois no plano externo, é igual ou pior do que seus integrantes, e sua única<br />

esperança é a conscientização <strong>de</strong> si mesmo, na perspectiva <strong>de</strong> que, um dia, possa<br />

se tornar um ser moral para então conviver, numa paz perpétua, <strong>em</strong> perfeita<br />

harmonia com todos os d<strong>em</strong>ais.


23<br />

THE FREEDOM IN HEGEL, BY SIGHT OF KANT<br />

ABSTRACT<br />

The difference in the concept of freedom in the thoughts of <strong>Kant</strong> and <strong>Hegel</strong> lead to<br />

very different consequences. <strong>Kant</strong> grounds the subject's freedom in the will as thing<br />

in itself, while <strong>Hegel</strong> carries her to the reality, reflected in the figure of the state. To<br />

un<strong>de</strong>rstand this divergence is of paramount importance to un<strong>de</strong>rstand the solutions<br />

found by <strong>Kant</strong> and <strong>Hegel</strong> to reconcile two se<strong>em</strong>ingly opposing concepts: the<br />

necessity and freedom. Resolution of this apparent conflict, it follows the answer to<br />

the question where are the values most essential dignity and the ultimate end of<br />

man.<br />

Keywords: <strong>Kant</strong>. <strong>Hegel</strong>. Freedom.<br />

REFERÊNCIAS<br />

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário <strong>de</strong> filosofia. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes,<br />

2007.<br />

CHAUI, Marilena. Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 2000.<br />

HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Princípios da filosofia do direito. São Paulo:<br />

Martins Fontes, 1997.<br />

KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. 5. ed. Coimbra: Calouste, 2001.<br />

______. Fundamentação da metafísica dos costumes e outros escritos. São<br />

Paulo: Martin Claret, 2006.<br />

SOARES, Marly Carvalho. Socieda<strong>de</strong> civil e política <strong>em</strong> <strong>Hegel</strong>. 2. ed. Fortaleza:<br />

EdUECE, 2009.

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!