28.10.2014 Views

Na margem do rio Piedra eu sentei e chorei.pdf - Intranet

Na margem do rio Piedra eu sentei e chorei.pdf - Intranet

Na margem do rio Piedra eu sentei e chorei.pdf - Intranet

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

– Continue o que você estava dizen<strong>do</strong> – pedi, mesmo ten<strong>do</strong> decidi<strong>do</strong> pouco antes<br />

que não ia insistir. – Fale da face de Cristo nas pessoas.<br />

Percebi que ele não queria prosseguir a conversa. Talvez não fosse o lugar nem o<br />

momento. Mas agora que havia inicia<strong>do</strong>, precisava terminar.<br />

Começamos a andar por uma extensa avenida, ladeada por campos cobertos de<br />

neve. Ao fun<strong>do</strong> <strong>eu</strong> notava a silhueta de uma catedral.<br />

– Continue – repeti.<br />

– Você já sabe. Entrei para o seminá<strong>rio</strong>. Durante o primeiro ano, pedi que D<strong>eu</strong>s me<br />

ajudasse a transformar m<strong>eu</strong> amor por você num amor por to<strong>do</strong>s os homens. No segun<strong>do</strong> ano, senti<br />

que D<strong>eu</strong>s estava me escutan<strong>do</strong>. No terceiro ano, embora a saudade ainda fosse muito grande, <strong>eu</strong> já<br />

tinha a certeza de que este amor estava se transforman<strong>do</strong> em caridade, oração e ajuda aos<br />

necessita<strong>do</strong>s.<br />

– Então por que tornou a me procurar? Por que acend<strong>eu</strong> de novo em mim este fogo?<br />

Por que me contou o exercício da Outra, e me fez ver como <strong>eu</strong> era mesquinha com a vida?<br />

Minhas palavras saíam confusas, trêmulas. A cada minuto, <strong>eu</strong> o via mais perto <strong>do</strong><br />

seminá<strong>rio</strong> e mais longe de mim.<br />

– Por que você voltou? Por que só me conta esta história hoje, quan<strong>do</strong> vê que estou<br />

começan<strong>do</strong> a amá-lo?<br />

Ele demorou um pouco antes de responder.<br />

– Você vai achar tolice – disse.<br />

– Não vou achar tolice. Não tenho mais me<strong>do</strong> de parecer ridícula. Você me ensinou<br />

isto.<br />

– Há <strong>do</strong>is meses m<strong>eu</strong> supe<strong>rio</strong>r pediu para acompanhá-lo até a casa de uma mulher<br />

que havia morri<strong>do</strong> e deixa<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s os s<strong>eu</strong>s bens para nosso seminá<strong>rio</strong>. Ela morava em Saint-Savin, e<br />

m<strong>eu</strong> supe<strong>rio</strong>r devia fazer um inventá<strong>rio</strong> de suas coisas.<br />

A catedral, ao fun<strong>do</strong>, aproximava-se a cada instante. Minha intuição dizia que,<br />

assim que chegássemos ali, qualquer conversa seria interrompida.<br />

– Não pare – <strong>eu</strong> disse. – Mereço uma explicação.<br />

– Lembro o momento em que entrei naquela casa. As janelas davam para as<br />

montanhas <strong>do</strong>s Piren<strong>eu</strong>s, e a claridade <strong>do</strong> sol, aumentada pelo brilho da neve, se espalhava por to<strong>do</strong><br />

o ambiente. Comecei a fazer uma lista das coisas, mas em poucos minutos havia para<strong>do</strong>.<br />

“Descobrira que o gosto daquela mulher era exatamente igual ao m<strong>eu</strong>. Ela possuía<br />

discos que <strong>eu</strong> teria compra<strong>do</strong>, com as músicas que <strong>eu</strong> também gostaria de ouvir olhan<strong>do</strong> a paisagem<br />

lá fora. As estantes tinham muitos livros – alguns que <strong>eu</strong> já havia li<strong>do</strong>, outros que certamente<br />

gostaria de ler. Reparei nos móveis, nos quadros, nos pequenos objetos espalha<strong>do</strong>s; era como se <strong>eu</strong><br />

os tivesse escolhi<strong>do</strong>.<br />

“A partir daquele dia, não consegui mais deixar de pensar na casa. Cada vez que<br />

entrava na capela para orar, lembrava que minha renúncia não havia si<strong>do</strong> completa. Eu me<br />

imaginava ali com você, moran<strong>do</strong> numa casa igual àquela, ouvin<strong>do</strong> aqueles discos, olhan<strong>do</strong> a neve<br />

na montanha e o fogo na lareira. Imaginava nossos filhos corren<strong>do</strong> pela casa e brincan<strong>do</strong> nos<br />

campos em volta de Saint-Savin.”<br />

Embora <strong>eu</strong> nunca tivesse entra<strong>do</strong> naquela casa, sabia exatamente como era. E<br />

desejei que ele não dissesse mais nada, para poder sonhar.<br />

Mas ele continuou:<br />

– Há duas semanas não consegui agüentar a tristeza da minha alma. Procurei m<strong>eu</strong><br />

supe<strong>rio</strong>r, contei-lhe tu<strong>do</strong> o que se passava. Contei a história de m<strong>eu</strong> amor por você, e <strong>do</strong> que havia<br />

senti<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> fui fazer o inventá<strong>rio</strong>.<br />

Uma chuva fina começou a cair. Abaixei a cabeça, e fechei mais o casaco. Tinha<br />

me<strong>do</strong> de ouvir o resto.

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!