Na margem do rio Piedra eu sentei e chorei.pdf - Intranet
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que s<strong>eu</strong> velho amigo está rico, e veio pagar todas as dívidas que havia contraí<strong>do</strong> no decorrer <strong>do</strong>s<br />
anos.<br />
Vão até um bar que costumavam freqüentar juntos, e ele paga a bebida de to<strong>do</strong>s.<br />
Quan<strong>do</strong> lhe indagam a razão de tanto êxito, responde que até dias atrás estava viven<strong>do</strong> o Outro.<br />
– O que é o Outro? – perguntam.<br />
– O Outro é aquele que me ensinaram a ser, mas que não sou <strong>eu</strong>. O Outro acredita<br />
que a obrigação <strong>do</strong> homem é passar a vida inteira pensan<strong>do</strong> em como juntar dinheiro para não<br />
morrer de fome quan<strong>do</strong> ficar velho. Tanto pensa, e tanto faz planos, que só descobre que está vivo<br />
quan<strong>do</strong> s<strong>eu</strong>s dias na Terra estão quase terminan<strong>do</strong>. Mas aí é tarde demais.<br />
– E você, quem é?<br />
– Eu sou o que qualquer um de nós é, se escutar s<strong>eu</strong> coração. Uma pessoa que se<br />
deslumbra diante <strong>do</strong> misté<strong>rio</strong> da vida, que está aberta aos milagres, que sente alegria e entusiasmo<br />
pelo que faz. Só que o Outro, com me<strong>do</strong> de decepcionar-se, não me deixava agir.<br />
– Mas existe sofrimento – dizem as pessoas no bar.<br />
– Existem derrotas. Mas ninguém escapa delas. Por isso, é melhor perder alguns<br />
combates na luta por s<strong>eu</strong>s sonhos que ser derrota<strong>do</strong> sem sequer saber por que você está lutan<strong>do</strong>.<br />
– Só isto? – perguntam as pessoas no bar.<br />
– Sim. Quan<strong>do</strong> descobri isto, acordei decidi<strong>do</strong> a ser o que realmente sempre desejei.<br />
O Outro ficou ali, no m<strong>eu</strong> quarto, me olhan<strong>do</strong>, mas não o deixei mais entrar – embora tenha<br />
procura<strong>do</strong> me assustar algumas vezes, me alertan<strong>do</strong> para os riscos de não pensar no futuro.<br />
“A partir <strong>do</strong> momento em que expulsei o Outro da minha vida, a energia Divina<br />
operou s<strong>eu</strong>s milagres.”<br />
“Acho que ele inventou esta história. Pode ser bonita, mas não é verdadeira”,<br />
pensei, enquanto continuávamos procuran<strong>do</strong> um lugar para ficar. Saint-Savin não tinha mais que<br />
trinta casas, e em breve teríamos que fazer o que <strong>eu</strong> havia sugeri<strong>do</strong> – ir para uma cidade maior.<br />
Por mais entusiasmo que ele tivesse, por mais que o Outro já estivesse longe de sua<br />
vida, os habitantes de Saint-Savin não sabiam que s<strong>eu</strong> sonho era <strong>do</strong>rmir ali aquela noite, e não iam<br />
ajudar em nada. Entretanto, enquanto ele contava a história, parecia estar ven<strong>do</strong> a mim mesma; os<br />
me<strong>do</strong>s, a insegurança, a vontade de não enxergar tu<strong>do</strong> o que é maravilhoso – porque amanhã pode<br />
acabar, e vamos sofrer.<br />
Os d<strong>eu</strong>ses jogam da<strong>do</strong>s, e não perguntam se queremos participar <strong>do</strong> jogo. Não<br />
querem saber se você deixou um homem, uma casa, um trabalho, uma carreira, um sonho. Os<br />
d<strong>eu</strong>ses não ligam para o fato de você ter uma vida em que cada coisa está em s<strong>eu</strong> canto, cada desejo<br />
pode ser consegui<strong>do</strong> com trabalho e persistência. Os d<strong>eu</strong>ses não levam em conta os nossos planos e<br />
nossas esperanças; em algum lugar <strong>do</strong> universo, eles jogam os da<strong>do</strong>s – e você, por acaso, é<br />
escolhi<strong>do</strong>. A partir daí, ganhar ou perder é uma questão de chance.<br />
Os d<strong>eu</strong>ses jogam os da<strong>do</strong>s, e libertam o Amor de sua jaula. Esta força que pode<br />
criar ou pode destruir – dependen<strong>do</strong> da direção em que o vento soprava no momento em que ela<br />
saiu da prisão.<br />
Por enquanto esta força estava sopran<strong>do</strong> para o la<strong>do</strong> dele. Mas os ventos são tão<br />
caprichosos como os d<strong>eu</strong>ses – e, no fun<strong>do</strong> <strong>do</strong> m<strong>eu</strong> ser, <strong>eu</strong> começava a sentir algumas rajadas.<br />
Como se o destino quisesse me mostrar que a história <strong>do</strong> Outro era verdadeira – e o<br />
universo sempre conspira a favor <strong>do</strong>s sonha<strong>do</strong>res –, encontramos uma casa para ficar, com um<br />
quarto de duas camas separadas. Minha primeira providência foi tomar um banho, lavar minha<br />
roupa e colocar a camiseta que havia compra<strong>do</strong>. Senti-me nova – e isto me deixou mais segura.<br />
“Quem sabe a Outra não gosta desta camiseta”, ri para mim mesma.