10.07.2015 Views

Baixar arquivo - Conselho Federal de Psicologia

Baixar arquivo - Conselho Federal de Psicologia

Baixar arquivo - Conselho Federal de Psicologia

SHOW MORE
SHOW LESS
  • No tags were found...

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

ApresentaçãoEste documento apresenta o conteúdo das palestras abordadasno Seminário Nacional <strong>Psicologia</strong> e Mobilida<strong>de</strong>: espaço públicocomo direito <strong>de</strong> todos. Registramos que os princípios <strong>de</strong>ssas contribuiçõesestão na agenda da gestão do XIV Plenário do <strong>Conselho</strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong><strong>de</strong> <strong>Psicologia</strong>, o qual não tem poupado esforços para promoverações que garantam que os direitos humanos sejam preservados.Ao discutir mobilida<strong>de</strong> para tratar <strong>de</strong> trânsito e transporte, procuramostrazer à tona um modo <strong>de</strong> organização capitalista que privilegiao automóvel particular em <strong>de</strong>trimento do meio ambiente, dasaú<strong>de</strong> e dos seres humanos. Contraditoriamente, esse se viabiliza em<strong>de</strong>corrência da ação dos gran<strong>de</strong>s monopólios e da concentração <strong>de</strong>rendas, os quais são comandados por seres humanos, portanto, hámodos diferentes <strong>de</strong> subjetivações e consequentemente, formas <strong>de</strong>enfrentamento das <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s sociais.O <strong>de</strong>safio para a <strong>Psicologia</strong> e para os psicólogos é <strong>de</strong> rompercom a visão naturalizante dos problemas que <strong>de</strong>correm da organização<strong>de</strong> espaços comprometidos em manter o status quo <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminadosgrupos que <strong>de</strong>têm os benefícios dos lucros do capital.O aprofundamento da não equida<strong>de</strong> na forma <strong>de</strong> distribuição dosbens e serviços avassala o cotidiano da população brasileira que viveem condições <strong>de</strong> barbárie.Reafirmamos o compromisso social da <strong>Psicologia</strong> na construção<strong>de</strong> práticas profissionais em diversos espaços e cenários que avancempara que o espaço público seja <strong>de</strong> fato <strong>de</strong> todos os brasileiros.Humberto Cota Verona – Presi<strong>de</strong>nte do CFP


De modo incisivo, a cientista social Alessandra Olivato nos provoca arefletir indagando: “Então como é que nós po<strong>de</strong>mos caracterizar culturalmentenosso comportamento no espaço público como pessoas que selocomovem?” Para respon<strong>de</strong>r a essa questão, ela discutiu a relação entreo público e o privado e <strong>de</strong>monstrou que o espaço público não é entendidocomo um bem comum. Nesse sentido, o trânsito é emblemático, vistoque expressa a maneira que cada um vive e resolve seus conflitos. A autoracitou exemplos <strong>de</strong> situações inusitadas que vivemos no cotidiano dascida<strong>de</strong>s brasileiras, quando precisamos usar qualquer meio <strong>de</strong> transporte.Ressalta o não compromisso dos cidadãos com o bem público, sendoesse utilizado como bem privado.A psicóloga Cynthia Ciarallo ressaltou os limites da <strong>Psicologia</strong> aplicada,comprometida mais com a adaptação do que com a transformação.Chamou a atenção para a responsabilida<strong>de</strong> social dos profissionaisna construção <strong>de</strong> saberes sobre o tema em referência sem as amarras dasespecialida<strong>de</strong>s, assumindo com isso o <strong>de</strong>safio <strong>de</strong> estabelecer interlocuçõescom as diversas áreas do conhecimento e dos profissionais.A seguir, <strong>de</strong>bates sobre as Políticas públicas para mobilida<strong>de</strong>: <strong>de</strong>safiosda <strong>Psicologia</strong> evi<strong>de</strong>nciaram a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> valorizar a dimensão dasubjetivida<strong>de</strong> implicada na construção <strong>de</strong> políticas públicas que afetamos diferentes tipos <strong>de</strong> mobilida<strong>de</strong> humana.A psicóloga Rogéria Motta <strong>de</strong> Sant’Anna abordou a evolução daspolíticas públicas para mobilida<strong>de</strong> a partir do planejamento <strong>de</strong> transportee do espaço público e da inserção da <strong>Psicologia</strong> neste contexto,problematizando o processo tradicional <strong>de</strong> planejamento <strong>de</strong> transportese suas quatro etapas: geração <strong>de</strong> viagens, distribuição <strong>de</strong> viagens, repartiçãomodal e alocação do tráfego na re<strong>de</strong>. A palestrante chama a atençãopara as dificulda<strong>de</strong>s <strong>de</strong>sse mo<strong>de</strong>lo, que parte do princípio <strong>de</strong> que osrecursos e a expansão da malha viária são infinitos. Ela retomou <strong>de</strong> modocontun<strong>de</strong>nte a concepção <strong>de</strong> que:o espaço público que é, a priori, um espaço <strong>de</strong> convivência, gera inúmerasrepresentações nas pessoas que nele transitam, seja <strong>de</strong> convívioharmonioso, seja <strong>de</strong> conflito no uso <strong>de</strong>sse espaço. Determinados


grupos mais vulneráveis no trânsito, como os pe<strong>de</strong>stres, os ciclistas,as crianças, os jovens, os idosos, as pessoas com mobilida<strong>de</strong> reduzida,po<strong>de</strong>m ter sua mobilida<strong>de</strong> consi<strong>de</strong>ravelmente afetada por essas representações,pois o nível <strong>de</strong> segurança e acessibilida<strong>de</strong> influenciaráa percepção da ocupação espacial, do convívio social e, consequentemente,da qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida.O psicólogo Ricardo Moretzsohn discutiu a mobilida<strong>de</strong> humanano seu aspecto social e <strong>de</strong> implicações subjetivas. Como expressão <strong>de</strong>las,observamos diferentes arquiteturas e traçados das cida<strong>de</strong>s que foramplanejadas <strong>de</strong> acordo com <strong>de</strong>terminados contextos, nem sempre construídoscoletivamente. Então, o gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>safio da <strong>Psicologia</strong> seria investirna construção <strong>de</strong> política pública <strong>de</strong> mobilida<strong>de</strong> humana inclusiva. Naspalavras do palestrante: “a <strong>Psicologia</strong> <strong>de</strong>ve intervir para mapear a cida<strong>de</strong>,não por seu traçado arquitetônico, mas pelos traços <strong>de</strong>senhados pelosprocessos <strong>de</strong> subjetivação na contemporaneida<strong>de</strong>”, e ainda completa:“estabelecer pontes e rotas que ativem o projeto <strong>de</strong> vida <strong>de</strong> cada um,introduzir a tranquilida<strong>de</strong> e a ternura na convivência com o outro”.Nessa perspectiva, o psicólogo Rogério <strong>de</strong> Oliveira da Silva contribuiuafirmando que há necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> promoção <strong>de</strong> diálogos da <strong>Psicologia</strong>com as diferentes áreas para construção <strong>de</strong> estratégias <strong>de</strong> humanizaçãodas cida<strong>de</strong>s, portanto, é preciso assumir posições que garantama qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida dos seres humanos, e não para a manutenção dosistema individualista e mecanicista, tal qual ele tem se apresentado.O tema Relações sociais no contexto urbano: o que a educaçãotem a ver com isso? foi proposto pela comissão organizadora com o objetivo<strong>de</strong> reafirmar a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> investimentos em um projeto <strong>de</strong>socieda<strong>de</strong> que vise ao bem comum e no qual os direitos humanos sejampreservados. Nesse sentido, o advogado e <strong>de</strong>legado <strong>de</strong> polícia FabianoContarato <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>u a educação como o meio pelo qual os indivíduos sehumanizam e a escola como espaço <strong>de</strong> socialização do saber, que precisaincluir em seu projeto educacional o trânsito e a cidadania, assim comoestá previsto o art. 76 do Código <strong>de</strong> Trânsito Brasileiro. Contarato afirmaque as normatizações do <strong>Conselho</strong> Nacional <strong>de</strong> Trânsito (Contran) não


têm garantido a inclusão <strong>de</strong>sse assunto nos conteúdos das escolas, confirmandoa tese <strong>de</strong> que é necessário investir em mudanças <strong>de</strong> atitu<strong>de</strong>s. Aeducadora Salete Valesan Camba complementa que não basta investir naeducação formal, mas isso é um compromisso <strong>de</strong> todos os cidadãos quecompartilham um mesmo espaço.Já a psicóloga Cláudia Aline Monteiro argumentou que para garantiro <strong>de</strong>senvolvimento sustentável é importante combater as crenças<strong>de</strong> que os problemas <strong>de</strong> trânsito sejam resolvidos por ações pontuais oupaliativas. A transformação exige mudanças comportamentais, incluindoos profissionais que atuam na área.Adotar uma perspectiva preventiva foi o eixo dos palestrantes queabordaram as Políticas <strong>de</strong> emergências e <strong>de</strong>sastres para o trânsito. Ascontribuições da psicóloga Ângela Elizabeth Lapa Coelho alertaram para aconstrução <strong>de</strong> ações direcionadas à coletivida<strong>de</strong>, na área do trânsito e dasemergências e <strong>de</strong>sastres na perspectiva da prevenção. Para ela, existem diversoslocais, entre eles escolas, universida<strong>de</strong>s, hospitais, locais <strong>de</strong> trabalho,que po<strong>de</strong>m ser apropriados para <strong>de</strong>senvolver atitu<strong>de</strong>s vigilantes, pois os<strong>de</strong>sastres se constituem a “ponta do iceberg”, vez que na sua gênese estãoos flagelos das <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s sociais.Diante disso, a <strong>Psicologia</strong> precisa consi<strong>de</strong>rar a promoção <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>atuando na construção <strong>de</strong> políticas públicas que avancem na prevenção,como também aos cuidados paliativos. Isso requer investimentosem novas metodologias, articuladas com as instituições <strong>de</strong> ensino, comunida<strong>de</strong>e serviços diversos.O psicólogo Pitágoras José Bindé reafirmou a importância do trabalhointerdisciplinar/multidisciplinar e, nesse sentido, a <strong>Psicologia</strong> po<strong>de</strong> ser agente<strong>de</strong> interlocução entre as diversas áreas, entre elas Engenharia, Arquitetura,Administração, visando com isso a chamar a atenção para as dimensõessubjetivas implicadas no <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> qualquer obra pública, porexemplo. Esse direcionamento requer o aprimoramento das nossas formas<strong>de</strong> comunicação. O autor apresentou vários exemplos que envolvem situações<strong>de</strong> caos urbano que po<strong>de</strong>riam ser evitadas se houvesse uma articulaçãoem re<strong>de</strong> <strong>de</strong> diversos serviços e setores da socieda<strong>de</strong> para a construção<strong>de</strong> um planejamento urbano que visasse ao bem-estar da coletivida<strong>de</strong>.


Esse assunto foi abordado e aprofundado nas apresentações da sessãoque examinaram as Questões socioambientais, urbanas e qualida<strong>de</strong><strong>de</strong> vida: refazendo as geografias das cida<strong>de</strong>s.O engenheiro civil Alexsan<strong>de</strong>r Barros Silveira trouxe para reflexãoum estudo <strong>de</strong> caso sobre a cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Vitória (ES), focando o tema dapoluição atmosférica, a qual é entendida comoo lançamento na atmosfera <strong>de</strong> matéria ou energia que possa tornar oar impróprio, nocivo ou ofensivo à saú<strong>de</strong>, a principal questão quandose preten<strong>de</strong> controlar a poluição atmosférica: exatamente salvaguardara saú<strong>de</strong> humana.Em sua exposição, o autor alertou para os perigos dos diversos resíduostóxicos que são lançados diariamente na nas cida<strong>de</strong>s, com consequênciasnefastas para a saú<strong>de</strong> da população.Endossando as i<strong>de</strong>ias anteriores, o arquiteto urbanista Marcos PimentelBicalho <strong>de</strong>monstrou que o mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> urbanização adotado namaioria das cida<strong>de</strong>s brasileiras, ao longo do século prece<strong>de</strong>nte, já está esgotado,exigindo dos gestores e da população ações coletivas que visema mudanças estruturais para a organização das cida<strong>de</strong>s.O autor observou que a movimentação <strong>de</strong> pessoas e <strong>de</strong> coisas é necessária,no entanto, essa mobilida<strong>de</strong> tem impacto ambiental, visto quese consomem recursos naturais que são ou não renováveis e também apopulação enfrenta os diversos tipos poluição e <strong>de</strong> aci<strong>de</strong>ntes. Sobre isso,também explana o psicólogo Hartmut Günther ao apresentar as contribuiçõesda <strong>Psicologia</strong> Ambiental para a compreensão dos processospsicológicos básicos e ambientais para mudanças <strong>de</strong> comportamento afavor da sustentabilida<strong>de</strong>. Um dos exemplos escolhidos para ilustrar essaafirmação é o uso <strong>de</strong> transporte público ao invés <strong>de</strong> individual. Para ele,essa mudança, além <strong>de</strong> exigir que esse transporte seja <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong>, impõeao cidadão o compartilhamento do seu espaço pessoal, e consequentementeindo contra a construção <strong>de</strong> uma suposta i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> a que“natureza humana” ten<strong>de</strong> ao individualismo. Por fim, sobre o tema Trânsitoversus mobilida<strong>de</strong>: antagonismo ou complementarida<strong>de</strong>? A visão


As contribuições dos palestrantes foram no sentido <strong>de</strong> fortalecero papel do Estado no controle e na fiscalização dos diversos setores envolvidoscom o planejamento das cida<strong>de</strong>s, com ênfase na mobilida<strong>de</strong> eno trânsito, sem que isso isente a responsabilida<strong>de</strong> da socieda<strong>de</strong> civil <strong>de</strong>participação no controle <strong>de</strong>ssas ações.A geógrafa Amélia Luisa Damiani salientou que precisamos adotaruma visão crítica do mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> mobilida<strong>de</strong> em diversos campos, entre eleso trabalho, o habitat, <strong>de</strong> modo a garantir que sustentabilida<strong>de</strong> seja umprincípio a ser almejado. Para isso, há que superar-se paulatinamente ascristalizações <strong>de</strong> concepções <strong>de</strong> exploração privativas do espaço públicopresente no cotidiano da população brasileira. Portanto, a questão da mobilida<strong>de</strong>humana não po<strong>de</strong> ser naturalizada, ela <strong>de</strong>ve ser compreendidacomo uma construção social que serve a um <strong>de</strong>terminado mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> socieda<strong>de</strong>.Na superação da visão capitalista – marca o <strong>de</strong>senho dos diferentesespaços, seja rural seja urbano, há que consi<strong>de</strong>rar a constituição <strong>de</strong>subjetivida<strong>de</strong>s humanas, vez que no trânsito, por exemplo, um dos lugaresem que se po<strong>de</strong> visualizar as expressões dos valores culturais vigentes.O aprofundamento do tema subjetivida<strong>de</strong> foi abordado na mesasobre os Impactos da (i)mobilida<strong>de</strong> na produção da subjetivida<strong>de</strong>. Deforma criativa, a psicóloga Gislene Maia <strong>de</strong> Macedo trouxe aos participantesreflexões sobre as histórias das “Helenas” que vivem no sertãonor<strong>de</strong>stino em condições inusitadas <strong>de</strong> mobilida<strong>de</strong>, que se constituemem situações nas quais a questão <strong>de</strong> sobrevivência termina por ser o projeto<strong>de</strong> vida daquelas pessoas. Contraditoriamente, esse cenário permitelhesproduzir diversos sentidos sobre as experiências <strong>de</strong> movimento. Aautora elegeu algumas imagens <strong>de</strong> movimento humano para que o públicopu<strong>de</strong>sse compartilhar das experiências registradas e assim tambémconstruir sentidos sobre as diversas cenas <strong>de</strong> “Helenas”...Por fim, o psicólogo Luís Antônio Baptista <strong>de</strong>safia o público presentea romper com a dicotomia subjetivida<strong>de</strong>-cida<strong>de</strong>, mobilida<strong>de</strong>-sujeito. Eleenfatizou que na organização das cida<strong>de</strong>s há expressões <strong>de</strong> subjetivida<strong>de</strong>s,como também modos <strong>de</strong> subjetivação. Assim, qualquer projeto <strong>de</strong> planejamentourbano possui dimensão subjetiva, portanto, a <strong>Psicologia</strong> precisaapropriar-se <strong>de</strong>ssa compreensão, pois as diferentes formas <strong>de</strong> mobilida<strong>de</strong>


<strong>de</strong>claram o modo como o ser humano age e dá sentido à sua vida em socieda<strong>de</strong>.Nessa linha <strong>de</strong> pensamento, o autor convida seus interlocutores arefletir sobre o que <strong>de</strong>sejamos quando <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>mos o direito <strong>de</strong> ter um espaçopúblico, ou seja “o que <strong>de</strong>sejamos com este direito? O que apostamoscom esta possível ocupação da cida<strong>de</strong>? Qual cida<strong>de</strong>?”A mobilida<strong>de</strong> humana por diversos meios, expressa a relação que osseres humanos estabelecem com seu ambiente. As relações humanas cadavez mais <strong>de</strong>terioradas pelo sistema econômico e social que se instalou noBrasil têm contribuído para que a violência e o caos se instalem em diversossetores. Certamente a “rua”, como espaço público, tem sido palco <strong>de</strong>permanente confronto, conflito histórico <strong>de</strong> lutas <strong>de</strong> classes provenientedo mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> exploração capitalista.Para pautar a discussão sobre o assunto em referência, temos <strong>de</strong>avançar na construção <strong>de</strong> políticas públicas que garantam segurança e odireito do cidadão <strong>de</strong> ir e vir. Para isso, precisamos enfrentar algumas discussões,entre elas o direito à locomoção <strong>de</strong> forma a não agredir o meioambiente, ou seja, a mobilida<strong>de</strong> sustentável; a construção/produção <strong>de</strong>sujeitos <strong>de</strong> direitos, crianças que estarão aptas a, no futuro, construir/fiscalizarpolíticas públicas que priorizem o transporte coletivo, ao invés <strong>de</strong><strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r uma falsa geração <strong>de</strong> emprego e renda, justificativa dada pelosgovernos para que se eleve ano a ano a venda <strong>de</strong> automóveis, e para quese diminuam os espaços coletivos; o <strong>de</strong>scaso na formação <strong>de</strong> condutorese também <strong>de</strong> pe<strong>de</strong>stres cidadãos; as campanhas educativas pontuais quemantêm a hegemonia dos automóveis nos modos <strong>de</strong> circulação; o planejamentourbano voltado para a promoção <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida e acessibilida<strong>de</strong><strong>de</strong> todos. O princípio <strong>de</strong>ssas questões é a transformação dos sereshumanos e seu processo <strong>de</strong> socialização e civilida<strong>de</strong>, portanto é imperiosoque o psicólogo seja um dos profissionais – agente <strong>de</strong> promoção <strong>de</strong> ações<strong>de</strong>ssa natureza nos diferentes espaços <strong>de</strong> sua atuação, seja na esfera públicaseja na espera privada.Esperamos que esta publicação promova não somente reflexões abstratas,mas iniciativas diversas para que mudanças comportamentais significativasocorram na forma <strong>de</strong> funcionamento das cida<strong>de</strong>s e do espaço públicopelo viés da mobilida<strong>de</strong>, seja ela urbana, humana ou sustentável.


Andréia <strong>de</strong> Conto Garbim 2O <strong>Conselho</strong> Regional <strong>de</strong> São Paulo (CRP 06) teve participação ativana organização do seminário, junto com o <strong>Conselho</strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong>, e isso nospossibilitou um contato com essa temática que até então não tínhamos.Esperamos que com esta ativida<strong>de</strong> frutifiquem ações e discussõesem torno <strong>Psicologia</strong> e da mobilida<strong>de</strong> e que isso possa ser discutido peloSistemas <strong>Conselho</strong>s <strong>de</strong> <strong>Psicologia</strong>. Estamos todos sendo convidados para<strong>de</strong>bater com o intuito <strong>de</strong> propor teses, discussões que mobilizem a todosos psicólogos para a participação no Congresso Nacional <strong>de</strong> <strong>Psicologia</strong>.Nós todos do Sistema <strong>Conselho</strong>s estamos envolvidos nessa temáticada promoção dos direitos. É um compromisso que nos colocamose nesse ano também no dia do psicólogo reafirmamos essecompromisso para a socieda<strong>de</strong>. Procuramos dialogar com a socieda<strong>de</strong><strong>de</strong> diversas formas dizendo o que queremos <strong>de</strong>bater, que queremosparticipar da construção <strong>de</strong> políticas públicas e comprometidas comum fazer voltado para o social, para a coletivida<strong>de</strong>. Nós enten<strong>de</strong>mosesse espaço e esse momento como potentes para a criação, para ainovação da <strong>Psicologia</strong>. Nós temos aqui um momento privilegiado<strong>de</strong> discussão com a participação <strong>de</strong> psicólogos e essa discussão interdisciplinarcertamente sistematizará reflexão importante para nós,para a nossa contribuição nos <strong>de</strong>bates, na socieda<strong>de</strong> e no nosso fazerenquanto psicólogos. Que nos coloquemos com o <strong>de</strong>safio <strong>de</strong> enfrentaressa discussão e que disso resultem bons encaminhamentos, boasdiretrizes para a nossa atuação e nossa contribuição na socieda<strong>de</strong>.2 Psicóloga, presi<strong>de</strong>nte do <strong>Conselho</strong> Regional <strong>de</strong> <strong>Psicologia</strong> da 6ª Região – São Paulo23


sistemáticas, socioeducativas, com vistas à conscientização dacomunida<strong>de</strong> acerca dos malefícios das condutas irregulares, suascausas e efeitos. Só então, acredito, po<strong>de</strong>remos contar efetivamentecom a melhor qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida para o povo <strong>de</strong> nosso país”.26


Conferência - Espaço público: direito<strong>de</strong> todosOdair Furtado 4Minha função aqui é <strong>de</strong> certa maneira ir para além das questõesque são as questões mais específicas relativas a este tema. O tema,por si, já é amplo. É um momento <strong>de</strong> reflexão, em que po<strong>de</strong>mos tensionaro suficiente para abrir o tema e vocês terão responsabilida<strong>de</strong>s<strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ir amarrando isso até chegar a conclusões que irão dirigiressa discussão no campo da <strong>Psicologia</strong>. Portanto, vocês terão umatarefa importante aqui. Quando estamos falando em mobilida<strong>de</strong>, nãoestamos falando exclusivamente sobre os problemas do trânsito. Elesestão incluídos, claro, e são problemas importantes, mas são muitosos problemas relativos à mobilida<strong>de</strong>. Eu diria que vão para além doque está incluído na <strong>de</strong>finição do representante do secretário <strong>de</strong> Segurança<strong>de</strong> São Paulo.O que quero dizer é que está incluído o ir e vir e está incluídanesta discussão a mobilida<strong>de</strong> humana do ponto <strong>de</strong> vista das migraçõespopulacionais. Está presente em uma discussão como esta o di-4 Doutorado em <strong>Psicologia</strong> (<strong>Psicologia</strong> Social) pela Pontifícia Universida<strong>de</strong> Católica<strong>de</strong> São Paulo (1998). Atualmente é professor associado da Pontifícia Universida<strong>de</strong> Católica <strong>de</strong>São Paulo, trabalhando no Programa <strong>de</strong> Estudos. Pós-Graduado em <strong>Psicologia</strong> Social (PSO)na Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Psicologia</strong> da PUC-SP. É filiado ao Departamento <strong>de</strong> <strong>Psicologia</strong> Social <strong>de</strong>s<strong>de</strong>1983. Coor<strong>de</strong>na o Nucleo <strong>de</strong> Estudos e Pesquisa em Trabalho e Ação Social (NUTAS) do PSO. Temexperiência na área <strong>de</strong> <strong>Psicologia</strong> Social (<strong>Psicologia</strong> Sócio-Histórica), com ênfase em ProcessosGrupais; Compromisso Social; Universo Simbólico, Produção <strong>de</strong> Sentido e Análise do Discurso,atuando principalmente nos seguintes temas: Relações <strong>de</strong> Trabalho e subjetivida<strong>de</strong>, emprego/<strong>de</strong>semprego, formação/qualificação.27


eito que nós temos <strong>de</strong> circular pelo planeta. Hoje, está garantidoplenamente o direito <strong>de</strong> a mercadoria circular. A pauta <strong>de</strong> importaçãoe exportação é importante em qualquer país <strong>de</strong>ste planeta, inclusiveno nosso, mas a pauta da circulação <strong>de</strong> pessoas pelo planeta parecenão ser uma pauta importante. Pelo contrário, é o avesso disso queé discutido e um exemplo disso é o muro da vergonha, que separa osEstados Unidos do México, às margens do Rio Gran<strong>de</strong>.Assim, este é um dos pontos que interessa quando falamos <strong>de</strong>mobilida<strong>de</strong> humana: a situação em que vivem imigrantes na França,na Espanha, na Alemanha, na Europa <strong>de</strong> uma maneira geral.Vejam só que curioso. Por um bom tempo, esses países europeuscolonizaram a América, a América do Sul, a América Central e a África,particularmente a África. A invasão colonial perdurou na Áfricaaté muito recentemente. Portugal saiu <strong>de</strong> Moçambique e Angola naépoca da Revolução dos Cravos, que ocorreu em 24 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 1974.Então, o fim da política colonial é muito recente e mesmo assim temosefeito residual <strong>de</strong>ssa política no mundo com várias regiões mantidassob controle <strong>de</strong> países centrais, como é o caso das ilhas Malvinas,que ficam na costa argentina e são dominadas pelo Reino Unido.Essa questão da colonização da forma como era exercida naÁfrica: esses países africanos colonizados tiveram <strong>de</strong> abandonar asua língua, a língua <strong>de</strong> suas etnias, para falar francês, para falar português,para falar inglês, para falar espanhol. Isso, evi<strong>de</strong>ntemente,produz laços forçados <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> com o colonizador. Nós conhecemosmuito bem isso, <strong>de</strong>vido a nossos fortes laços com Portugal.Nós, brasileiros, temos fortes laços <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> por conta da língua,a <strong>de</strong>speito <strong>de</strong> que nossa língua <strong>de</strong>veria ser o Tupi, temos esses laçosfortes por conta da língua e, evi<strong>de</strong>ntemente, recebemos bem os portuguesesque chegam ao Brasil e esperamos ser bem recebidos quandovamos a Portugal. Encontramos <strong>de</strong> certa maneira, por conta dacolonização, raízes nesse país, assim acontece com os africanos colonizadospelos franceses, colonizados pelos ingleses, pelos espanhóis,pelos italianos, pelos portugueses. Neste momento em que o cidadão<strong>de</strong>ste país africano busca melhor condição <strong>de</strong> vida em um país euro-28


peu, acontece o que nós presenciamos na forma <strong>de</strong> discriminação, naforma <strong>de</strong> estigma, na forma como são recebidos, como trabalhadores<strong>de</strong> quinta categoria. Fenômeno que é bastante conhecido e que po<strong>de</strong>moschamar <strong>de</strong> situações <strong>de</strong> exclusão.Cidadãos brasileiros que viajaram recentemente, passando pelaEspanha, viveram situações <strong>de</strong> constrangimento – e não importa seessas pessoas estavam lá passeando ou indo para um congresso,como aconteceu com uma pesquisadora brasileira, ou se estavamindo lá para morar. Não importa. Essa circunstância e o vexamepassado por essas pessoas são insuportáveis. É o que nos leva àcondição <strong>de</strong> humilhação – e isso ocorre porque somos brasileiros.Com essa condição, a imigração espanhola estava consi<strong>de</strong>rando quemuitos brasileiros estavam migrando para a Europa, não necessariamentepara ficar na Espanha, mas usando a Espanha como porta <strong>de</strong>entrada para migrar para a Europa. Eventualmente, nossos irmãosmexicanos exercem em nome dos Estados Unidos esse mesmo papele nos colocam também nessa situação <strong>de</strong> humilhação. Eu falo dosmexicanos porque eles passam diariamente por essa circunstância,quando tentam atravessar o Rio Gran<strong>de</strong>.O fato evi<strong>de</strong>nte é que não há livre circulação humana em nossoplaneta. Neste momento está sendo discutida no âmbito do Mercosuluma proposta que preten<strong>de</strong> garantir a livre circulação nos seus países-membros.Mais ou menos como há na comunida<strong>de</strong> europeia hoje.Entretanto, pelas leis brasileiras, o argentino que venha para o Brasile pretenda trabalhar aqui enfrentará dificulda<strong>de</strong>s como enfrenta umalbanês, como enfrenta qualquer pessoa que migre para o país. Euestou citando a Argentina, mas po<strong>de</strong>ria falar do Chile, que é esse paísem que nós entramos com a carteira <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>. Há um acordoque facilita a circulação, mas mesmo assim ela não é livre.Quando estamos falando <strong>de</strong> mobilida<strong>de</strong>, estamos falando<strong>de</strong>s<strong>de</strong> a circunstância do ca<strong>de</strong>irante atravessando a rua, a condição<strong>de</strong> mobilida<strong>de</strong> que o <strong>de</strong>ficiente físico encontra no seu cotidiano,até a discussão sobre cidadania. Estamos falando das condiçõesa<strong>de</strong>quadas para um ca<strong>de</strong>irante se locomover, na cida<strong>de</strong> <strong>de</strong>29


São Paulo ou em qualquer cida<strong>de</strong> brasileira, e estamos falandotambém da mobilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> pessoas pelo planeta.Tudo isso nos interessa, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o singular, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a questão específicaaté a questão mais geral e a importância <strong>de</strong>ssa discussãoé estratégica para o <strong>Conselho</strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>de</strong> <strong>Psicologia</strong>, para o Sistema<strong>Conselho</strong>s, porque ela é importante para os psicólogos. Nós temoscondições <strong>de</strong> pesquisar, <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r, <strong>de</strong> dizer como a <strong>Psicologia</strong>po<strong>de</strong> trabalhar do mais geral ao mais específico e isto abre campo <strong>de</strong>trabalho para o psicólogo.Essa é a função do Centro <strong>de</strong> Referência Técnica em <strong>Psicologia</strong> ePolíticas Públicas (Crepop). Quando estuda ações possíveis do psicólogoe busca base teórica, produção <strong>de</strong> conhecimento em torno disso,o Crepop abre um campo <strong>de</strong> atuação do psicólogo <strong>de</strong> duas formas: éalgo que compete ao psicólogo. Uma segunda coisa: quando o Crepopdiz gestor público, o psicólogo enten<strong>de</strong> <strong>de</strong>sse assunto. Então, adiscussão sobre mobilida<strong>de</strong> inclui esta questão, ou seja, nós, psicólogos,vamos nos dispor a enten<strong>de</strong>r <strong>de</strong> espaço urbano, <strong>de</strong> planejamentourbano, <strong>de</strong> circunstância, <strong>de</strong> todas as circunstâncias em que sereshumanos ocupam o espaço, seja ele urbano ou rural.Esse é um primeiro alerta. Outra questão são as condições parafazer isso, do ponto <strong>de</strong> vista da produção <strong>de</strong> conhecimento, do ponto<strong>de</strong> vista técnico, do ponto <strong>de</strong> vista do fazer psicológico. Do ponto <strong>de</strong>vista das circunstâncias que cercam esse fazer, das circunstâncias donosso trabalho e das condições da realida<strong>de</strong> brasileira.O <strong>Conselho</strong> Regional <strong>de</strong> Santa Catarina me convidou recentementepara discutir o assunto e o conteúdo virou uma entrevistapara o jornal da entida<strong>de</strong> que po<strong>de</strong> ser acessada pelo site. O pontoque eu mencionava na entrevista era sobre o incômodo que eu tenhoao discutir as questões <strong>de</strong> mobilida<strong>de</strong>, porque essas questõesque estou mencionando e, particularmente, aquelas que falam danossa circulação na cida<strong>de</strong> são marcadas por contingências que vãopara além do entendimento estrito <strong>de</strong>sta circunstância, ou seja, nóssomos regidos por um cenário mais amplo do que aquele que é onosso campo técnico.30


Eu vou utilizar um exemplo e usar a análise <strong>de</strong>sse exemplo, que éa crise mundial que nós estamos passando neste período. As notíciasdão conta <strong>de</strong> que o Brasil é um dos primeiros países a se recuperar dacrise. Alguns indicadores: a Bolsa voltou ao patamar anterior à crise;o emprego está crescendo, e não só recuperando o que per<strong>de</strong>u, comoultrapassando consi<strong>de</strong>ravelmente o índice anterior; o crescimento doBrasil neste momento aponta para índices chineses. Aqueles que estãoacompanhando esse assunto sabem que no planeta isso aindanão é uma realida<strong>de</strong>. A situação <strong>de</strong> Grécia, Espanha, Portugal e Itáliaé grave. A mesma situação americana, on<strong>de</strong> a crise foi gestada, continuauma situação preocupante. Os países ricos, <strong>de</strong> uma maneirageral, estão enfrentando dificulda<strong>de</strong>s. Isso tudo po<strong>de</strong>, inclusive, coma queda do PIB, colocar o Brasil em uma posição mais confortável doque aquela que ele ocupava até então. Alguns analistas falam queo Brasil po<strong>de</strong> chegar a quinto país mais rico do planeta no próximoperíodo. A China e a Índia também estão numa situação semelhante.Desses países que se convencionou chamar <strong>de</strong> Bric (Brasil, Rússia, Índiae China), somente a Rússia, por seu relacionamento com o capitaleuropeu e americano não está vivendo essa circunstância.Essa circunstância vivida pelo Brasil não aconteceu espontaneamente.Ela é fruto <strong>de</strong> ações. Entre essas ações, vejam só, houve umaação do governo brasileiro, uma ação cirúrgica e bastante eficiente,que foi a redução do IPI para a produção <strong>de</strong> automóveis. Por que ela foieficiente e o que eu estou chamando <strong>de</strong> cirúrgico? O governo brasileiropegou um setor que é um setor central na economia brasileira, justamenteporque a ca<strong>de</strong>ia produtiva das montadoras é uma ca<strong>de</strong>ia produtivaextensa. Ela vai <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a produção do automóvel nas montadoras,Volkswagen, GM, Fiat, etc. até a produção <strong>de</strong> carvão. Portanto, garantira venda dos veículos produzidos garantia emprego, e garantir empregogarantia consumo da produção nacional. Garantia mercado interno. Foiessa a estratégica e funcionou. Ela funciona até hoje. Comerciais queestão sendo veiculados na TV neste momento utilizam como recurso <strong>de</strong>apelo à venda, recurso <strong>de</strong> disputa com a sua concorrência, o argumento<strong>de</strong> que a isenção do IPI acabou, mas não para aquela <strong>de</strong>terminada31


marca. É uma estratégia <strong>de</strong> mercado, evi<strong>de</strong>ntemente, estratégia quebusca continuar ven<strong>de</strong>ndo o seu produto.Muito bem, por que eu estou interessado nesta análise? Porquese trata <strong>de</strong> ven<strong>de</strong>r veículo <strong>de</strong> transporte individual. Estou dizendopara vocês que a discussão sobre este assunto passa por uma questãoque, neste momento, neste país, no México, na África do Sul, naAlemanha, nos Estados Unidos, no Japão, é estratégica. Vejam só on<strong>de</strong>nós estamos mexendo. Discutir mobilida<strong>de</strong> implica tocar um pontofulcral para o capitalismo e para sua recuperação, uma <strong>de</strong> suas principaisestratégias no período atual, que é a produção do veículo <strong>de</strong>transporte individual ou familiar.Discutir o caráter humano <strong>de</strong>ssa mobilida<strong>de</strong>, discutir a circunstânciado ca<strong>de</strong>irante implica discutir melhores condições e melhorqualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida para os seres humanos e, portanto, implica discutira condição que nós vivemos hoje.Vou apresentar outro cenário. O governo do estado, <strong>de</strong> formaperspicaz <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> sua visão política, resolveu enfrentar um problemagrave na cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo, o problema do trânsito. Esseproblema é conhecido, e é conhecido <strong>de</strong> forma generalizada. Nãoprecisa ser psicólogo, especialista, para conhecer isso. Qualquercriança sabe <strong>de</strong>sse problema, qualquer locutor dos noticiários quenós ouvimos às tar<strong>de</strong>s ou em nossas manhãs falando do trânsito nacida<strong>de</strong> argumenta que a cida<strong>de</strong> vai parar. E ela vai parar. O RicardoMoretzshon, que já foi representante do CFP no Contran, me diziahá pouco sobre a taxa <strong>de</strong> automóveis no país: está em torno <strong>de</strong> 1,7pessoa por automóvel. A taxa per capita <strong>de</strong> automóveis no país é <strong>de</strong>1,7. Em São Paulo, ela está chegando a um e vai passar esse número.Claro que a distribuição <strong>de</strong>sses automóveis não é uma distribuiçãoequitativa e todos sabemos disso.Aqui próximo da se<strong>de</strong> do CRPSP está localizado um dos bairrosmais ricos da cida<strong>de</strong>, o Pacaembu, e algumas das casas <strong>de</strong>sse bairrotêm 10 automóveis ou mais em suas garagens. Tem o automóvelpara fazer a compra <strong>de</strong> supermercado, que não é usado pelo dono.Então, nessa distribuição per capita tem gente que não tem ne-32


nhum. Mas é conhecido também o sistema da distribuição <strong>de</strong>ssescarros e o que se faz com o carro usado <strong>de</strong>sses <strong>de</strong>z carros <strong>de</strong>ssa casado Pacaembu. Eles vão sendo repassados e o carro <strong>de</strong> luxo usadovai parar na mão <strong>de</strong> uma família <strong>de</strong> classe média, que repassa o seucarro <strong>de</strong> porte médio para alguém <strong>de</strong> classe média baixa. No final, oFusquinha velho vai parar lá na favela <strong>de</strong> Paraisópolis. Então, <strong>de</strong> certamaneira, com o passar do tempo, vai havendo essa distribuiçãoequitativa. É verda<strong>de</strong> que essas condições que eu estou mencionandomantêm fortemente os privilégios dos mais ricos.Então, é verda<strong>de</strong>, a cida<strong>de</strong> vai parar e é preciso uma soluçãopara isso. O governo do estado pensou em uma solução: está abrindoa terceira pista na marginal do Tietê. Havia uma solução anterior,o Rodoanel Mário Covas, e não po<strong>de</strong>mos dizer que não se busca soluçãonesse sentido. O rodoanel é <strong>de</strong> fato uma solução. Ele vai tiraros caminhões da marginal e vai liberar a marginal para o transporteindividual. Vai melhorar o trânsito.Ocorre que po<strong>de</strong>mos fazer uma conta, que é a conta ativadapelo cenário anterior, ou seja, para o capitalismo brasileiro funcionar,precisa ven<strong>de</strong>r automóvel. Ele não vai abrir mão disso. Ele nãotem como abrir mão disso. Curiosamente, o presi<strong>de</strong>nte da Repúblicafoi metalúrgico e os metalúrgicos trabalham prioritariamentenessa ca<strong>de</strong>ia produtiva e querem garantir emprego. Portanto, elesestarão na luta para a manutenção <strong>de</strong>sse sistema. Não é simples!Se eu falasse como o educador vienense Ivan Illich – que <strong>de</strong>fendiaa extinção <strong>de</strong>sse transporte e garantia que sem ele o mundo ficarámelhor –, eu teria <strong>de</strong> enfrentar a dos trabalhadores aos investidoresda indústria automobilística e também aqueles que usam o transporteindividual. Então, não é uma discussão fácil.Portanto, a saída dada pela construção do rodoanel e da ampliaçãoda marginal acaba tendo um caráter popular. Agora, vamosestabelecer a relação entre as duas coisas. A maior produção<strong>de</strong> automóveis que representa o crescimento <strong>de</strong>sse segmento e aampliação da marginal nos leva a fazer uma equação não muitodifícil. Qual o momento em que essas vias públicas vão esgotar sua33


capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vazão. Demora quanto tempo? É possível fazer essaconta. Dois anos, dois e meio, três? Dez anos certamente não serão.No ritmo do crescimento, alguns estão dizendo que a marginal nomês seguinte estará novamente congestionada, mas, completado orodoanel, saindo o caminhão, certamente teremos um refresco, vaidar para escapar um pouco do congestionamento.Quem não é da cida<strong>de</strong> não imagina o que é o congestionamento<strong>de</strong> quilômetros e quilômetros. Quem trabalha em um ponto da cida<strong>de</strong>e tem <strong>de</strong> atravessar para o outro ponto sabe o inferno que é andara passo <strong>de</strong> tartaruga nessa circunstância. Curiosamente, essa ação,que é <strong>de</strong> política pública, um pensamento <strong>de</strong> política pública e aomesmo tempo um pensamento político em um sentido mais estreito,porque o governador <strong>de</strong>ste estado é um candidato a presi<strong>de</strong>nteda República e, evi<strong>de</strong>ntemente, suas gran<strong>de</strong>s obras buscam tambémbenefício para seu projeto político. Faz parte da regra do jogo. Ocorreque, neste caso, o tiro parece sair pela culatra, porque os formadores<strong>de</strong> opinião, esses locutores das emissoras que nós escutamos no congestionamento,os jornalistas, pessoas que conversam com o público,não estão aceitando completamente essa política.Vejam o caso <strong>de</strong> uma emissora como a rádio Dourado, pertencenteao grupo do jornal O Estado <strong>de</strong> São Paulo, que é comprometidocom a política <strong>de</strong> crescimento do Brasil, ou seja, eles apoiame querem manter este modo <strong>de</strong> produção. Entretanto, apesar dissotêm os seus receios. A rádio Dourado faz uma campanha cotidianae incentiva outras formas <strong>de</strong> transportes. Tem um repórter que faz areportagem <strong>de</strong> bicicleta e fica andando pela cida<strong>de</strong>, é o bike repórter.Em geral, o ciclista contratado é alguém que gosta do assunto,porque tem <strong>de</strong> rodar muito e enten<strong>de</strong>r <strong>de</strong> ciclismo e ele sempre falada dificulda<strong>de</strong> que é andar <strong>de</strong> bicicleta nesta cida<strong>de</strong>, é impossível, acida<strong>de</strong> é impossível para o ciclista.O Código <strong>de</strong> Trânsito Brasileiro diz que nós <strong>de</strong>vemos guardara distância <strong>de</strong> 1,5m do ciclista. Acho que só na cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Joinvilleisso parece que acontece. Aqui, sem chance, todas as faixas estãoocupadas. E uma forma que a cida<strong>de</strong> encontrou para caber mais34


automóveis nas ruas foi estreitar as faixas. Então, o que cabe entreum automóvel e outro, entre o ônibus e o automóvel? Mal cabe amoto daquele motoqueiro maluco, daquelas centenas que morrempor conta disso. O maior índice <strong>de</strong> mortes no trânsito é dos nossosmeninos, que fazem isso para ganhar a vida. São os motoboys.O ciclista não tem chance, porque ele não po<strong>de</strong> fazer o que faz omenino com a sua moto, que é motorizada e tem potência e não háchance <strong>de</strong> alguém passar a um metro e meio <strong>de</strong>le. E, como a sinalizaçãoé mais precária, os aci<strong>de</strong>ntes com a bicicleta são aci<strong>de</strong>ntesfrequentes e isso <strong>de</strong>sestimula esse tipo <strong>de</strong> transporte.Os ciclistas reivindicam, reclamam, se manifestam. Aquelesque moram em São Paulo já viram algumas faixas <strong>de</strong> trânsito nasgran<strong>de</strong>s avenidas, da direita, sendo pichadas com uma bicicletazinha,que é um sinal <strong>de</strong> que aquilo é uma ciclovia. Quem não é dacida<strong>de</strong>, cuidado. Aquilo não é ciclovia. Aquilo é um protesto. Porquê? Porque não há ciclovia. Fizeram uma ciclovia na zona leste.Talvez seja uma das raras ciclovias na cida<strong>de</strong>, e não é suficiente paraaten<strong>de</strong>r à <strong>de</strong>manda, apesar <strong>de</strong> representar algum progresso. Antes<strong>de</strong>la não havia nenhuma!Esses formadores <strong>de</strong> opinião, <strong>de</strong>ssas emissoras <strong>de</strong> rádio, estãoperguntando por que não há ciclovia na marginal. A marginal Pinheiros,com a marginal Tietê, cruza a cida<strong>de</strong> inteira e é plana, portanto,seria i<strong>de</strong>al para alguém cruzar a cida<strong>de</strong>. Neste momento há a construção<strong>de</strong> uma terceira faixa e não se pensou, em momento algum,em privilegiar um transporte não poluente, um transporte que contribuipara a saú<strong>de</strong> e que é o transporte dos trabalhadores, alguns, noextremo sul da cida<strong>de</strong>, que andam duas horas para chegar ao ponto<strong>de</strong> ônibus. Portanto, saem às quatro horas da manhã <strong>de</strong> sua casa paraconseguir pegar o ônibus a tempo <strong>de</strong> enfrentar todo o trânsito e chegara seu local <strong>de</strong> trabalho. Não se prioriza uma condição necessáriapara esses trabalhadores. Não somente para aqueles que usam esseveículo como lazer, mas também para nossos trabalhadores.Então, pensar uma condição mais razoável, mais humana, passapor essa condição imposta por algo que é mais forte do que somente35


a pressão que nós po<strong>de</strong>ríamos fazer a um gestor municipal ou a umgestor estadual. Do ponto <strong>de</strong> vista <strong>de</strong> usuários <strong>de</strong>sse sistema, po<strong>de</strong>mosreclamar. Po<strong>de</strong>mos apontar os problemas como técnicos que conhecemesse sistema e po<strong>de</strong>mos orientar. Mas tanto uma coisa comooutra seria difícil, porque não <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m <strong>de</strong>sse gestor, não <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>mdo gestor estadual, não <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m do gestor fe<strong>de</strong>ral. Isso está em umcircuito, um circuito mundial do capitalismo, aquele que globalizoua economia e que funciona <strong>de</strong> outra maneira. In<strong>de</strong>pen<strong>de</strong> das condições,que são essas condições da gestão pública.Então, discutir mobilida<strong>de</strong> hoje é discutir uma saída para esteplaneta. É muito mais do que discutir uma solução imediata paranossa circulação na cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo, ou em Curitiba, ou emBrasília, ou em Belém do Pará. É importante fazer uma crítica, euma crítica <strong>de</strong> cunho amplo, mas eu havia já anunciado no inícioque o objetivo <strong>de</strong>ste seminário é encontrar saídas, encontrar alternativaspara o trabalho do psicólogo e alternativas para o gestorpúblico. Portanto, se formos esperar a superação do capitalismo,para encontrar saídas possíveis, vai <strong>de</strong>morar muito tempo. Nós nãosabemos o fôlego <strong>de</strong>sse negócio (a crise atual). Po<strong>de</strong> ser um fôlego<strong>de</strong> mais <strong>de</strong> <strong>de</strong>z anos. Foi tão forte esse negócio (a crise) que emperrouo neoliberalismo. Não emperrou a política <strong>de</strong> diminuição doestado (ponto central do neoliberalismo), mas levou todos aquelesque <strong>de</strong>fendiam o neoliberalismo a repensar o que é a presença doEstado no controle da economia.Ninguém está reclamando da injeção <strong>de</strong> dinheiro que o governoamericano fez na GM, e que é dinheiro público. Então, essa condiçãoenterrou o princípio central do neoliberalismo. Os própriosneoliberais confessaram que estavam exagerando. Por um instante,falamos: será? Será que o capitalismo chegou a seu final? Acho quevamos ter <strong>de</strong> esperar a próxima. A próxima e mais contun<strong>de</strong>nte virádaqui a <strong>de</strong>z anos, daqui a 50 ou daqui a 100? Portanto, não serárazoável esperar sentados esse momento. Nós precisamos, portanto,<strong>de</strong> soluções que sejam soluções mais imediatas. Os ca<strong>de</strong>irantes <strong>de</strong>stacida<strong>de</strong> esperam por soluções. As pessoas que per<strong>de</strong>m suas duas36


horas no trânsito, nesse trânsito da marginal, esperam por soluções.É preciso humanizar a circulação das pessoas no espaço urbano e aínós precisamos <strong>de</strong> soluções pontuais.Talvez a ciclovia nas marginais Pinheiros e Tietê possa ser umasolução. Uma solução que não resolve, mas atenua, o problema. Acida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Brasília é um caso importante. Por quê? Porque ela foi umacida<strong>de</strong> planejada. Um dos casos raros da arquitetura mundial planejadapor dois ícones do planejamento urbano e da arquitetura no Brasile um <strong>de</strong>les, particularmente, nosso querido Niemeyer, em seus 102anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>, um velho combatente comunista, que era comunistaquando projetou Brasília. Hoje, continua mantendo sua convicção e,portanto, ao ter a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> planejamento na mão, certamente<strong>de</strong>veria estar pensando do ponto <strong>de</strong> vista da mobilida<strong>de</strong> humana.Nós que conhecemos Brasília sabemos da dificulda<strong>de</strong> que écircular por aquele espaço. Não tem lugar para o pe<strong>de</strong>stre. Só que,na realida<strong>de</strong>, o lugar que nós queremos para o pe<strong>de</strong>stre não é o lugardo pe<strong>de</strong>stre. É <strong>de</strong> fato o lugar da circulação do transporte, sejaele individual ou público.Ao planejar Brasília, ele pensou na superquadra. Ele pensouna convivência. A superquadra é planejada <strong>de</strong> tal maneira que elateria escola, clube e local para as compras básicas – a padaria, aquitanda, a farmácia, a loja <strong>de</strong> tecidos, a loja <strong>de</strong> material <strong>de</strong> construções,enfim, aquilo que é necessário em nosso cotidiano. O que oplanejador público não esperava é que quando a cida<strong>de</strong> fosse ocupada,ela seguisse a lógica das gran<strong>de</strong>s cida<strong>de</strong>s, que é uma lógicacomercial, mercantil. Então, as quadras comerciais <strong>de</strong> Brasília seespecializaram. A 111 Sul, por exemplo, é especializada em produtoselétricos. A 110, em material fotográfico. Se você quiser comprarcâmera fotográfica, antigamente, comprávamos filme. Se quisesserevelar a foto <strong>de</strong>sse filme que antigamente comprávamos, ou, hoje,se você quiser imprimir as fotos com um pouco mais <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong>da sua câmera eletrônica, você vai lá na 110. Você encontra preço.Agora, isso significa o seguinte. Se você mora no Lago Sul, você vai ter<strong>de</strong> sair do Lago Sul, atravessar a ponte, entrar pelo local <strong>de</strong> trânsito37


local da superquadra e chegar até esse local on<strong>de</strong> você vai compraro material fotográfico, e se você volta para casa, e em casa <strong>de</strong>scobreque <strong>de</strong>u uma pane elétrica e o eletricista pediu para você comprarproduto elétrico, você vai voltar a 111 para comprar o produto elétrico.E se você quiser produto natural, você vai à 104 da Asa Norte. De talmaneira que as pessoas têm <strong>de</strong> ficar circulando o tempo todo pelacida<strong>de</strong>, no lugar que era o lugar em que elas andariam a pé e em quetudo estaria perto. E o clube não <strong>de</strong>u certo, porque as pessoas nãoquerem frequentar aquele clube. Elas querem frequentar o clube queé o clube lá do Lago Norte, on<strong>de</strong> encontram um pessoal da corporação,por exemplo, o clube dos advogados. O Clube da Vizinhança nãofuncionou. E a escola? Ah, mas eu não quero colocar o meu filhono ensino público. Eu quero colocar ele no Galois, que dizem que éo mais puxado <strong>de</strong> Brasília (entenda: o ensino mais conteudista, queprepara você para fazer o “x” na prova do vestibular) e a classe médiaquer colocar lá, naquele lá, e aí toca a atravessar a cida<strong>de</strong> para levaros filhos para aquela escola que fica em um <strong>de</strong>terminado ponto <strong>de</strong>Brasília. E tem gente cruzando a cida<strong>de</strong> o tempo todo.Então, tem gente cruzando para ir ao colégio, tem gente cruzandopara ir comprar o material elétrico. E às cinco e meia da tar<strong>de</strong>,todo mundo indo para todos os lugares, porque é o horário emque o funcionário público, a maior categoria funcional em Brasília,está saindo para ir para casa.Hoje, em Brasília, já há congestionamento. O que faltou ao planejador.Porque não se trata <strong>de</strong> qualquer um: trata-se do melhor planejadorurbano, do melhor arquiteto. Faltou, na realida<strong>de</strong>, pensar nacida<strong>de</strong> como uma cida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sorganizada. Pensar que essa condiçãomercantil do capitalismo, ela própria, <strong>de</strong>sorganiza qualquer planejamentoracional <strong>de</strong> seu funcionamento. Trabalha-se com a lógica da<strong>de</strong>sorganização e não há planejador que dê conta disso.Voltando ao caso da cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo: ela está fadada a parare, <strong>de</strong>pois que ela parar, vai ter <strong>de</strong> pensar em uma solução. Entretanto,nós, psicólogos, trabalhamos com gente. Nós não trabalhamos comautomóveis. Nós trabalhamos com gente. O nosso problema, ou a38


nossa solução... O problema existe e nós somos a solução, imaginamos.É fazer alguma coisa por essa gente, por esses trabalhadores quepassam quatro horas <strong>de</strong> casa para o trabalho e do trabalho para casa.Isso é <strong>de</strong>sumano. Para os trabalhadores <strong>de</strong> classe média, que gastam<strong>de</strong> hora e meia a duas horas em seus automóveis. Isso é <strong>de</strong>sumano.Você imagina que teríamos evitado até mortes dos conflitos <strong>de</strong> trânsito,porque eles acontecem e, nas circunstâncias atuais, são inevitáveis.Você imagina alguém per<strong>de</strong>r a vida por causa <strong>de</strong> uma briga <strong>de</strong>trânsito? É o fim da picada. Ou seja, aquele conflito não <strong>de</strong>veria existir.Eu não vou dar conta <strong>de</strong> acabar com o nervosismo das pessoas, maseu teria condições <strong>de</strong> atenuar isso se o conflito não ocorresse. Essa éuma questão que está posta para nós. Não há avaliação psicológicacapaz <strong>de</strong> resolver o problema <strong>de</strong> violência no trânsito. A questão éque não <strong>de</strong>veriam existir as condições que promovem a violência notrânsito. Não adianta culpabilizar o condutor, o problema é como otrânsito está estruturado.Eu encerro jogando a bola para vocês. Ela vai <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a maneiracomo avaliamos, do ponto <strong>de</strong> vista da avaliação psicológica, o motorista.Vai da maneira como nós atuamos na educação no trânsito e damaneira como nós atuamos com o planejador, criando as condiçõespara uma mobilida<strong>de</strong> mais humana, mais eficiente, mais a<strong>de</strong>quada,como nós atuamos no sentido <strong>de</strong> garantir que o ser humano tenhagarantido seu direito, que é o direito inalienável da circulação, do ir evir, das condições <strong>de</strong> estar on<strong>de</strong> ele gostaria <strong>de</strong> estar.O representante do secretário falou nos parques e é possívelpensar em um cidadão paulistano que queira frequentar o parquedo Ibirapuera, que é central, bonito e que hoje congrega boa partedos museus paulistanos e que, inclusive, oferece ativida<strong>de</strong> culturalgratuita. Portanto, a população <strong>de</strong>veria usufruir <strong>de</strong>sse benefíciooferecido pela cida<strong>de</strong>. Mas isso significa enfrentar, no final <strong>de</strong> semana,o tipo <strong>de</strong> transporte que ele usa <strong>de</strong> segunda a sábado. Nãovale a pena o sofrimento. É isso que é preciso garantir. Garantirflui<strong>de</strong>z para que as pessoas possam usufruir da própria cida<strong>de</strong> e,evi<strong>de</strong>ntemente, este não é o único problema. Eu preciso garantir39


que ele também frequente o parque sem ser discriminado pelosseus habituais frequentadores, que ele tenha condições <strong>de</strong> compraro balão, o sorvete e a pipoca para seu filho. Tudo isso precisa sergarantido. Portanto, a mobilida<strong>de</strong> é uma questão entre outras. Eutenho <strong>de</strong> ter clareza disso. A circulação humana é um problemacomplexo, multi<strong>de</strong>terminado, e que exige macrossoluções, e nós,psicólogos, fazemos parte e precisamos nos preparar para isso. Énosso compromisso com todos aqueles que circulam pelas cida<strong>de</strong>sé nosso compromisso com a questão da mobilida<strong>de</strong> humana.40


Mesa - Liberda<strong>de</strong>s individuais e espaçopúblicoAlessandra Olivato 5A Sociologia e a <strong>Psicologia</strong> <strong>de</strong>veriam ser mais públicas. O título<strong>de</strong>sta mesa-redonda, Liberda<strong>de</strong>s individuais e espaço público,remete-nos, na verda<strong>de</strong>, a uma discussão que existe <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a EraMo<strong>de</strong>rna, estamos discutindo uma coisa muito mais ampla, queé como nós conseguimos equilibrar liberda<strong>de</strong> e igualda<strong>de</strong>. Porquea liberda<strong>de</strong> remete a indivíduo, também a grupos, obviamente, acoletivida<strong>de</strong>s, e espaço público remete ao bem comum e à igualda<strong>de</strong>e, logo, à limitação do direito do indivíduo em prol <strong>de</strong> todos.Eu entrevistei 54 pessoas, gravei entrevistas, elas <strong>de</strong>moravam entreuma hora e meia e três horas, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ndo da disponibilida<strong>de</strong> daspessoas. Então andava pela cida<strong>de</strong>, conversando com motoristas comuns,motoristas <strong>de</strong> ônibus, motoristas lotação, motoboys, taxistase pe<strong>de</strong>stres. E fiz uma série <strong>de</strong> perguntas; obviamente, eu chegavanas pessoas abordando-as e dizendo: “Olha, eu estou fazendo umapesquisa sobre trânsito”. Isso me abria a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> elas falaremtudo o que queriam, sem saber exatamente o ponto aon<strong>de</strong> euqueria chegar. Isso é muito interessante. Muitas consi<strong>de</strong>rações eaberturas para conclusões. Então eu perguntava: “O que o senhoracha do trânsito ou o que a senhora acha do trânsito?”, “Como5 Socióloga e doutoranda em Sociologia pela Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo. Autora dadissertação <strong>de</strong> mestrado Percepção e avaliação da conduta <strong>de</strong> motoristas e pe<strong>de</strong>stres no trânsito:um estudo sobre espaço público e civilida<strong>de</strong> na metrópole paulista.41


é seu dia a dia no trânsito em São Paulo?” e daí passava por umabateria <strong>de</strong> perguntas, “O que o senhor acha dos motoristas? Das outraspessoas como motoristas?” Quando eu entrevistava um motorista<strong>de</strong> ônibus, perguntava: “O que o senhor acha dos taxistas comomotoristas? E o que o senhor acha dos motoristas <strong>de</strong> lotação? E oque o senhor acha dos pe<strong>de</strong>stres?” Sucessivamente, para cada umadas seis categorias que eu estava entrevistando, perguntei sobre os<strong>de</strong>mais. Também perguntei o que achavam sobre as autorida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>trânsito, sobre as leis, e fiz uma bateria <strong>de</strong> perguntas muito interessantes.quando eu chegava neles e falava: “O senhor costuma cometerinfrações ou o senhor já cometeu alguma infração? O senhorteve uma multa? O senhor po<strong>de</strong>ria me explicar como é que issoaconteceu?” E a pessoa se sentia aberta para falar o que ela quisesse.O meu objetivo inicial na verda<strong>de</strong> acabou sendo bastante contemplado,que era tentar <strong>de</strong>scobrir se existia uma noção <strong>de</strong> espaçopúblico e civilida<strong>de</strong> entre os motoristas e os pe<strong>de</strong>stres com que euconversei. Além <strong>de</strong> saber também qual era a autoimagem que elesse atribuíam, e qual a imagem que eles tinham dos outros motoristas,em geral, e do trânsito <strong>de</strong> São Paulo também. E as consi<strong>de</strong>raçõessão muitas, quando falamos geralmente <strong>de</strong> espaço público,nós falamos muito <strong>de</strong> direitos. Mas todas as minhas consi<strong>de</strong>raçõeslevam na verda<strong>de</strong> a pensar no <strong>de</strong>ver <strong>de</strong> nós todos como cidadãosque têm <strong>de</strong>veres e não apenas direitos. Lógico que direito está embutido,também, mas todas as consi<strong>de</strong>rações levam principalmenteà ênfase da questão do <strong>de</strong>ver. Em termos sociológicos, todas as falas<strong>de</strong>sses meus entrevistados me levaram principalmente a fatores <strong>de</strong>or<strong>de</strong>m cultural na explicação da conduta <strong>de</strong> motoristas e pe<strong>de</strong>stres.Eu vou tentar resumir alguns <strong>de</strong>les, apenas.Então como é que nós po<strong>de</strong>mos caracterizar culturalmente onosso comportamento no espaço público como pessoas que se locomovem?As duas principais conclusões a que eu pu<strong>de</strong> chegar coma pesquisa foram sobre a sobreposição do espaço privado ou da lógicado privado sobre a noção <strong>de</strong> público, e à ausência da noção <strong>de</strong>espaço público e bem comum. Isso é uma coisa já discutida, uma42


questão que nós discutimos em vários <strong>de</strong>bates, sobre vários assuntosna socieda<strong>de</strong> brasileira. Talvez em todas as socieda<strong>de</strong>s, mas no Brasilisso continua sendo peculiar. Outra conclusão foi, principalmente, <strong>de</strong>que o trânsito é emblemático <strong>de</strong>ssa questão e reflete no imediato anossa maneira <strong>de</strong> viver, o nosso modo <strong>de</strong> viver mais geral em socieda<strong>de</strong>.Essa hipótese já norteava os questionamentos iniciais, mas essapesquisa <strong>de</strong> fato confirmou, pelo menos segundo a minha análise.Quais são os fatores culturais que na verda<strong>de</strong> nós po<strong>de</strong>mosi<strong>de</strong>ntificar, talvez não apenas fazendo uso do sociológico, mascomo pessoas comuns no trânsito? Primeiro: há uma valorizaçãogeneralizada do motorista como fera no trânsito. Nós valorizamos,haja vista a importância que a Fórmula 1 tem entre nós e todo oentusiasmo que nós temos com relação ao assunto. Essa visão domotorista como fera no trânsito e, principalmente, a i<strong>de</strong>ntificaçãodo motorista que é “fera” como bom motorista, ela é generalizada. Eela se liga a outro fator – porque na verda<strong>de</strong> esses fatores culturaisestão todos interligados, porque é uma questão <strong>de</strong> gênero. Ela estáligada sobretudo a uma visão e ao imaginário coletivo sobre o queé masculinida<strong>de</strong> no Brasil. E quando estou falando masculinida<strong>de</strong>— e é um reforço <strong>de</strong>sse imaginário <strong>de</strong> masculinida<strong>de</strong> do motoristafera no trânsito — não estou mais falando apenas <strong>de</strong> homens,estou falando <strong>de</strong> mulheres também. Porque as mulheres dirigem<strong>de</strong> maneira cada vez mais agressiva, porque nós, <strong>de</strong> maneira geral,buscamos e mimetizamos comportamentos consi<strong>de</strong>rados “masculinos”em outras esferas da socieda<strong>de</strong>. Então, primeiro existe aindauma valorização muito forte do motorista fera no trânsito – essa éa i<strong>de</strong>ia ligada à i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> masculinida<strong>de</strong>, que se reflete bastante notrânsito, no imediato daquela atitu<strong>de</strong>, daquela ação, daquele comportamento– e uma i<strong>de</strong>ntificação absolutamente equivocada <strong>de</strong>que o motorista fera no trânsito é um bom motorista. Relacionadaa esse fator, temos uma questão <strong>de</strong> má formação generalizada dosmotoristas, ainda, no Brasil. Ainda que tenhamos passado por umafase <strong>de</strong> reformulação dos cursos <strong>de</strong> condutores etc. – agora temaulinhas, uns ví<strong>de</strong>os –, a maioria dos motoristas ainda é formada <strong>de</strong>43


maneira muito restrita, muito reduzida, e essa reformulação, <strong>de</strong>poisdo novo Código <strong>de</strong> Trânsito brasileiro, ainda não abarcou todo mundo,e ela ainda também não é impactante. Em que sentido?Nós apren<strong>de</strong>mos a dirigir tecnicamente. Então nós vamos paraa autoescola. Em primeiro lugar, o brasileiro geralmente vai para aautoescola não para apren<strong>de</strong>r a dirigir, porque ele acha que ele jásabe dirigir, o adolescente já sabe dirigir, porque tem a concepçãoequivocada <strong>de</strong> que dirigir é entrar no carro, acelerar, saber mudar<strong>de</strong> marcha, no máximo, andar para a frente – porque a maiorianão sabe nem estacionar e andar para trás nem dar seta e umasérie <strong>de</strong> coisas. Tem-se uma formação ainda técnica muito restrita:a maioria dos brasileiros vai para as escolas <strong>de</strong> trânsito imaginandoque já sabem dirigir e unicamente para pegar aquele certificadoque lhes permitem dirigir legalmente. Ainda temos muitas falhas,porque não há, <strong>de</strong> maneira maciça e necessariamente significativa,noção <strong>de</strong> direção <strong>de</strong>fensiva. A noção <strong>de</strong> direção <strong>de</strong>fensiva algumasdiretrizes extremamente importantes para mudar nosso comportamentocomo motoristas e como pe<strong>de</strong>stres. Por quê? A noção <strong>de</strong>direção <strong>de</strong>fensiva coloca como primeiro elemento que você <strong>de</strong>ve serum motorista capaz <strong>de</strong> adiantar ou <strong>de</strong> prever o que po<strong>de</strong> acontecerno trânsito. Ora, se você <strong>de</strong>senvolve essa noção, ela absolutamenteexige que você tenha noção das outras pessoas com quem você estádividindo o espaço público. E a maioria dos motoristas não tem essanoção, porque ela está ligada ao outro fator que eu disse a vocês,o fator cultural <strong>de</strong> que o veículo é percebido como um espaço privado:você entra no seu carro, ele é um bem particular, ele é o seulimite privado, ele é o pedacinho da sua casa, porque você sai <strong>de</strong>casa com ele e vai para a rua.Só que ele só se realiza no espaço público. Acontece que háuma sobreposição, uma importância maior dada para esse pequenoespaço que é o nosso espaço <strong>de</strong>ntro do veículo, no espaço público.Dentro do veículo – não estou falando só <strong>de</strong> motoristas particulares,estou falando <strong>de</strong> motoristas <strong>de</strong> ônibus, <strong>de</strong> motoristas <strong>de</strong> lotação, <strong>de</strong>taxistas, <strong>de</strong> motoboys –, achamos que po<strong>de</strong>mos fazer qualquer coisa44


porque estamos <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> nosso espaço. Como esquecemos queesse nosso espacinho privado está inserido em um espaço maior,que é público e que é <strong>de</strong> todos.Então, a ausência <strong>de</strong> noção <strong>de</strong> direção <strong>de</strong>fensiva na gran<strong>de</strong>maioria dos motoristas peca, por quê? Porque a maioria dos motoristasnão tem noção do outro no espaço, embora acredite quetem noção. Eu gostaria muito <strong>de</strong> levantar uma questão, que, nasfalas dos entrevistados com quem eu conversei, ficou muito nítida.Vocês já <strong>de</strong>vem esperar isso que eu vou falar: “Eu sou uma ótimamotorista, os outros não são tanto”. Existe essa concepção generalizada.Nós po<strong>de</strong>mos perceber, aqueles que são ou se consi<strong>de</strong>rambons motoristas – eu pelo menos, consi<strong>de</strong>ro –, que 60% ou 70%dos motoristas hoje na rua, que saem das autoescolas, po<strong>de</strong>riamvoltar para elas, homens e mulheres. Tecnicamente não são bons,tecnicamente não fazem uso dos espaços <strong>de</strong> maneira a propiciar aboa locomoção para os outros motoristas.Além disso, existe outro fator e eles todos estão relacionados,como eu disse, na valorização do veículo individual. Se estou falando<strong>de</strong> uma cida<strong>de</strong> que eu pesquisei, que é São Paulo, estou falandodo maior exemplo disso, nós temos visto políticas públicas aindaatualmente que valorizam a locomoção pelos veículos individuais,e isso continua, e isso não tem fim. A própria classe média, sobretudo,valoriza isso — até foi muito interessante o colega dizer queo trânsito começa a ser percebido como outros problemas sociaisquando ele atinge a classe média. Mas mesmo assim a classe médiaprefere ainda pegar o pedacinho do conforto do seu espaço privado,que é o carro, como se fosse uma ramificação da sua casa e sair<strong>de</strong> automóvel pelas ruas, e nós continuamos com políticas públicasque valorizam o transporte individual.Eu falei no começo que eu consi<strong>de</strong>ro um texto emblemáticodo modo <strong>de</strong> viver do brasileiro em geral. O brasileiro, nós sabemos– nós sociólogos discutimos muito isso – tem uma noção <strong>de</strong> cidadaniamuito precária. Isso é tanto na questão <strong>de</strong> sermos portadores<strong>de</strong> direitos, reclamadores <strong>de</strong> direitos, como eu consi<strong>de</strong>ro, como ci-45


dadãos que <strong>de</strong>vem ter <strong>de</strong>veres <strong>de</strong> cidadãos. E o brasileiro tem muitadificulda<strong>de</strong>, por questões históricas, sociológicas, culturais, <strong>de</strong> pensarhorizontalmente. A noção do espaço público fica muito prejudicadanesse sentido, porque pensar em espaço público, em bem<strong>de</strong> todos em um espaço em que você tem <strong>de</strong> se locomover levandoem consi<strong>de</strong>ração o direito das outras pessoas, é muito complicado.Isso ficou muito nítido na fala <strong>de</strong> meus entrevistados. Quando euperguntava a eles: “O que o senhor acha dos motoristas em geral?O que o senhor acha do senhor como motorista? O que o senhoracha dos taxistas? Como é que o senhor vê os motoristas comuns?”O gran<strong>de</strong> sentimento, o sentimento generalizado que se expressou,foi o <strong>de</strong> hostilida<strong>de</strong> e <strong>de</strong> sacrifício pessoal. O sentimento <strong>de</strong> sacrifíciopessoal, <strong>de</strong> que eles fazem muito, <strong>de</strong> que “eu” me esforço muito,“eu” juro para você, é uma questão <strong>de</strong> família, é uma questão <strong>de</strong>educação, “eu tento dar seta, eu tento seguir as leis <strong>de</strong> trânsito,mas os outros não fazem assim”. Ora isso está estritamente relacionadocom aquilo que eu falei <strong>de</strong> que há uma noção equivocada<strong>de</strong> que nós somos bons motoristas e, quando você se acha equivocadamenteum bom motorista, obviamente você acha que está sesacrificando e os <strong>de</strong>mais não estão se sacrificando. Isso só aumentao sentimento <strong>de</strong> hostilida<strong>de</strong> no trânsito, <strong>de</strong> agressivida<strong>de</strong>. A outraquestão é: nós temos dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> pensar horizontalmente, e obrasileiro tem um gran<strong>de</strong> embate com as leis. Quando eu perguntavapara eles, para os meus entrevistados, o que eles achavam dasautorida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> trânsito, era notório, “eles são muito rigorosos e elasnão enten<strong>de</strong>m que eu precisava passar pelo sinal vermelho porqueeu estava com pressa”. “Olha, eu parei em cima da faixa e veio ummarronzinho e me multou, e ainda me multou porque eu estavasem cinto. Mas ele não enten<strong>de</strong>u que eu tive uma manhã difícil, queeu saí <strong>de</strong> casa, etc. e tal”.As autorida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> trânsito não compreen<strong>de</strong>m o motivo pessoal.O motivo pessoal é a lógica privada que se sobrepõe à universalida<strong>de</strong>das leis, que é a lógica do público. E nós não apren<strong>de</strong>mos,<strong>de</strong>senvolvemos isso ainda <strong>de</strong> uma maneira generalizada. Na fala <strong>de</strong>46


meus entrevistados, o sentimento <strong>de</strong> hostilida<strong>de</strong> expressa a i<strong>de</strong>iageneralizada <strong>de</strong> que a gran<strong>de</strong> maioria se consi<strong>de</strong>ra melhor do queos <strong>de</strong>mais. Os taxistas são um caso à parte, eles são os mais experientese eles ‘zombam’ dos motoristas comuns, à exceção, talvez,dos motoristas <strong>de</strong> ônibus, que estão todos os dias na rua, e são osque mais disseram a mim que tinham infrações por alta velocida<strong>de</strong>,porque “eu passo a velocida<strong>de</strong>, eu tenho umas cinco, seis multas pormês, eu recorro, umas duas ou três eu ganho”. Motoristas <strong>de</strong> ônibus– e isso ficou muito claro <strong>de</strong>pois da fala dos motoboys – sentem-semuito protegidos pelo fato <strong>de</strong> terem carros gran<strong>de</strong>s. Eles <strong>de</strong>notamoutro valor, outra consi<strong>de</strong>ração na fala dos entrevistados– e voltoa falar para vocês que isso tem relação com nosso modo <strong>de</strong> vivermais geral –, que é um sentimento <strong>de</strong> ressentimento social forteexistente na socieda<strong>de</strong> brasileira.Também a questão <strong>de</strong> classes, ainda que esse conceito sejamuito complexo hoje em dia. Os motoboys, eles mesmos me disseramisso, se juntam e se consi<strong>de</strong>ram realmente um grupo, umatribo, porque que eles se sentem vítimas do preconceito da socieda<strong>de</strong>em geral. Os próprios motoboys me diziam, “A gente vai fazeruma entrega no prédio, eles mandam a gente subir pelo elevador<strong>de</strong> serviço ou <strong>de</strong> uma maneira que a gente não encontre com maisninguém, porque ninguém acredita em motoboy, todo mundo tempreconceito contra motoboy, então, quando tem alguma coisa queenvolve a gente na rua, a gente realmente se une. Os motoristas<strong>de</strong> carros particulares. Principalmente os motoristas <strong>de</strong> carro importadoou <strong>de</strong> carros do ano – não respeitam a gente, porque elesestão <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um carro do ano ou importado e se acham melhoresque nós”. E assim, sucessivamente, essa percepção <strong>de</strong> quehá um ressentimento social se revela e, na locomoção imediata dotrânsito, transparece e ganha uma força muito intensa, porque elapo<strong>de</strong> acabar em conflitos fatais. Então, como o motorista se sentequando tem um carro pior? Ele se sente vitimado por aquele quetem um carrão e se sente no direito <strong>de</strong> passar na frente <strong>de</strong>le porqueo carro <strong>de</strong>le é mais potente. Ele justamente comprou um carro mais47


potente para po<strong>de</strong>r andar melhor do que os <strong>de</strong>mais, o motorista<strong>de</strong> ônibus se sente protegido porque tem um veículo gran<strong>de</strong>, aliásforam os que mais me disseram que ultrapassavam o sinal vermelho,eu fiquei absolutamente abismada, porque até esperava que osmotoristas comuns me dissessem isso, mas os motoristas <strong>de</strong> ônibusme disseram, mais do que todos, que a infração mais cometida poreles é ultrapassar o sinal vermelho. E os pe<strong>de</strong>stres, <strong>de</strong> maneira geral,são as vítimas, sentem-se vítimas, tanto quanto passageiros <strong>de</strong>ônibus, com relação a outros pe<strong>de</strong>stres. Os fatores culturais estãona base do nosso mau comportamento no espaço público, seja notrânsito, seja no espaço público em geral. A socieda<strong>de</strong> brasileiranão sabe, ainda, em sua generalida<strong>de</strong>, pensar <strong>de</strong> maneira horizontal,pensar em termos <strong>de</strong> bem comum, ela se acha, a gran<strong>de</strong> maioria,boa motorista, quando não é, porque o conceito <strong>de</strong> boa direção estáequivocado e precisa ser mudado.48


Cynthia Rejanne Correa Araújo Ciarallo 6EU E O OUTRO. Ao ouvir as falas <strong>de</strong>sta mesa, percebo quãoperto estou <strong>de</strong>sse lugar da infração, que tanto atribuo ao outro.Travestidos <strong>de</strong> autorida<strong>de</strong> que dizem saber sobre o outro, infelizmente,falar do outro é falar do outro mesmo, como se esse outronão trouxesse em nós nenhum tipo <strong>de</strong> impacto ou <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificação.Como se ele anunciasse a mim mesma. Aquela pessoa que está notrânsito hoje, eu, você, nós que estamos transitando, nossas relaçõessão atravessadas pela forma como nós fazemos socieda<strong>de</strong>, poróbvio. Ouvimos na pesquisa apresentada muitos relatos, é a falado taxista, do motorista <strong>de</strong> ônibus... Interessante, mas ao mesmotempo, essas categorias que classificam esse “outro” no trânsitotiram parte <strong>de</strong> nossa responsabilida<strong>de</strong> por nos colocar em outrolugar, o lugar do civilizado urbano. É o outro, não sou eu. Como seeu também não estivesse nesses tantos outros lugares. CIÊNCIAE POLÍTICA. Ao ouvir essa pesquisa, a contribuição da Sociologia,penso na <strong>Psicologia</strong> e no seu projeto político como ciência – porquesabemos que ciência e política são espaços que caminham juntos,unidos. Não estudamos coisas que estão <strong>de</strong>slocadas ou <strong>de</strong>svinculadas<strong>de</strong> um contexto <strong>de</strong> interesse, que mobiliza. Se estamos hojediscutindo essas coisas, é porque começam a ter visibilida<strong>de</strong>, começama incomodar, não porque elas nunca existiram. Qual é minhaimplicação como psicóloga nesse processo? Como dizia PauloFreire, alfabetizar-se é ler o mundo e escrever a própria história.Assim, somos cada vez mais <strong>de</strong>safiados a produzir conhecimentosque partam <strong>de</strong> um projeto ético-político que tenha compromissoe responsabilida<strong>de</strong> social. Por isso estamos aqui, discutindo o lugar6 Conselheira do <strong>Conselho</strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>de</strong> <strong>Psicologia</strong>, é doutoranda em <strong>Psicologia</strong> na Universida<strong>de</strong><strong>de</strong> Brasília. Socioeconomista, serventuária do Po<strong>de</strong>r Judiciário. Professora e supervisora<strong>de</strong> estágio do curso <strong>de</strong> <strong>Psicologia</strong> do Centro <strong>de</strong> Ensino Universitário <strong>de</strong> Brasília (UniCEUB),nas áreas <strong>de</strong> <strong>Psicologia</strong> Social e Jurídica; e do curso <strong>de</strong> pós-graduação lato sensu Direito Materiale Processual Penal e Segurança Pública da mesma instituição.49


político que conhecimentos e práticas têm ocupado na discussãoda mobilida<strong>de</strong>. INDIVÍDUO E SOCIEDADE. Lembro-me <strong>de</strong> que, porocasião da graduação – e isso remonta há alguns anos, é verda<strong>de</strong>– estudar <strong>Psicologia</strong> do Trânsito era, basicamente, localizar no indivíduoas características e as potencialida<strong>de</strong>s que levariam esse sujeitoa uma transgressão. Obviamente que hoje nós vamos ouvirque tal olhar é ultrapassado, que ninguém mais trata o assunto<strong>de</strong>ssa maneira tão limitada. Será? Será que nós <strong>de</strong> fato estamosquerendo extrapolar esse lugar que vê a liberda<strong>de</strong> apenas comouma questão individual e o espaço público apenas como um lócus<strong>de</strong> ação <strong>de</strong>sse indivíduo, sem levar em conta a dialética que constituirelações? Nesse sentido, a primeira provocação que quero fazeré: qual a visão <strong>de</strong> indivíduo e <strong>de</strong> socieda<strong>de</strong> que a <strong>Psicologia</strong> temsustentado? Por que nós temos dicotomizando essas duas esferas,em especial – consi<strong>de</strong>rando o tema em <strong>de</strong>bate – quando falamos na<strong>Psicologia</strong> do Trânsito? Precisamos dialogar com Vygotsky para melhorcompreen<strong>de</strong>r como nos fazemos sujeitos em socieda<strong>de</strong>, a partir<strong>de</strong> pertencimentos culturais, econômicos, etc. Temos mormente lidadocom estudos da mobilida<strong>de</strong> e, por consequência, do trânsito,sob uma perspectiva predominantemente, quando não estritamente,cognitivista, como se o simples conhecimento da lei e da normagarantisse, com maior eficiência, a obediência a ela. Por vezes, optasepor uma linha mais comportamental, no seu sentido mais conservador,tradicional e ortodoxo que intenta estabelecer uma série<strong>de</strong> controles externos a esse indivíduo, num simplismo punitivo quesustenta o engodo do controle absoluto: a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que ausência <strong>de</strong>infração advém exclusivamente do receio <strong>de</strong> ser punido, por exemplo.Como se nossa vida cotidiana fosse normatizada simplesmentepelas leis positivadas nos códigos formais e pelo temor das consequênciasresultantes <strong>de</strong> <strong>de</strong>sobediências, o que reforça ainda mais ai<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que há um mundo interno e um mundo externo que possuemleis próprias e que a ciência há <strong>de</strong> dominar. Como é que, comopsicólogos, po<strong>de</strong>mos nos inserir nesse tema? Será que é passandonormas, explicando procedimentos, que nós vamos <strong>de</strong> fato conse-50


guir transformação social? Como a discussão da mobilida<strong>de</strong>, dotrânsito, tem chegado às pessoas? INFRAÇÃO E NORMALIDADE.Falar <strong>de</strong> normalida<strong>de</strong> é tratar <strong>de</strong> classificação. A tipificação po<strong>de</strong> serconstruída a partir <strong>de</strong> distintos critérios, por vezes atribuídos a práticassociais convencionadas. A discussão do exame criminológicoampara-se na suposta <strong>de</strong>scoberta <strong>de</strong> traços da personalida<strong>de</strong> indicadores<strong>de</strong> tendências para cometimento <strong>de</strong> infrações. Examinemosa seguinte situação, então. Quando você está numa pista e vê aquelaplaquinha <strong>de</strong> 80 km – mesmo que por acaso esteja a 80 km –você busca reduzir naquele momento que passa pelo pardal, às vezeschegando a 60 km!! Então, à medida que se afasta do pardal,retoma a velocida<strong>de</strong> até que surja um novo pardal para fazê-lo reduzir.Vocês não acham que a prática reiterada <strong>de</strong>sse ato po<strong>de</strong> estarsinalizando uma tendência <strong>de</strong>lituosa? É uma programação para o<strong>de</strong>lito! Nesse caso, você está criando estratégias para burlar a lei,para impedir que <strong>de</strong>scubram sua infração. Pensando pela ótica queorienta a avaliação do exame criminológico, nesse caso, por ten<strong>de</strong>ra certas práticas <strong>de</strong>sviantes, você, no volante, representaria um perigoconcreto para a socieda<strong>de</strong>: não <strong>de</strong>ixem que tenha habilitação!Sim, po<strong>de</strong> ser uma situação caricata, exagerada, todavia, ela é real,afinal, você realmente se organiza para não ser flagrado cometendoo <strong>de</strong>lito, no caso, dirigir acima da velocida<strong>de</strong> permitida na via! Quecritérios são usados para apontar o perigo? A frequência, a gravida<strong>de</strong>do <strong>de</strong>lito, a intenção, o estresse? A prática da <strong>Psicologia</strong> por vezesse submete a i<strong>de</strong>ntificar a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> o sujeito obe<strong>de</strong>cer ànorma sem questionar as próprias normas e as condições que favorecemseu próprio cumprimento. Simplesmente naturalizamos aobediência. Anormal é não obe<strong>de</strong>cer, não respeitar a autorida<strong>de</strong>.Assim, temos transformado a or<strong>de</strong>m em sinônimo <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>. Então,precisamos pensar nas ban<strong>de</strong>iras que hasteamos, se não por zeloético com o outro, por zelo consigo mesmo, consi<strong>de</strong>rando que tambémestaremos vulneráveis aos próprios mo<strong>de</strong>los teóricos que usamospara enquadrar o chamado comportamento normal. Produzimosconhecimentos que pautam práticas classificatórias, i<strong>de</strong>ológi-51


cas. Como disse, armadilhas que po<strong>de</strong>rão encarcerar a nós mesmos,inclusive. INDIVIDUALIZAÇÃO DE PRÁTICAS COLETIVAS. Retomandoa pesquisa apresentada pela socióloga aqui presente, chamou-mea atenção a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que um carro expressa para o condutoro seu mundo, seu espaço privado. E a <strong>Psicologia</strong> também tematuado nos estudos sobre condução no trânsito reforçando essaexperiência <strong>de</strong> ocupação do espaço público – que é uma práticacoletiva – como uma questão <strong>de</strong> natureza privada. Cada condutor éum condutor, logo, cada caso, é um caso. A <strong>Psicologia</strong> está lá, muitasvezes dizendo: “Traz ele aqui que eu vou fazer uma avaliaçãopara i<strong>de</strong>ntificar elementos que explicam tamanha agressivida<strong>de</strong>nesse indivíduo”. E agressivida<strong>de</strong> passa a ser uma categoria estritado indivíduo e não uma expressão dialética <strong>de</strong> uma forma <strong>de</strong> sociabilida<strong>de</strong>e <strong>de</strong> convívio. A prática que se ampara em uma cosmovisãoneoliberal parte do pressuposto <strong>de</strong> que as explicações para a açãohumana estão no próprio indivíduo. Retomo, então: o que nós temoschamado <strong>de</strong> indivíduo na <strong>Psicologia</strong>? Como é que queremosnos inserir no <strong>de</strong>bate? Com quais outros conhecimentos temos dialogado?IDENTIDADE COM AS CIÊNCIAS HUMANAS. Eu estavana sala <strong>de</strong> aula outro dia e estava perguntando para os alunos:“Quando vocês estudaram Introdução à Antropologia, que é logo noinício do curso, acho que muitos pensavam algo assim, infelizmente:“Deixa passar logo isso, assim, aquela coisa, é um conhecimentinhona <strong>Psicologia</strong>, não é, vamos logo”. Uma pena. Eu costumo dizerque o aluno <strong>de</strong> <strong>Psicologia</strong> só se sente psicólogo quando ele estudaPsicopatologia. “Vocês já imaginaram o curso <strong>de</strong> <strong>Psicologia</strong> sem Psicopatologia?”“Não, não dá para imaginar... Mas sem <strong>Psicologia</strong> Social,tudo bem.”, costumo brincar. O que é que dá i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> para opsicólogo no seu fazer, na sua profissão, o que <strong>de</strong> fato tem dadoi<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> para esse psicólogo? É uma pergunta para se fazer todosos dias. Quando vocês estudam Introdução à Antropologia, à Sociologiae tal, vocês estão se sentindo estudando <strong>Psicologia</strong>? Mais oumenos, não é? Por que será que estudar Sociologia, Antropologia,História, parece não coadunar com o campo da <strong>Psicologia</strong>? Porque52


parece que esses elementos não pertencem ao nosso objeto <strong>de</strong> estudo,ao nosso objeto <strong>de</strong> trabalho, que é o psiquismo humano, porque<strong>de</strong>finimos os conhecimentos afetos ao psiquismo e excluímosoutros. LIBERDADE SOB DETERMINADAS CONDIÇÕES. Comodisse, há um predomínio da i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que se a pessoa tem informação,ela agirá a<strong>de</strong>quadamente, aliada também à i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> um sujeitoque é portador <strong>de</strong> livre arbítrio, que tem a escolha <strong>de</strong> não fazer. Emsíntese: saber é ter condições para <strong>de</strong>cidir se vai fazer ou não, o quenos aproxima da mesma lógica do Direito para o julgamento daimputabilida<strong>de</strong> penal. Saliento que a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> um indivíduo livre,que basta ter informação para agir, na minha avaliação, é uma falácia.Liberda<strong>de</strong> é uma palavra perigosa. Eu pensei em uma metáforaao que chamamos <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong>, dia <strong>de</strong>sses, enquanto assistia à televisão.O controle remoto <strong>de</strong> uma TV paga que tem uns 100 canais,por exemplo, possibilita muitas escolhas. Dá-nos a impressão <strong>de</strong>que estamos escolhendo o que queremos assistir. Não tem essa sensação?É só sensação, porque nós não assistimos exatamente aoque queremos em sua exuberância. Na verda<strong>de</strong>, assistimos ao quequeremos <strong>de</strong>ntro das possibilida<strong>de</strong>s que nos são oferecidas para escolher.Liberda<strong>de</strong> na oportunida<strong>de</strong>. Porém, a televisão nos dá a sensação<strong>de</strong> que tudo a que assistimos é resultado, na verda<strong>de</strong>, <strong>de</strong> umalivre escolha. O engodo <strong>de</strong> que há uma liberda<strong>de</strong> plena estabelecida,como se não houvesse nenhum a priori. Então, que possibilida<strong>de</strong>snós, psicólogos, temos oferecido como educadores para o trânsito?Nosso foco é apenas o sujeito que conduz um veículo que se movimentano espaço urbano? Temos também pautado nossas ações emelementos não tão visíveis, mas que se encontram nas entrelinhas,tais como o mercado automotivo, <strong>de</strong> multas e <strong>de</strong> segurança públicamonitorada? Livres para agir a partir <strong>de</strong> que oportunida<strong>de</strong>s? Alémdisso, quais são as possibilida<strong>de</strong>s teóricas com as quais temos nosapresentado ao gestor público – que efetivamente é aquele queimplementa aquilo que nós estamos discutindo? Quais são as possibilida<strong>de</strong>sque ele tem hoje para discutir e levar para a ação tudoisso <strong>de</strong> que nós estamos falando aqui? PSICOLOGIA APLICADA –53


DILEMAS E DESAFIOS. Há dois anos, quando eu tive contato comas discussões da mobilida<strong>de</strong>, do trânsito, da ocupação do espaço esuas relações na produção <strong>de</strong> subjetivida<strong>de</strong>s, apercebi-me <strong>de</strong> quãopequeno era meu olhar para realida<strong>de</strong> tão complexa. Há pessoasque não comparecem a eventos relacionados a este tema porqueenten<strong>de</strong>m que é algo muito distante <strong>de</strong> sua prática profissional.Esse é o risco da <strong>Psicologia</strong> quando ela se faz aplicada. Esse negócio<strong>de</strong> <strong>Psicologia</strong> aplicada é um perigo, porque per<strong>de</strong>mos nosso objeto.Começamos a criar teorias e práticas sobre um objeto a partir dalente e das <strong>de</strong>mandas <strong>de</strong> um conhecimento que nos é alheio. E notrânsito? Para que o trânsito tem chamado a gente para discutir,para pensar? Sobre o que temos <strong>de</strong>positado nosso olhar para construirconhecimentos sobre o trânsito a partir dos referencias teóricosda <strong>Psicologia</strong>? Há possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> produzirmos um tipo <strong>de</strong> conhecimentona <strong>Psicologia</strong> que não seja tão rendido, que consigaavançar e não a<strong>de</strong>quar, que consiga extrapolar até o próprio lugarque nos é cobrado para ocupar? Eu fico muito inquieta com esselugar. Eu amo muito a <strong>Psicologia</strong>, que, como todo saber, está emmovimento. Todavia, amar um objeto incerto, inconcluso, não é fácil.Como você consegue se apegar a alguma coisa que está constantementese transformando? Esse é o <strong>de</strong>safio. Por isso estamosaqui hoje. Por exemplo, nosso lugar <strong>de</strong> saber especializado nos levaa discutir esse assunto aqui, em um seminário. Estamos discutindoesse assunto também na rua? Quem temos chamado para discutiresse assunto? Por que nós não estamos em uma praça pública? Paramobilizar em uma praça pública é luta, porque nos parece que oconhecimento ali advindo é menor. Todavia, é ali que encontramosos saberes da vida cotidiana acontecendo, sua práxis. Temos <strong>de</strong> pensarque lugar é esse que queremos ocupar. Se queremos apenas sermais um conhecimento pragmático a ser aplicado, sem autonomia,sem um projeto ético-político próprio. É o meu <strong>de</strong>safio todo dia:olho para o que temos construído e fico às vezes ainda envergonhada,é verda<strong>de</strong>, mas também fico envai<strong>de</strong>cida, esperançosa, pois épossível ver mudanças qualitativas, alternativas germinando. Apro-54


veitando o tema mobilida<strong>de</strong>, reitero, on<strong>de</strong>, com quem e on<strong>de</strong> queremose po<strong>de</strong>mos transitar? Que objetivos temos ao discutir <strong>Psicologia</strong>do Trânsito, mobilida<strong>de</strong>, acessibilida<strong>de</strong>? O que queremos comesse lugar aqui? Essa é a provocação: para vocês, para mim.55


Mesa - Políticas públicas paramobilida<strong>de</strong>: <strong>de</strong>safios da <strong>Psicologia</strong>Rogéria Motta <strong>de</strong> Sant’Anna 7Meu objetivo é abordar a evolução das políticas públicas paramobilida<strong>de</strong> a partir do planejamento <strong>de</strong> transporte e do espaço públicoe da inserção da <strong>Psicologia</strong> neste contexto.Vou começar pelo tema mobilida<strong>de</strong>. De tempos em tempos, algunstermos transcen<strong>de</strong>m seu significado, revestindo-se <strong>de</strong> um dinamismoque antes não haviam alcançado. Acho que a mobilida<strong>de</strong> é um bomexemplo. Atualmente, mobilida<strong>de</strong> ganhou um novo status, virou uma palavrada moda e entrou na agenda das discussões políticas e sociais. Atébem pouco tempo mobilida<strong>de</strong> era quase um sinônimo <strong>de</strong> acessibilida<strong>de</strong>.Na análise tradicional <strong>de</strong> transporte, a mobilida<strong>de</strong> está associadaa comportamento <strong>de</strong> viagem (viajar para acessar pessoas elugares) expresso na relação entre oferta e <strong>de</strong>manda. É a análiseeconômica do transporte (<strong>de</strong>manda <strong>de</strong>rivada) com ênfase no caráterquantitativo. Neste contexto, o conceito <strong>de</strong> mobilida<strong>de</strong> e suasimplicações é consi<strong>de</strong>rado restrito, ao envolver apenas a análisecom relação a número <strong>de</strong> viagens, não abordando outros aspectosqualitativos fundamentais que enfatizam a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>ro conceito <strong>de</strong> mobilida<strong>de</strong> associado às <strong>de</strong>mandas da população.Nessa abordagem, o potencial <strong>de</strong> mobilida<strong>de</strong> assume um relevantepapel na qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida das pessoas.7 Psicóloga, doutora em Segurança no Trânsito pela Coppe/UFRJ, consultora do Institutefor Transportation and Development Policy (ITDP) e pesquisadora nas áreas <strong>de</strong> planejamentoe gestão <strong>de</strong> trânsito/transportes.57


A mobilida<strong>de</strong> está diretamente ligada ao processo tradicional <strong>de</strong>planejamento <strong>de</strong> transportes e suas quatro etapas: geração <strong>de</strong> viagens,distribuição <strong>de</strong> viagens, repartição modal e alocação do tráfegona re<strong>de</strong>. No entanto não se po<strong>de</strong> mais planejar com base na existênciainfinita <strong>de</strong> recursos e áreas para expansão da malha viária.Na questão do planejamento <strong>de</strong> transportes, ao longo dosanos, o que observamos é que o transporte foi se apropriando doespaço público, <strong>de</strong>senvolvendo uma infraestrutura voltada para ocarro. Criou-se um círculo vicioso marcado por essa oferta <strong>de</strong> infraestrutura,que rapidamente é apropriada por um número crescente<strong>de</strong> veículos, que <strong>de</strong>manda mais apropriação do espaço público paragerar mais infraestrutura. Essa lógica criou uma distorção no planejamento<strong>de</strong> transporte e na utilização do espaço público, ou seja,priorida<strong>de</strong> para os carros, em <strong>de</strong>trimento do transporte público etransporte não motorizado: pe<strong>de</strong>stres e ciclistas.A prática <strong>de</strong>sse tipo <strong>de</strong> políticas públicas fortaleceu esse mo<strong>de</strong>loque gera congestionamentos, inúmeros impactos ambientaisque afetam a saú<strong>de</strong> pública, além dos alarmantes índices <strong>de</strong> mortalida<strong>de</strong>e incapacida<strong>de</strong> <strong>de</strong>correntes <strong>de</strong> aci<strong>de</strong>ntes no trânsito. Hojetemos plena consciência <strong>de</strong> que a questão não é tirar os carros darua e sim tornar seu uso mais racional. Sabemos que o carro é ofetiche da socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> consumo. Na famosa Route 66, na cida<strong>de</strong><strong>de</strong> Amarillo, no Texas, existe uma obra <strong>de</strong> arte constituída por<strong>de</strong>z Cadillacs enterrados no <strong>de</strong>serto. É uma obra emblemática, queenfatiza o carro como o gran<strong>de</strong> ícone <strong>de</strong>sta socieda<strong>de</strong>, o que lhedá um lugar privilegiado nesse espaço público. Seja por questõesambientais, seja por mudanças climáticas, por colapso e caos queparalisam as cida<strong>de</strong>s, uma nova lógica está se estabelecendo. A cida<strong>de</strong>volta a ser pensada como a pólis da Grécia antiga.Nas áreas <strong>de</strong> planejamento <strong>de</strong> transporte e urbanismo, trêsnovos conceitos estão sendo utilizados para planejar o espaço público.O primeiro é o <strong>de</strong>senvolvimento orientado pelo transporte.A re<strong>de</strong> <strong>de</strong> transporte público é consi<strong>de</strong>rada um vetor fundamental<strong>de</strong> crescimento urbano e das diversas formas <strong>de</strong> uso do solo. O se-58


gundo é o <strong>de</strong>senvolvimento orientado para a mobilida<strong>de</strong>, cujo focoestá em gerenciar essa mobilida<strong>de</strong> e não em gerenciar apenas ainfraestrutura, os fluxos dos carros, os congestionamentos. O terceiroconceito baseado no <strong>de</strong>senvolvimento orientado pelas pessoassurge como uma tendência. Esse é um conceito revolucionário, queparte da percepção <strong>de</strong> como as pessoas se apropriam do espaçopúblico, qual o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong>las ao se apropriar <strong>de</strong>sse espaço. Depoisvem a questão <strong>de</strong> como projetar esse espaço. A China está começandoa implementar essas ações em algumas cida<strong>de</strong>s, com resultadosbastante interessantes. Claro que em cida<strong>de</strong>s já construídase <strong>de</strong>nsamente ocupadas é muito difícil a aplicação <strong>de</strong>sse conceito,mas po<strong>de</strong>mos apren<strong>de</strong>r lições importantes que po<strong>de</strong>m ser usadasem menor escala. Esses três conceitos convergem para a visão <strong>de</strong>uma cida<strong>de</strong> viva, orgânica e inclusiva, ambientalmente sustentável,on<strong>de</strong> o espaço público é o lugar do encontro.Nesse cenário, as ações do po<strong>de</strong>r público são fundamentais, porqueenvolvem recursos públicos, que nos países em <strong>de</strong>senvolvimentosão escassos. A construção <strong>de</strong> sistemas que operam sobre trilhos, emespecial o metrô po<strong>de</strong>m aten<strong>de</strong>r a elevadas <strong>de</strong>mandas por transporte,quando essas existem. É necessário, no entanto, ter em conta que otempo <strong>de</strong> implantação <strong>de</strong>sses sistemas, os custos envolvidos em suamanutenção, uma vez implantados, e, sobretudo, seu custo <strong>de</strong> implantação– em torno <strong>de</strong> U$150 milhões por quilômetro construído– precisam ser cuidadosamente avaliados, sob pena <strong>de</strong> <strong>de</strong>sperdício ouuso ina<strong>de</strong>quado <strong>de</strong>sses escassos recursos públicos.Com relação ao espaço público, historicamente, herdamos ummito, algo extremamente arraigado em todos nós que é pensar queas ruas são para os carros. Na verda<strong>de</strong>, todos nós, em algum momentoda vida, pensamos isso: as ruas são feitas para os carros. Se umapessoa foi atropelada porque atravessou fora da faixa, ela é a culpada,porque invadiu o espaço do carro. Mas nem sempre foi assim.Precisamos mudar nossa visão <strong>de</strong> espaço público. Existe umatendência <strong>de</strong> pensar que qualquer mudança que traga resultados significativosno sistema trânsito-transporte, são obras faraônicas, como59


construção <strong>de</strong> anel viário, ponte, viaduto, duplicação <strong>de</strong> pistas. Naverda<strong>de</strong>, existem várias estratégias pontuais (<strong>de</strong>s<strong>de</strong> que articuladascom uma visão estrutural) que envolvem baixo custo e nos ajudam aperceber o espaço público <strong>de</strong> forma diferente. Vou dar um exemplo.Po<strong>de</strong>mos observar como o espaço utilizado para o estacionamento<strong>de</strong> um carro po<strong>de</strong> propiciar uma mudança nessa perspectiva,nessa lógica do uso do espaço público. Nos últimos anos, a cida<strong>de</strong><strong>de</strong> Nova Iorque ganhou vários prêmios trabalhando no sentido <strong>de</strong>mudar o espaço público, transformando-o em um ambiente <strong>de</strong> convivência,<strong>de</strong>struindo aquele mito <strong>de</strong> que as ruas são para os carros.Na Broadway, o espaço viário, antes <strong>de</strong>stinado exclusivamenteao transporte motorizado, foi reduzido para duas faixas, com a implementação<strong>de</strong> uma ciclovia. As outras duas faixas foram transformadasem um espaço <strong>de</strong> convivência que permite que as pessoas sentem,tomem seu café, leiam seu livro, conversem. É importante ressaltarcomo eles utilizaram <strong>de</strong> forma racional o recurso público. A mudançana pavimentação é simples, usando, basicamente, cor, as jardineirassão <strong>de</strong> plástico e a atenção dada aos aspectos relativos à segurançafoi privilegiada. Estamos falando <strong>de</strong> Nova Iorque, não estamos falando<strong>de</strong> cida<strong>de</strong>s em países em <strong>de</strong>senvolvimento, que com políticaspúblicas ousadas transformaram com baixo custo esse bem preciosoe raro que é o espaço público em um ambiente realmente <strong>de</strong> todos.Em Bogotá foi construído o Porvenir Promena<strong>de</strong>. São 18 km <strong>de</strong>via para o transporte não motorizado que liga as áreas periféricas,on<strong>de</strong> vivem as pessoas <strong>de</strong> baixa renda, à área central da cida<strong>de</strong>.Trata-se <strong>de</strong> um projeto para pessoas, não é um projeto para veículos.O investimento na infraestrutra para os carros foi preterido emfavor da criação <strong>de</strong> áreas urbanas que garantem a mobilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>todos <strong>de</strong> forma equitativa. É um espaço público <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong>, sejana pavimentação, seja na sinalização, que está ligada à questão dasegurança, seja na iluminação, seja no paisagismo. Em uma cida<strong>de</strong><strong>de</strong> um país em <strong>de</strong>senvolvimento, as políticas públicas investiramos escassos recursos financeiros para promover um espaço urbano,que é um espaço que promove qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida.60


No Brasil, algumas ações nesse sentido começam a ganhar espaçono planejamento das cida<strong>de</strong>s. O Ministério das Cida<strong>de</strong>s lançou o Plano<strong>de</strong> Mobilida<strong>de</strong> Urbana, ferramenta importante que visa a auxiliar as cida<strong>de</strong>sna aquisição <strong>de</strong> conhecimentos para a gestão da mobilida<strong>de</strong>. Nóstemos exemplos <strong>de</strong> cida<strong>de</strong>s brasileiras, a começar por Curitiba, que foipioneira na integração do planejamento urbano e no planejamento <strong>de</strong>transportes. Atualmente essa experiência engloba uma sigla, BRT – BusRapid Transit, que se baseou nessa experiência e está sendo utilizada nomundo inteiro. Belo Horizonte está concluindo o Plano <strong>de</strong> Mobilida<strong>de</strong>,que inclui 350 km <strong>de</strong> ciclovias, quatro corredores <strong>de</strong> BRTs, com integraçãofísica e tarifária, além da revitalização urbana da área central da cida<strong>de</strong>.Universida<strong>de</strong>s como UFRJ, USP, UnB, só para citar algumas, tem<strong>de</strong>sempenhado papel importante no <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> pesquisas edisseminação <strong>de</strong> conhecimentos. As organizações não governamentais,como o Transporte Ativo, a Rua Viva, a Rodas da Paz, entre outras,têm tido papel fundamental <strong>de</strong> representar a socieda<strong>de</strong> ao inserir naagenda política e social essa nova visão <strong>de</strong> cida<strong>de</strong>. A organização emque trabalho, o - Institute for Transportation and Development Policy(ITDP), fundada em 1985, atua em países em <strong>de</strong>senvolvimento trabalhandoem parceria com o po<strong>de</strong>r público e organizações não governamentaisna promoção <strong>de</strong> políticas que possibilitem um transportesustentável e equitativo nas cida<strong>de</strong>sA própria socieda<strong>de</strong> civil tem se mobilizado. Neste ano, pelaprimeira vez, o Rio <strong>de</strong> Janeiro participou da campanha mundial doDia sem Carro. A participação superou as expectativas, pois houvea<strong>de</strong>são bastante significativa. As empresas privadas também estãoparticipando <strong>de</strong>sse movimento <strong>de</strong> conscientização. O Banco do Brasil,por exemplo, instituiu o programa Pé no Pedal, Pé no Futuro, emque serão sorteadas quatro mil bicicletas, incentivando as pessoas ausar o ciclismo como forma <strong>de</strong> lazer que alia o cuidado com a saú<strong>de</strong>e a preservação do planeta. Existe uma crescente conscientização dasocieda<strong>de</strong> para viabilizar cida<strong>de</strong>s cada vez mais <strong>de</strong>mocráticas, on<strong>de</strong>seus habitantes possam usufruir <strong>de</strong> um ambiente socialmente e ecologicamenteequilibrado.61


Finalizo minha participação abordando a inserção da <strong>Psicologia</strong>neste tema. Nossa atuação começou com um foco muito específico,centralizado na emissão da Carteira Nacional <strong>de</strong> Habilitação. Evoluímosquando incorporamos ao nosso campo <strong>de</strong> conhecimentos aquestão da segurança no trânsito, e hoje estamos aqui falando <strong>de</strong>mobilida<strong>de</strong> e espaço público. Um espaço público que <strong>de</strong>ve ser vistotambém como um fenômeno social. Ele envolve uma re<strong>de</strong> complexa<strong>de</strong> interações, baseado em um universo repleto <strong>de</strong> significados,motivações, aspirações, crenças, valores e atitu<strong>de</strong>s, que possui representaçõesindividuais e sociais que vão ter impacto importante nasegurança do trânsito, na mobilida<strong>de</strong> e na inclusão social.Para a OMS 8 , existe uma prática comum nos países em <strong>de</strong>senvolvimento,<strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rar aci<strong>de</strong>ntes no trânsito como um problemabasicamente do setor <strong>de</strong> transportes, o que dificulta a implantação<strong>de</strong> ações integradas na resolução <strong>de</strong> um problema tão complexo,como é o caso da segurança no trânsito. Torna-se necessário, portanto,ampliar o enfoque interdisciplinar na compreensão dos aci<strong>de</strong>ntes<strong>de</strong> trânsito, para que estes possam ser avaliados a partir <strong>de</strong> umacomplexa interação <strong>de</strong> fenômenos sociológicos, psicológicos, físicos etécnicos que compõem o sistema <strong>de</strong> transportes. Minha tese foi sobremobilida<strong>de</strong> e segurança no trânsito da população idosa. Trata-se <strong>de</strong>um estudo <strong>de</strong>scritivo cujo objetivo foi compreen<strong>de</strong>r qual a representaçãosocial que o idoso tem <strong>de</strong> sua mobilida<strong>de</strong> e <strong>de</strong> sua segurançano trânsito e a relação com o comportamento preventivo ou <strong>de</strong> risco.Essa tese está disponível no site do Programa <strong>de</strong> Engenharia <strong>de</strong> Transportesda Coppe/UFRJ.O espaço público que é, a priori, um espaço <strong>de</strong> convivência,gera inúmeras representações nas pessoas que nele transitam, seja<strong>de</strong> convívio harmonioso, seja <strong>de</strong> conflito no uso <strong>de</strong>sse espaço. Determinadosgrupos mais vulneráveis no trânsito, como os pe<strong>de</strong>stres,os ciclistas, as crianças, os jovens, os idosos, as pessoas com mobilida<strong>de</strong>reduzida, po<strong>de</strong>m ter sua mobilida<strong>de</strong> consi<strong>de</strong>ravelmente afetada8 WHO. Estrategia quinquenal <strong>de</strong> la OMS para la prevención <strong>de</strong> Lesiones por Acci<strong>de</strong>ntes<strong>de</strong> Tráfico. Department of Health Promotion, Genebra, 2002.62


por essas representações, pois o nível <strong>de</strong> segurança e acessibilida<strong>de</strong>influenciará a percepção do uso <strong>de</strong>sse espaço, do convívio social e,consequentemente, da qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida.Existe um vasto e rico campo <strong>de</strong> pesquisas on<strong>de</strong> nós psicólogospo<strong>de</strong>mos contribuir para que o espaço público seja <strong>de</strong> fato um direito<strong>de</strong> todos. Esse é o nosso <strong>de</strong>safio.63


Ricardo Figueiredo Moretzsohn 9Hoje, não pretendo discutir <strong>Psicologia</strong> <strong>de</strong> Trânsito, pois esseevento é sobre a mobilida<strong>de</strong>, a <strong>de</strong>speito <strong>de</strong> que, evi<strong>de</strong>ntemente, asquestões do trânsito são atravessadas pelas questões da mobilida<strong>de</strong>e vice-versa. Não se consegue discutir a mobilida<strong>de</strong> sem discutirtrânsito. Quero aqui discutir a mobilida<strong>de</strong> humana no seu aspectosocial e implicações subjetivas.Faço parte <strong>de</strong> uma ONG, o Instituto Rua Viva, sediado em BeloHorizonte, comemorando <strong>de</strong>z anos agora. É uma ONG que trabalhacom mobilida<strong>de</strong> sustentável, representante no Brasil da Jornada Internacional“Na Cida<strong>de</strong> Sem Carro”, que é comemorada a cada 22<strong>de</strong> setembro em diversos países. O objetivo da jornada é fazer umareflexão mundial sobre o uso abusivo dos automóveis nos gran<strong>de</strong>scentros, em <strong>de</strong>trimento <strong>de</strong> outras formas <strong>de</strong> locomoção – principalmenteas coletivas – o que tem gerado um verda<strong>de</strong>iro caos na vidadas pessoas. Para tanto, o Instituto faz parcerias com ministériosdo governo fe<strong>de</strong>ral e diversas prefeituras municipais, que, no dia22, promovem ações <strong>de</strong> restrição ao uso dos automóveis em <strong>de</strong>terminadoslocais urbanos, incentivando o uso <strong>de</strong>sses pontos pelapopulação local como espaços <strong>de</strong> lazer.O automóvel é parte do cotidiano das questões da mobilida<strong>de</strong>,estando nas páginas dos jornais, nos noticiários <strong>de</strong> televisão e rádios,nas propagandas, nas conversas <strong>de</strong> bar, nos filmes e novelas, nos acordospara a construção <strong>de</strong> estradas e <strong>de</strong> obras viárias e na corrupçãoque po<strong>de</strong> daí advir; está presente na disputa pelo dinheiro públicopara a instalação <strong>de</strong> montadoras, nas corridas e nos heróis do automobilismo,nos acordos trabalhistas das empresas <strong>de</strong> transporte, nosprazeres da velocida<strong>de</strong>, no status e no progresso social <strong>de</strong> se possuir o9 Psicólogo: membro do Instituto da Mobilida<strong>de</strong> Sustentável Rua Viva; ex-presi<strong>de</strong>ntedo <strong>Conselho</strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>de</strong> <strong>Psicologia</strong>; presi<strong>de</strong>nte do VI Congresso Brasileiro <strong>de</strong> <strong>Psicologia</strong> do Trânsito;membro titular <strong>de</strong> três gestões consecutivas das Câmara Temática <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> e Meio Ambientedo Contran (2001/2007). Representante do Movimento Nacional pela Democratizaçãodo Trânsito (MNDT).65


mo<strong>de</strong>lo do ano, nas propagandas com crianças já empurrando seus carrinhos(“Des<strong>de</strong> pequeno você já sonhava”, diz a propaganda <strong>de</strong> uma marcafamosa) ou naqueles comerciais que incentivam a <strong>de</strong>ixar o transportepúblico (“Se você estivesse aqui, já tinha chegado lá”, diz outra campanha<strong>de</strong> veículo conhecido). Nessas e em tantas outras expressões está presentea eficácia da cultura do automóvel no modo <strong>de</strong> vida do brasileiro.Uma das bem-sucedidas práticas <strong>de</strong>ssa cultura é dividir amobilida<strong>de</strong> em vários pedaços, como se fosse possível ter uma viatotalmente dividida em pedaços para cada modo <strong>de</strong> <strong>de</strong>slocamento(um pedaço para o carro; outro pedaço para o ônibus; outro,para o pe<strong>de</strong>stre; outro, para a bicicleta) ou mesmo com se fossepossível à gestão do trânsito ser dividida. Nessa absurda concepçãoexiste o pressuposto básico <strong>de</strong> que a função do po<strong>de</strong>r públicoé garantir o <strong>de</strong>slocamento fluido dos veículos, e não das pessoas.Essa flui<strong>de</strong>z, que é marca registrada <strong>de</strong>sta cultura, tem como baseo fato <strong>de</strong> o ser humano ter <strong>de</strong>, necessariamente, adaptar-se àsnecessida<strong>de</strong>s do automóvel.Estou aqui representando também o Movimento Nacional pelaDemocratização do Trânsito (MNDT), que conta com a participação do<strong>Conselho</strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>de</strong> <strong>Psicologia</strong> e <strong>de</strong> outras entida<strong>de</strong>s e é uma açãocoletiva que preten<strong>de</strong> problematizar e <strong>de</strong>nunciar a ausência da socieda<strong>de</strong>civil na participação e na formulação das políticas públicas <strong>de</strong>trânsito e mobilida<strong>de</strong>, assim como exigir transparência nos recursosfinanceiros <strong>de</strong>ssas gestões. Como uma política pública que enseja umconjunto <strong>de</strong> normas e regras para a população po<strong>de</strong> ser eficaz se asocieda<strong>de</strong> civil (ou vários segmentos <strong>de</strong>la) não dispõe <strong>de</strong> mecanismosinstitucionais e/ou políticos que promovam sua inclusão na discussãoe <strong>de</strong>liberação <strong>de</strong> tais mecanismos? Por que só os “técnicos” parecempossuir esse saber sobre as nossas vidas cotidianas e nos transformamem objetos a ser “orientados” sobre como proce<strong>de</strong>r em relaçãoa nossa mobilida<strong>de</strong>? Por que aceitar a norma quando ela vem <strong>de</strong> cimapara baixo como se as questões do espaço público não dissessem respeitoa todos nós e, principalmente, à cidadania e a uma or<strong>de</strong>m socialjusta? Mais à frente discutirei melhor essa questão.66


A mobilida<strong>de</strong> humana nos atrai como expressão das inúmeras respostasdadas pelos sujeitos em relação a suas necessida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> <strong>de</strong>slocamentoe acessibilida<strong>de</strong>. A mobilida<strong>de</strong> humana também nos remete aotraçado das subjetivida<strong>de</strong>s das cida<strong>de</strong>s, são traçados que obe<strong>de</strong>cem alógicas diversas, singulares, marcadas por um contexto socio-histórico.O gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>safio é po<strong>de</strong>r conjugar essas diversas lógicas no espaço daor<strong>de</strong>m pública e social. Sabemos que estamos todos submetidos a umaor<strong>de</strong>m social, no entanto essa or<strong>de</strong>m estampa em sua face a <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m,dificultando sobremaneira o excesso da maioria aos bens e serviços, aotrabalho, a saú<strong>de</strong>, a educação, a tecnologia, ao lazer e a cultura. Ela setraduz na falta <strong>de</strong> uma política pública da mobilida<strong>de</strong> que propicia aacessibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> todos aos direitos já garantidos, ou seja, direitos civis,direitos sociais e direitos políticos.Não lembro mais <strong>de</strong> quem é essa <strong>de</strong>finição, mas po<strong>de</strong>mos enten<strong>de</strong>rpolíticas públicas como um conjunto <strong>de</strong> diretrizes e referênciaséticas, políticas e legais, adotadas pelo Estado para respon<strong>de</strong>r às<strong>de</strong>mandas sociais que po<strong>de</strong>m ser mais ou menos explícitas, <strong>de</strong> acordocom os interesses que as move, ou fomente. Esse processo pressupõepermanente e necessário o questionamento entre Estado e a socieda<strong>de</strong>civil, já que propostas e ações governamentais nem sempre encontrampontos coinci<strong>de</strong>ntes com as <strong>de</strong>mandas sociais. É a partir doembate entre esses po<strong>de</strong>res distintos e quase sempre assimétricosque uma socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong>mocrática constrói seu espaço <strong>de</strong> interlocuçãoe elaboração <strong>de</strong> saídas legitimas para os mais diversos impasses colocadoscotidianamente pela vida dita civilizada.Por razões diversas as pessoas não conseguem se mover para teracesso aos seus direitos e às políticas públicas, isso tem a ver com a estratificaçãosocial <strong>de</strong>corrente da or<strong>de</strong>m instituída, a or<strong>de</strong>m pressupõeextratos, ou seja, lugares diversos, instituídos, que são ocupados peloscidadãos. Uma or<strong>de</strong>m é boa se não houver diferenças que <strong>de</strong>marquem<strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> oportunida<strong>de</strong>s e acessibilida<strong>de</strong> na circulação por essesvários estratos ou lugares. Por outro lado, ela é <strong>de</strong>sigual quandoestabelece valores diferenciados para os diversos lugares, então, queor<strong>de</strong>m social é essa que não permite o acesso às políticas públicas?67


É a or<strong>de</strong>m perversa dos privilégios que reflete a história estabelecidapela estratificação social, gerando silenciosos processos <strong>de</strong> segregaçãomúltipla. É a or<strong>de</strong>m que proporciona uma pequena parcelada população, a maior parte do consumo e a ocupação do espaçopúblico em <strong>de</strong>trimento da gran<strong>de</strong> maioria.Ao contrário, uma or<strong>de</strong>m social <strong>de</strong>mocrática e plural com qualida<strong>de</strong><strong>de</strong> vida para todos, é aquela que possibilita acesso aos bens eserviços, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte dos lugares ou extratos sociais que possibilitamobilida<strong>de</strong>, pelos diversos lugares instituídos, que consi<strong>de</strong>ram todosos lugares valorizados e com conexões entre eles. Isso significa pensar,po<strong>de</strong>mos pensar essa estratificação social como uma re<strong>de</strong> em quenão há um centro. Existem múltiplas conexões sem pontos altos epontos baixos, com direito <strong>de</strong> circular livremente, não há um pontomais importante, todos os pontos são importantes e têm valor. Aor<strong>de</strong>m social po<strong>de</strong> ser pensada, sim, uma gran<strong>de</strong> re<strong>de</strong>, sem centro,em que a política pública da mobilida<strong>de</strong> seja fazer que todos possamcircular com ela sem que haja pontos <strong>de</strong>sconectados ou privilegiadoscom acesso muito protegido, dificultado ou selecionado.Penso que a nossa luta, a luta da <strong>Psicologia</strong>, seja <strong>de</strong>nunciar afalta <strong>de</strong> uma política pública da mobilida<strong>de</strong> humana formulada <strong>de</strong>mocraticamente,inclusiva, e que possibilite uma circulação tanto <strong>de</strong>cima para baixo quanto <strong>de</strong> baixo para cima, da direita para a esquerda,da esquerda para a direita, em todos os movimentos possíveis, <strong>de</strong>acordo com o investimento <strong>de</strong> cada um.No entanto, sabemos que as pontes <strong>de</strong> acesso nessa re<strong>de</strong> estãointerrompidas, estão obstruídas, as condições <strong>de</strong> passagem para umestrato social diferente inexistem, principalmente para aqueles queestão obrigados a se situar na margem da civilização. Se tomarmosos segmentos sociais, ou as populações que se <strong>de</strong>senvolvem à margemdas nossas cida<strong>de</strong>s, constataremos que se trata <strong>de</strong> uma massaque historicamente tem sustentado o po<strong>de</strong>r das elites, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a épocada escravatura. Nunca foram favorecidos pela relação capital xtrabalho, são pessoas que têm <strong>de</strong> dobrar o horário <strong>de</strong> trabalho, sairpela manhã, só po<strong>de</strong>m voltar à noite. Isso quando po<strong>de</strong>m, pois há68


vários morando na rua porque não conseguem voltar para casa, nãoconseguem se alimentar satisfatoriamente, não conseguem cuidardos seus filhos, não conseguem habitar em locais com condiçõesmínimas <strong>de</strong> infraestrutura e assistência, não há lugar para a convivência,para a família, há uma alienação cotidiana. A diferença emrelação ao tempo da escravidão é que agora seu feitor aten<strong>de</strong> pelonome <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m social, e a massa à margem continua seu trajeto,silenciada, pois o tempo que lhe foi concedido por essa política éo tempo <strong>de</strong> trabalhar. Desloca-se <strong>de</strong>moradamente do ponto on<strong>de</strong>po<strong>de</strong> morar para on<strong>de</strong> <strong>de</strong>verá trabalhar, trabalha, trabalha, trabalha.E <strong>de</strong>pois retorna para o lugar em que mora, on<strong>de</strong>, no pouco tempoque lhe resta, encosta o corpo, dorme, pois ainda com o dia escuro<strong>de</strong>verá voltar àquele lugar que chama <strong>de</strong> trabalho. Não tem tempopara participar, para questionar o sistema, produzir alternativas,não tem tempo político para quem gasta todo o tempo trabalhandopara receber um salário que pouco po<strong>de</strong> sustentar seus sonhos.A esses seres parece não haver alternativa a não ser o empacotamentosocial ao qual a sua subjetivida<strong>de</strong> tem que ser moldada,há um <strong>de</strong>terminismo histórico que os impe<strong>de</strong> <strong>de</strong> anunciar o seuprojeto <strong>de</strong> vida para além das suas questões psíquicas, não cabe noespaço na mobilida<strong>de</strong>, a re<strong>de</strong> não lhes é franqueada.É aí que se abre um lugar para a <strong>Psicologia</strong> como invenção ecomo intervenção na construção <strong>de</strong> políticas públicas para mobilida<strong>de</strong>humana. Ao consi<strong>de</strong>rar que o campo da mobilida<strong>de</strong> contém osefeitos das relações sociais e que essas são construídas e atravessadaspelos modos <strong>de</strong> subjetivação em suas expressões singulares, a <strong>Psicologia</strong>po<strong>de</strong> tecer sua intervenção operando como mediadora dosprocessos <strong>de</strong> cidadania e <strong>de</strong>svelando o véu encobridor das faláciastécnicas que não consi<strong>de</strong>ram subjetivida<strong>de</strong>s na construção das políticaspúblicas e <strong>de</strong>nunciando toda e qualquer forma <strong>de</strong> segregaçãosocial. E como po<strong>de</strong>mos realizar isso? Fazendo falar no plano coletivoaquilo que escutamos em nossos trabalhos, em nossos consultórios,em nossos fazeres, e que ultrapassa as questões psíquicas, no caso acaso, e não se encontra com elementos nas políticas públicas para69


sua inscrição no mundo da vida. Nós psicólogos <strong>de</strong>vemos ser atoresnessa cena, também anunciando o saber que nos vem sobre esse sofrimento,essa humilhação social, sobre as dificulda<strong>de</strong>s e as impossibilida<strong>de</strong>sda mobilida<strong>de</strong> humana. Os nossos casos a casos formam umcaldo <strong>de</strong> saber e temos <strong>de</strong> fazer esse caldo gerar política, temos <strong>de</strong>fazer falar o espaço público, ser voz, ser mediação, ser ponte, porqueessas pessoas não têm acesso, não têm como dizer, nós temos.Temos <strong>de</strong> trabalhar para que a política seja feita com a participação<strong>de</strong>sses sujeitos, temos <strong>de</strong> convidá-los a falar. Esse modo atualimpe<strong>de</strong> a assunção do sujeito, violentando a subjetivida<strong>de</strong>, e essa violênciaacaba retornando sobre a própria civilização. Não é por acasoque os cientistas sociais localizam na margem da assistência social – naausência <strong>de</strong> recursos e <strong>de</strong> políticas públicas que garantam essa civilida<strong>de</strong>e, todos os direitos instituídos – a fonte <strong>de</strong> violência urbana. Acessibilida<strong>de</strong>à cidadania é condição sine qua non para que a mobilida<strong>de</strong>humana reflita a expressão da subjetivida<strong>de</strong> <strong>de</strong> forma civilizada.Na mobilida<strong>de</strong> humana é que as diferenças se encontram, tangenciandocaminhos que têm origem e <strong>de</strong>stinos diversos. É precisosuportar o encontro com os produtos da civilização, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> pessoasque têm toda a acessibilida<strong>de</strong> facilitada até pessoas que não têmnenhum acesso e ainda necessitam fazer <strong>de</strong>sse espaço sua moradia,tais como as crianças em situação <strong>de</strong> risco social, os andarilhos, asfamílias <strong>de</strong>serdadas, ou seja, a população em situação <strong>de</strong> rua.Então, a <strong>Psicologia</strong> <strong>de</strong>ve intervir para mapear a cida<strong>de</strong>, não porseu traçado arquitetônico, mas pelos traços <strong>de</strong>senhados pelos processos<strong>de</strong> subjetivação na contemporaneida<strong>de</strong>. Ela <strong>de</strong>ve questionar ainiquida<strong>de</strong> do traçado arquitetônico na distribuição dos benefícios etentar compreen<strong>de</strong>r os processos <strong>de</strong> subjetivação que compõem essecaleidoscópio da mobilida<strong>de</strong> humana. O seu compromisso é participarda construção <strong>de</strong> uma re<strong>de</strong> social em que caibam diversas formas<strong>de</strong> subjetivação, produzidas com processos históricos que promovem,silenciosamente e violentamente, o massacre da singularida<strong>de</strong> em favor<strong>de</strong> interesses dominantes, engessando as diversas possibilida<strong>de</strong>s<strong>de</strong> expressão, <strong>de</strong> traçados subjetivos no espaço público, impedindo a70


mobilida<strong>de</strong> dos sujeitos, negando a complexida<strong>de</strong> da circulação humana.A <strong>Psicologia</strong> também é responsável por essa história e temos<strong>de</strong> preten<strong>de</strong>r produzir meios que articulem políticas públicas voltadaspara a mobilida<strong>de</strong> humana que possam reconstruir a cida<strong>de</strong>, refazer opacto social, instituir novos valores, produzir uma arquitetura em queo ponto <strong>de</strong> maior valor seja o ser humano. Estabelecer pontes e rotasque ativem o projeto <strong>de</strong> vida <strong>de</strong> cada um, introduzir a tranquilida<strong>de</strong>e a ternura na convivência com o outro.Como recriar a confiança, a segurança, o tempo <strong>de</strong> <strong>de</strong>scansar, <strong>de</strong>discutir política, <strong>de</strong> namorar nas praças, ruas e vilas? Por meio <strong>de</strong> umprojeto <strong>de</strong> vida civilizador, no qual o espaço público não mais promovaa imobilida<strong>de</strong>, a violência e seja o campo das trocas simbólicas, dainvenção e da arte <strong>de</strong> permitir a cada dia a experiência da liberda<strong>de</strong>.Para tanto é preciso escutar o sujeito, suas necessida<strong>de</strong>s, sonhos etraçados pela cida<strong>de</strong>. É preciso ter acesso. Para tanto será precisomobilizar, fazer circular em todos os cantos, que é preciso que todostenham acesso ao exercício da cidadania.Conquistar a credibilida<strong>de</strong> e a respeitabilida<strong>de</strong> social nessecampo da mobilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>verá ser consequência <strong>de</strong> uma intervençãopautada em lastros éticos <strong>de</strong> uma <strong>Psicologia</strong> comprometida social epoliticamente, com respeito absoluto aos direitos humanos.Em primeiro lugar, sempre as pessoas, a vida humana, <strong>de</strong>vemossempre buscar a vida na sua plenitu<strong>de</strong>, para que ela possa transbordarpelos poros das vias, das calçadas, das praças, proporcionandonosalegria, convívio e on<strong>de</strong> nunca mais possa se dizer dos Pedros pedreiros“agonizou no meio do passeio público, morreu na contramãotrapalhandoo tráfego”. E se, por fim, para isso buscarmos estímulos,pensemos nessas “rotas alteradas, nas vidas ceifadas, nas criançasmudas telepáticas, nas meninas cegas inexatas”.E, parafraseando o poeta, se me é permitido fazer, “nessas feridascomo rosas cálidas...”71


Rogério <strong>de</strong> Oliveira Silva 10Gostaria <strong>de</strong> buscar junto a vocês, neste momento, uma reflexãosobre on<strong>de</strong> essa história se localiza. Ora, nós temos como ponto <strong>de</strong>partida algumas mudanças que são históricas: a transformação <strong>de</strong>ssasocieda<strong>de</strong> e a colocação <strong>de</strong>la a serviço da construção <strong>de</strong> um <strong>de</strong>terminadomo<strong>de</strong>lo. Desse modo, quando falamos <strong>de</strong> algo anterior à mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>,estamos apontando a pré-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, uma socieda<strong>de</strong>que estava voltada para um <strong>de</strong>terminado objetivo, uma <strong>de</strong>terminadafinalida<strong>de</strong>, e, nesse sentido, o conjunto da socieda<strong>de</strong> se colocava aserviço <strong>de</strong> um <strong>de</strong>terminado objetivo, que era a salvação.A partir da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, esse conjunto da socieda<strong>de</strong> vai setransformar e vai estabelecer outro objetivo, é quando entra em cenaoutra busca, uma busca diferenciada da busca da salvação, <strong>de</strong> umarealização “pós-morte”. Nós passamos, como socieda<strong>de</strong>, a buscar umarealização em vida e, para conseguir alcançar essa realização em vida,buscaremos alcançar qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida. Daí nascem termos típicos<strong>de</strong> nosso tempo, como, por exemplo, o IDH (o Índice <strong>de</strong> DesenvolvimentoHumano). Para nós, é importante isso, porque, justamentenesse momento <strong>de</strong> transformação <strong>de</strong> toda uma cultura, <strong>de</strong> toda umasocieda<strong>de</strong>, entra em cena um novo mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> mobilida<strong>de</strong>, um mo<strong>de</strong>loque, com seus elementos, vai influenciar muito, atingindo nossopróprio pensamento do que vem a ser essa mobilida<strong>de</strong>. Consi<strong>de</strong>rofundamental distinguir essa mobilida<strong>de</strong> anterior (presente na prémo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>)da mobilida<strong>de</strong> que é trazida a partir da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>.10 Presi<strong>de</strong>nte do CRP–MG; coor<strong>de</strong>nador da Comissão Intersetorial <strong>de</strong> Controle e Prevenção<strong>de</strong> Aci<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> Trânsito da Cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Belo Horizonte. Representante do MovimentoNacional pela Democratização do Trânsito; Coor<strong>de</strong>nador da Circular – Núcleo <strong>de</strong> Referênciapara o Desenvolvimento Social e Humano; coor<strong>de</strong>nador do Curso <strong>de</strong> Capacitação <strong>de</strong> Profissionaispara Atuar com a Mobilida<strong>de</strong> Humana, visando à inclusão das pessoas com <strong>de</strong>ficiências ecom restrição <strong>de</strong> mobilida<strong>de</strong>; consultor do Instituto Brasileiro <strong>de</strong> Cooperação para a Promoçãodo Meio Ambiente e Publicida<strong>de</strong> dos Educadores <strong>de</strong> Trânsito e Transporte (Ibett). Consultor doCentro <strong>de</strong> Ensino Técnico Integrado para Formação <strong>de</strong> Educadores para o Trânsito (Centec).73


Existe um salto que é dado, em relação a <strong>de</strong>terminadas variáveis. Essesalto ocorre, como nos diz o Milton Santos, a partir do conceito <strong>de</strong>aceleração contemporânea, a partir <strong>de</strong> um lugar, <strong>de</strong> um distanciamentodo sujeito das intervenções, que ele faz em seu meio, em seuentorno. Esse distanciamento traz para ele uma dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>ros efeitos <strong>de</strong>ssa intervenção em seu meio e em seu entorno.Diferentemente das fases <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento da socieda<strong>de</strong> humana,que vão até a pré-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, em que o homem tinha com seumeio ou com seu entorno uma relação <strong>de</strong> amiza<strong>de</strong> e <strong>de</strong> hostilida<strong>de</strong>,em que ele reconhecia imediatamente em seu entorno o que ele lhetrazia <strong>de</strong> bom, mas também <strong>de</strong> ruim. Ou seja, o homem anterior àmo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> vivia com seu entorno uma relação <strong>de</strong> maior compreensãoimediata <strong>de</strong> fenômenos e dos impactos <strong>de</strong>sses em sua vida –tanto na sobrevivência quanto nas ameaças.Essa mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> trouxe também um sonho <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong>, assimcomo a expectativa <strong>de</strong> autonomia. É ela que introduz na socieda<strong>de</strong>todo o mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> transformação a partir <strong>de</strong> objetos, a partir da supremaciada técnica em relação ao tempo e ao espaço. E o objeto quemais encarna essa transformação, logicamente, é o objeto automóvel.O automóvel passa a ser então o objeto <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejo, passa a ser objeto<strong>de</strong> referência para todo o planejamento urbano, para todas as intervençõesna vida humana, como disse o Ricardo, e não somente naquestão física, mas também na social, na econômica e em tudo o quenós vivemos. Eu quero localizar com vocês esse salto, esse momento,para que nós possamos, então, em <strong>de</strong>corrência do tempo que nóstemos, dar um salto <strong>de</strong> mais ou menos uns noventa anos, pois não vaidar tempo <strong>de</strong> falar da evolução histórica como um todo, no máximopo<strong>de</strong>remos pontuar algumas questões que nos remetem ao título damesa, Políticas públicas para a mobilida<strong>de</strong>: <strong>de</strong>safios da <strong>Psicologia</strong>.Nesse sentido, também julgo importante localizar <strong>de</strong> que políticapública estamos falando. A política <strong>de</strong> que eu estou falando, e <strong>de</strong> umamaneira simplória e reducionista, é a busca da resolução pacífica <strong>de</strong>conflitos. E por ele ser um conceito <strong>de</strong>masiadamente amplo, restringepouco. Todavia, é possível <strong>de</strong>limitar um pouco mais, por exemplo es-74


tabelecer que a política consiste em um conjunto <strong>de</strong> procedimentosformais e informais que expressam relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r e que se <strong>de</strong>stinamà resolução pacífica dos conflitos quanto aos bens públicos.Essa ativida<strong>de</strong> política, com as suas <strong>de</strong>vidas saídas, geram todauma história que compreen<strong>de</strong> o conjunto das <strong>de</strong>cisões e ações relativasà alocação imperativa <strong>de</strong> valores. Vou repetir, compreen<strong>de</strong>m oconjunto das <strong>de</strong>cisões e ações relativa à alocação imperativa <strong>de</strong> valores.Uma política pública, então, tem um caráter estatal, sim, aindaque sua execução possa envolver outros agentes sociais, a socieda<strong>de</strong>civil e até agentes na iniciativa privada, como é o caso da comissãointersetorial <strong>de</strong> controle e prevenção <strong>de</strong> aci<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> trânsito da cida<strong>de</strong><strong>de</strong> Belo Horizonte (MG), on<strong>de</strong> as discussões – o que pensamos eapresentamos <strong>de</strong> proposta – não ficam restritas ao funcionário público,ao sujeito que está no estatal. As propostas são discutidas comdiversos atores <strong>de</strong> diversos segmentos da nossa socieda<strong>de</strong>, bem como<strong>de</strong> diversos setores. Entretanto, a execução da política, sim, tem umcaráter estatal. Ninguém intervém em uma cida<strong>de</strong>, como é o nossocaso em Belo Horizonte, produzindo transformações que não sejampor essa via – a via das políticas estatais.Por outro lado, as políticas públicas compreen<strong>de</strong>m um conjunto<strong>de</strong> <strong>de</strong>cisões e ações relativas à alocação imperativa <strong>de</strong> recursos, quesão materiais, técnicos, financeiros, logísticos, e uma política públicageralmente envolve mais do que uma <strong>de</strong>cisão e a obtenção <strong>de</strong> resultadosrequer diversas ações estrategicamente selecionadas paraimplementar as <strong>de</strong>cisões tomadas.Já uma <strong>de</strong>cisão política correspon<strong>de</strong> a uma escolha <strong>de</strong>ntre umleque <strong>de</strong> alternativas, conforme a hierarquia das preferências dosatores envolvidos, expressando em maior ou menor grau certa a<strong>de</strong>quaçãoentre os fins pretendidos e os meios disponíveis.Ora, a partir <strong>de</strong> uma distinção entre política pública e <strong>de</strong>cisãopública, po<strong>de</strong>mos pensar a serviço <strong>de</strong> quem essa política pública estáou preten<strong>de</strong> estar. No contexto <strong>de</strong> nossa discussão, se formos falar<strong>de</strong> uma participação cidadã, da garantia <strong>de</strong> direitos, dos direitos <strong>de</strong>todos, dos direitos difusos, do enfrentamento às violações e litigação75


da exclusão social – como trouxe o Ricardo –, essa política pública échamada a se colocar à disposição <strong>de</strong> populações or<strong>de</strong>nadas, promovendoa inclusão e a construção do empo<strong>de</strong>ramento e da emancipaçãodos cidadãos. Não estaremos falando <strong>de</strong> uma cidadania tutelada,muito menos <strong>de</strong> uma cidadania assistida, o foco quando trabalhamoscom essas políticas públicas, é na emancipação do cidadão e, paraessa emancipação ocorrer, é fundamental que o cidadão seja empo<strong>de</strong>rado.Nesse sentido, quando falamos <strong>de</strong> empo<strong>de</strong>ramento, nós daárea técnica, psicólogos, sociólogos, engenheiros, advogados, médicos,terapeutas ocupacionais, todas as profissões envolvidas com essatemática, <strong>de</strong>vemos saber que o nosso papel é limitado no que dizrespeito aos efeitos que nós buscamos. O que nós fazemos nessa área,in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente da profissão, não é capaz <strong>de</strong> produzir resultadosozinho, apenas com um único olhar. E <strong>de</strong> modo algum esses resultadosserão alcançados sem o empo<strong>de</strong>ramento dos cidadãos, dê-se onome que se quiser dar, no que diz respeito a esse empo<strong>de</strong>ramento,mas quando eu trouxe para este <strong>de</strong>bate o conceito, estou preocupadoem dizer que ele é o processo pelo qual indivíduos, comunida<strong>de</strong>s, organizaçõesobtêm controle sobre as <strong>de</strong>cisões e as ações relacionadasàs políticas públicas por meio da mobilização e da expressão <strong>de</strong> suasnecessida<strong>de</strong>s, portanto, espaço para expressão <strong>de</strong> interesses e visõesdiferentes <strong>de</strong> negociações e construção <strong>de</strong> consensos, assim como ofortalecimento do protagonismo dos setores excluídos.Esse empo<strong>de</strong>ramento a partir <strong>de</strong> uma provocação não po<strong>de</strong> servisto como <strong>de</strong>itar em frente a um trator, pura e simplesmente, oufazer barricadas para interromper uma via. É necessário, importante eimprescindível que se construa um empo<strong>de</strong>ramento <strong>de</strong>stas comunida<strong>de</strong>s,<strong>de</strong>sses sujeitos, <strong>de</strong>ssa população. Nesse sentido, os resultados<strong>de</strong> uma política pública voltada para a construção <strong>de</strong> uma mobilida<strong>de</strong>sustentável po<strong>de</strong>m vir a ser alcançados. Para enten<strong>de</strong>r o foco <strong>de</strong> nossaprofissão, assim como o <strong>de</strong> todas as outras profissões, precisamossaber qual o posicionamento que a ciência terá em relação a isso,porque, quando eu falo, falo do lugar da ciência e da profissão, não<strong>de</strong> um lugar <strong>de</strong>, pura e simplesmente, uma militância.76


Estamos aqui no seminário discutindo a <strong>Psicologia</strong> em relaçãoà mobilida<strong>de</strong>, ao espaço público, como direito <strong>de</strong> todos. Até a década<strong>de</strong> 80, tínhamos um posicionamento da ciência, aceito, que era oposicionamento da integração social, em que existia um mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong>or<strong>de</strong>m padrão, em que o mo<strong>de</strong>lo médico era um mo<strong>de</strong>lo colocadocomo imperativo, e um sujeito, para vir pertencer à socieda<strong>de</strong>, <strong>de</strong>veriase esforçar pessoalmente e unilateralmente, <strong>de</strong>veria ter uma adaptaçãopontual, a socieda<strong>de</strong> era vista como imutável e a inserção <strong>de</strong>ssaspessoas, parcial e condicionada.A partir da década <strong>de</strong> 80, é oficial, tanto nas cartas da ONUcomo a partir da carta <strong>de</strong> Ottawa, assim como em outros tantos documentos:o foco <strong>de</strong>ve ser o que está inclusive no código <strong>de</strong> ética dospsicólogos neste país, que é o foco da inclusão social. Essa ciênciaestá a serviço <strong>de</strong> um mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> socieda<strong>de</strong>, <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> inclusivaque é, acima <strong>de</strong> tudo, voltada para a diversida<strong>de</strong> humana. Omo<strong>de</strong>lo não é um mais um mo<strong>de</strong>lo médico, não é um mo<strong>de</strong>lo padrão,é um mo<strong>de</strong>lo social que aten<strong>de</strong> a essa diversida<strong>de</strong>. E o esforço paragarantir essa socieda<strong>de</strong> inclusiva não é <strong>de</strong> um sujeito, isoladamente,mas é um esforço coletivo, em que todos nós <strong>de</strong>vemos nos esforçarpara a<strong>de</strong>quar e produzir resultados correlacionados a uma inserçãototal e incondicional das pessoas à mesma socieda<strong>de</strong>, na garantia <strong>de</strong>seus direitos. Não existem – e não po<strong>de</strong>mos admitir – condicionantespara vir a pertencer a uma socieda<strong>de</strong> quando trabalhamos com a socieda<strong>de</strong>inclusiva. Nós temos <strong>de</strong>safios a ser superados, <strong>de</strong>sse mo<strong>de</strong>lo,<strong>de</strong>sses diversos modais <strong>de</strong> <strong>de</strong>slocamento e das transformações do espaçourbano. E as políticas públicas <strong>de</strong>vem consi<strong>de</strong>rar alguns fatoresquando estão a serviço <strong>de</strong>sse mo<strong>de</strong>lo. As relações sociais <strong>de</strong> produçãosão fatores que ela tem <strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rar, os novos contratos que se veemnessa história toda, os usuários, como se dá a utilização dos serviços,os usuários <strong>de</strong>sses <strong>de</strong>slocamentos, os diversos modos <strong>de</strong> utilização.O território e as intervenções no espaço público – como foi colocadoaqui pela colega –, bem como a legislação, são fundamentaispara que possamos construir políticas públicas. Sem legislação, nãotemos a garantia do empo<strong>de</strong>ramento do cidadão. Não caiam nessa77


história <strong>de</strong> que <strong>de</strong>itar em frente a trator funciona. Funciona, sim,para garantir a mobilização social. Mas nós <strong>de</strong>vemos transformar essahistória toda em uma política realmente pública. E uma política passaa ser pública <strong>de</strong> fato quando ela é totalmente absorvida pelo Estado,pela socieda<strong>de</strong> on<strong>de</strong> ela está inserida e, nesse sentido, a legislação éfundamental, porque é assim que o mundo se organiza.A mídia também é fundamental para promover uma política pública,para que evitemos a simplificação, essa publicida<strong>de</strong> enganosa ecoisas do tipo. O processo <strong>de</strong> educação, a obtenção <strong>de</strong> consciência e <strong>de</strong>ssenome que quisermos dar, é fundamental no processo <strong>de</strong> educação.A inovação tecnológica também. Enten<strong>de</strong>r essas inovações tecnológicaspassa a ser imprescindível para a promoção das políticas públicas, ouseja, não po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>scartar as inovações tecnológicas, mas colocá-las aserviço do objetivo que temos, <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolver uma socieda<strong>de</strong> realmenteem que os sujeitos, as pessoas, estejam acima na hierarquia <strong>de</strong> valores, enão subordinado e subalternizado em relação ao mo<strong>de</strong>lo econômico oua um objeto, como é o caso do objeto automóvel.Temos diversos temas em que po<strong>de</strong>mos nos inserir, como psicólogos.E isso é válido especialmente para aqueles que, <strong>de</strong> certo modo, preten<strong>de</strong>matuar nessa nova forma <strong>de</strong> construção da humanida<strong>de</strong>. Assim, po<strong>de</strong>mos,como outras tantas profissões, trabalhar com a questão do ambiente, temos<strong>de</strong>safios com relação a enten<strong>de</strong>r esse roubo do tempo, como disse oRicardo, para ter mais tempo para <strong>de</strong>scansar, namorar, estudar, produzir,pensar. Temos os diversos modos que estão transformando nossa vidanesse estresse terrível e, por isso, precisamos garantir essa discussão eessa inserção. Essa reflexão que eu trouxe para vocês é porque consi<strong>de</strong>rofundamental nosso papel. Por exemplo, na minha trajetória profissional,em que trabalho com essas questões, atuando com organizações, com opo<strong>de</strong>r público, buscando construir políticas e buscando, também, juntocom outras organizações, tais como as gran<strong>de</strong>s empresas, uma forma <strong>de</strong>fazer que eles se interessem por esse tema, para que eles também percebamque nós <strong>de</strong>vemos pensar em uma socieda<strong>de</strong> para daqui a 50, 100anos, e não no imediatismo que é colocado no dia a dia, procurando-seo tempo todo um resultado imediato.78


Essa coisa toda que a socieda<strong>de</strong> vive, e que <strong>de</strong> certa forma dámunição para que nossos representantes políticos façam uma escolhapolítica no sentido contrário até mesmo do seu próprio discurso,é o nosso gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>safio. Minha percepção como psicólogo acerca<strong>de</strong>sse tema é a <strong>de</strong> que quando falarmos da nossa profissão e danossa possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> atuação com relação e esse tema, é bom quelembremos o seguinte: na interlocução com outras profissões – interlocuçãoessa que se faz necessária e que é imprescindível –, existeuma mobilida<strong>de</strong> que caminha na horizontalida<strong>de</strong>, muitas vezes vistaapenas pela questão física acerca do território. Todavia, existe outramobilida<strong>de</strong> que produz seus efeitos em uma certa verticalida<strong>de</strong>, queenvolve, inclusive, o que tem impacto direto na produção das <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s.É como se nós tivéssemos uma sanfona em um sentido eoutra em outro sentido. Nós – e eu, como profissional, compreendoassim – <strong>de</strong>vemos dialogar com outras profissões e construir uma percepção<strong>de</strong>ssa mobilida<strong>de</strong>, que se faz necessária para o <strong>de</strong>slocamento,nessa questão horizontal em que se discute a questão do meio físico.Mas minha contribuição maior é trazê-los também para compreen<strong>de</strong>ros efeitos que isso tem nessa história da verticalida<strong>de</strong>, nessa produçãodas <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s ou na superação <strong>de</strong>ssas <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s quese fazem tão necessárias. Vou trazer um exemplo para vocês.Lá em Belo Horizonte temos vários bairros na zona sul e os bairrosmais distantes, periféricos. E temos um corredor <strong>de</strong> transporteque abastece os bairros da zona sul. Se vocês se sentarem na praçaAfonso Arinos entre as 6 e as 8 horas, verão ônibus passando lotados,subindo para os bairros da zona sul. Ônibus lotados <strong>de</strong> mulheres. Essasmulheres vão trabalhar nas casas, nos apartamentos das pessoas,como cozinheiras, faxineiras, babás, arruma<strong>de</strong>iras e essas coisas todas.Nesse mesmo fluxo, tenho um contrafluxo, <strong>de</strong> um monte <strong>de</strong> veículosque <strong>de</strong>scem com uma pessoa só, vazios, e os ônibus também, no seuretorno, <strong>de</strong>scem vazios. E se você entrar nesse transporte público, que,em Belo Horizonte, não tem falha <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong>, é um transporte queaté tem uma qualida<strong>de</strong> razoável, encontrarão lá <strong>de</strong>ntro as pessoas emuma situação <strong>de</strong> falta <strong>de</strong> conforto, que não tem como ter, pois os co-79


letivos estão lotados. Boa parte da ausência <strong>de</strong> mais conforto e qualida<strong>de</strong>no transporte <strong>de</strong>corre não <strong>de</strong>ssas pessoas que estão lotandoesses ônibus, não <strong>de</strong>ssas mulheres nem dos empresários que queremoferecer esse transporte. O que ocorre é que, justamente, para que essesoutros usuários que <strong>de</strong>scem com seus carros vazios possam usaras vias públicas, é necessário que essas pessoas que vão cuidar dassuas casas venham ter as condições ina<strong>de</strong>quadas nesse transporte eque, consequentemente, tragam-lhes situações ruins <strong>de</strong> impacto emsua subjetivida<strong>de</strong>. Ou seja, para que uma quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> pessoas commaior po<strong>de</strong>r econômico tenha mais conforto, é necessários que outroconjunto <strong>de</strong> pessoas sofra. E isso nós não po<strong>de</strong>mos admitir. Este é umexemplo <strong>de</strong> nosso papel e <strong>de</strong> nosso <strong>de</strong>safio. Obrigado.80


Mesa - Relações sociais no contextourbano: o que a educação tem a vercom isso?Fabiano Contarato 11Deixo claro a todos que não quero que vocês me olhem comooperador do Direito tradicionalista ou positivista, napoleônico, convicto,extremado. Muito pelo contrário, o que pretendo é contribuirpara um aspecto mais crítico do que ocasiona esse processo legislativonas relações sociais como um todo, que vem ocasionar aci<strong>de</strong>ntes<strong>de</strong> trânsito com mais <strong>de</strong> 50 mil mortes por ano no Brasil.Note-se que é comum ouvirmos dizer que vivemos em um EstadoDemocrático <strong>de</strong> Direito, expressão inserida no artigo 1º da Constituição<strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong>, confirmada no artigo 5°, que diz: “Todos são iguais perante alei, sem distinção <strong>de</strong> qualquer natureza...”. Porém, essa é uma gran<strong>de</strong>falácia, uma hipocrisia da ida<strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rna. Que igualda<strong>de</strong> é essa estabelecidapela Constituição, se nós vivenciamos uma não oportunida<strong>de</strong>ao direito <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, que é consagrado como um direito social, comoum direito individual e coletivo do povo brasileiro. Nós vivenciamos osmédicos se posicionarem na função <strong>de</strong> semi<strong>de</strong>uses, escolhendo quemsobrevive e quem morre no sistema público <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>.A Carta Magna, ainda, consagra a todos o direito à educação,no entanto, nós vivenciamos os pais pernoitando noite a<strong>de</strong>ntro para11 Delegado <strong>de</strong> Polícia titular da Delegacia <strong>de</strong> Delitos <strong>de</strong> Trânsito do Estado do EspíritoSanto; professor <strong>de</strong> Direito Penal do curso <strong>de</strong> graduação em Direito da Univix e da Fabavi e dapós-graduação em Segurança Pública da Universida<strong>de</strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> do Espírito Santo (Ufes).81


conseguir uma vaga para o filho na escola pública. Ainda, assegurao salário mínimo digno capaz <strong>de</strong> suprir as necessida<strong>de</strong>s básicas dafamília, com saú<strong>de</strong>, educação, habitação, lazer, vestuário. Contudo,é notório que, apesar dos anseios revolucionários propostos no textoconstitucional, a situação do cidadão no seu dia a dia pouco se alteroucom o surgimento do Estado <strong>de</strong> Direito. Já dizia Nietzsche“É bom dizer logo duas vezes a mesma coisa, dando-lhe um pédireito e um pé esquerdo, pois que com uma perna só a verda<strong>de</strong> fica<strong>de</strong> pé, mas com duas ela po<strong>de</strong>rá andar e correr por aí”.Acredito que é preciso provocar a queda <strong>de</strong> máscara das instituiçõesque compõem o Estado, já que são os representantes dospo<strong>de</strong>res atuantes na socieda<strong>de</strong>. Entre elas, me perdoem: do Po<strong>de</strong>rJudiciário, do Ministério Público, da Or<strong>de</strong>m dos Advogados do Brasil,das polícias como um todo, do Legislativo, que são os corresponsáveispela efetivação dos direitos dos cidadãos, isto é, a aplicação do quefoi proposto no diploma constitucional, pois não basta, apenas queo preceito conste expressamente, porque isso, por si só, não assegurasua real eficácia, sua efetiva inserção no meio social como normacogente e produtora <strong>de</strong> efeitos sobre os cidadãos.Pois bem, o cidadão tem parte <strong>de</strong> sua liberda<strong>de</strong> restringida peloEstado, que assim o faz em troca <strong>de</strong> um convívio social pacífico emgrupo. Já dizia Cesare Beccaria: “A lei é a força colocada a serviço dasocieda<strong>de</strong> para o benefício <strong>de</strong> todos". Nesse contexto, ao analisar oCódigo <strong>de</strong> Trânsito Brasileiro (CTB), visualizamos a omissão por partedo Estado e ainda a intenção <strong>de</strong> beneficiar parcela ou classe social. Porém,essa omissão é mascarada, pois existe uma imposição <strong>de</strong> regras <strong>de</strong>condutas, <strong>de</strong> convivência em grupo, mas na verda<strong>de</strong> o que não existesão punições eficazes para os infratores. Em outros termos, o Estadobeneficia aquele que infringe as regras <strong>de</strong> trânsito, o que resulta nessacatástrofe que vem hodiernamente ceifando as vidas <strong>de</strong> mais <strong>de</strong> 50 milpessoas por ano e causando mutilação <strong>de</strong> mais <strong>de</strong> 400 mil.Então, nos questionamos, o CTB é fruto <strong>de</strong> que representativida<strong>de</strong>82


política? Quando se fala que os políticos nos representam, cometeseum gran<strong>de</strong> equívoco, porque o que se observa é que estes sãoefetivamente representantes <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminadas camadas sociais. Comisso, po<strong>de</strong>mos seguramente afirmar que os <strong>de</strong>legados elegem um <strong>de</strong>legadocomo <strong>de</strong>putado fe<strong>de</strong>ral, que irá lutar pelo interesse daquelacategoria. Os médicos elegem um dos seus, como senador, pararepresentá-los, e assim sucessivamente. Agora, a gran<strong>de</strong> massa dopovo brasileiro <strong>de</strong> <strong>de</strong>svalido, <strong>de</strong> <strong>de</strong>s<strong>de</strong>ntado, sem voz, sem vez, semteto, sem oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> emprego, essa não tem representativida<strong>de</strong>nenhuma. Essa camada da população recebe o reflexo das nossas leis.Entre elas, o que culmina com essa tragédia no trânsito, que as estatísticasapontam como cada vez mais crescente o número <strong>de</strong> vítimas.Quando Carl Benz, em 1886, inventou o veículo, talvez ele nãotivesse noção do problema que seria ocasionado na socieda<strong>de</strong>. Atualmenteo homem trava uma batalha por espaço, os automóveis e ospe<strong>de</strong>stres estão diariamente em conflito, sendo o automóvel o vencedor<strong>de</strong>ssa batalha. O carro vem conquistando cada vez mais espaçoe o pe<strong>de</strong>stre vem sofrendo um perigo cada vez mais acentuado emsua integrida<strong>de</strong> física, na sua saú<strong>de</strong>, mesmo diante da <strong>de</strong>terminaçãodo Artigo 144 da Carta Magna: “A segurança pública é <strong>de</strong>ver do Estado,direito e responsabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> todos, é exercida para a preservaçãoda or<strong>de</strong>m pública e da incolumida<strong>de</strong> das pessoas e do patrimônio”.Emerge da concepção do Estado <strong>de</strong> Direito que os maiores bensjurídicos a ser tutelados pela Lei são a vida, a saú<strong>de</strong>, a integrida<strong>de</strong> física.Fato notório <strong>de</strong> constatar ao analisarmos o código Penal, que primeiramenteprotegeu o direito à vida, como afirma no Artigo 121. Porém,o crime que tem a maior celerida<strong>de</strong> penal não é o homicídio, mesmosendo ele doloso, e sim os crimes contra o patrimônio. Comprovandomais uma vez que o legislador enaltece o patrimônio em relação àvida humana, contrariamente ao que promulgou a Carta Magna.É inconcebível falar que temos um Código <strong>de</strong> Trânsito que prevê11 crimes, sendo o crime <strong>de</strong> maior gravida<strong>de</strong> o homicídio, previstono Artigo 302: “praticar homicídio culposo na direção <strong>de</strong> veículo automotor”,que <strong>de</strong>termina uma pena que vai <strong>de</strong> dois a quatro anos e83


que po<strong>de</strong> chegar a seis anos <strong>de</strong> <strong>de</strong>tenção. Mas, ao interpretar a lei, aspessoas se assustam ao saber que temos uma lei que, diante <strong>de</strong> umaci<strong>de</strong>nte que cause a morte <strong>de</strong> uma ou várias pessoas no trânsito, ocondutor po<strong>de</strong>rá ser con<strong>de</strong>nado a até seis anos, mas não ficará nemum dia preso, uma vez que a Lei nº 9.503/97 garante liberda<strong>de</strong> a todosos brasileiros que cometerem crime no trânsito, isto é, ninguémno país é preso por crime <strong>de</strong> trânsito, o que gera a sensação <strong>de</strong> impunida<strong>de</strong>.Na verda<strong>de</strong>, não é nem sensação, é uma certeza da impunida<strong>de</strong>.Só quem tem em casa um filho tetraplégico sabe o que é isso.A necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> cuidados vinte quatro horas para estimular a urina,as fezes, para virar, para não formar escaras, um sofrimento diário.No Espírito Santo, como responsável na liberação <strong>de</strong> corpos dasvítimas <strong>de</strong> aci<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> trânsito, na Gran<strong>de</strong> Vitória, vivencio diariamenteo sofrimento das famílias e posso dizer que é dolorido liberar ocorpo <strong>de</strong> um filho para sua mãe. Foge à lei natural, uma mãe sepultaro filho. E sempre me <strong>de</strong>paro com seus questionamentos, que eu nãoposso respon<strong>de</strong>r, que quem <strong>de</strong>veria respon<strong>de</strong>r seria a bancada fe<strong>de</strong>ral<strong>de</strong> representação, que se diz do povo brasileiro, porque elas questionam:o motorista estava bêbado? O motorista não prestou socorro?Por que ele não vai ficar preso? E gera essa certeza, a da impunida<strong>de</strong>.Mas por que nossa lei é assim? Não tenho dúvida em afirmar que onosso Código <strong>de</strong> Trânsito contribuiu para esse caos, isso é pacífico.Nessa linha <strong>de</strong> raciocínio, po<strong>de</strong>mos concluir que a lei foi elaborada<strong>de</strong>ssa forma para proteger a classe média alta. Com base noperfil socioeconômico entre o motorista e a pessoa vitimada no trânsito,fica evi<strong>de</strong>nte essa reflexão. É flagrante a <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> do po<strong>de</strong>rsocioeconômico existente. Não querem ver os filhos da classe médiaalta atrás das gra<strong>de</strong>s. Por isso que nós vivemos em um país em que,em matéria <strong>de</strong> trânsito, se faz <strong>de</strong> conta.Revoltante é presenciar um condutor visivelmente bêbado dizendo:“Eu não vou fazer o bafômetro”. E você tem a certeza <strong>de</strong> queele está alcoolizado e que aquele fato vai gerar uma impunida<strong>de</strong> eque mais vidas são eliminadas e que mais pessoas estão sendo sequeladas,e nós brincamos <strong>de</strong> fazer <strong>de</strong> conta, pois essa é a realida<strong>de</strong>.84


Na Alemanha, é obrigatória, inclusive, a cessão do sangue. Aqui,nós vivemos uma falsa verda<strong>de</strong>. Pois ouvimos o jargão popular “Ninguémé obrigado a produzir prova contra si próprio”. Então, vejam bem,o Código <strong>de</strong> Trânsito é protecionista, porque foi feito para proteger aclasse média alta, assim como outras leis. Se verificarmos a populaçãocarcerária existente no país, veremos que a gran<strong>de</strong> massa é <strong>de</strong> pobres,negros e semianalfabetos. Quando os crimes que mais causam prejuízoà nação são os crimes <strong>de</strong> colarinho branco, são os crimes <strong>de</strong> sonegaçãofiscal, são os crimes contra a or<strong>de</strong>m tributária, são os crimes <strong>de</strong> corrupçãoativa, corrupção passiva, concussão, que chegam à pena <strong>de</strong>12 anos <strong>de</strong> reclusão e ninguém no sistema prisional está preso, emtermos percentualmente falando, <strong>de</strong> 0% a 100% preso.Decorre daí que o rigor da lei é aplicado a ladrões ou a autores<strong>de</strong> furto, <strong>de</strong> roubo, quando se ofen<strong>de</strong> uma vítima <strong>de</strong>terminada. Agora,quando se <strong>de</strong>svia uma verba da educação, em que uma universalida<strong>de</strong><strong>de</strong> pessoas é privada do acesso a este direito consagrado, aquia lei não pune com o rigor que <strong>de</strong>veria. Quando se <strong>de</strong>svia uma verbada saú<strong>de</strong>, não está se ofen<strong>de</strong>ndo uma vítima, é uma universalida<strong>de</strong> <strong>de</strong>pessoas que não terá acesso à saú<strong>de</strong>.O Código Penal, no Artigo 13 diz: “A omissão é penalmente relevantequando temos por lei obrigação <strong>de</strong> proteção, vigilância e cuidado”.Mas e nós? O que nós estamos fazendo efetivamente como agentes<strong>de</strong> transformação, para problematizar e buscar uma solução no intuito<strong>de</strong> alterar essa realida<strong>de</strong>? O que nós efetivamente temos a contribuir?Afinal, cabe a cada um <strong>de</strong> nós contribuir na alteração da lei, poisnão é concebível compactuar com a realida<strong>de</strong> “ninguém no Brasilestá preso por crime <strong>de</strong> trânsito”, sendo o único con<strong>de</strong>nado nos crimes<strong>de</strong> trânsito a família da vítima, que tem <strong>de</strong>smanteladas suas relaçõesafetivas, pois a tragédia afeta diretamente a estrutura familiar.Casais que se separam discutindo <strong>de</strong> quem foi a culpa pela morte dofilho, e os outros filhos acabam sendo abandonados pelos pais, poisestes só pensam naquele que não está mais presente.Eu atendo um pai e uma mãe que liberam o corpo hoje. Daqui atrês meses ela volta, eu pergunto: “Cadê seu marido?” Ela chora. Por85


que ela chora? Porque o Estado é burocrata. O Estado se preocupamais com a arrecadação fiscal, com o fortalecimento da indústria <strong>de</strong>multa, do que efetivamente com o ser humano. O Estado tem <strong>de</strong> passarpor um processo <strong>de</strong> humanização e socialização no atendimentoàs pessoas envolvidas em aci<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> trânsito.Infere-se, portanto, que o Estado se omite, primeiramente quantoà estrutura do sistema jurídico aplicado no caso <strong>de</strong> aci<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> trânsitoque geram vítimas. Segundo, que diante da situação fatídica doaci<strong>de</strong>nte, não há por parte do Estado apoio aos familiares das vítimas,nem psicológico nem social. Não há profissionais qualificados para realizarum acolhimento, não há assistentes sociais nem psicólogos. Nãoexiste uma assistência judiciária plausível, gratuita e aquela família queestá dilacerada pela perda do ente querido é <strong>de</strong>smantelada.Então, <strong>de</strong>vido às inúmeras vitimas e diante do clamor público, olegislador promulgou outra lei, que foi intitulada <strong>de</strong> “Lei Seca”. Maisuma vez, estamos diante <strong>de</strong> uma falácia. Isso porque o legislador proclamouuma tolerância zero na responsabilida<strong>de</strong> administrativa. Seanalisarmos a Lei Seca, veremos que <strong>de</strong> seca ela não tem nada, está é<strong>de</strong>sidratada, sem força, sem eficiência.Segundo a Lei Seca, o motorista que dirigir veículo automotorem via pública com qualquer concentração <strong>de</strong> álcool ou substância <strong>de</strong>efeito psicoativo, será penalizado com uma multa administrativa <strong>de</strong>quase mil reais e a suspensão da CNH por um ano.Note-se que a penalida<strong>de</strong> é aplicada em nível administrativo, pois, noaspecto criminal, o senso <strong>de</strong> responsabilida<strong>de</strong> é rompido, porque a aplicaçãoé diversa. Ao <strong>de</strong>terminar um critério objetivo, a quantida<strong>de</strong>, o legisladorcriou um critério para beneficiar alguns, os mais esclarecidos. Assim, osmenos instruídos, isto é, o pobre, ao ser abordado pela fiscalização policialserá impelido a soprar o bafômetro, pois caso contrário será punido por<strong>de</strong>sobe<strong>de</strong>cer o artigo 277 do CTB. O jurisdicionado, acatando a or<strong>de</strong>m econfirmando-se a concentração superior ao limite estabelecido, sofrerá osrigores da lei no aspecto administrativo e criminal. O afortunado diz quenão é obrigado a produzir prova contra si mesmo. Isso gera a certeza daimpunida<strong>de</strong>. Tal situação é uma falsa verda<strong>de</strong>.86


Po<strong>de</strong>-se, portanto, concluir que o condutor, ao dirigir veículo sobefeito <strong>de</strong> álcool, ocasionando aci<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> trânsito e sendo comprovada aembriaguez, terá essa conduta repercussão em várias esferas. A responsabilida<strong>de</strong>civil, pois terá <strong>de</strong> reparar o prejuízo daquele veículo, a responsabilida<strong>de</strong>administrativa, pois violou uma norma ao dirigir alcoolizado,consequentemente será aplicada multa <strong>de</strong> mil reais, suspensão da CNHe a retenção do veículo. E, ainda, a responsabilida<strong>de</strong> criminal, pois, aoinfringir a lei, será autuado em flagrante por dirigir veículo estando coma concentração <strong>de</strong> álcool superior ao limite permitido por lei, logo, seismeses a três anos <strong>de</strong> <strong>de</strong>tenção. Em síntese, um fato que gera três consequências<strong>de</strong> responsabilida<strong>de</strong>s. Porém, quanto à responsabilida<strong>de</strong> criminal,esta exige um critério objetivo que será tratado a seguir.Observamos que o legislador afirma que a infração administrativaao Artigo 165 do CTB po<strong>de</strong>rá ser caracterizada pelo agente <strong>de</strong> trânsitomediante obtenção <strong>de</strong> outras provas em Direito admitidas. O que vem aser isso? Bom, diz que se não for possível fazer o bafômetro ou o exameetílico e toxicológico, o agente <strong>de</strong> trânsito tem um po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> fazer, pormeio <strong>de</strong> um questionário, com quesitos. Vale mencionar, não é ao belprazer do agente. Este <strong>de</strong>verá fundamentar, obe<strong>de</strong>cendo critérios já preestabelecidos.Cabe ao agente verificar os olhos, a conjuntiva, hálito etílico,andar cambaleante, a voz pastosa, o sistema <strong>de</strong> coor<strong>de</strong>nação. Uma“análise” testemunhal, visível, que foge ao teste na própria técnica.Concluímos que neste ponto o legislador foi brilhante. Enfim,quanto ao critério da responsabilida<strong>de</strong> administrativa, cercou-se <strong>de</strong>meios para garantir a aplicação da norma, afinal trata-se <strong>de</strong> arrecadaçãopara o Estado. O jurisdicionado não po<strong>de</strong>rá se esquivar documprimento da lei, assim, <strong>de</strong>verá pagar a multa que lhe for imposta.Por quê? Porque o Código <strong>de</strong>termina: serão aplicadas essas penalida<strong>de</strong>sadministrativas... Por que não <strong>de</strong>terminou a aplicação <strong>de</strong> penalida<strong>de</strong>administrativa e criminal? Não! Portanto, a interpretação que seobtém do texto é que o legislador quis beneficiar alguns.Então, quanto à responsabilida<strong>de</strong> administrativa, que gera arrecadação,que é a carga tributária por meio das multas, o legisladornão permitiu brechas, foi eficiente. Mesmo o condutor negando-se87


a fazer o teste, o Estado autorizou lavrar o auto <strong>de</strong> infração. Em outrostermos, é o que está escrito: “Serão aplicadas as penalida<strong>de</strong>s eas medidas administrativas ao condutor que se recusar a submeterqualquer dos testes”. Diante da infração aplica-se a sanção, multa.Melhor seria se o legislador tivesse também aplicado esse raciocíniono caso da responsabilida<strong>de</strong> criminal. Aqui verificamos queo legislador se furtou, permitindo que houvesse brechas para que asanção não fosse <strong>de</strong>vidamente aplicada, ou seja, dois pesos e duasmedidas. Diante da omissão do legislador, resta aos aplicadores doDireito posicionar-se e agir no intuito <strong>de</strong> coibir tais absurdos. Todosos estudos comprovam que o condutor que dirige sob o efeito <strong>de</strong>álcool ou substâncias psicoativas tem seus reflexos reduzidos, mesmoestando sob efeito <strong>de</strong> pequenas quantida<strong>de</strong>s.Entendam que, no aspecto criminal, a conduta do ser humanono trânsito terá como consequência a tipificação se esse infringir umdos onze dispositivos que tratam dos crimes no Código. Desses onze,apenas dois são a título <strong>de</strong> culpa: artigos 302 e 303, respectivamenteo homicídio e a lesão, o restante caracteriza-se por meio do dolo.Cabe analisar aqui essa diferença <strong>de</strong> conduta, uma vez que é primordialpara a conclusão a que chegaremos adiante. Assim, iniciaremoscom a culpa. Nessa conduta, o agente não <strong>de</strong>sejava o resultado previsível,o agente <strong>de</strong>u causa ao resultado por imprudência ou negligência,imperícia. Já a conduta dolosa requer um pouco mais <strong>de</strong> <strong>de</strong>talhamentoe para tanto abordaremos as duas teorias adotadas pelo Código Penal.Primeiramente, <strong>de</strong>vemos analisar o artigo 18, I:I – doloso, quando o agente quis o resultado ou assumiu orisco <strong>de</strong> produzi-lo.Com base nessa premissa, observe que o legislador colocou umaconjunção alternativa “ou”. Portanto, mencionou na primeira parte odolo direto “doloso, quando o agente quis o resultado” – presente aquia teoria da vonta<strong>de</strong>. Logo, o agente quis o resultado. Já na segundaparte do inciso, incluiu o dolo indireto ou eventual “ou assumiu o risco88


<strong>de</strong> produzi-lo” – teoria do assentimento. Esse ponto é primordial para adiscussão, pois, estando cientes <strong>de</strong>ssa concepção, enten<strong>de</strong>remos o queo brilhante mestre Nelson Hungria <strong>de</strong>sejava ao citar a fórmula <strong>de</strong> Frank:“Seja como for, dê no que <strong>de</strong>r, em qualquer caso não <strong>de</strong>ixo <strong>de</strong> agir”.A caracterização do dolo eventual obe<strong>de</strong>ce a alguns critériosque serão exemplificados em virtu<strong>de</strong> da direção perigosa. Os artigos.306, 308, 309 e 311 do CTB (Lei nº 9.503, <strong>de</strong> 23/9/1997) criaram modalida<strong>de</strong>s<strong>de</strong> crimes que, antes <strong>de</strong> sua vigência, enquadravam-se nacontravenção <strong>de</strong> direção perigosa <strong>de</strong> veículo na via pública (art. 34 daLei <strong>de</strong> Contravenções Penais). Agora o excesso <strong>de</strong> velocida<strong>de</strong> configuracrime previsto no Artigo 311 do CTB, a embriaguez é prevista noartigo 306 do CTB, e caracterizam crimes pelo perigo <strong>de</strong> dano. Comoexemplo disso, po<strong>de</strong>mos citar o motorista bêbado em excesso <strong>de</strong> velocida<strong>de</strong>que atropela e mata. Vejamos, o condutor não quis o resultado,mas com seu comportamento assumiu o risco <strong>de</strong> produzi-lo.Logo a interpretação a ser aplicada é <strong>de</strong> crime <strong>de</strong> homicídio doloso.Conforme ensinamentos <strong>de</strong> Damásio E. <strong>de</strong> Jesus, no dolo eventual"o agente não busca o resultado, pois se assim fosse haveria dolodireto. Antevê o resultado e age. A vonta<strong>de</strong> não se dirige diretamenteao fim (o agente não quer o evento), mas sim à conduta, prevendoque esta po<strong>de</strong> produzir aquele (vonta<strong>de</strong> relacionada indiretamenteao evento). Percebe que é possível causar o resultado e, não obstante,realiza o comportamento. Entre <strong>de</strong>sistir da conduta e causar o resultado,este se mostra indiferente”.Partindo <strong>de</strong>ssa premissa, não é viável aplicar o artigo 302 doCTB, cuja sanção não inibe a ação dos infratores, sendo a pena <strong>de</strong>dois a quatro anos <strong>de</strong> <strong>de</strong>tenção, isto é, sem privação <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong>,sendo mais comum a aplicação, por parte do Judiciário, a multa, ouseja, o pagamento <strong>de</strong> cestas básicas. Outro fato que <strong>de</strong>ve ser revisto,pois essa pena não atinge os objetivos <strong>de</strong> preservar os interesses davítima reduzir a reincidência, favorecer a ressocialização do infrator,aten<strong>de</strong>ndo ao previsto no artigo 5º, XLVI, d.Melhor seria aplicar o artigo 121 do CPB, pois, diante <strong>de</strong> condutasamplamente reprováveis e que atentam contra a or<strong>de</strong>m, pois89


o condutor tem plena previsibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> que sua conduta perigosapo<strong>de</strong>ria gerar graves danos à coletivida<strong>de</strong>, entre eles a morte ou alesão <strong>de</strong> outros usuários da via. Assim, sendo a conduta do agenteirresponsável, <strong>de</strong>verá ter punição mais severa, que é assegurada noartigo 121, ocorrendo, assim, a privação <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong>, cuja pena é “reclusão<strong>de</strong> seis a 20 anos” e, ainda, sendo julgado pelo tribunal populardo júri, po<strong>de</strong>ndo pegar, inclusive, <strong>de</strong> 12 a 30 anos.O mesmo entendimento <strong>de</strong>ve ser aplicado quanto ao “racha” ou“pega”. Se o condutor realiza essa conduta, “racha”, que é disputa nãoautorizada por espírito <strong>de</strong> emulação. Evi<strong>de</strong>nte é que os participantesnão <strong>de</strong>sejam matar ninguém, porque seria um dolo direto, porémdurante a realização da conduta ocorre um atropelamento, tambémé evi<strong>de</strong>nte que os participantes assumiram o risco do resultado danoso.Mais uma vez, diz-se o crime doloso quando o agente quis oresultado ou assumiu o risco <strong>de</strong> produzi-lo.Com a lei seca o legislador dificultou a comprovação da embriaguez,pois anteriormente não havia nenhum quesito objetivo comohá hoje, exigia-se apenas estar o condutor sob influência <strong>de</strong> álcool.O quanto não era relevante, porém, ao exigir prova técnica <strong>de</strong> quantoestá sob efeito <strong>de</strong> álcool, criou-se uma barreira na aplicação dalei. Conduzir veículo automotor sob influência caracterizava crime,previsto no 306 do CTB. Então, sob influência não tinha quantida<strong>de</strong>,configurava-se crime e podia-se utilizar a prova testemunhal.Atualmente, <strong>de</strong> acordo com a lei seca, “Conduzir veículo automotorestando com concentração igual ou superior a seis <strong>de</strong>cigramas”.Diante da recusa do motorista a submeter-se ao teste etílico, comopo<strong>de</strong> a prova testemunhal afirmar que ele está com sete <strong>de</strong>cigramas,oito <strong>de</strong>cigramas, cinco <strong>de</strong>cigramas. Então, não cabe a prova testemunhale conclui-se que prevalece a impunida<strong>de</strong>, ficando o infrator ileso.É obrigatório o uso do bafômetro? A maioria diz que não eainda fundamenta: “Ninguém é obrigado a produzir prova contra sipróprio”, afirmando estar previsto na Constituição <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong>. Porém, oque está previsto é que todos são iguais perante a lei. Ninguém seráobrigado a fazer ou <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> fazer alguma coisa, senão em virtu<strong>de</strong>90


<strong>de</strong> lei. E existe uma lei que <strong>de</strong>termina o uso do bafômetro. O Código<strong>de</strong> Trânsito Brasileiro diz, no artigo 277: “Todo condutor <strong>de</strong> veículoautomotor, envolvido em aci<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> trânsito ou que for alvo <strong>de</strong> fiscalização<strong>de</strong> trânsito, sob suspeita <strong>de</strong> dirigir sob a influência <strong>de</strong> álcoolserá submetido a testes <strong>de</strong> alcoolemia”. O verbo ser foi utilizado comtamanha imperativida<strong>de</strong> que não é po<strong>de</strong>rá ser.Na verda<strong>de</strong>, essa frase usualmente alegada pelos infratores surgiuda expressão latina, que alegam estar presente no pacto <strong>de</strong> São Joséda Costa Rica, que foi recepcionado pelo Brasil. Porém não diz que“ninguém será obrigado a produzir prova contra si próprio”, o que eleprevê no artigo 8º, II, g é o “direito <strong>de</strong> não ser obrigado a <strong>de</strong>por contra simesma, nem <strong>de</strong> <strong>de</strong>clarar-se culpado”, até porque em 1969 o contextoera outro, prevalecia o regime ditatorial, o abuso <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r pelas autorida<strong>de</strong>s,havia o resquício da época da obtenção da verda<strong>de</strong> por parte datortura, principalmente, em todo o mundo. Não só na Rússia, nos EstadosUnidos, mas no Brasil, era uma realida<strong>de</strong>. O que já não é mais possívelem um “Estado Democrático <strong>de</strong> Direito”. Então, buscou-se em umtratado internacional a interpretação <strong>de</strong>ssa fala, criando esse jargão.Não se trata aqui <strong>de</strong> estabelecer uma infantil discussão em torno dalegalida<strong>de</strong> da aplicação <strong>de</strong>ssa alegação, mas <strong>de</strong> <strong>de</strong>monstrar os reflexospráticos <strong>de</strong>sta tese absolutamente <strong>de</strong>spida <strong>de</strong> fundamentação jurídica.A Constituição prevê ao preso o direito a permanecer calado, direitoao silêncio (CF/88, art. 5°, LXIII), mas não confere a ele o direito <strong>de</strong>não soprar o bafômetro. Isso é uma gran<strong>de</strong> heresia, porque o sistemaviário é um direito social, é um direito coletivo. O nome da primeirahabilitação é permissão. O Estado é um permissionário.Na Espanha não existe o direito <strong>de</strong> dirigir, e sim, o privilégio <strong>de</strong>dirigir. Então, o Estado diz: eu te dou a permissão. Agora, sempre queeu suspeitar, você será submetido a testes.Traçando um paralelo, se uma mulher ficasse grávida e ela entrassecom uma ação investigatória <strong>de</strong> paternida<strong>de</strong> contra o suposto pai eo pai se negasse a fornecer o sangue para exame <strong>de</strong> DNA, o juiz não po<strong>de</strong>riapresumir que ele era o pai, nem obrigá-lo a submeter-se ao teste.Logo, a mulher <strong>de</strong>veria buscar outra prova <strong>de</strong> aquele homem era o91


pai. Mas o STJ sumulou quanto à ação <strong>de</strong> investigação <strong>de</strong> paternida<strong>de</strong>.(Súm. 301. Em ação investigatória, a recusa do suposto pai a submeterseao exame <strong>de</strong> DNA induz presunção juris tantum <strong>de</strong> paternida<strong>de</strong>.Se realizarmos uma analogia, é possível aplicarmos a súmula 301do STJ ao trânsito, diante da recusa do condutor a submeter-se aoteste do bafômetro, presume-se que ele fez uso <strong>de</strong> substância alcoólicaou <strong>de</strong> substância psicoativa que <strong>de</strong>termina <strong>de</strong>pendência, assim, seráautuado em flagrante respon<strong>de</strong>ndo pelo crime do Artigo 306 do CTB,com uma pena <strong>de</strong> 6 meses a 3 anos.Portanto, diante do que foi exposto chegamos a uma conclusão:os direitos fundamentais <strong>de</strong>vem se sobrepor aos direitos individuais.Nós não temos caminho novo, o que temos <strong>de</strong> novo é o jeito <strong>de</strong> caminhar.O operador <strong>de</strong> Direito <strong>de</strong>ve mesmo diante das dificulda<strong>de</strong>s mobilizar-seno intuito <strong>de</strong> modificar a realida<strong>de</strong>, não <strong>de</strong>ve se conformar, nãopo<strong>de</strong>mos ser positivistas.Brilhantemente nos ensina Alexandre <strong>de</strong> Moraes: “Os direitos humanosfundamentais, entre eles os direitos e garantias individuais ecoletivos consagrados no Art. 5.º da CF, não po<strong>de</strong>m ser utilizados comoum verda<strong>de</strong>iro escudo protetivo da prática <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s ilícitas, tampoucocomo argumento para afastamento ou diminuição da responsabilida<strong>de</strong>civil ou penal por atos criminosos, sob pena <strong>de</strong> total consagraçãoao <strong>de</strong>srespeito a um verda<strong>de</strong>iro Estado <strong>de</strong> Direito”.O sistema viário do trânsito possui um enfoque legislativo e principalmenteno Art. 76 do Código <strong>de</strong> Trânsito, o enfoque foi a educação,<strong>de</strong>terminando que as escolas <strong>de</strong> ensino fundamental, médio e superiorintroduzam na gra<strong>de</strong> curricular Trânsito e Cidadania, o que, porém, nãoestá sendo aplicado – o Código já vai fazer 12 anos e nada foi feito. Apartir do momento em que a socieda<strong>de</strong> enten<strong>de</strong>r que faz-se necessáriohaver respeito mútuo com relação às normas coletivas que garantem aliberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> circulação <strong>de</strong> cada um, muita coisa mudará.Muitos países passaram por situação semelhante, e mostramque é possível reverter completamente esse quadro, mas isso exigeuma verda<strong>de</strong>ira cultura <strong>de</strong> segurança, que seja compartilhada portoda a população. Uma cultura que leve os usuários a mudar seu92


comportamento, os técnicos a implantar uma infraestrutura mais segurae os políticos a tomar as <strong>de</strong>cisões mais apropriadas, porque, secontinuarmos sendo omissos diante <strong>de</strong>ssa situação, vamos continuarsendo meros espectadores ou integrantes das estatísticas e eu, emparticular, continuarei liberando os corpos dos nossos filhos, <strong>de</strong> manhã,<strong>de</strong> tar<strong>de</strong> <strong>de</strong> noite e <strong>de</strong> madrugada.Eduquem as crianças e não seránecessário castigar os homens.PitágorasReferênciasBECCARIA, Cesare. Dos <strong>de</strong>litos e das penas. Tradução por Torrieri Guminarães.São Paulo: Hemus, 1983. p. 15.BRASIL. Código Penal Brasileiro – Decreto-Lei nº 2.848, <strong>de</strong> 7 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro<strong>de</strong> 1940.BRASIL. Código <strong>de</strong> Trânsito Brasileiro – Lei nº 9.503, <strong>de</strong> 23 <strong>de</strong> setembro<strong>de</strong> 1997.BRASIL. Lei nº 11.705, <strong>de</strong> 19 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 2008.CAPEZ, Fernando. Curso <strong>de</strong> Direito Penal. 7. ed. São Paulo, Saraiva, 2007.Calendário histórico, http://www.dw-world.<strong>de</strong>/dw/article/0,,420668,00.html, disponível em 24/5/2010.BRASIL. Decreto nº 6.488, <strong>de</strong> 19 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 2008.93


HOBBES, Thomas. Leviatã – ou Matéria, Forma e Po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> um EstadoEclesiástico e Civil. Trad. Alex Marins. São Paulo: Martin Claret, 2002.JESUS, Damásio E. <strong>de</strong>. Direito Penal; parte geral. 26. ed. São Paulo,Saraiva 2003.OEA, Convenção Americana sobre Direitos Humanos - Pacto <strong>de</strong> SãoJosé da Costa Rica, 1969. Disponível em: www.planalto.gov.br/ccivi/_03/<strong>de</strong>creto/1990-1994/anexo/and678-92.pdf94


Salete Valesan Camba 12Um tema nada simples. A questão das relações sociais no contextourbano e o que a educação tem a ver com isso. Eu já tinha umaprovocação do espaço <strong>de</strong> algumas cida<strong>de</strong>s que não respeitavam os seussujeitos cidadãos, como moradores, seus direitos e seus <strong>de</strong>veres. Todosujeito cidadão tem direito aos espaços públicos, que os espaços públicossão os governos, todos os prefeitos, os vereadores, os <strong>de</strong>putados.Mas o espaço público são os espaços físicos da cida<strong>de</strong>, são os nossosespaços, os nossos tempos humanos e sociais. São esses tempos e essesespaços compreendidos e entendidos pelos sujeitos e que construírama história e o local que fazem a diferença <strong>de</strong> que direito e que <strong>de</strong>veresnós estamos falando. A questão das relações sociais, em meu entendimento,tem todo esse processo dos sujeitos, das cida<strong>de</strong>s, mas tambémestá muito focada na capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> a socieda<strong>de</strong> civil, organizada ounão, construir a história, provocar a transformação. A mudança da história,em algum momento, é construída por um <strong>de</strong> nós e, em outrosmomentos, é recebida como herança por nossos <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes.E a questão da educação, que é posta aqui como um <strong>de</strong>safio: oque a educação tem a ver com isso, um pouco <strong>de</strong> educação e <strong>de</strong> on<strong>de</strong>nós estamos falando. Como está posta aqui, ela não está dizendo exatamentenada da escola, mas também não está <strong>de</strong>ixando <strong>de</strong> dizer. Aeducação formal é um <strong>de</strong>ver do Estado, direito <strong>de</strong> todas as cidadãs e <strong>de</strong>todos os cidadãos, ela <strong>de</strong>ve ser <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong>, não só física, estrutural,<strong>de</strong> curriculum, mas especialmente social e humana, e não remetidanunca à condição <strong>de</strong> mercadoria, porque senão eu não estou falando<strong>de</strong> educação, educação como direito, mas <strong>de</strong> um objeto que vendopara alguém, que o usa da forma que lhe convier. Educação não é umobjeto, é um direito, um direito <strong>de</strong> todo cidadão. E direito à educaçãonão formal, que se dá nos espaços também das escolas, nos espaços ex-12 Mestre em Educação, é psicopedagoga e pedagoga. Diretora <strong>de</strong> Relações Institucionaisdo Instituto Paulo Freire e membro do <strong>Conselho</strong> Consultivo do Instituto <strong>de</strong>Pesquisa, Educação e Cultura (Ipec).95


tracurriculares <strong>de</strong> conteúdo, espaços <strong>de</strong> relações, mas também se dá organizadapela socieda<strong>de</strong> civil, pelos movimentos sociais, pelas pastorais,pelas campanhas, por tudo que já conhecemos. A educação em todosos campos, porque se nós estamos aqui <strong>de</strong>safiados a pensar no espaçourbano ou no espaço rural, espaço esse em que o sujeito vive, ela se dáem todos os campos, em todos os tempos e também ao largo da vida.No campo da música, então, nós po<strong>de</strong>ríamos dizer: “Alguma coisaacontece no meu coração”. Acontece no meu coração, na avenida SãoJoão, por exemplo, que é o espaço da cida<strong>de</strong>, da rua, que é embebido <strong>de</strong>história <strong>de</strong> quem passou por lá, <strong>de</strong> quem construiu aquele lugar. É construídono tempo e no espaço, já foi uma história, hoje é outra história,tem outro jeito, outra cara. Tanto o espaço físico quanto os sujeitos quelá vivem. Se algum dia o espaço já foi glamouroso, hoje po<strong>de</strong>mos acharque não é tanto mais, mas por quê? Porque não é mais a classe alta, nãoé mais a elite que circula lá, é a classe popular. Mas qual é o problema?On<strong>de</strong> está o problema? Começo a pensar no espaço da cida<strong>de</strong> comoespaço educador. São Paulo a<strong>de</strong>riu ao conceito <strong>de</strong> cida<strong>de</strong> educadora emum termo <strong>de</strong> compromisso que diz que a cida<strong>de</strong> em todos os seus segmentos,em todas as suas secretarias, em todo o seu plano diretor, precisacuidar da cida<strong>de</strong> como lugar <strong>de</strong> aprendizagem. Então, educação ou espaçoeducador não é um <strong>de</strong>ver do professor ou da escola, é um <strong>de</strong>ver <strong>de</strong>todo sujeito que vive naquele lugar ou naquele contexto.A cida<strong>de</strong> educadora jamais permitirá continuar cantar: “Moroon<strong>de</strong> não mora ninguém, on<strong>de</strong> não passa ninguém, on<strong>de</strong> não vive ninguém.É lá on<strong>de</strong> moro e eu me sinto bem”, porque, se eu estou aquitratando das relações sociais, tratando do espaço urbano, tratando dahistória do sujeito, da construção, da intervenção <strong>de</strong>le nessa cida<strong>de</strong>que tem o <strong>de</strong>ver <strong>de</strong> ser a cara <strong>de</strong>ssa pessoa. Eu me sinto bem quandonão estou com ninguém que me faz sujeito pleno <strong>de</strong> direitos e <strong>de</strong> <strong>de</strong>veres,que dialoga, que vive e que convive em espaços públicos e privados.Pensar que me sinto melhor on<strong>de</strong> não tem ninguém! On<strong>de</strong> está a nossaconcepção, como diz o professor, <strong>de</strong> ser humano, <strong>de</strong> humano? On<strong>de</strong>ficou, em nossa história, a valorização do humano da humanida<strong>de</strong>, dasensibilida<strong>de</strong> e <strong>de</strong> nossa capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> continuar amando, sonhando e96


ealizando? Nessa questão do cuidado do sujeito, do cuidado do humano,do cuidado da história e <strong>de</strong> permitir sonhar uma <strong>de</strong> nossas cida<strong>de</strong>s,que também fazem parte da re<strong>de</strong> educadora, tem uma experiência queestá sendo ampliada nesses anos, que é o bairro escola, pensando obairro e a escola, a escola no bairro e o bairro na escola como espaços<strong>de</strong> aprendizagem e <strong>de</strong> relações sociais para além do espaço da sala <strong>de</strong>aula. Então o que o bairro propicia ao sujeito aprendiz, às nossas criançasque estão ali naquele momento, que torna possível que tenhamum processo <strong>de</strong> ir e vir e, ao mesmo tempo, que elas interajam com suaeducação formal, mas também com a construção da sua história <strong>de</strong>vida como sujeitos históricos que vão mudar a realida<strong>de</strong> em que vivem.E uma das gran<strong>de</strong>s preocupações <strong>de</strong>ntro do bairro escola era a questãoda mobilida<strong>de</strong>, , não só a mobilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> as crianças saírem do espaçoda escola para frequentar outro espaço, mas a mobilida<strong>de</strong> inclusive dotempo e do espaço que o próprio sujeito faz <strong>de</strong>ntro da escola, <strong>de</strong>ntroda sala <strong>de</strong> aula, na relação com o outro, no respeito ao espaço do outroe no olhar crítico para observar o que é o que naquele trajeto ou comofoi construído seu bairro – o outro sujeito que construiu antes <strong>de</strong>le tevea preocupação <strong>de</strong> pensar no humano que está no seu trajeto <strong>de</strong> ir e vir.Tem calçada? A cida<strong>de</strong> é pensada para o carro? A cida<strong>de</strong> é pensada parao sujeito? A cida<strong>de</strong> é pensada para a bicicleta? Qual o tamanho <strong>de</strong>ssacida<strong>de</strong>? Qual o tamanho <strong>de</strong>sse bairro? O que tem lá que precisa mudar?Em São Paulo temos um evento <strong>de</strong> outra experiência, que é a escolabairro, na Vila Madalena: o processo todo foi organizado pela EscolaAprendiz, que é uma ONG, e com os moradores e os sujeitos das escolaspúblicas e privadas e os moradores das vilas, das ruas populares, das casasda Vila Madalena. Como em todo bairro <strong>de</strong> São Paulo, temos todasas classes misturadas. E a integração que eles conseguiram fazer entreo espaço público, o espaço privado e as relações sociais que se dão ounão se dão nesses espaços foi fundamental para a transformação damobilida<strong>de</strong> do bairro. Quem não conhece ainda e tiver um dia a oportunida<strong>de</strong><strong>de</strong> conhecer, inclusive vilas e becos que estavam impedindo otrajeto por conta da segurança pública – privada, porém pública, porqueela <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> alguns e não todos –, espaços que foram liberados e97


abertos. Hoje os sujeitos que transitam ou que vivem por ali circulamentre a arte, as ruas e a calçada, garantindo assim que o processo <strong>de</strong>mobilida<strong>de</strong> também seja um processo <strong>de</strong> ensino-aprendizagem.No Instituto Paulo Freire tratamos <strong>de</strong> várias maneiras <strong>de</strong> espaçoda aprendizagem <strong>de</strong> tempo integral ou espaço da educação integralou espaço <strong>de</strong> horário integral. Essa coisa da educação em tempo integral,do horário integral em todos os tempos, em todos os lugares, elanão tem mais nada do que simplesmente a valorização da vida e <strong>de</strong>como nós <strong>de</strong>s<strong>de</strong> pequenos apren<strong>de</strong>mos a construir e a escrever nossocontexto <strong>de</strong> vida e nossa história. Se temos oportunida<strong>de</strong>s diferenciadas,vamos ter um olhar mais apurado e uma necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> não maisestar sozinho porque estou bem, mas <strong>de</strong> estar com o outro porqueestou bem e, para estar com outro, para que todos estejam bem, eu fuicampo do direito, porque espaço público é fundamental. E, olhandopara a frente, se formos fazer uma análise <strong>de</strong> contexto, especialmentenesta cida<strong>de</strong> on<strong>de</strong> estamos, provavelmente a gente <strong>de</strong>sanime, masolhar para frente e dizer que além do horizonte <strong>de</strong>ve ter “algum lugarbonito para viver em paz, on<strong>de</strong> eu possa encontrar a natureza e a alegriae felicida<strong>de</strong> com certeza”. Isso não é menos importante do que asnossas teses <strong>de</strong> mestrado e doutorado ou nossas pesquisas científicasou nossa educação da Universida<strong>de</strong>. Isso não é menos importante. Deque adianta tudo isso se não temos o contexto <strong>de</strong> vida que nos faz serseres humanos mais completos, estar em um ambiente mais completo?Em São Paulo, provocados por tudo isso, por essa indignação do<strong>de</strong>srespeito às leis, ao espaço e ao sujeito, criamos, há mais ou menostrês anos, um movimento que se chama Movimento Nossa São Paulo,que, além <strong>de</strong> ter um grupo <strong>de</strong> trabalho específico <strong>de</strong> mobilida<strong>de</strong>em que cuidamos do Dia sem Carro na Cida<strong>de</strong>, uma campanha bastanteforte contra as empresas petrolíferas, por causa do petróleo edo combustível limpo. Trabalhamos com a política pública, cobrandoe monitorando os governos local, estadual e municipal sobre o espaçodo pe<strong>de</strong>stre, as ciclovias, os espaços das praças públicas e <strong>de</strong> lazer,para que sejam públicos, que possamos ter esses espaços públicos. Nóstemos também incidência em leis e políticas públicas <strong>de</strong> forma direta,98


tanto no monitoramento como no acompanhamento. Tivemos um ganhomuito gran<strong>de</strong>, que foi a lei orgânica do município, que faz e obrigao po<strong>de</strong>r público e o governo local a construir um plano <strong>de</strong> metas, atorná-lo público e cumpri-lo, porque o sujeito cidadão organizado vaimonitorá-lo. Temos também um espaço que se chama Espaço Municípioque Educa. Não é mais na cida<strong>de</strong>, estamos falando <strong>de</strong> um espaçourbano, mas o município é composto pelo espaço urbano e o espaçorural do sujeito pleno <strong>de</strong> direitos, porque lhes são permitidos, e do sujeitopleno <strong>de</strong> direitos que não tem, porque não lhes são permitidos.Dentro <strong>de</strong>sse espaço tem outro, que é o espaço virtual, o espaço dasrelações sociais que se dão para quem não consegue estar presente.Todas as cida<strong>de</strong>s gostariam <strong>de</strong> ser e <strong>de</strong> ter espaços melhores, <strong>de</strong> sermelhores, construídas por sujeitos e indivíduos, eles plenos <strong>de</strong> direitosou não, e melhores também.Tem outra musiquinha que nos remete a outra cida<strong>de</strong>, que nãoSão Paulo, mas na qual acho que gostaríamos <strong>de</strong> estar, não exatamentenaquela a que a canção se refere, que diz assim: “Cida<strong>de</strong> maravilhosa,cheia <strong>de</strong> encantos mil, cida<strong>de</strong> maravilhosa, coração do meu Brasil”.Cida<strong>de</strong> maravilhosa – sem mobilização, sem organização social, semmuita pesquisa, sem muito estudo e sem muito entendimento da legislação,para que não sejamos enganados por ela. Se nessa fala todos nóspudéssemos sair com o propósito <strong>de</strong> pensar essa cida<strong>de</strong> justa e sustentável,talvez não mais para nós, e não para hoje, mas no tempo, daquia alguns anos, nossos her<strong>de</strong>iros estarão aqui, discutindo este tema queé fascinante, porém, em nossa ótica, ainda triste, que é a questão doespaço público e o direito do cidadão <strong>de</strong> ir e vir e <strong>de</strong> se relacionar como outro e com os passos da cida<strong>de</strong>.99


Cláudia Aline Monteiro 13É impossível participar <strong>de</strong> um evento como esse e falar <strong>de</strong>sse assuntosem lembrar que eu comecei profissionalmente esta abordagem em 1995,com o professor Reinier Rozestraten, na Universida<strong>de</strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> do Pará (UFPA).Foram cinco anos trabalhando com ele e eu me lembro <strong>de</strong> duas palavras bemmarcantes daquela convivência: uma é Educação, ele falava <strong>de</strong>mais nisso, ea outra é interdisciplinarida<strong>de</strong>. Mais tar<strong>de</strong>, eu tive o prazer <strong>de</strong> fazer um doutoradocom o professor Hartmut Günther, da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Brasília (UnB),que é da área ambiental e discute essas questões no contexto urbano, oque me fez ampliar mais ainda essa discussão. Então, é um enorme prazercompartilhar esta mesa interdisciplinar e falar sobre educação no contextourbano. É um <strong>de</strong>safio, pois a nossa comunicação nem sempre é fácil.O trânsito urbano é um ambiente multidimensional <strong>de</strong> interaçõessociais, cujas questões <strong>de</strong>vem ser abordadas <strong>de</strong> forma interdisciplinarpor equipes multiprofissionais, formadas em uma perspectiva <strong>de</strong> responsabilida<strong>de</strong>social e sustentabilida<strong>de</strong> da qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida nas cida<strong>de</strong>s,que, <strong>de</strong> acordo com Ribeiro e Vargas (2004):(...) vai além dos conceitos <strong>de</strong> salubrida<strong>de</strong>, saú<strong>de</strong>, segurança, bemcomo das características morfológicas do sítio ou do <strong>de</strong>senhourbano. Incorpora, também, os conceitos <strong>de</strong> funcionamento dacida<strong>de</strong> fazendo referência ao <strong>de</strong>sempenho das diversas ativida<strong>de</strong>surbanas e às possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> atendimento aos anseios dosindivíduos que a procuram (Vargas, 1999). (p. 17)Isso ocorre em função <strong>de</strong> atribuirmos juízo <strong>de</strong> valor às condições<strong>de</strong> qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida oferecidas pela cida<strong>de</strong>, consi<strong>de</strong>rando nossos inte-13 Psicóloga, especialista multidisciplinar em Trânsito, mestra em <strong>Psicologia</strong>: Teoria ePesquisa do Comportamento, doutora em <strong>Psicologia</strong>, professora <strong>de</strong> cursos <strong>de</strong> graduação e <strong>de</strong>pós-graduação, pesquisadora, membro do Núcleo Docente Estruturante (NDE), conselheira doCentro <strong>de</strong> Ciências Biológicas e da Saú<strong>de</strong> e membro titular do Comitê <strong>de</strong> Ética em Pesquisa daUniversida<strong>de</strong> da Amazônia.101


esses, objetivos e expectativas (RIBEIRO, VARGAS, 2004). Assim, a concepçãodos habitantes <strong>de</strong> uma cida<strong>de</strong> sobre o que seja trânsito seguro e comqualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> do quanto suas peculiarida<strong>de</strong>s são atendidas.Segundo Monteiro (2004):Por isso mesmo, o conceito <strong>de</strong> comportamento ina<strong>de</strong>quado<strong>de</strong>ve incluir os seus efeitos tanto sobre quem o emite quantosobre os outros participantes. É um conceito que <strong>de</strong>ve incluirobjetivos individuais e coletivos. (p. 20).Além disso, a compreensão das situações <strong>de</strong> trânsito passa, muitasvezes, mais por questões valorativas e epistemológicas do que técnicas,ou <strong>de</strong> certo e errado. Sendo um ambiente <strong>de</strong> interações sociais,o trânsito <strong>de</strong>ve ser analisado a partir <strong>de</strong> um caráter holístico, tal qual<strong>de</strong>ve ser um ecossistema urbano (EXLINE, 1982, apud RIBEIRO, VARGAS,2004). De acordo com Rozestraten (2003), o ambiente <strong>de</strong> trânsito <strong>de</strong>veser entendido a partir <strong>de</strong> três dimensões:• Física (pistas, calçadas, temperatura climática, veículos,estimulação sonora e visual, sinalização, etc.).• Normativa (Código <strong>de</strong> Trânsito Brasileiro – CTB e leis específicas<strong>de</strong> cada lugar).• Social, que abrange os comportamentos <strong>de</strong> interaçãohumana que ocorrem nas diversas situações <strong>de</strong> trânsito,os quais são diretamente influenciados pelas variáveisindividuais (tais como sexo, ida<strong>de</strong>, nível educacional, entreoutras), principalmente as psicológicas (personalida<strong>de</strong>,agressivida<strong>de</strong>, emoções, ansieda<strong>de</strong>, entre outras).Assim, <strong>de</strong> acordo com Monteiro (2004) e Monteiro e Günther (2006),o participante do trânsito comporta-se em função: das normas e dasconsequências <strong>de</strong> seu não cumprimento, das possibilida<strong>de</strong>s e barreiras doambiente físico, das práticas sociais e culturais daquela socieda<strong>de</strong> e <strong>de</strong>variáveis individuais, principalmente as psicológicas. Portanto, e <strong>de</strong> acordo102


com alguns trabalhos realizados, inclusive em colaboração com o professorGünther, se um motorista, por exemplo, comete um erro ou uma violação,ele o faz em função das seguintes razões: o ambiente físico permiteque ele faça isso sem danificar o seu veículo e a si mesmo; a fiscalizaçãodo cumprimento da norma não está sendo feita <strong>de</strong> forma a<strong>de</strong>quada, ouseja, com observação contínua e rígido cumprimento das consequênciasprevistas na lei; o ambiente social do trânsito daquela socieda<strong>de</strong> não apenaspermite, mas até incentiva esse tipo <strong>de</strong> comportamento, e algumasvariáveis individuais (ida<strong>de</strong> e um alto nível <strong>de</strong> agressivida<strong>de</strong>, por exemplo)contribuem para este tipo <strong>de</strong> comportamento. Em suma, po<strong>de</strong>-se afirmarque o participante tem a predisposição (características individuais) e aoportunida<strong>de</strong> (ambiente físico propício, fiscalização <strong>de</strong>ficiente e ambientesocial permissivo) para errar e violar regras <strong>de</strong> trânsito.Consi<strong>de</strong>rando que a interação entre aspectos disposicionais e situacionaisinfluencia os comportamentos dos participantes do trânsito,supõe-se que as intervenções preventivas <strong>de</strong> erros e violações <strong>de</strong>vemincluir medidas educativas, alterações no ambiente físico, mudança <strong>de</strong>atitu<strong>de</strong>, que necessariamente inclui modificações cognitivas (<strong>de</strong> crenças),afetivas (posicionamentos pró e contra) e comportamentais e alteraçõesnas normas <strong>de</strong> trânsito e nas formas <strong>de</strong> fiscalização do seu cumprimentonas vias. Essas ações, aplicadas conjunta e continuamente, parecem sero caminho mais óbvio para o aumento da segurança e da qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong>vida coletiva no trânsito, por mais subjetivos que sejam esses conceitos.Diante <strong>de</strong>ssa obvieda<strong>de</strong>, por que erros e violações continuam com taxas<strong>de</strong> ocorrência tão altas? A resposta a essa pergunta po<strong>de</strong> ser iniciadacom a discussão sobre a complexida<strong>de</strong> que essas ações apresentam emum contexto que valoriza objetos e objetivos explicitamente relacionadosao risco e ao prazer imediato, como ilustra Fiorelli e Mangini (2009):Um <strong>de</strong>staque especial merece a publicida<strong>de</strong> que cerca oautomóvel, estimuladora <strong>de</strong>sse estado <strong>de</strong> coisas; ela baseia-seno binômio velocida<strong>de</strong> e sedução. Condução audaciosa,conquista sexual e sucesso compõem uma receita<strong>de</strong> bolo repetida à exaustão. A imagem <strong>de</strong> segurança e103


conforto é reservada para uma classe seleta e requintada<strong>de</strong> clientes. (p. 255-256)Realmente, vivemos em uma socieda<strong>de</strong> que coloca saú<strong>de</strong>, segurançae educação <strong>de</strong> boa qualida<strong>de</strong> como um privilégio e não como direito.Apren<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>s<strong>de</strong> cedo que o risco e o jeito alternativo compõem a vidacotidiana. No trânsito, compartilham-se crenças que vão <strong>de</strong> encontro àsegurança e à qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida do coletivo. O ambiente <strong>de</strong> trânsito épercebido como anômico longe da vigilância da lei. Se não for flagrado,não há problema. A direção agressiva é banalizada e a imprudência dope<strong>de</strong>stre é vista como fazendo parte <strong>de</strong> seu repertório comportamental.Mas on<strong>de</strong> isso foi aprendido? E como é mantido? Para respon<strong>de</strong>r a essasperguntas, é necessário analisar o trânsito em suas múltiplas dimensões,como o fazem Fiorelli e Mangini (2009), ao analisar <strong>de</strong>litos associados àcondução <strong>de</strong> veículos, sobre os quais afirmam:• Ocorrem <strong>de</strong> maneira generalizada.• A infinida<strong>de</strong> <strong>de</strong> infrações torna literalmente impossível<strong>de</strong>tectá-las e puni-las.• O condutor <strong>de</strong> veículo encontra uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> comportamentalcom inúmeras outras pessoas.• É impossível não observar o mau comportamento <strong>de</strong> autorida<strong>de</strong>s.• Existe indiscutível conivência <strong>de</strong> amigos e familiares emrelação aos crimes praticados no trânsito.• Evi<strong>de</strong>ncia-se forte apelo mercadológico para que os indivíduosdirijam alcoolizados (seguido sempre <strong>de</strong> umatímida chamada alertando: “Se beber, não dirija”).• Nas gran<strong>de</strong>s cida<strong>de</strong>s, as distâncias tornam-se um <strong>de</strong>safio.• O reduzido espírito <strong>de</strong> cidadania e a “coisificação” do outrotornam o pe<strong>de</strong>stre um atrapalho na via pública.• As autorida<strong>de</strong>s, por meio <strong>de</strong> sutil, continuado e institucionalizadomecanismo <strong>de</strong> omissão, proporcionam acobertura <strong>de</strong> glacê colorido <strong>de</strong>sse bolo indigesto, um es-104


tímulo a mais para que o motorista, profissional ou não,mantenha-se predisposto a cometer <strong>de</strong>litos.Os próprios autores resumem bem essas afirmações:Em síntese, uma complexa estrutura sociocultural proporcionaingredientes para o caldo <strong>de</strong> crenças relacionadas coma condução impru<strong>de</strong>nte e irresponsável. Esse doutorado <strong>de</strong><strong>de</strong>linquência no trânsito se completa pela força do condicionamento.O indivíduo adquire os hábitos <strong>de</strong> dirigir perigosamente,em alta velocida<strong>de</strong>, estacionar em qualquer local, etc.O volante aumenta o peso do pé e reduz o respeito ao próximo.A volta para a normalida<strong>de</strong> civilizada não se conseguecom uma simples marcha-a-ré nos comportamentos. (p. 256)É preciso analisar e combater esse conjunto <strong>de</strong> concepções e comportamentosequivocados <strong>de</strong> forma interdisciplinar por equipes multiprofissionais,em uma perspectiva <strong>de</strong> sustentabilida<strong>de</strong>. As soluçõesdos problemas do trânsito necessitam muito além <strong>de</strong> ações pontuaise isoladas em dias comemorativos. É preciso mudança <strong>de</strong> atitu<strong>de</strong>, quenecessariamente inclui modificações cognitivas (<strong>de</strong> crenças) e afetivas(posicionamentos pró e contra), além das comportamentais. Mas essamudança <strong>de</strong> atitu<strong>de</strong> precisa atingir também os profissionais envolvidoscom o trânsito, e isso <strong>de</strong>ve ser feito <strong>de</strong>s<strong>de</strong> sua formação.O trabalho interdisciplinar <strong>de</strong> uma equipe multiprofissional exige aformação <strong>de</strong> profissionais abertos para dialogar com outros conhecimentos,e produzir soluções transdisciplinares. Mas isso exige investimentoeducacional, <strong>de</strong>ntro e fora das escolas e universida<strong>de</strong>s. Os órgãos e <strong>de</strong>partamentos<strong>de</strong> trânsito precisam absorver essa concepção interdisciplinar,abrindo espaço para equipes multiprofissionais em todos os seus setores.No trânsito, não há intervenção puramente física, normativa ou educacional.Toda e qualquer ação requer mudanças em todas as suas dimensões.Para que essas mudanças <strong>de</strong> atuação profissional tenham sustentabilida<strong>de</strong>,é preciso que os profissionais assumam esse compromisso inter-105


disciplinar. Para isso, a formação profissional <strong>de</strong>ve manter sua especialida<strong>de</strong>em equilíbrio com temas transversais, tais como ética, compromissosocial, sustentabilida<strong>de</strong> e interdisciplinarida<strong>de</strong>. No caso da <strong>Psicologia</strong>, issosignifica ainda incluir no seu curso <strong>de</strong> graduação a <strong>Psicologia</strong> do Trânsitocomo conteúdo transversal e como prática supervisionada, na forma<strong>de</strong> estágios. Isso já vem acontecendo em algumas universida<strong>de</strong>s no país,como é o caso da Universida<strong>de</strong> da Amazônia, na qual, atualmente, supervisionoquatro estagiários inseridos no Detran-PA. No ano anterior,tivemos a experiência <strong>de</strong> inserir três estagiários na Companhia <strong>de</strong> Transportesdo Município <strong>de</strong> Belém (CTBEL).Nessas organizações, houve surpresa diante <strong>de</strong> minha solicitação <strong>de</strong>vaga para estagiários especificamente <strong>de</strong> <strong>Psicologia</strong> do Trânsito. Eu ouvi<strong>de</strong> alguns profissionais: “Mas como assim, nós cuidamos <strong>de</strong> trânsito e <strong>de</strong>transporte. Nós só precisamos aqui <strong>de</strong> estagiários <strong>de</strong> Direito e <strong>de</strong> Engenharia.O que alguém da <strong>Psicologia</strong> vai fazer aqui?” Mas seguimos emfrente. Espero que a realida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vocês aqui seja melhor do que a minha,que tem sido muito difícil. De qualquer forma, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> muito diálogo, aprimeira estagiária inserida fez um trabalho maravilhoso em vários sentidos,inclusive <strong>de</strong> ser intrometida ou, melhor dizendo, empreen<strong>de</strong>dora, aobater na porta <strong>de</strong> uma reunião do setor <strong>de</strong> Engenharia e pedir para participar,dar opiniões. Os engenheiros faziam equipes para ir às ruas, parafazer levantamento para o planejamento urbano e ela dizia: “Eu posso irjunto?” E eles perguntavam: “Mas o que você vai fazer lá?” Ela respondia:“Ainda não sei, o pessoal da <strong>Psicologia</strong> fica junto com você, po<strong>de</strong> daropinião, perguntar, conversar com as pessoas”. E a <strong>Psicologia</strong> do Trânsitofoi progressiva e arduamente conquistando espaço nessa organização.Ainda há uma distância entre a formação profissional e o querealmente está acontecendo no mercado. Mas é preciso fazer algo,conectando ensino, pesquisa e prática profissional. Há necessida<strong>de</strong><strong>de</strong> discutir a formação <strong>de</strong> profissionais, não só <strong>de</strong> <strong>Psicologia</strong>, nessaperspectiva <strong>de</strong> sustentabilida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> interdisciplinarida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> produçõestransdisciplinares, que é mais difícil ainda. Conseguir fazer ações quesejam realmente uma combinação entre assuntos comuns a diferentesáreas é o ponto principal.106


Eu brinco, às vezes, que sou essencialmente professora e pesquisadora,e que fiquei <strong>de</strong>ntro da universida<strong>de</strong> porque gosto mais <strong>de</strong>sse mundo utópico.Dentro da universida<strong>de</strong> po<strong>de</strong>mos nos enganar e falar do mundo i<strong>de</strong>al, do queé bonito. Eu falo tanto disso que, quando os estagiários vêm, eles falam assim:“Olha, nós queremos fazer estágio na <strong>Psicologia</strong> do Trânsito para fazer tudoisso que você falou nas aulas, que nós po<strong>de</strong>mos dar opinião no planejamentourbano, na parte normativa”. E eu, olhando para eles, apavorada, digo: “Po<strong>de</strong>,claro!” E ao final da primeira semana <strong>de</strong> estágio, eles voltam e falam: “Olha,não <strong>de</strong>ixaram a gente fazer nada do que planejamos”. E eu digo: “Agora vamostrabalhar, eu não disse que era fácil, eu disse que era o i<strong>de</strong>al, que a universida<strong>de</strong>acredita nisso, não disse que todo o mundo acredita”. Assim, temos o i<strong>de</strong>al<strong>de</strong> atuação e a que está sendo construída.Ambas as experiências <strong>de</strong> estágio supervisionado em Belém mostraram-se<strong>de</strong>safiadoras, e espaços <strong>de</strong> atuação vêm sendo conquistados <strong>de</strong>ntro<strong>de</strong>sses órgãos. Mas ainda há muito por fazer, para além <strong>de</strong> organizaçõesexplicitamente ligadas a trânsito e transporte. Uma pergunta nessa área é:O que nós psicólogos estamos fazendo efetivamente em relação a trânsito,transporte, mobilida<strong>de</strong>? Essa é a gran<strong>de</strong> pergunta, e os profissionais dizem:“Mas eu não trabalho com trânsito!” Mas quando você trabalha em umaescola, você trabalha com educação, campanhas nacionais atingiram asescolas para a utilização do cinto <strong>de</strong> segurança, você trabalha com esseassunto, fala <strong>de</strong> trânsito, <strong>de</strong> mobilida<strong>de</strong> e <strong>de</strong> transporte. Talvez você não dêesse nome, mas fala do assunto, discute políticas públicas relacionadas. Eé preciso que a <strong>Psicologia</strong> i<strong>de</strong>ntifique e assuma isso como compromisso.Trânsito é um dos assuntos transversais da <strong>Psicologia</strong>.ReferênciasFIORELLI, J. O.; MANGINI, R. C. R. <strong>Psicologia</strong> Jurídica. São Paulo, SP:ATLAS, 2009.MONTEIRO, C. A. S. Variáveis antece<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> erros e violações <strong>de</strong>motoristas. Tese <strong>de</strong> Doutorado, Programa <strong>de</strong> Pós-Graduação em <strong>Psicologia</strong>,Instituto <strong>de</strong> <strong>Psicologia</strong>, Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Brasília, 2004.107


MONTEIRO, C. A. S. e GÜNTHER, H. Agressivida<strong>de</strong>, raiva e comportamento<strong>de</strong> motorista. <strong>Psicologia</strong>, Pesquisa e Trânsito, Belo Horizonte,MG, jan–jun 2006a, v. 2, n. 1, p. 9-17.RIBEIRO, H.; VARGAS, H. C. Qualida<strong>de</strong> Ambiental Urbana: Ensaio <strong>de</strong>uma Definição. Em: RIBEIRO, H. e VARGAS, H. C. Novos instrumentos<strong>de</strong> Gestão Ambiental Urbana. 1. ed. e 1ª reimpressão. São Paulo, SP:Editora da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo, 2004. (Acadêmica, 36)ROZESTRATEN, R. J. A. Ambiente, trânsito e <strong>Psicologia</strong>. Em: HOFFMAN,M. H.; CRUZ, R. M. e ALCHIERI, J. C. (org.) Comportamento Humanono Trânsito. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2003.108


Mesa - Políticas <strong>de</strong> emergências e<strong>de</strong>sastres para o trânsitoAngela Elizabeth Lapa Coêlho 14Trabalho na área da <strong>Psicologia</strong> da Saú<strong>de</strong>, na Universida<strong>de</strong> CatólicaDom Bosco (UCDB), em Campo Gran<strong>de</strong>, Mato Grosso do Sul. Minhas áreas<strong>de</strong> interesse são: Aids, câncer e <strong>de</strong>sastres em larga escala, tais comoenchentes, terremotos e outros eventos, consi<strong>de</strong>rando a perspectiva dapromoção da saú<strong>de</strong> e da prevenção. Comecei a refletir sobre as questõesvoltadas para o trânsito porque tive o enorme prazer <strong>de</strong> trabalhar naUCDB com duas pessoas que são sinônimos do trabalho com o trânsito:o professor Reinier Rozestraten e a professora Solange Félix. Lembroque a minha sala era contígua à do professor Reinier e ele sempre medizia: Angela, você trabalha com <strong>de</strong>sastres, mas o meu <strong>de</strong>sastre é muitomaior, porque eu trabalho com o trânsito. Discutíamos muito sobre aquantida<strong>de</strong> diária <strong>de</strong> pessoas mortas no trânsito e sobre as que tinhamsequelas pelo resto da vida, e como as pessoas ainda não davam a <strong>de</strong>vidaimportância à temática. Eu dizia a ele: professor Reinier, é porque, àsvezes, os nossos temas são silenciosos, as estatísticas, muitas vezes, nãorevelam a amplitu<strong>de</strong> do que está acontecendo. Trabalhei com a seca, noestado da Paraíba, e, inúmeras vezes, as pessoas perguntavam: e a seca éum <strong>de</strong>sastre? E discutia exatamente essa invisibilida<strong>de</strong>, porque não matamuitas pessoas na mesma hora e não são computadas as mortes das14 Psicóloga Social. Professora da Universida<strong>de</strong> Católica Dom Bosco. Atua nos temasaspectos psicossociais das emergências e dos <strong>de</strong>sastres, <strong>de</strong>senvolvimento humano em situações<strong>de</strong> risco social e individual.109


crianças que não conseguiram se alimentar a<strong>de</strong>quadamente, quantaspessoas adoeceram e não tiveram condições <strong>de</strong> ser tratadas. Então, aseca é um <strong>de</strong>sastre sim, do mesmo modo a questão do trânsito. Por isso,uma abordagem, consi<strong>de</strong>rando uma perspectiva social e preventiva, ajudariaa expor os fatores que contribuem para essa invisibilida<strong>de</strong>.No Brasil, as pesquisas sistemáticas na área do trânsito e dasemergências e dos <strong>de</strong>sastres são relativamente recentes, consi<strong>de</strong>randoa perspectiva social e preventiva. A maioria das pesquisas contempla,muitas vezes, uma visão individualista do fato, tentando i<strong>de</strong>ntificar osresponsáveis pelo problema: quem é culpado, que característica <strong>de</strong> personalida<strong>de</strong>levaria a pessoa a cometer tal ou qual infração. A discussãodos fatores anteriores aos eventos, como <strong>de</strong>senvolver estratégias<strong>de</strong> prevenção em escolas, universida<strong>de</strong>s, hospitais, locais <strong>de</strong> trabalho, équase inexistente. A ênfase é sempre voltada para a etapa posterior aoevento, consi<strong>de</strong>rando uma perspectiva diagnóstica. Temos <strong>de</strong> discutir ascomorbida<strong>de</strong>s anteriores ao evento, e que, muitas vezes, o <strong>de</strong>sastre é ogatilho do quadro que os sobreviventes <strong>de</strong>senvolvem.Os <strong>de</strong>sastres são fenômenos eminentemente humanos e sociais,em consequência, <strong>de</strong>vemos <strong>de</strong>spojá-los da qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> naturais, quegera uma sensação <strong>de</strong> que o mundo é assim e não po<strong>de</strong>mos fazernada para evitá-los. A rodovia é assim, a frente da escola é assim,o <strong>de</strong>slizamento <strong>de</strong> terra é assim, o terremoto é assim. Não! Quandovamos fazer uma análise sobre <strong>de</strong>sastres, temos <strong>de</strong> discutir <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>social. Nem todos são afetados da mesma forma. Eu já trabalheina área da seca, já trabalhei com regiões com furacão e com terremotoe, com certeza, para as pessoas que são afetadas, a questãoeconômica é uma questão fundamental nessa discussão.Algumas consi<strong>de</strong>rações merecem ser feitas sobre o que nós pensamossobre essa concepção <strong>de</strong> emergências e <strong>de</strong>sastres. A primeira éo espaço para a prática do psicólogo. Lamentavelmente, muitas vezes,a comunida<strong>de</strong> que está lá fora, na qual nós vamos prestar nossos serviços,não enten<strong>de</strong> o que nós fazemos naquele tipo <strong>de</strong> situação, consi<strong>de</strong>randoa perspectiva preventiva e social das estratégias a ser adotadas.Por quê? Porque a nossa profissão, por muitos anos, foi construída con-110


si<strong>de</strong>rando uma visão diagnóstica e patologizante. Eu sou supervisora<strong>de</strong> estágio na área da prevenção e promoção da saú<strong>de</strong> e as ativida<strong>de</strong>s<strong>de</strong> estágio são <strong>de</strong>senvolvidas nos Centros <strong>de</strong> Referência <strong>de</strong> AssistênciaSocial (Cras) e também nas Unida<strong>de</strong>s Básicas <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> (UBS). Muitasvezes, quando chego nesses locais e apresento a proposta <strong>de</strong> estágio,explicando que vamos trabalhar com grupos para discutir saú<strong>de</strong>, aspessoas dizem: “Mas você não é psicóloga? Você não vem aqui paraaten<strong>de</strong>r quem está doente?” E eu afirmo que esse é um trabalho dopsicólogo, mas discutir promoção da saú<strong>de</strong> e prevenção também é. Porconta dos espaços que ocupamos durante muito tempo, a visão dacomunida<strong>de</strong> sobre nossa prática é que aten<strong>de</strong>mos apenas quem estádoente. E essa visão foi construída a partir das nossas ações, muitasvezes, restritas e fragmentadas.Dessa forma, a nossa proposta é <strong>de</strong> uma <strong>Psicologia</strong> que consi<strong>de</strong>re dapromoção da saú<strong>de</strong> aos cuidados paliativos. Eu respeito profundamenteo atendimento após os eventos, porque eu faço isso, a minha formaçãoé clínica. Eu trabalhei muitos anos com a comissão <strong>de</strong> Aids, no estado daParaíba. Então, eu apenas migrei para outras ativida<strong>de</strong>s que eu po<strong>de</strong>riafazer, mas o meu conhecimento da área clínica continua presente emminhas abordagens. A questão é ampliar a forma <strong>de</strong> pensar a práticapsicológica, o trabalho da <strong>Psicologia</strong>.Anteriormente, quando outros palestrantes <strong>de</strong>ste evento estavamfalando que os alunos, muitas vezes, não enten<strong>de</strong>m por que estudarAntropologia e Sociologia, eu me lembrei <strong>de</strong> um fato recorrente nasminhas disciplinas <strong>de</strong> <strong>Psicologia</strong> da Saú<strong>de</strong> I e II. Nessas disciplinas,abordo o Sistema Único <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> (SUS) e o Sistema Único da AssistênciaSocial (Suas), e nesse contexto discuto o processo <strong>de</strong> humanização,que está fazendo <strong>de</strong>z anos <strong>de</strong> Humaniza SUS.Às vezes, o alunoquer fazer uma pergunta, eu fico muito empolgada, e surge a pergunta:“Quando a senhora vai falar sobre <strong>Psicologia</strong>?” O Sistema Único <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>é <strong>Psicologia</strong>. Discutir o Sistema Único <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> é cuidar para queseja garantida saú<strong>de</strong> integral para a população. A saú<strong>de</strong> <strong>de</strong>finida pelaVIII Conferência Nacional <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> não é apenas a ausência <strong>de</strong> doença,mas o acesso a tudo que se tem direito como cidadão.111


A segunda consi<strong>de</strong>ração está relacionada às concepções e aos sentidosdados às respostas psicológicas pós-evento. Precisa existir clareza<strong>de</strong> que, em um primeiro momento, as reações das pessoas ao evento sãonormais, o que não é normal é a ocorrência do evento e os danos causados.O que é anormal é um aci<strong>de</strong>nte que mata quatro membros <strong>de</strong> umamesma família, e o familiar sobrevivente precisar ir ao Instituto <strong>de</strong> MedicinaLegal (IML). O que é anormal é um ônibus <strong>de</strong> colégio ser dilaceradopor um caminhão, e não a reação dos familiares à perda <strong>de</strong> seus filhos.A proposta é para que o atendimento dos sobreviventes e dos familiaresseja em uma vertente <strong>de</strong> acolhimento, e não diagnóstica. Não é que você<strong>de</strong>pois não vá fazer outros encaminhamentos, mas, em um primeiro momento,as ações <strong>de</strong>vem ser guiadas pela <strong>de</strong>manda da pessoa que precisado acolhimento, como, por exemplo, ajudá-la a comunicar-se com umfamiliar ou fazer companhia até o familiar chegar ao local. Isso é <strong>Psicologia</strong>.Eu estou preocupada com o cuidar daquela pessoa. Então, quandoeu estou distribuindo cobertores, quando eu estou organizando fila paraalimentação após um gran<strong>de</strong> evento, isso é <strong>Psicologia</strong>, porque eu estoupreocupada para que todos tenham acesso àquele tipo <strong>de</strong> atenção. Pensar<strong>de</strong>ssa forma diferenciada na hora <strong>de</strong> se <strong>de</strong>dicar a esse tipo <strong>de</strong> atendimentoé valorizar e i<strong>de</strong>ntificar as capacida<strong>de</strong>s individuais e comunitárias.Outra questão que foi discutida é se o atendimento é inter, é multi,é trans. Eu e a professora Vera Mincoff Menegon, que trabalhava comigono estágio <strong>de</strong> <strong>Psicologia</strong> da Saú<strong>de</strong>, pensamos <strong>de</strong> outra forma sobre o queé a transdisciplinarida<strong>de</strong>. Para nós, a transdisciplinarida<strong>de</strong> é uma forma<strong>de</strong> acolher também profissionais <strong>de</strong> nível técnico e médio nas equipesque vão discutir a problemática, porque, geralmente, quando uma equipeinterdisciplinar vai ser organizada, nós contemplamos as áreas <strong>de</strong> formaçãonas universida<strong>de</strong>s. Vamos trazer o nutricionista, o fisioterapeuta, ofonoaudiólogo, o psicólogo, o assistente social, o médico, o enfermeiro,o terapeuta ocupacional, o engenheiro, o arquiteto, entre outros profissionais,mas não se pensa em trazer para a equipe as pessoas que vãoestar lá na ponta também dando as informações. Como eu trabalho emUBSs e Crass, <strong>de</strong> que adiantaria eu ter um excelente grupo <strong>de</strong> apoio paraaten<strong>de</strong>r os usuários se a pessoa que trabalha lá no balcão <strong>de</strong> entrada112


não sabe da existência <strong>de</strong>sse grupo, se ela não po<strong>de</strong> me informar qual omelhor horário para fazer esse grupo. Então, quando trouxemos o termotransdisciplinar para o nosso artigo, era <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>ssa vertente, <strong>de</strong> tiraressa i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> exclusivida<strong>de</strong> das disciplinas formais e trazer também pessoasque tinham muito a contribuir com os seus saberes e fazeres para aconstrução e a operacionalização do grupo.Como trabalhar com prevenção <strong>de</strong> emergências e <strong>de</strong>sastres e suasconsequências? Realmente, eu ainda não estou com o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> dizerque a partir <strong>de</strong> hoje não vai mais haver <strong>de</strong>sastres, tais como terremotos,enchentes, bem como aci<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> carro. Lamentavelmente, enquantoeu estou falando, tudo isso está acontecendo, mas o que nós po<strong>de</strong>mosdiscutir com relação aos eventos é a eliminação ou redução <strong>de</strong> risco.Quando nós discutimos eliminação ou redução <strong>de</strong> riscos, temos <strong>de</strong> discutir<strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> social. Sempre me vem à mente, por exemplo, quandopassam cenas <strong>de</strong> <strong>de</strong>slizamento <strong>de</strong> terra ou <strong>de</strong> enchentes, e alguém fazum comentário como: “Também, vai morar ali!”, como se a pessoa tivessefeito uma escolha. Então, a partir do momento em que você coloca napessoa, exclusivamente, a escolha por morar ali, você isenta <strong>de</strong> qualquerresponsabilida<strong>de</strong> os outros atores que po<strong>de</strong>m estar contribuindo paraa escolha daquela pessoa. A partir do momento em que eu digo queessa pessoa foi empurrada para morar ali, ou, <strong>de</strong> repente, quando sãoconstruídas passarelas em cima <strong>de</strong> rodovia e você vê as pessoas pulandopela rodovia – eu vejo isso quando eu viajo. A questão econômica emergequando você conversa com essas pessoas. Elas dizem assim: “Eu vouper<strong>de</strong>r meia hora, quarenta minutos para cruzar a passarela. Se eu fizerisso, eu perco o ônibus e chego atrasada a meu emprego e vão <strong>de</strong>scontardo meu salário”. Para a pessoa, é mais importante ter dinheiro paraa alimentação dos meus filhos em casa. Então, nós não po<strong>de</strong>mos julgaras pessoas <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> nossos próprios parâmetros, do que eu consi<strong>de</strong>rovalioso para a minha vida, mas sim pela percepção do outro, do que eleou ela consi<strong>de</strong>ra valioso na vida <strong>de</strong>les.Com relação à questão da eliminação ou da redução das vulnerabilida<strong>de</strong>s,você precisa i<strong>de</strong>ntificar se é uma vulnerabilida<strong>de</strong> natural, física,social, econômica ou política. Essas vulnerabilida<strong>de</strong>s precisam ser expos-113


tas e isso envolve um posicionamento e um comprometimento pessoalquando discutimos redução <strong>de</strong> risco e vulnerabilida<strong>de</strong>. Quando você vêuma mãe que <strong>de</strong>ixa uma criança <strong>de</strong> cinco, seis anos e que não sabe atravessara rua ir à escola só, você se pergunta o porquê disso. Porque elatem <strong>de</strong> sair <strong>de</strong> casa às quatro da manhã para pegar um ônibus, para po<strong>de</strong>rchegar no trabalho duas horas <strong>de</strong>pois. Meus estagiários ficaram impressionadosporque uma criança <strong>de</strong> cinco anos, quando acabou a ativida<strong>de</strong><strong>de</strong> grupo, na brinquedoteca da Unida<strong>de</strong> Básica <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> (UBS), disse:eu já vou para casa. A estagiária perguntou: “Mas chegou alguém parabuscar você?” Ela disse: “Não, eu já sou gran<strong>de</strong>. Eu vou para casa. Minhamãe me <strong>de</strong>ixa ir só”. E a estagiária ficou assustadíssima e a acompanhou,sem ela ver, para verificar se ela chegava a sua casa, porque ela precisavaatravessar uma rua muito movimentada. Esse é apenas um exemplo doque acontece no cotidiano <strong>de</strong> muitas crianças.Então, às vezes, quando fazemos certas pontuações, nós precisamosnos apegar a todos esses <strong>de</strong>talhes do cotidiano e isso é trabalho do psicólogo.Quando discutimos a análise social das emergências e dos <strong>de</strong>sastres,quem é afetado pelas emergências e pelos <strong>de</strong>sastres, como po<strong>de</strong>mostrabalhar com a prevenção das emergências e dos <strong>de</strong>sastres, a ênfaseestá nas abordagens ampliada das capacida<strong>de</strong>s e das vulnerabilida<strong>de</strong>sda relação pessoa e da comunida<strong>de</strong>. A questão da análise social é quese você procurar na literatura disponível, a maioria dos textos sobre <strong>de</strong>sastrescontempla uma visão individual dos sobreviventes, i<strong>de</strong>ntificandoas patologias mais frequentes após um <strong>de</strong>sastre. É raro encontrar umartigo sobre comunida<strong>de</strong>s e o que elas fizeram para se capacitar. Então,nós precisamos nos envolver com esse tipo <strong>de</strong> trabalho. O que está sendofeito para tornar essas comunida<strong>de</strong>s mais seguras, mais capacitadas paraenfrentar esse tipo <strong>de</strong> situação?De que forma o psicólogo po<strong>de</strong> trabalhar para isso? Uma possibilida<strong>de</strong>seria o empo<strong>de</strong>ramento, que já foi discutido hoje. Muitas vezes, discutirprevenção com a comunida<strong>de</strong> é expor suas vulnerabilida<strong>de</strong>s, porquequando você chega à comunida<strong>de</strong> e as pessoas começam a falar do quenão existe em termos <strong>de</strong> serviços e condições, isso obrigatoriamente levaa uma reflexão sobre cidadania e direitos. Uma das formas <strong>de</strong> o psicólogo114


trabalhar com prevenção para a área <strong>de</strong> <strong>de</strong>sastres é essa, cujas estratégiaseu posso transpor para a escola, para a associação <strong>de</strong> bairro. Porque não trabalhar com trânsito nesses locais também? Por que essetrabalho tem <strong>de</strong> ficar restrito a um local específico? Porque quando vamostrabalhar na comunida<strong>de</strong>, em primeiro lugar, não tem sala. Eu nãopreciso <strong>de</strong> sala. Aquela mangueira ali é ótima para colocar todo mundoem volta e vamos trabalhar. Precisamos apren<strong>de</strong>r a trabalhar com novasalternativas, com novas metodologias.Quando me formei em <strong>Psicologia</strong>, em 1983, nas disciplinas nãodiscutíamos Aids, o Projeto Genoma, a gripe H1N1. As transformaçõespelas quais a socieda<strong>de</strong> passa exigem atualização constante do profissional.Eu não abandonei as teorias que aprendi, mas aprendi a transformá-laspara uma nova <strong>de</strong>manda. Nós temos uma dimensão <strong>de</strong> atuaçãomuito maior do que se tinha há 20, 30 anos atrás. Assim, temos<strong>de</strong> repensar a <strong>Psicologia</strong> nesses termos, <strong>de</strong> como fazer para aten<strong>de</strong>r aessa <strong>de</strong>manda que se apresenta.Eu vou apresentar a vocês uma matriz <strong>de</strong> análise <strong>de</strong> capacida<strong>de</strong>s evulnerabilida<strong>de</strong>s. Essa matriz é muito usada quando nós vamos trabalharcom <strong>de</strong>sastres em larga escala e as comunida<strong>de</strong>s precisam ser reestruturadas.Eu consi<strong>de</strong>ro que essa matriz po<strong>de</strong> perfeitamente se a<strong>de</strong>quar aqualquer situação, tendo em vista que nós estamos sempre pontuandoas capacida<strong>de</strong>s e as vulnerabilida<strong>de</strong>s. Dessa forma, se você vai <strong>de</strong>senvolverem um projeto para o trânsito, para qualquer tipo <strong>de</strong> trabalho,primeiro, temos <strong>de</strong> saber o que aquela comunida<strong>de</strong> já enten<strong>de</strong> sobreisso, para você compor os grupos <strong>de</strong> acordo com o conhecimento que aspessoas já têm. Para evitar que você fale o que elas já sabem, ou você falaruma coisa tão fora da realida<strong>de</strong> daquela comunida<strong>de</strong>, que não vai fazersentido, e as pessoas não vão voltar para a próxima reunião do grupo.Isso eu aprendi nas UBS e nos Cras. Em <strong>de</strong>terminada UBS, nós começamoscom uma brinquedoteca enquanto as crianças aguardavam paraser atendidas. Nessa unida<strong>de</strong>, o corredor era muito estreito e tinha váriascaixas <strong>de</strong> cimento com flores. Como as crianças chegam com duashoras <strong>de</strong> antecedência para a consulta, elas, muitas vezes ocupavam otempo correndo entre os jarros <strong>de</strong> cimento, o que aumentava a proba-115


ilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> acontecer um aci<strong>de</strong>nte com elas. Por essa razão, pensamos:“Por que não montar uma brinquedoteca, para elas ficarem enquantoaguardam o atendimento? A mãe ou o pai fica aguardando e elas ficamna brinquedoteca”. O resultado foi muito positivo, porque as criançascomeçaram a vir também nos dias em que não tinham consulta. Noinício, isso criou um problema, porque tivemos <strong>de</strong> aumentar os dias dabrinquedoteca, já que os pais só queriam marcar a consulta nos diasem que houvesse brinquedoteca.São várias as estratégias para trabalhar com o trânsito na comunida<strong>de</strong>,quais são os recursos que a comunida<strong>de</strong> tem para discutir a temática?Às vezes, nós <strong>de</strong>sconhecemos o próprio material que já existe eestá disponível na internet. Muitas pessoas não conhecem os manuaise os filmes que existem.Outro aspecto a ser abordado é a questão social e organizacional dacomunida<strong>de</strong>. Existe associação <strong>de</strong> moradores? Existe associação <strong>de</strong> mães,que tipos <strong>de</strong> associações já existem? Isso é uma questão política, porqueas comunida<strong>de</strong>s, muitas vezes, tomam partido e se divi<strong>de</strong>m. Então, se foradotar algum tipo <strong>de</strong> estratégia, é preciso i<strong>de</strong>ntificar essa questão, paranão <strong>de</strong>ixar a responsabilida<strong>de</strong> da execução da estratégia com <strong>de</strong>terminadapessoa que po<strong>de</strong> em vez <strong>de</strong> unir a comunida<strong>de</strong>, dividir ainda mais.Tenho algumas reflexões sobre a formação profissional do psicólogo.Em primeiro lugar, a formação <strong>de</strong>ve ampliar a visão sobre as possibilida<strong>de</strong>sda prática do psicólogo no âmbito da promoção, da prevenção e daassistência, não ficando restrita à assistência. Em segundo, <strong>de</strong>senvolverestratégias para que o profissional tenha condições <strong>de</strong> utilizar os conhecimentosteóricos e técnicos para planejar, organizar, <strong>de</strong>senvolver e avaliarprogramas <strong>de</strong> intervenção em situação <strong>de</strong> emergências e <strong>de</strong>sastres. Emterceiro, <strong>de</strong>senvolver a competência do profissional no sentido <strong>de</strong> avaliare i<strong>de</strong>ntificar as capacida<strong>de</strong>s, as vulnerabilida<strong>de</strong>s em termos individuaise sociais do <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> estratégias. Em quarto, expandir o conhecimentoteórico no âmbito <strong>de</strong> temáticas vivenciadas em ambientes<strong>de</strong> emergências e <strong>de</strong>sastres como questões <strong>de</strong> gênero, <strong>de</strong>senvolvimentohumano, classes socioeconômicas, pessoas com necessida<strong>de</strong>s especiaisentre outras. Vamos trabalhar com homens e mulheres que têm acesso116


a recursos <strong>de</strong> forma diferente. Vamos trabalhar com pessoas que têmacesso diferente à informação.Consi<strong>de</strong>rando esses fatores, algumas recomendações são pertinentes:(a) adoção <strong>de</strong> uma perspectiva social e preventiva da <strong>Psicologia</strong>; (b)construção <strong>de</strong> novos mo<strong>de</strong>los acadêmicos <strong>de</strong> atenção à saú<strong>de</strong> e (c) participaçãosocial e articulação das instituições <strong>de</strong> ensino, comunida<strong>de</strong> eserviços. Essas recomendações visam a evitar que capacitemos profissionaisnas universida<strong>de</strong>s, que vão para os locais <strong>de</strong> trabalho e se sentemmuitas vezes perdidos, porque aquilo que eles apren<strong>de</strong>ram não dá contada <strong>de</strong>manda do serviço. E a comunida<strong>de</strong>, às vezes, não enten<strong>de</strong> o que elesforam fazer lá. É isso que temos <strong>de</strong> trabalhar. Essas três esferas <strong>de</strong>vem serarticuladas, para que <strong>de</strong> fato a <strong>de</strong>manda da comunida<strong>de</strong> seja atendida.117


Pitágoras José Bindé 15Esse tema, que está vinculado à <strong>Psicologia</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>sastres, é um gran<strong>de</strong>tema guarda-chuva. Na verda<strong>de</strong>, cabe nesse gran<strong>de</strong> guarda-chuvachamado <strong>Psicologia</strong> dos <strong>de</strong>sastres, tanto do ponto <strong>de</strong> vista <strong>de</strong> cidadania,do ponto <strong>de</strong> vista do trânsito em si, do ponto <strong>de</strong> vista clínico, do ponto <strong>de</strong>vista da psicometria, enfim, diversas coisas. Realmente o trânsito é muitocomplexo. Imaginemos quando se <strong>de</strong>senvolve algum tipo <strong>de</strong> <strong>de</strong>sastre.Então, esse funcionamento, já aparentemente caótico, fica muito maiscomplexo do que exatamente essa simples, mas já complicada, situaçãoque envolve a mobilida<strong>de</strong>. É importante nós criticarmos, sem dúvida alguma,mas o que fizemos com isso? Aqui, simplesmente, políticas públicas,po<strong>de</strong>mos ter a noção simplesmente <strong>de</strong> pensar sair do privado paraentrar na questão coletiva. Entrar para a questão coletiva, na realida<strong>de</strong>,são essas ações que têm se <strong>de</strong>senvolvido, têm trazido uma perspectivamuito individualista, mas também importante. Eu não venho da psicometria,mas digo que é importante, isso vem a somar. É um instrumento,nós não po<strong>de</strong>mos nos esquecer disso, exclusivo da <strong>Psicologia</strong>, mas é sairdo privado para ter essa noção <strong>de</strong> espaço público, <strong>de</strong> espaço coletivo.Sempre se faz uma diferença ou, às vezes, até uma confusão entre emergênciae <strong>de</strong>sastres. Emergência como uma situação crítica, acontecimentoperigoso ou fortuito, um inci<strong>de</strong>nte semelhante a um caso <strong>de</strong> urgência.É uma etapa anterior. Até o glossário <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa civil coloca emergênciabranca, emergência amarela, emergência vermelha, buscando trazer umaclassificação. O que seria,então, prevenção? Prevenção seria então, umaformulação estratégica <strong>de</strong> ação. A própria <strong>de</strong>fesa civil traz isso como umaformulação e implantação <strong>de</strong> políticas e <strong>de</strong> programas com a finalida<strong>de</strong><strong>de</strong> prevenir ou minimizar os efeitos do <strong>de</strong>sastre. Muitas vezes não conseguimosmais dar conta. Nós temos, na realida<strong>de</strong>, aci<strong>de</strong>ntes, um somatório<strong>de</strong> eventos que fogem daqueles eventos do dia a dia, mas que vão for-15 Doutor em <strong>Psicologia</strong> Geral e Ecológica pela Eberhard-Karls Universitaet Tübingen– Alemanha/RFA. Pós-doutorando no Centro <strong>de</strong> Pesquisa em Desastres do Instituto <strong>de</strong> CiênciasSociais da Universida<strong>de</strong> Christian-Albrechts-Universitaet zu Kiel, em Kiel, Alemanha/RFA.119


mando, se acumulando como se fosse um “efeito dominó”. Essa prevenção,na realida<strong>de</strong>, é nada mais, quando vamos trabalhar com isso, tentarfazer uma antecipação cognitiva. O que é isso? Sabemos muito bem, emcognição está envolvido pensamento. É po<strong>de</strong>r prever algo que não aconteceu:que cenário é esse? quais possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> ação temos disponíveis?Eu tenho que pensar nisso em nível individual também. Eu tenho<strong>de</strong> pensar em nível <strong>de</strong> comunida<strong>de</strong>. Eu tenho <strong>de</strong> pensar se eu vou pensaresse indivíduo, ele sozinho, esse indivíduo em dupla, esse indivíduo assistindoa uma palestra no CRP São Paulo, por exemplo. Acontece um<strong>de</strong>sastre aqui: Como que esse sujeito que vai trabalhar com programas eações tem <strong>de</strong> realmente começar a fazer essa antecipação, esse exercíciocognitivo? O outro conceito, quando nós trabalhamos com <strong>de</strong>sastres, queé fundamental é o conceito <strong>de</strong> vulnerabilida<strong>de</strong>, já colocado também pelacolega, mas quando eu digo assim: “Olha, eu estou vulnerável, o fulanoestá vulnerável”. Como que está essa pessoa? Essa pessoa está fragilizada,ela está vulnerável, ela não está capaz <strong>de</strong> suportar talvez esses efeitos. Eo <strong>de</strong>sastre? O <strong>de</strong>sastre nada mais é, então, do que o resultado <strong>de</strong>sse somatórioadverso natural ou provocado pelo homem sobre algum ecossistema,que é vulnerável. Esse ecossistema vulnerável, porque é diferenteum aci<strong>de</strong>nte acontecendo em São Paulo, no estado <strong>de</strong> São Paulo, umacida<strong>de</strong> lá pequenininha, lá em Cor<strong>de</strong>irópolis, próximo a Limeira, e aquiem São Paulo. São eventos, o mesmo evento, em cenários diferentes, maisfragilizados. No caso do trânsito, o que nós temos?Aqui tem algumas fotos em que po<strong>de</strong>mos ver esses participantes.São todas fotos daqui, captadas daqui <strong>de</strong> São Paulo, conjunto <strong>de</strong> <strong>de</strong>slocamento<strong>de</strong> veículos motorizados ou não, pe<strong>de</strong>stres, animais nas vias, parafins <strong>de</strong> mobilida<strong>de</strong>, parado ou mesmo <strong>de</strong> estacionamento. Esse sistemaé regido por um sistema <strong>de</strong> normas. Nós infringimos ou não a norma.Bom-senso naturalmente é bom, mas, queira ou não queira, quandovamos ser julgados, vamos ser julgados não por possuir ou <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong>possuir bom-senso, mas sim pela ação. Então, naturalmente que a normatambém nos interessa. Afinal <strong>de</strong> contas, nós moramos em um paíslaico, nós temos aqui uma série <strong>de</strong> confrontações que temos também<strong>de</strong> levar em consi<strong>de</strong>ração, inclusive no momento <strong>de</strong> combate ou <strong>de</strong> pre-120


venção <strong>de</strong> aci<strong>de</strong>ntes. Nós temos, por exemplo, <strong>de</strong>fesa civil nacional, masela não intervém, por exemplo, na <strong>de</strong>fesa civil estadual, que é autônoma,a ponto <strong>de</strong> que nós viramos, naturalmente, muitas vezes, uma moeda<strong>de</strong> troca política. Então, o que envolve essa antecipação cognitiva? Sãoessas ações que vamos combater, ações que po<strong>de</strong>m prevenir e naturalmentevamos pensar se isso ocorrerá no nível individual, se isso vai sedar ao nível coletivo, porque as pessoas, individualmente, comportam-se<strong>de</strong> uma maneira. Quando estão em grupo, elas se comportam <strong>de</strong> outromodo. Talvez o exemplo mais ilustrativo disso sejam as torcidas <strong>de</strong> futebol.Aquelas pessoas isoladamente não fariam aquilo. Que ações estariamenvolvidas então nessa antecipação? Nós que teríamos <strong>de</strong> pensar, comotrabalhadores, ou seja, colocar-nos no lugar do outro. Antecipar cognitivamenteisso. Esse é um trabalho <strong>de</strong> psicólogo também, sim, senhor.Questão <strong>de</strong> obras públicas, código <strong>de</strong> obras, po<strong>de</strong> ser também, envolvendo,naturalmente, os engenheiros, arquitetos, planejadores urbanos. Essaparte <strong>de</strong> zoneamento urbano, legislação e regulamentação, análise <strong>de</strong>riscos e vulnerabilida<strong>de</strong>. Mas como eu consigo pensar? Eu não vou, talvez,receber na minha faculda<strong>de</strong>, disciplinas em relação a isso. Esse realmenteé um <strong>de</strong>safio. Talvez nosso primeiro <strong>de</strong>safio: ao invés <strong>de</strong> começar, em umprimeiro momento, a já trabalhar interdisciplinarmente. Isso tem umameta, é importantíssimo. Mas talvez muitos <strong>de</strong> nós tivéssemos <strong>de</strong> começara fazer o trabalho <strong>de</strong> casa, ou seja, nós não conseguimos, na maioriadas vezes conversar, dialogar com nós mesmos, <strong>de</strong>ntro da própria área.Como eu vou conseguir dialogar com um arquiteto? Como eu vou conseguirdialogar com um engenheiro? Com um advogado, que vem comoutra bagagem, muitas vezes, o mesmo conceito? Vão falar o mesmoconceito. De ambiente, por exemplo. Para um biólogo é uma coisa, paraum arquiteto é outra, para um psicólogo ainda é outra coisa e quandonós todos nos reunimos para falar sobre o ambiente, estamos falando,achando, pensando que estamos falando da mesma coisa. No entanto,nós não estamos. A maior dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> trabalhar em equipe interdisciplinar/multidisciplinaré justamente o problema <strong>de</strong> comunicação. Porqueeu tenho <strong>de</strong> me apropriar também do conhecimento do outro parapo<strong>de</strong>r ter um diálogo. Caso inverso, isso não será possível. Como, então,121


sistematizar isso? A socieda<strong>de</strong> tem <strong>de</strong>manda por energia, tem <strong>de</strong>mandapor mobilida<strong>de</strong>, tem <strong>de</strong>manda por informação; por saú<strong>de</strong>. Na realida<strong>de</strong>,os direitos fundamentais na Constituição são os que mais falam <strong>de</strong>ssaquestão coletiva. No entanto, quando nós vamos para o Código Civil, oCódigo Civil <strong>de</strong> 2002, contemplará a proprieda<strong>de</strong> privada. Por isso é, quea norma é importante, a legislação em termos da concepção <strong>de</strong>la, porqueela vai nos dirigir em termos <strong>de</strong> funcionamento coletivo e nós vamospo<strong>de</strong>r ser sancionados em relação a isso.Eu trouxe um exemplo <strong>de</strong> como po<strong>de</strong>ríamos pensar isso, sistematizarisso: infraestrutura para o trânsito e para o sistema geral do meio<strong>de</strong> transporte. Falando uma categoria maior <strong>de</strong> mobilida<strong>de</strong>. Processos<strong>de</strong> atendimento à <strong>de</strong>manda da socieda<strong>de</strong>, nós po<strong>de</strong>ríamos, por exemplo,fazer uma divisão em três etapas <strong>de</strong> uma maneira bem geral. Ouseja, produzir isso, que seria mais uma parte <strong>de</strong> construção mesmo.Distribuir isso, que envolve mais uma questão <strong>de</strong> logística, como issovai ser <strong>de</strong>senvolvido e usado, nada mais é do que como que eu vou consumirisso que está sendo colocado. Por exemplo, para o trânsito, o queeu preciso, infraestrutura <strong>de</strong> trânsito. Po<strong>de</strong>mos falar <strong>de</strong> ruas, estradas,vias férreas, vias fluviais. Nós po<strong>de</strong>mos falar <strong>de</strong> vias áreas também. Porque não? Terminais rodoviários e aeroportos. E no momento em que eucomeçar a i<strong>de</strong>ntificar em cada uma <strong>de</strong>ssas fases., eu teria o psicólogotrabalhando em uma equipe multidisciplinar, ele também teria <strong>de</strong> ter,no entendimento <strong>de</strong>ssa visão, não essas etapas, que tipo <strong>de</strong> riscos sãopossíveis <strong>de</strong> acontecer naquela etapa <strong>de</strong> produção. Por exemplo, nainfraestrutura do trânsito, <strong>de</strong>struição <strong>de</strong> ambientes por meio da novaconstrução, da manutenção ou ampliação das estradas, pontes ou linhas<strong>de</strong> metrô. Estamos presenciando, na gran<strong>de</strong> São Paulo, gran<strong>de</strong>alteração que está havendo nas marginais, para duplicar as marginaisnas pontes e isso, naturalmente, faz que haja uma alteração nesse ambienteque po<strong>de</strong> vir a somar a um efeito <strong>de</strong> catástrofe, as pessoas po<strong>de</strong>magravar os efeitos <strong>de</strong> uma catástrofe, na questão da distribuição,por exemplo, aci<strong>de</strong>ntes durante a execução da logística, da entrega <strong>de</strong>materiais, quando o material <strong>de</strong> construção, o <strong>de</strong>slocamento <strong>de</strong> profissionaise, no caso, no uso, por exemplo, po<strong>de</strong>ríamos i<strong>de</strong>ntificar algumas122


coisas. Por exemplo, o ruído durante a utilização das ruas, estradas, viasférreas, fluviais e aéreas. Temos trânsito <strong>de</strong> veículos privados, públicosou comerciais, trânsito <strong>de</strong> trens, <strong>de</strong> metrô, <strong>de</strong> aviões. Temos também aparte do trânsito aéreo. Trânsito fluvial. Enfim, nós teremos <strong>de</strong> sistematizarcomo uma forma <strong>de</strong> estratégia disso. Aon<strong>de</strong> é que vamos buscarna <strong>Psicologia</strong> fundamento para trabalhar com isso? Existe a teoria<strong>de</strong>senvolvida por Roger Barker, que dá uma sustentação teórica muitointeressante, que é a teoria do behavior setting. O que é o <strong>de</strong>sastre? Senós pensarmos nesses behavior settings do trânsito, o <strong>de</strong>sastre nadamais é do que um evento que inva<strong>de</strong> esse behavior setting <strong>de</strong> seu funcionamento– bom ou mau, não nos interessa – comum, diário e alteratoda sua estrutura e seu funcionamento. Aqui, temos, então, tambémum conflito <strong>de</strong>sse aparato que é todo movimentado para entrar emação na hora do evento em si, querendo entrar no behavior setting,querendo entrar nesse cenário. Pessoas querendo sair <strong>de</strong>sse cenário,pessoas que não têm dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> locomoção, pessoas <strong>de</strong>ficientesvisuais, pessoas que estão na rua, pessoas que estão ouvindo aqui no<strong>Conselho</strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong>, no <strong>Conselho</strong> Regional <strong>de</strong> <strong>Psicologia</strong> sobre <strong>de</strong>sastres,<strong>de</strong> repente, isso inva<strong>de</strong>. Há toda uma alteração e a importância <strong>de</strong> nósestudarmos isso: é justamente <strong>de</strong> saber como po<strong>de</strong>mos sistematizarisso, i<strong>de</strong>ntificando cada um <strong>de</strong>sses eventos, porque é diferente, porexemplo, um fato <strong>de</strong>sses que ocorre no trânsito terrestre do que ocorreno aéreo. Se ele está no centro da cida<strong>de</strong> ou se ele está fora da cida<strong>de</strong>.Po<strong>de</strong>mos i<strong>de</strong>ntificar algumas ações como, por exemplo, andar na rua,dirigir um auto, andar <strong>de</strong> ônibus, ou, então, um cenário envolvendotrem. Temos uma série <strong>de</strong> eventos que vão acontecendo e que nessemomento eu vou ter uma visualização on<strong>de</strong> que nós como psicólogospo<strong>de</strong>mos intervir e qual é a contribuição que posso dar para esseevento. É aquela famosa fórmula do nosso amigo Kurt Levin. Ele revolucionoua <strong>Psicologia</strong>. Aqui, no Brasil, muitas vezes, ele não é visto comoum fator, assim, tão revolucionário, mas ele revolucionou a <strong>Psicologia</strong>.Pelo simples fato <strong>de</strong> ele colocar naquela formula C = f (PxA), ou seja,comportamento igual à função da pessoa com o ambiente. No momentoem que ele colocou o ambiente, conseguiu revolucionar, porque123


justamente era tudo centrado somente na individualização, na pessoa,e era uma tentativa <strong>de</strong> explicação reducionista. Por que reducionista?A mídia tem um fator muito importante na formulação da i<strong>de</strong>ia, daimagem que uma pessoa tem do <strong>de</strong>sastre. Essa é a notícia que eu recebo,que eu leio no jornal. É a notícia que eu ouço no rádio. É o meu vizinhobatendo: “Saia daqui, porque aconteceu um aci<strong>de</strong>nte. Estamos contaminados”.Tem a ver com a diferença também <strong>de</strong> tipo <strong>de</strong> substância, se é algoque eu percebo ou se é algo, como, por exemplo, aconteceu infelizmenteaqui no Brasil, em 1987, o aci<strong>de</strong>nte com o Césio 137, em Goiânia. Houveuma alteração, essa normalida<strong>de</strong> foi alterada. Nós captamos isso poralguns órgãos dos sentidos. Se não foi, sem problema nenhum. Vou continuarda mesma forma. Se alguém que trabalha especificamente com<strong>de</strong>sastres receber essa notícia, já vamos ter outra noção, diferentemente<strong>de</strong> alguém que não teve essas informações. Consequentemente, vamoster ações diferentes. Então, nesse primeiro momento: se sim, uma construçãoimaginária, <strong>de</strong> uma situação <strong>de</strong> ameaça. Não necessariamente éreal, mas para isso o sujeito vai ter a parte do conhecimento, a motivação,a emoção, que vai entrar, especificamente, no momento para contribuir,para ele se informar do que está acontecendo e, a partir disso, ele vai estabeleceras metas, vai priorizar metas, vai agir, vai avaliar essa ação <strong>de</strong>le,vai ver se isso teve efeitos colaterais. Se teve, isso volta, vai ter <strong>de</strong> reformularesse planejamento. Se não, vai retornar à normalida<strong>de</strong>. Mas já digopara vocês que quem passa uma situação extrema nunca mais será omesmo, a normalida<strong>de</strong> para ele. As maiores dificulda<strong>de</strong>s como falamos, éque uma área, um tema tão abrangente envolve diversas áreas. Temos <strong>de</strong>trabalhar com áreas como Física, Engenharia, Economia, Medicina, Direito,Política, Administração, Geografia, Sociologia, <strong>Psicologia</strong> e assim pordiante. Nós po<strong>de</strong>ríamos enumerar “n” outras. A dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong>sses planosestá justamente nesse diálogo entre as áreas, porque todos, na realida<strong>de</strong>,querem ser o “pai da criança”. Ninguém quer ser o “padrinho da criança”!Então, muitas vezes, nós temos essa noção <strong>de</strong> que as coisas sedão <strong>de</strong>ssa forma. Alguns tipos <strong>de</strong> trabalhos que são feitos em <strong>Psicologia</strong>,em termos <strong>de</strong> <strong>Psicologia</strong> aplicada. Uma situação anterior a um<strong>de</strong>sastre, durante um <strong>de</strong>sastre e após um <strong>de</strong>sastre. A pesquisa básica124


fundamentalmente trabalha com a questão <strong>de</strong> a pessoa como vítima<strong>de</strong> um <strong>de</strong>sastre ou então, como coautora <strong>de</strong> <strong>de</strong>sastre, ou seja, aqueleque contribui também para o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong>sses <strong>de</strong>sastres. Sãonoscolocados alguns <strong>de</strong>safios. Eu tentei sistematizar isso da seguinteforma: a dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> trabalhar a questão <strong>de</strong> uma cultura preventiva.O primeiro <strong>de</strong>safio vai ser basicamente outro. O segundo é transitarnessas outras áreas. Nós, psicólogos, temos dificulda<strong>de</strong>, diferentementedos arquitetos, por exemplo, que têm uma i<strong>de</strong>ia. O arquitetochega lá: está aqui a minha i<strong>de</strong>ia. Nós, psicólogos, infelizmente, nãoconseguimos, na maioria das vezes, materializar. Nós somos sujeitoslimitados. O terceiro <strong>de</strong>safio vai trabalhar com esses outros paradigmas,usar outros paradigmas. Po<strong>de</strong>r ter uma flexibilida<strong>de</strong> metodológica,um planejamento estratégico. Sugiro, inclusive, o método ZOP,que é o método que trabalha com grupos, com comunida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> participação,uma versão, na realida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> agências <strong>de</strong> fomento inglesascom alemãs, em países em <strong>de</strong>senvolvimento. Isso há muitos anos jáfoi testado e funciona muito bem. Ele está lá trabalhando a questão.O exemplo é uma questão ambiental, mas é só você trocar o exemploe po<strong>de</strong> trabalhar tranquilamente com isso e é muito bem-aceito emtermos <strong>de</strong> metodologia.O quinto <strong>de</strong>safio seria gerenciar a crise, essa situação <strong>de</strong> crise. Osexto está ali falando especificamente por uma re<strong>de</strong> nacional, que nós,na realida<strong>de</strong>, já temos trabalhado com isso algum tempo. Daria perfeitamentepara agregar, somar a isso. Nós temos uma série <strong>de</strong> vantagensque a cida<strong>de</strong> nos oferece; no entanto, em termos <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida,ela é péssima. In<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente <strong>de</strong> estarmos aqui discutindo o queé importante fazer, os tornados já começaram! Vocês viram lá no Sul. Játemos tornados, já temos situações, eventos adversos que anteriormentenão tínhamos e o tempo urge, o tempo urge e nos coloca, como psicólogos,um <strong>de</strong>safio muito gran<strong>de</strong>.125


Mesa - Questões socioambientais,urbanas e qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida:refazendo as geografias das cida<strong>de</strong>sAlexsan<strong>de</strong>r Barros Silveira 16O que é poluição atmosférica? É o lançamento na atmosfera<strong>de</strong> matéria ou energia que possa tornar o ar impróprio, nocivo ouofensivo à saú<strong>de</strong> e essa que é a principal questão quando se preten<strong>de</strong>controlar a poluição atmosférica (saú<strong>de</strong>), exatamente salvaguardara saú<strong>de</strong> humana, que é o principal objetivo. Inconveniente ao bemestarpúblico, então, nós temos também problema <strong>de</strong> incômodo relacionadoa odores, a poeira sedimentável, que é um problema especialmenteimportante na Região da Gran<strong>de</strong> Vitória. Vou <strong>de</strong>talhar issomais à frente. Danoso aos materiais, à fauna e à flora. Então, além doser humano, o meio ambiente como um todo, o ecossistema comoum todo, sofre os efeitos da poluição atmosférica. Então, existem poluentesque <strong>de</strong>gradam o meio ambiente como um todo, não apenasa saú<strong>de</strong> humana. Existem os fitotóxicos, que são agressivos aos vegetais,os que <strong>de</strong>gradam os bens materiais e os que são nocivos aos<strong>de</strong>mais animais. Atacam também as próprias características da atmosfera,como visibilida<strong>de</strong>, regime <strong>de</strong> ventos, regime <strong>de</strong> chuvas, pre-16 Engenheiro Civil, mestre em Engenharia Ambiental, coor<strong>de</strong>nador da Re<strong>de</strong> <strong>de</strong>Monitoramento da Qualida<strong>de</strong> do Ar do Instituto Estadual do Meio Ambiente e RecursosHídricos (Iema).127


judicial à segurança e ao uso e gozo da proprieda<strong>de</strong> e as ativida<strong>de</strong>snormais da comunida<strong>de</strong>. A poluição atmosférica é bem ampla. E issotem sido bastante divulgado na mídia, principalmente acerca <strong>de</strong> umproblema <strong>de</strong> poluição atmosférica <strong>de</strong> caráter global, o aquecimentoglobal ou o efeito estufa, que é muito falado, principalmente atribuídoaos compostos <strong>de</strong> carbono emitidos por ativida<strong>de</strong>s industriais,por queimadas, mas também por veículos automotores. Mas é claroque o efeito estufa e o aquecimento global são a última escala, em setratando <strong>de</strong> poluição atmosférica. Nós temos diversas escalas, <strong>de</strong>s<strong>de</strong>escalas locais, quando estamos preocupados com a saú<strong>de</strong> humana,ou seja, o poluente vai ser emitido e vai causar os danos próximo<strong>de</strong> on<strong>de</strong> ele é emitido e on<strong>de</strong> ele é observado. Nós temos uma escalamaior, chamada <strong>de</strong> escala regional, em que esses poluentes vãocausar danos a distâncias maiores <strong>de</strong> on<strong>de</strong> ele foi emitido, como, porexemplo, a chuva ácida ou o ozônio troposférico, que é um problema<strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s centros urbanos industriais, como São Paulo. E, por fim, osproblemas <strong>de</strong> escala global, como efeito estufa e buraco da camada<strong>de</strong> ozônio. Falemos sobre algumas fontes <strong>de</strong> poluição atmosférica,on<strong>de</strong> nós temos, as fontes naturais. A natureza, não somente o homem,também emite poluentes atmosféricos. A <strong>de</strong>gradação biológicalibera compostos <strong>de</strong> amônia e <strong>de</strong> enxofre, que causam problemas <strong>de</strong>odor. Temos a emissão antropogênica, ou seja, causada pelo homem,como a emissão industrial e a emissão veicular, que é nosso foco aqui.A emissão veicular tem sido cada vez mais importante nos nossosdias. Inclusive, foi aprovada uma resolução no Conama que obrigaestados e municípios a implantar um programa <strong>de</strong> inspeção e manutençãoveicular, programas estes que as cida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> São Paulo e doRio <strong>de</strong> Janeiro já possuem. Essa Resolução <strong>de</strong>termina a implantação<strong>de</strong>sse programa para os estados e as cida<strong>de</strong>s com frota veicular acima<strong>de</strong> três milhões <strong>de</strong> veículos, exatamente por conta do crescimento<strong>de</strong>ssa frota e dos impactos que isso implica na saú<strong>de</strong> e na qualida<strong>de</strong><strong>de</strong> vida das pessoas. Temos aqui o material particulado formado<strong>de</strong> três formas diferentes, que é um dos problemas relacionados àemissão veicular. Nós temos o formado mecanicamente, por abrasão,128


explosão ou arraste. Esse é um material particulado mais grosso. Nãocausa problema <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> diretamente por <strong>de</strong>posição pulmonar, <strong>de</strong>vidoaos sistemas naturais <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa que nós temos para expectoraresse tipo <strong>de</strong> particulado. A grosso modo, a literatura fala que são osparticulados acima <strong>de</strong> 100 mícrons. Para se ter uma i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m <strong>de</strong>gran<strong>de</strong>za, 50 mícrons é o diâmetro do fio <strong>de</strong> cabelo <strong>de</strong> vocês. Outrotipo <strong>de</strong> material particulado é formado pela acumulação (coagulação)<strong>de</strong> partículas menores geradas a altas temperaturas, que é omaterial particulado formado por combustão. Esse sim é o materialparticulado mais perigoso, <strong>de</strong>vido a seu tamanho. Ele forma flocos,em <strong>de</strong>corrência das altas temperaturas nas quais ele é gerado e, <strong>de</strong>vidoa seu tamanho, ele tem uma capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> penetrar no sistemarespiratório humano e ali permanecer <strong>de</strong> forma até permanente. Éo tipo <strong>de</strong> material particulado gerado pela fumaça do cigarro, porexemplo, além da emissão veicular. Este representa o material particuladoque nós temos em regiões urbanas e industriais, como SãoPaulo, que são os particulados gerados por queima, absorvidos na superfície<strong>de</strong> materiais particulados gerados por abrasão. Os poluentesatmosféricos po<strong>de</strong>m ser divididos a grosso modo em duas classes. É achamada classificação físico-química com relação ao estado físico eà família química na qual ele está situado. Assim, po<strong>de</strong>mos classificálosem gases e material particulado. Nós temos os gases compostosinorgânicos <strong>de</strong> carbono (CO e CO2). Ambos são emitidos por queima,principalmente queima veicular. O CO, que é extremamente preocupantecom relação à saú<strong>de</strong>, por não ser percebido por nenhum sentidohumano: não tem cheiro nem cor. Ele é um gás extremamenteperigoso, porque a hemoglobina do sangue tem afinida<strong>de</strong> químicacom ele 210 vezes maior que com o oxigênio. Em contato com essegás, nossas hemoglobinas <strong>de</strong>ixam <strong>de</strong> ser alimentadas por oxigênio epassam a ser alimentadas por monóxido <strong>de</strong> carbono, po<strong>de</strong>ndo levaro indivíduo a morrer por asfixia. É o caso, por exemplo, <strong>de</strong> quem fica<strong>de</strong>ntro da garagem, com a porta fechada e com o carro ligado. Odióxido <strong>de</strong> carbono (CO2), que é outro composto inorgânico <strong>de</strong> carbono,está relacionado ao aquecimento global. Temos os compostos129


<strong>de</strong> enxofre, em que o chamado SO2, o dióxido <strong>de</strong> enxofre, é o principalrepresentante, também emitido pela queima <strong>de</strong> combustíveis fósseiscom teor <strong>de</strong> enxofre e é a gran<strong>de</strong> discussão que se faz hoje quantoao combustível diesel no Brasil: o seu teor <strong>de</strong> enxofre. Temos os compostos<strong>de</strong> nitrogênio. Estão presentes em todo tipo <strong>de</strong> queima, <strong>de</strong>vidoa sua composição na atmosfera, <strong>de</strong> aproximadamente 78%. Temos oozônio, que não é emitido por nenhuma fonte, mas é gerado fotoquimicamentepor meio <strong>de</strong> reações químicas, a partir dos chamados precursoresfotoquímicos, ou seja, você lança compostos <strong>de</strong> nitrogênioe compostos orgânicos voláteis e esses dois compostos, na presençada radiação solar, dão origem a um ciclo <strong>de</strong> reações que formarão oozônio troposférico. Também bastante agressivo, nocivo aos vegetais,corrosivo aos materiais, oxida até mesmo um fio <strong>de</strong> cabelo. Temos oscompostos orgânicos voláteis, principalmente emitidos pela ativida<strong>de</strong>industrial, são teratogênicos, mutagênicos e cancerígenos, ou seja,provocam câncer, alteram o DNA da célula e po<strong>de</strong>m provocar danosà formação fetal.E, por fim, o material particulado. A grosso modo, é aquilo quepo<strong>de</strong> ser lançado na atmosfera e ficar algum tempo em suspensão naforma sólida ou na forma líquida, exceto gotículas <strong>de</strong> água, é claro.Então, temos poeira em uma escala maior, ou seja, particulados <strong>de</strong>maior diâmetro. Nós não temos a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> inalá-la (poeira),<strong>de</strong>vido a uma série <strong>de</strong> mecanismos <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa natural para expectoraresse agente estranho inalado. Então, primeiro, ao inalar o gás, o ar daatmosfera, ele é ume<strong>de</strong>cido, aquecido e filtrado em nossas fossas nasais.Depois, nós temos uma mucosa ao longo do nosso sistema respiratóriosuperior, que visa exatamente a capturar esse agente estranhoe expectorá-lo por meio <strong>de</strong> tosse, catarro ou espirro e, por fim, cílios<strong>de</strong> natureza fibrosa ao longo da nossa traqueia, sempre funcionandoem movimento ascen<strong>de</strong>nte, chamado <strong>de</strong> escada rolante muco-ciliar,que visa exatamente a expectorar tudo que for capturado. Então, essematerial mais grosseiro tem baixo po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> impacto em nossa saú<strong>de</strong>,mas provoca incômodo. É um problema, por exemplo, <strong>de</strong> Vitória,on<strong>de</strong> as pessoas têm <strong>de</strong> limpar suas casas várias vezes ao dia <strong>de</strong>vido130


à <strong>de</strong>posição causada sobre os móveis <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> casa, o que tambémcaracteriza uma forma <strong>de</strong> poluição. Partículas Totais em Suspensão(PTS), que po<strong>de</strong>m ser um indicador <strong>de</strong> poeira. É tudo que está emsuspensão na atmosfera. O problema é que a poeira é <strong>de</strong>positadanas imediações <strong>de</strong> on<strong>de</strong> ela é gerada. Partículas Respiráveis ou PM10,é aquilo que você consegue respirar, mas que você ainda consegueexpectorar pelos mecanismos <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa que eu expliquei. Partículasinaláveis, ou PM2,5, são partículas abaixo <strong>de</strong> 2,5 mícrons. Nossa legislaçãoainda não contempla padrão para esse parâmetro, apesar <strong>de</strong>ser o mais importante, em se tratando <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> humana. Só para seter uma i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>za, quando se fala <strong>de</strong> material particulado,este seria o tamanho do menor grão <strong>de</strong> areia <strong>de</strong> uma praia.Este é o diâmetro do fio <strong>de</strong> cabelo <strong>de</strong> vocês. Dentro do diâmetro <strong>de</strong>cada fio <strong>de</strong> cabelo <strong>de</strong> vocês seria possível colocar cinco diâmetros <strong>de</strong>PM10 da nossa legislação, que é a partícula mais fina. E <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> umdiâmetro aerodinâmico do PM10, seria possível colocar mais quatrodiâmetros do PM2,5, o que já é contemplado na legislação da EPA –Agência <strong>de</strong> Proteção Ambiental Norte-Americana, da União Europeiae nas diretrizes da OMS. Já existem diretrizes <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong> do ar daOrganização Mundial <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> que ainda não estão contempladasem nossa legislação, que é relativamente ultrapassada em comparaçãocom legislações internacionais. Nossa legislação em vigência éa resolução Conama n° 3, <strong>de</strong> 1990. Ela é uma legislação do final dadécada <strong>de</strong> 80, baseada em estudos das décadas <strong>de</strong> 60 e 70. Então, jáestá bastante <strong>de</strong>satualizada. Para ser ter uma i<strong>de</strong>ia da importânciada população atmosférica, <strong>de</strong> todos os tipos <strong>de</strong> <strong>de</strong>núncia ao órgãoambiental, não só na Região da Gran<strong>de</strong> Vitória, mas no Espírito Santo,como por exemplo construção irregular, <strong>de</strong>smatamento, extraçãomineral, lixo, etc., a poluição atmosférica é a campeã <strong>de</strong> audiência. Éo que mais incomoda a população do Espírito Santo, mas não é sóprivilégio do Espírito Santo, a poluição atmosférica. Ela está presenteon<strong>de</strong> o homem <strong>de</strong>senvolve suas ativida<strong>de</strong>s industriais, urbanas, on<strong>de</strong>existem gran<strong>de</strong>s tráfegos veiculares, como São Paulo, Rio <strong>de</strong> Janeiro,Distrito <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong>, Curitiba. A poluição veicular está bastante presente.131


Esse é o dado <strong>de</strong> 2007. No dado <strong>de</strong> 2008, ela caiu um ponto percentual.Passou a ser <strong>de</strong> 24%, mas ainda assim é a principal preocupaçãodo órgão ambiental. O inventário <strong>de</strong> fontes da Região da Gran<strong>de</strong>Vitória, em se tratando <strong>de</strong> PM10, que é aquele material particuladomais fino <strong>de</strong>ntro da nossa legislação, fontes móveis correspon<strong>de</strong>m a7,53%. A ativida<strong>de</strong> pelotizadora (formação <strong>de</strong> pelotas <strong>de</strong> minério <strong>de</strong>ferro), a aproximadamente 57%, si<strong>de</strong>rurgia, a 26% e as <strong>de</strong>mais ativida<strong>de</strong>saqui aos restantes 9,18%. Para as Partículas Totais em Suspensão(PTS), também relacionadas mais a características <strong>de</strong> incômodo,a ativida<strong>de</strong> mineradora sobe para quase 60%, e a si<strong>de</strong>rúrgica, 24%,pedreiras e outras formas <strong>de</strong> poluição respon<strong>de</strong>m pelo restante. Existeminventário dos outros poluentes, mas o material particulado éo mais preocupante para a Região da Gran<strong>de</strong> Vitória. Po<strong>de</strong>mos citartambém o dióxido <strong>de</strong> enxofre (SO2) emitido pela queima <strong>de</strong> combustíveisfósseis, como, por exemplo, ônibus, caminhões, automóveismovidos a diesel, principalmente com a alta composição <strong>de</strong> enxofre.As fontes móveis representam cerca <strong>de</strong> 1,6% da emissão na Região daGran<strong>de</strong> Vitória, sendo a principal contribuição <strong>de</strong> natureza industrial.Temos dióxido <strong>de</strong> nitrogênio, também emitido <strong>de</strong> forma bem significativapela ativida<strong>de</strong> veicular, chega a 16,79%. Lembrando que a frotaveicular do Espírito Santo todo é em torno <strong>de</strong> um milhão e trezentosmil veículos, enquanto estamos falando <strong>de</strong> cinco milhões <strong>de</strong> veículossó na região metropolitana <strong>de</strong> São Paulo. Outras fontes <strong>de</strong> SO2 sãoa si<strong>de</strong>rurgia, com 18%, e a ativida<strong>de</strong> pelotizadora com 63%. Temostambém o monóxido <strong>de</strong> carbono, aquele com a afinida<strong>de</strong> químicacom a hemoglobina, extremamente perigoso. Ele é muito significativona ativida<strong>de</strong> veicular, mesmo para a Região da Gran<strong>de</strong> Vitória, quetem uma característica <strong>de</strong> emissão <strong>de</strong> poluição atmosférica e eminentementeindustrial. A ativida<strong>de</strong> veicular correspon<strong>de</strong> a 99,66%da emissão <strong>de</strong>sse poluente. Quando se tira uma média <strong>de</strong> tudo isso, acontribuição veicular da Região da Gran<strong>de</strong> Vitória respon<strong>de</strong> por aproximadamente16% do total <strong>de</strong> emissões <strong>de</strong> poluentes atmosféricos.Quando se pensa, por exemplo, no Rio <strong>de</strong> Janeiro, isso sobe para algumacoisa da or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> 80%. Na região Metropolitana <strong>de</strong> São Paulo,132


isso sobe para alguma coisa da or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> 90%. Então, embora nossafrota veicular cresça substancialmente, ela ainda possui uma contribuiçãopequena, comparada com a ativida<strong>de</strong> industrial em outrosgran<strong>de</strong>s centros urbanos, principalmente da Região Su<strong>de</strong>ste.Outro problema da Região da Gran<strong>de</strong> Vitória e <strong>de</strong> outras localida<strong>de</strong>sdo país é a poeira sedimentável. Os objetos ficam completamenteimpregnados <strong>de</strong> poeira. Seria aquele material particuladomais grosseiro, gerado mecanicamente, que não tem a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong>a<strong>de</strong>ntrar no sistema respiratório, mas que também é um problema enão é contemplado por nossa legislação. Estamos com um convêniocom a Universida<strong>de</strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> do Espírito Santo, lá na Região da Gran<strong>de</strong>Vitória, para estudar a característica <strong>de</strong>ssa poeira sedimentável e ageração <strong>de</strong>la, objetivando alcançar um padrão <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong> do arpara aten<strong>de</strong>r os anseios e a necessida<strong>de</strong> da população com relação aesse problema ambiental. Então, além dos parâmetros regulamentadospela nossa legislação — monóxido <strong>de</strong> carbono, dióxido <strong>de</strong> enxofre,dióxido <strong>de</strong> nitrogênio, ozônio, material particulado (PM10 e PTS) —nós ainda monitoramos o hidrocarboneto, que é um indicativo doozônio, apesar <strong>de</strong> não ter padrão <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong>, e também a poeirasedimentável, por causa do incômodo que ela causa à população.Temos imagens <strong>de</strong> campanha <strong>de</strong> coleta da poeira sedimentável,diferenciando inclusive os pontos <strong>de</strong> maior <strong>de</strong>posição <strong>de</strong> poeira danossa re<strong>de</strong> e <strong>de</strong> menor <strong>de</strong>posição. Curiosamente, o ponto <strong>de</strong> maior<strong>de</strong>posição <strong>de</strong> poeira sedimentável é o ponto próximo a uma via <strong>de</strong>gran<strong>de</strong> circulação, que é a estação da Enseada do Suá. Inclusive, asprimeiras análises já mostraram que a nossa poeira sedimentável temuma contribuição significativa do material gerado pela emissão veicular,apesar <strong>de</strong> ser um material mais fino, nocivo à saú<strong>de</strong>. Em situações<strong>de</strong> <strong>de</strong>posição úmida, causada pela chuva ou pela <strong>de</strong>posiçãoseca, em situações <strong>de</strong> calmaria, quando não se tem uma velocida<strong>de</strong>do vento para transportar esse material, ele acaba se sedimentandoe também fazendo parte da poeira sedimentável. Aqui é a re<strong>de</strong> <strong>de</strong>monitoramento automático da qualida<strong>de</strong> do ar da Região da Gran<strong>de</strong>Vitória, composta <strong>de</strong> oito estações. A Região da Gran<strong>de</strong> Vitória133


é composta pelos municípios <strong>de</strong> Vitória, que é a capital do estado,Serra, Vila Velha, Cariacica e Viana. Aproximadamente <strong>de</strong> 60 a 65%da ativida<strong>de</strong>s industriais do Espírito Santo se encontram aqui. SãoPaulo tem re<strong>de</strong> <strong>de</strong> estações <strong>de</strong> monitoramento coor<strong>de</strong>nada pela Cetesb,que é, inclusive, a re<strong>de</strong> mais antiga do Brasil. Uma re<strong>de</strong> bemampla, com mais <strong>de</strong> 40 estações. Até por causa da dimensão, quandose tenta extrapolar os problemas <strong>de</strong> pequenas cida<strong>de</strong>s como Vitóriapara São Paulo temos <strong>de</strong> imaginar sempre uma dimensão muitomaior. Os resultados do monitoramento da nossa re<strong>de</strong> <strong>de</strong>monstramque eles apontam exatamente para valores inferiores ao que diz anorma brasileira, os nossos limites, chamados padrões <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong>do ar. O monitoramento das nossas oito estações apresenta valoressempre abaixo do nosso padrão, com tendência <strong>de</strong> estabilização.O dióxido <strong>de</strong> enxofre bem abaixo do padrão nacional. Dióxido <strong>de</strong>nitrogênio, também um dos mais importantes quando se trata <strong>de</strong>emissão veicular, está bastante abaixo do nosso padrão <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong>.Destaca-se a estação Vitória Centro, no centro da capital <strong>de</strong>Vitória, uma estação como todo gran<strong>de</strong> centro <strong>de</strong> uma metrópole,com um intenso tráfico veicular, com uma intensa contribuição veiculare que apresenta os maiores índices também para os óxidos <strong>de</strong>nitrogênio e o monóxido <strong>de</strong> carbono. Todas as cinco estações me<strong>de</strong>meste poluente e as medições vêm dando resultado sempre bompara monóxido <strong>de</strong> carbono. O ozônio, que está relacionado com aemissão veicular <strong>de</strong> hidrocarbonetos e óxidos <strong>de</strong> nitrogênio, apresentamaiores índices, principalmente com as estações mais afetadaspor contribuição veicular. E o ozônio a<strong>de</strong>ntra na região <strong>de</strong>nominada<strong>de</strong> regular. Então, a qualida<strong>de</strong> do ar, em algumas horas do ano,<strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser boa e passa para regular, mas ainda assim aten<strong>de</strong>ndoaos padrões <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong>. Na medição <strong>de</strong> partículas respiráveis éon<strong>de</strong> nós mais nos aproximamos do padrão <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong> do ar. Omaterial particulado é o principal problema da Região da Gran<strong>de</strong>Vitória, mesmo com o tráfico veicular pequeno, com crescimentomédio em torno <strong>de</strong> 7% ao ano, é bastante significativo. A genteespera, daqui alguns anos, já ter gran<strong>de</strong>s problemas <strong>de</strong> trânsito, <strong>de</strong>134


tráfego e <strong>de</strong> emissão como em gran<strong>de</strong>s centros urbanos industriaisdo Brasil. As partículas totais em suspensão também estão bastantepróximas dos padrões <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong> do ar. Ponta <strong>de</strong> Tubarão é umcomplexo industrial na Região da Gran<strong>de</strong> Vitória <strong>de</strong> importante ativida<strong>de</strong>industrial.Percebe-se que uma das gran<strong>de</strong>s contribuições é do tráfegoveicular. Então, o campo <strong>de</strong> vento, na Região da Gran<strong>de</strong> Vitória,que é região costeira, está sujeito à brisa marinha durante o dia ebrisa terrestre durante a noite, o que facilita bastante as questões<strong>de</strong> dispersão atmosférica. Ventos mo<strong>de</strong>rados da or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> 2,5 a 3metros por segundo para um dia típico do ano. Quando observa-sea evolução temporal da dispersão <strong>de</strong> NOX, <strong>de</strong> madrugada, há basicamentea contribuição industrial, na qual se <strong>de</strong>staca a Ponta <strong>de</strong>Tubarão. No horário <strong>de</strong> pico, as vias <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> circulação passam ater emissão significativa.135


Marcos Pimentel Bicalho 17A ANTP é uma ONG, uma associação não governamental, criadahá mais <strong>de</strong> trinta anos e que tem como sócios pessoas jurídicas, emsua maioria órgãos públicos. Des<strong>de</strong> sua origem, a ANTP fomenta a i<strong>de</strong>ia<strong>de</strong> que a movimentação nas cida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>veria ser baseada no transportepúblico. Nós temos uma tese sobre a qual fazemos estudos, pesquisas,publicações e diversos eventos procurando difundir uma visão <strong>de</strong>mobilida<strong>de</strong> urbana sustentável, que cada vez mais se afirma no Brasil.Nosso contato com o pessoal da área <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>, e eu estou tomando aliberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> tratar a <strong>Psicologia</strong> também como área <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>, tem sidomais na questão da aci<strong>de</strong>ntalida<strong>de</strong>, dos aci<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> trânsito. Nestaapresentação, <strong>de</strong>senvolverei um conceito que procura <strong>de</strong>monstrar umproblema: o esgotamento <strong>de</strong> um mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> mobilida<strong>de</strong> urbana e <strong>de</strong>urbanização que foi adotado em praticamente todas as cida<strong>de</strong>s brasileirasao longo do século passado.Cresce a percepção que não é possível tratar a mobilida<strong>de</strong> urbanacomo um conjunto <strong>de</strong> temas isolados, que, ao contrário, <strong>de</strong>vem serentendidos como um sistema <strong>de</strong> componentes, que são os veículos, osdiversos modos <strong>de</strong> transporte e as infraestruturas que são utilizados paraa movimentação <strong>de</strong> pessoas e <strong>de</strong> mercadorias. A gente po<strong>de</strong>ria extrapolaressa discussão para mobilida<strong>de</strong> geral, mas, como nós mexemos com o urbano,farei uma leitura mais das cida<strong>de</strong>s. Para todas as ativida<strong>de</strong>s humanas,a movimentação <strong>de</strong> pessoas e <strong>de</strong> coisas nas cida<strong>de</strong>s é fundamental.Então, a princípio, todas as estruturas, as ruas, os metrôs, os ônibus, oscarros, as motocicletas são úteis porque aten<strong>de</strong>m às nossas necessida<strong>de</strong>s.Porém, sob uma visão ambiental, essa mobilida<strong>de</strong> toda tem basicamenteduas consequências. Primeiro, para fazer essa movimentação, nós consu-17 Arquiteto e urbanista pela Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo (FAU USP). Mestre em administraçãopública pela Fundação Getúlio Vargas (FGV SP). Ex Superinten<strong>de</strong>nte da Empresa Pública <strong>de</strong> Transportes<strong>de</strong> Santo André – EPT (1997 a 2000). Ex Secretário <strong>de</strong> Transportes <strong>de</strong> Campinas (2001 a 2004).Superinten<strong>de</strong>nte da Associação Nacional <strong>de</strong> Transportes Públicos ANTP.137


mimos recursos naturais, alguns renováveis, alguns não renováveis, consumimosenergia e, principalmente, espaço. Os recursos renováveis supostamentesão infinitos, se a gente tiver uma taxa <strong>de</strong> renovação <strong>de</strong>ssesrecursos maior do que a <strong>de</strong> consumo. Os não renováveis, obviamente sãofinitos, ainda que consigamos incorporar novas reservas, como é o casodo pré-sal, para o petróleo, que permitirá o acesso a reservas cuja exploraçãoera até então economicamente inviável. A energia po<strong>de</strong> ser renovávelou não, mas o espaço é uma coisa finita. Ainda que nós possamosconstruir mais espaço – avenidas, viadutos, pontes – essa expansão temlimites e, nas cida<strong>de</strong>s como São Paulo, esse problema é crucial. Então, seé um bem escasso, portanto valioso, como esse espaço é produzido, paraquem e como ele é apropriado?Além dos consumos, a mobilida<strong>de</strong> gera impactos, que são, em primeirolugar, <strong>de</strong> âmbito local, ou seja, impactos que afetam uma escalalocal ou regional, que são sofridos por pessoas que estão próximas à regiãoon<strong>de</strong> eles são gerados e, a princípio, quanto mais distante da fontegeradora, mais preservado você está. É o caso da poluição do ar, do ruído,das vibrações, dos aci<strong>de</strong>ntes.O aci<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> trânsito é uma coisa <strong>de</strong> que normalmente os ambientalistasnão tratam. O aci<strong>de</strong>nte não é obra do acaso, não foi algoque “Deus quis”. E a gente enten<strong>de</strong> que um dos maiores impactos causadospelo atual mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> mobilida<strong>de</strong> são os aci<strong>de</strong>ntes. Esse assuntotem sido um tema muito interessante para a aproximação com opessoal da área da Saú<strong>de</strong>. Nós temos conversado com o Ministério daSaú<strong>de</strong>, em Brasília, e com os gestores <strong>de</strong> trânsito nas cida<strong>de</strong>s. Temosfeito uma gran<strong>de</strong> aproximação da discussão <strong>de</strong> transporte com a saú<strong>de</strong>por um conceito que eu consi<strong>de</strong>ro muito correto: área da Saú<strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>que os aci<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> trânsito, e as mortes <strong>de</strong>les <strong>de</strong>correntes,são evitáveis. Então, se é uma morte evitável, <strong>de</strong>vemos evitá-la. Certamenteninguém imagina ser possível zerar os aci<strong>de</strong>ntes, acabar comos aci<strong>de</strong>ntes, mas <strong>de</strong>ve ser perseguida uma política pública para tentarreduzir isso ao mínimo possível.Outra externalida<strong>de</strong>, outro impacto <strong>de</strong>ssa mobilida<strong>de</strong>, são oscongestionamentos, que têm efeitos na poluição, nos ruídos, e aqui138


asicamente nós falamos da capacida<strong>de</strong> do espaço que está disponívelpara receber a quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> veículos e as pessoas que vivemnas cida<strong>de</strong>s. Nós sempre pensamos em congestionamento <strong>de</strong> carro,mas há <strong>de</strong> bicicleta, <strong>de</strong> gente. Na rua 25 <strong>de</strong> Março, em dia <strong>de</strong> Natal,há um congestionamento enorme <strong>de</strong> pessoas, não são só carros.Outro impacto também importante, e pouco tratado, é o efeitobarreira. Uma rodovia, por exemplo, é uma estrutura <strong>de</strong> transporteque corta uma área urbana, ou por ela é envolvida, e funciona comouma barreira, seccionando os relacionamentos <strong>de</strong> vizinhança. Outroexemplo: pensem em uma rua <strong>de</strong> caráter local, que tem um uso e umaconvivência <strong>de</strong> vizinhança, <strong>de</strong> pessoas na rua e, quando a cida<strong>de</strong> setransforma, essa rua muda <strong>de</strong> caráter e vira uma avenida <strong>de</strong> maiormovimento e trânsito intenso. As relações sociais que aconteciamnessa rua, <strong>de</strong> vizinhança, <strong>de</strong> criança brincando, <strong>de</strong> convivência, sãorompidas, porque a nova situação muda totalmente aquele ambiente.Então, todas essas coisas, não apenas a poluição do ar, queé a mais comum, nós consi<strong>de</strong>ramos como externalida<strong>de</strong>s e comoimpactos negativos do mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> mobilida<strong>de</strong>.Tem também um outro impacto, o impacto global, que é o efeitoestufa, que afeta a todos; o urso polar, lá no Polo Norte, está sofrendoas consequências das emissões que acontecem aqui em São Paulo. Adiscussão ambiental internacional e europeia está muito concentradanesse aspecto. Eu, particularmente, acho que em nossas cida<strong>de</strong>sa discussão ten<strong>de</strong> a se concentrar nos impactos locais, porque nósnão temos isso por aqui resolvido. Talvez os europeus tenham resolvidomelhor a questão local e por isso estejam mais concentrados naquestão global. Nós estamos ainda na questão local.O problema é que os impactos gerados por essa mobilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>mda cida<strong>de</strong> que nós construímos e do mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> mobilida<strong>de</strong>que adotamos, dos modos <strong>de</strong> transporte que usamos nas cida<strong>de</strong>s. Nãoquero falar <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisões individuais, <strong>de</strong> usar o ônibus, ou a bicicleta ouo carro. Quero comentar a <strong>de</strong>cisão <strong>de</strong> políticas públicas, que geramas condições que fazem cada um <strong>de</strong> nós tomar a <strong>de</strong>cisão. E os custos<strong>de</strong>ssa mobilida<strong>de</strong>, os impactos, são gerados <strong>de</strong> maneira diferencial, <strong>de</strong>-139


pen<strong>de</strong> do grupo social e <strong>de</strong> uma série <strong>de</strong> condições.Lá na ANTP, nós fazemos algumas contas com base em um gran<strong>de</strong>banco <strong>de</strong> dados que coletamos nas cida<strong>de</strong>s brasileiras. Fazemosuma pesquisa nos 438 municípios que têm mais <strong>de</strong> 60 mil habitantes.O Brasil tem mais <strong>de</strong> cinco mil municípios, mas apenas 438 cida<strong>de</strong>stêm população acima <strong>de</strong> 60 mil habitantes. Esses 438 municípios,menos <strong>de</strong> 10% do total, respon<strong>de</strong>m por 80% <strong>de</strong> quase tudo, da frotada população, do PIB, do número <strong>de</strong> leitos hospitalares, do número<strong>de</strong> vagas das escolas, etc. Então, apesar <strong>de</strong> ser limitação da nossaabordagem, concentramos a nossa leitura nesses municípios. A pesquisaé feita com questionários mandados a todos esses municípios,e, como nem todos respon<strong>de</strong>m, <strong>de</strong>senvolvemos um sistema que temestimadores para calcular alguns dos números não informados quesão passiveis <strong>de</strong> ser parametrizados.No Brasil, nessas 438 cida<strong>de</strong>s, são feitas diariamente 150 milhões<strong>de</strong> viagens. O termo viagem não se refere apenas à pessoa que vai trabalhar.Se a pessoa vai e volta, são duas viagens. Se ela vai trabalhar, vaina escola e volta, são três viagens. Se vai ao supermercado, ao médico ouao cinema, são outras viagens. São 150 milhões <strong>de</strong> viagens estimadas, oque dá 50 bilhões <strong>de</strong> viagens por ano. Para essas viagens, há uma divisãomodal, entre quem vai <strong>de</strong> ônibus, <strong>de</strong> bicicleta, a pé, <strong>de</strong> carro, <strong>de</strong> moto.Então, basicamente, 40% das viagens feitas cotidianamente são feitaspor modos não motorizados, 38% a pé e 2% <strong>de</strong> bicicleta. Os cicloativistasacham que esses dados estão subestimados, que as pessoas, muitas vezes,não <strong>de</strong>claram nas pesquisas a bicicleta como meio <strong>de</strong> transporte, maso fato é que esse número está muito puxado para as gran<strong>de</strong>s cida<strong>de</strong>s.Nas pequenas cida<strong>de</strong>s, a bicicleta cresce muito em participação, em todocaso, a maioria das viagens é feita por meio motorizado.Entre as viagens motorizadas, basicamente, a divisão é meio a meio,50% são feitos por meios coletivos, ou seja, ônibus, trens, metrôs, e aoutra meta<strong>de</strong>, por meios individuais, automóveis e motocicletas basicamente,com as motos crescendo muito rapidamente nas gran<strong>de</strong>s cida<strong>de</strong>s.Excluindo as viagens feitas por meios não motorizados – porqueeu vou falar <strong>de</strong> impactos e a viagem a pé ou por bicicleta praticamente140


não tem impacto na emissão <strong>de</strong> poluentes ou nos congestionamentos enão tem impacto <strong>de</strong> consumo <strong>de</strong> energia, a não ser a própria energia dapessoa, as <strong>de</strong>mais viagens, feitas por modos <strong>de</strong> transporte motorizadosconsomem recursos e causam impactos <strong>de</strong> maneira bem diferenciada.Quando nós pegamos essa divisão modal entre os meios <strong>de</strong> transportecoletivos e individuais, e consi<strong>de</strong>ramos a emissão <strong>de</strong> poluentes,com base na quilometragem rodada, é possível calcular a quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong>poluentes emitidos na atmosfera por cada modo <strong>de</strong> transporte. Então,aquela relação <strong>de</strong> uso, que era meio a meio, torna-se praticamente <strong>de</strong>dois terços para um terço, ou seja, dois terços <strong>de</strong> toda a poluição veicularé emitida pelos veículos <strong>de</strong> transporte individual: automóveis e motos, eapenas um terço pelos modos coletivos.Consi<strong>de</strong>rando outro indicador, no Brasil morrem por ano mais <strong>de</strong>35 mil pessoas em aci<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> trânsito. Isso é mais ou menos como secaísse um avião por dia nas cida<strong>de</strong>s brasileiras, nas nossas ruas. Quandocai um avião, há uma gran<strong>de</strong> mobilização, mas um número <strong>de</strong> mortesequivalente a isso, por dia, espalhado pelo país inteiro, não gera nasocieda<strong>de</strong> a mesma comoção, mas 35 mil mortes por ano sensibilizama área da Saú<strong>de</strong>, que sente isso em dois momentos: na hora do tratamentoe na hora <strong>de</strong> pagar a conta.A ANTP fez um estudo junto com o Ipea, em 2003, que calculouque o país per<strong>de</strong> seis bilhões <strong>de</strong> reais por ano em aci<strong>de</strong>ntes, apenas nasvias urbanas; <strong>de</strong>pois fizemos um estudo específico para as estradas: sãooutros 22 bilhões <strong>de</strong> reais por ano perdidos em custos diretos <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>,perda <strong>de</strong> equipamentos, danos materiais e custos <strong>de</strong> horas perdidas <strong>de</strong>trabalho, por morte, ou por invali<strong>de</strong>z temporária ou permanente.Há ainda uma abordagem interessante, que não é consi<strong>de</strong>rada nessascontas, e que a <strong>Psicologia</strong> usa muito, os chamados <strong>de</strong> custos invisíveis,que são os traumas, as sequelas geradas nas outras pessoas e não sóem quem é aci<strong>de</strong>ntado. Por exemplo, os profissionais que trabalham noatendimento às ocorrências, como bombeiros, equipes <strong>de</strong> resgate, quenão são vítimas dos aci<strong>de</strong>ntes, mas também sofrem impactos psicológicosmuito fortes <strong>de</strong>correntes <strong>de</strong>ssa convivência com essa situação agressiva.Esses dados, não monetizáveis, não entraram na nossa conta.141


Voltando aos impactos, se fizermos, novamente, aquela conta daparticipação do transporte coletivo e do individual, o coletivo vai participarcom apenas 15% <strong>de</strong>sses custos e o individual, motocicleta e automóvel,com 85%, estando a motocicleta subindo com velocida<strong>de</strong> assustadoranessa participação, embora ainda seja pequena, perto do automóvel,porque a quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> motos em circulação ainda é pequena, mas hojejá se produz e se ven<strong>de</strong> tanta moto quanto automóvel.Um último indicador seria o consumo <strong>de</strong> energia, em que, tambémcomparando a distribuição entre o individual e o coletivo, vemos que otransporte coletivo respon<strong>de</strong> por apenas um quarto do consumo totalda energia consumida nessas viagens. Nesse caso, a energia é medidaem toneladas equivalentes <strong>de</strong> petróleo, mesmo para a energia elétrica,para ter um indicador comum. Conclusão, um quarto <strong>de</strong> toda a energianecessária para toda essa mobilida<strong>de</strong> urbana é consumido por transportecoletivo e três quartos pelo transporte individual.Se pegarmos isso tudo junto, temos uma distribuição <strong>de</strong> uso e umadistribuição <strong>de</strong> impactos <strong>de</strong> emissões, <strong>de</strong> aci<strong>de</strong>ntes e <strong>de</strong> consumo <strong>de</strong> energia.Na verda<strong>de</strong>, nosso mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> transporte tem uma série <strong>de</strong> impactose consequências, mas eles são majoritariamente gerados por apenas umdos agentes <strong>de</strong>sse processo: o transporte individual. Quem opta por usarautomóvel polui mais, gasta mais, consome mais, congestiona mais e matamais. Na visão que eu estou colocando, as políticas nacionais que nos levama usar o transporte individual fazem que esses custos, que chamamos<strong>de</strong> externalida<strong>de</strong>s, sejam altamente subsidiados pela maior parte dapopulação em benefício <strong>de</strong> poucos. Na verda<strong>de</strong>, as pessoas que usam otransporte individual geram um custo para a socieda<strong>de</strong> que não é pago porelas. Ele é pago pelo INSS, para as pessoas que precisam se aposentar maiscedo <strong>de</strong>vido aos aci<strong>de</strong>ntes, pela política <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, para tratar das doenças<strong>de</strong>correntes da poluição, pelos órgãos <strong>de</strong> trânsito e por uma série <strong>de</strong> estruturasque tratam <strong>de</strong> garantir esse mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> mobilida<strong>de</strong>. Qual é a consequência?Qual é a primeira conclusão que po<strong>de</strong>mos tirar <strong>de</strong>ssa leitura? Queo mo<strong>de</strong>lo brasileiro, que é o mo<strong>de</strong>lo que seguiu muito a visão americana,<strong>de</strong> basear a mobilida<strong>de</strong> e a própria expansão urbana no automóvel, nocaminhão, no ônibus, é extremamente <strong>de</strong>sigual.142


As cida<strong>de</strong>s construídas pelo e para os automóveis são bastante espraiadas,com uma parcela <strong>de</strong>sproporcional <strong>de</strong> espaços públicos <strong>de</strong>stinadosaos automóveis, que po<strong>de</strong>ria ser muito mais bem aproveitada se fossemutilizados os transportes coletivos. Enquanto que, para transportar75 pessoas em uma viagem, são necessários 60 automóveis, com umaocupação média <strong>de</strong> 1,5 pessoa por carro, ou seja, ocupando três faixas <strong>de</strong>quase uma quadra inteira, essas mesmas 75 pessoas po<strong>de</strong>riam ser confortavelmentetransportadas em apenas um ônibus, e elas usariam muitomenos espaço da via. Se usassem um VLT, ou um metrô, o consumo <strong>de</strong>espaço seria muito mais favorável ainda. Até se usassem bicicletas, essarelação seria mais favorável do que o uso do automóvel. Então, na verda<strong>de</strong>,o mo<strong>de</strong>lo que nós usamos em mobilida<strong>de</strong> é extremamente voraz.Ele consome energia, espaço, polui e mata com os aci<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> trânsito.O problema não po<strong>de</strong> ser atribuído apenas ao tamanho das cida<strong>de</strong>s.O que a cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo, em 1950, e a <strong>de</strong> Belo Horizonte, hoje, têmem comum? Ambas essas cida<strong>de</strong>s contavam com a população <strong>de</strong> cerca <strong>de</strong>dois milhões e meio <strong>de</strong> habitantes, mas seus problemas <strong>de</strong> circulação erammuito distintos. Então, o problema não é o tamanho. Essas duas cida<strong>de</strong>stinham populações semelhantes, porém, ocupavam o espaço <strong>de</strong> maneiratotalmente diferente. Nos anos 50, o Brasil se movimentava pelos trens,pelos bon<strong>de</strong>s, hoje nossas cida<strong>de</strong>s se movimentam basicamente pelo transporterodoviário. A área que São Paulo ocupava naquela época era <strong>de</strong> 300km², enquanto Belo Horizonte ocupa hoje 900 km², três vezes mais, o quesignifica uma enorme pressão sobre a provisão dos serviços públicos, água,asfalto, luz, coleta <strong>de</strong> lixo, transporte e talvez saú<strong>de</strong> também. Por fim, enquantoa frota <strong>de</strong> veículos automotores que circulava em São Paulo era <strong>de</strong>50 mil veículos, a frota atual <strong>de</strong> Belo Horizonte chega a 800 mil veículos, ouseja, 16 vezes mais carros, caminhões e ônibus do que tínhamos naquelaépoca, para transportar, a princípio, o mesmo número <strong>de</strong>. pessoas.É claro que o padrão <strong>de</strong> mobilida<strong>de</strong> mudou, a socieda<strong>de</strong> mudou suamaneira <strong>de</strong> se organizar. Mas o fato é que as cida<strong>de</strong>s que se estruturavampelo transporte coletivo <strong>de</strong>pendiam <strong>de</strong> outro padrão <strong>de</strong> mobilida<strong>de</strong>e contavam com uma estrutura que lhes permitia ser mais eficientes. Issoé uma discussão dos urbanistas, uma discussão do uso do solo, <strong>de</strong> como143


se controla o processo <strong>de</strong> crescimento da cida<strong>de</strong>. Esse mo<strong>de</strong>lo, chamadopelo urbanista Nestor Goulart <strong>de</strong> dispersão urbana, nós criamos por contados meios <strong>de</strong> transportes mais flexíveis, a habitação foi se dispersando,a indústria se dispersou. Antigamente, a indústria ficava presa nas ferrovias,em São Paulo e outras cida<strong>de</strong>s, ocupavam as várzeas ao longo dosrios, on<strong>de</strong> estavam a ferrovia e os galpões industriais. Hoje, há indústriaem todo lugar. Não só a indústria, mas também os serviços e a habitação;as pessoas também se espalharam pelas periferias, tanto os pobres comoos ricos ten<strong>de</strong>m a se dispersar, ainda que por motivos diferentes.Consi<strong>de</strong>rando os custos, os consumos e os impactos causados pelosdiferentes modos <strong>de</strong> transporte, seria bom para todos nós, para a socieda<strong>de</strong>,se mais pessoas andassem <strong>de</strong> meio coletivos e menos pessoasutilizassem os automóveis e motocicletas, porque emitiríamos menospoluição, mataríamos menos pessoas, consumiríamos menos energia emenos espaço. Porém, o que está acontecendo em São Paulo, no Brasile no mundo inteiro é o contrário. Isto é, a participação <strong>de</strong> usuários queusam transporte coletivo vem caindo, enquanto cresce o número <strong>de</strong> pessoasque usam automóveis e motos. Esses dados são evi<strong>de</strong>ntes em umapesquisa <strong>de</strong> origem e <strong>de</strong>stino que o Metrô faz na Região Metropolitana<strong>de</strong> São Paulo a cada <strong>de</strong>z anos, então, São Paulo tem uma boa série histórica.Fora uma anomalia na última edição, que foi atribuída ao bilheteúnico, São Paulo segue a tendência mundial <strong>de</strong> crescimento do uso doautomóvel, da motocicleta e a queda do uso do transporte público.Ou seja, se nós temos um diagnóstico que o mo<strong>de</strong>lo atual <strong>de</strong> mobilida<strong>de</strong>urbana é um problema, a primeira conclusão é que esse problemaestá se agravando e ten<strong>de</strong> a se agravar, ou seja, nós estamos indo nocaminho errado. Imaginem o que acontece quando uma pessoa que usaônibus compra uma motocicleta, <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> usar o ônibus e passa a fazersuas viagens cotidianas <strong>de</strong> moto. O que acontece com os indicadores damobilida<strong>de</strong>? Essa pessoa passa a poluir quatro vezes mais e a emitir maispoluentes na sua viagem. É óbvio que um ônibus emite mais poluentesdo que uma moto, só que a moto tem uma pessoa em cima, o ônibustem 30, 40, 70. Então, o passageiro por veículo polui muito menos, consomemuito menos. A pessoa do nosso exemplo, além <strong>de</strong> poluir quatro144


vezes mais, consome 20% mais energia e consome quase três vezes maisespaço viário. Então, para a socieda<strong>de</strong>, essa <strong>de</strong>cisão (<strong>de</strong> trocar o ônibuspela motocicleta) foi um <strong>de</strong>sastre. Se todas as pessoas abandonarem osônibus e comprarem uma moto, nós teremos sérios impactos negativos.Agora, se foi ruim para a socieda<strong>de</strong>, para a pessoa que fez isso foi bom.Ela vai gastar menos tempo, <strong>de</strong>spen<strong>de</strong>rá menos esforço <strong>de</strong> <strong>de</strong>slocamento,pois vai escolher os seus caminhos i<strong>de</strong>ais, e, principalmente, vai gastar muitomenos, quase meta<strong>de</strong> do que gastava com o transporte coletivo.Qual que é a nossa preocupação? Nós queremos que as pessoasusem o transporte coletivo, mas nós todos faríamos exatamente o contrário,porque nós fazemos o que é melhor para nós. Então, isso é umproblema, e como que se explica esse problema?Em São Paulo, quando as pessoas saem <strong>de</strong> casa e vêm para cá, porexemplo, elas fazem uma escolha: como que eu vou? As pessoas po<strong>de</strong>mir <strong>de</strong> metrô, <strong>de</strong> ônibus, a pé ou <strong>de</strong> carro. Nessa opção elas levam em contabasicamente dois fatores: o tempo que elas vão gastar e o quanto elasvão <strong>de</strong>sembolsar. Então, nós na ANTP fizemos uma simulação <strong>de</strong> umaviagem média <strong>de</strong> sete quilômetros em São Paulo, se a pessoa for a pé, <strong>de</strong>ônibus, <strong>de</strong> carro ou <strong>de</strong> moto. O metrô não foi incluído nessa comparaçãoporque nem todas as regiões da cida<strong>de</strong> têm acesso ao metrô, mas existemônibus, carros e motos em todos os lugares.Estimamos que, para chegar até o ponto <strong>de</strong> ônibus, essa pessoavai caminhar 12 minutos. Se ela tem um carro ou uma moto na garagem,é só o tempo <strong>de</strong> abrir o portão, é muito rápido. Aí tem um tempo<strong>de</strong> espera no ponto <strong>de</strong> ônibus; supondo que é uma linha bastante frequente,seriam seis minutos <strong>de</strong> espera. Quem está <strong>de</strong> carro ou <strong>de</strong> motonão espera nada, pega o veículo e sai dirigindo. E por fim tem o tempo<strong>de</strong> viagem que, obviamente, é maior no ônibus, um pouco menor nocarro e bem menor na motocicleta. O resultado, em termos <strong>de</strong> tempo,é que quem foi <strong>de</strong> carro gastou meta<strong>de</strong> do tempo do que quem foi <strong>de</strong>ônibus e quem foi <strong>de</strong> moto, um terço do tempo. Ou seja, é mais rápido,evi<strong>de</strong>ntemente. Isso é óbvio, não?E o custo? Consi<strong>de</strong>rando o preço da tarifa vigente em São Paulo parao ônibus e consi<strong>de</strong>rando apenas o custo da gasolina e do estacionamento,145


para o transporte individual, foi feita a mesma comparação entre os trêsmodos, em termos <strong>de</strong> <strong>de</strong>sembolso. Ah, mas o usuário do transporte individualnão paga o IPVA, o seguro obrigatório, a prestação da moto? Paga, masisso ele já pagou, não entra nessa <strong>de</strong>cisão <strong>de</strong> usar ou não usar o veículo. Oresultado é que o custo da viagem <strong>de</strong> carro é quase a mesma coisa, parauma viagem curta, do que o da viagem por ônibus, e a viagem <strong>de</strong> moto émuito mais barata, sem falar na comodida<strong>de</strong>, no conforto ou no status dotransporte individual. Moral da história: qualquer um <strong>de</strong> nós só continuaráusando os ônibus se não pu<strong>de</strong>r comprar um carro ou uma moto.Tempo <strong>de</strong> viagem Ônibus Carro MotoA pé até o ponto (min) 12 2 2Espera (min) 6 0 0Tempo no veículo (min) 25 18 14Tempo total gasto na viagem (min) 43 20 16Fator tempo 1,00 0,47 0,37Gasto <strong>de</strong>sembolsado (R$) 2,30 2,16 0,71Fator custo 1,00 0,94 0,31As pessoas escolherão sempre o que for mais conveniente para elas,portanto, se quisermos mudar o modo como as pessoas se <strong>de</strong>slocam na cida<strong>de</strong>,como a ANTP <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>, nós temos <strong>de</strong> intervir sobre essa matriz. Como?Nós temos <strong>de</strong> diminuir o tempo e o custo das viagem dos coletivos. Construircorredores exclusivos para os ônibus, por exemplo, reduz os tempos <strong>de</strong>viagem e reduz custos operacionais, como implantar pedágio urbano parao transporte individual é uma forma <strong>de</strong> aumentar o seu custo, além <strong>de</strong> seruma maneira <strong>de</strong> cobrar <strong>de</strong>ssas pessoas aqueles efeitos negativos (externalida<strong>de</strong>s)com a emissão <strong>de</strong> poluição, consumo <strong>de</strong> energia, contribuição paraos congestionamentos ou participação nos aci<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> trânsito. Por outrolado, se nós não mexermos nessa matriz, as pessoas continuarão, cada vezmais, usando carro e motocicleta e menos transporte coletivo.Qual o resultado disso? Nós últimos 15 anos, no Brasil, cresceu avenda <strong>de</strong> automóveis, cresceu a venda <strong>de</strong> motos vertiginosamente e o146


uso do transporte público caiu em todas as capitais brasileiras. Essessão indicadores preocupantes. São Paulo, em 1998, tinha 300 carrospor dia sendo registrados, hoje, são mais <strong>de</strong> mil. Resultado: as montadorastiveram o melhor ano da história, um pouco abalado com a crise,mas já recuperado neste ano, enquanto os índices <strong>de</strong> congestionamentobatem sucessivos recor<strong>de</strong>s.E, apesar <strong>de</strong> haver crescimento da motorização (número médio <strong>de</strong>carros por habitante), há queda do índice <strong>de</strong> mobilida<strong>de</strong> (número médio<strong>de</strong> viagens por habitante), ou seja, temos mais carros, mas andamosmenos, porque não há espaço.Esses resultados não são gratuitos, temos políticas nos três níveis<strong>de</strong> governo, fe<strong>de</strong>ral, estadual e municipal, que levaram a essa situação.Por exemplo, o Fórum Nacional <strong>de</strong> Secretários <strong>de</strong> Transporte e a FrenteNacional <strong>de</strong> Prefeitos, com apoio da ANTP, reivindicam, há algumtempo, que haja uma política nacional <strong>de</strong> <strong>de</strong>soneração das tarifas <strong>de</strong>ônibus, pois elas são muito caras para a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> pagamento dapopulação brasileira. Nós propusemos um pacote <strong>de</strong> isenções fiscais,que já são aplicadas em outros setores, mas não ao transporte público,que permitiriam a redução das tarifas em 10%. A proposta foi rejeitadapela área econômica do governo fe<strong>de</strong>ral com a alegação que gerariaimpacto <strong>de</strong> cerca <strong>de</strong> R$ 2,5 bilhões por ano nas contas públicas, em renúnciasfiscais. Pouco <strong>de</strong>pois, quando houve aumento <strong>de</strong> combustíveis,o governo manteve congelada a gasolina e aumentou o diesel, com impactodireto nas tarifas dos ônibus. Para viabilizar esse congelamentodo preço da gasolina, o governo abriu mão da cobrança da Ci<strong>de</strong>, o quesignificou R$ 3 bilhões <strong>de</strong> renúncia fiscal no ano, ou seja, subsidiar oautomóvel po<strong>de</strong>, mas o transporte coletivo não.Mais recentemente, por conta da crise econômica mundial, o governotomou uma série <strong>de</strong> medidas anticrise, entre elas a redução <strong>de</strong> IPIpara a indústria automobilística que custou R$ 8,5 bilhões <strong>de</strong> renúnciafiscal. É claro que houve vantagens disso para a economia, na ca<strong>de</strong>iaprodutiva, na geração <strong>de</strong> impostos, mas na questão da mobilida<strong>de</strong> urbana,essa ação <strong>de</strong> estimular, cada vez mais, o acesso ao crédito e àcompra dos veículos populares é <strong>de</strong>sastrosa e precisa ser repensada.147


No âmbito dos governos estaduais e municipais o subsídio aos usuários<strong>de</strong> automóveis é diferente, mas não menos expressivo. Nós temosuma cultura, aplaudida, salvas exceções, por todos nós, classe média e pelosmeios <strong>de</strong> comunicação que acreditam que a solução do trânsito no Brasil éfazer obras viárias, apesar <strong>de</strong> São Paulo ser o principal exemplo <strong>de</strong> fracasso<strong>de</strong>sses investimentos. A ponte estaiada sobre o Rio Pinheiros, por exemplo,que custou 350 milhões <strong>de</strong> reais, foi apresentada como a solução dos problemas<strong>de</strong> trânsito na região, mas, se passarmos por lá, hoje, às cinco datar<strong>de</strong>, provavelmente ela estará totalmente congestionada.Então, nós temos políticas municipais, estaduais e fe<strong>de</strong>rais <strong>de</strong> estímuloao uso do automóvel e da motocicleta. Além <strong>de</strong> <strong>de</strong>nunciarmosque isso por si já é um problema enorme, há ainda outro aspecto negativo,que é a forma como as pessoas se apropriam da cida<strong>de</strong>, ou melhor,quem se beneficia <strong>de</strong>ssa política <strong>de</strong> mobilida<strong>de</strong>.Todos os estudos sobre mobilida<strong>de</strong>, no Brasil e no mundo, mostramque as pessoas se movimentam na cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> forma diferenciada, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ndodo gênero, da renda, da ida<strong>de</strong> e <strong>de</strong> outras condições socioeconômicas,isto é, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ndo <strong>de</strong>ssas condições, as pessoas se movimentammais e, portanto, apropriam-se mais facilmente das oportunida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>emprego, educação ou lazer que a cida<strong>de</strong> oferece. Quanto mais renda aspessoas têm, mais elas viajam, ou seja, elas usam mais as coisas que a cida<strong>de</strong>oferece. Elas trabalham, vão à aula <strong>de</strong> inglês, ao <strong>de</strong>ntista, ao médico.Isso é culpa e é consequência do mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> transporte que adotamos.O mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> mobilida<strong>de</strong> urbana vigente na maior parte das cida<strong>de</strong>sbrasileiras, além <strong>de</strong> ser perverso, em termos <strong>de</strong> geração <strong>de</strong> impactos, éperverso na apropriação que permite que as pessoas, <strong>de</strong> diferentes condiçõessociais, possam ter da cida<strong>de</strong>. O nosso mo<strong>de</strong>lo favorece muito aspessoas que têm acesso ao carro, à motocicleta, ao transporte individual.Tradicionalmente as prefeituras concentram investimentos nas áreas<strong>de</strong> maior renda, até porque lá há gran<strong>de</strong>s <strong>de</strong>mandas, e investem muitomais em obras <strong>de</strong>stinadas ao transporte individual do que ao transportecoletivo. Na verda<strong>de</strong>, a maior parte dos gastos no sistema viário, um espaçopúblico que <strong>de</strong>veria ser para todos, é <strong>de</strong>stinada aos usuários do transporteindividual. Então, a rua, que é um espaço público, é apropriada?148


Uma pesquisa feita pela ANTP mostrou que, se tirarmos uma fotoaérea da área central <strong>de</strong> <strong>de</strong>z cida<strong>de</strong>s brasileiras, e medirmos quantospor cento na rua são ocupados por carros ou por ônibus, veremos queos automóveis ocupam cerca <strong>de</strong> 80% <strong>de</strong> todo o espaço viário, lembrandoque essa relação se inverteria totalmente se pudéssemos contar aspessoas e não os veículos. São muito mais pessoas espremidas nos 20%do espaço <strong>de</strong>stinado aos ônibus do que utilizando os 80% do espaçodados aos automóveis. Lembrando que as ruas são construídas comdinheiro público, nós estamos subsidiando o transporte <strong>de</strong>ssas poucase privilegiadas pessoas, enquanto a maior parte da população, que <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>dos coletivos, fica con<strong>de</strong>nada a um transporte <strong>de</strong> má qualida<strong>de</strong>.149


Hartmut Günther 18Ser convidado para falar sobre o trânsito no contexto <strong>de</strong> umamesa cujo título é Questões socioambientais, urbanas e qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong>vida, refazendo a geografia das cida<strong>de</strong>s dá margem a imaginar uma série<strong>de</strong> temas e olhares. Como professor <strong>de</strong> <strong>Psicologia</strong> ambiental tento irum pouco mais fundo na dimensão humana do trânsito. Dessa maneira,resolvi olhar a questão da mobilida<strong>de</strong> em si, tema este que está nocerne do trânsito. Antes <strong>de</strong> tecer algumas questões teóricos sobre mobilida<strong>de</strong>convém lembrar, do ponto <strong>de</strong> vista behaviorista, que a mobilida<strong>de</strong>é um fator básico para o ser humano, da mesma maneira como aprocura <strong>de</strong> comida ou <strong>de</strong> sexo. Aliás, antece<strong>de</strong> tal motivações primárias,já que sem mobilida<strong>de</strong> não haveria acesso aos reforços primários. Emoutras palavras, a mobilida<strong>de</strong> antece<strong>de</strong> os ditos reforços primários, já que aprópria mobilida<strong>de</strong> proporciona o acesso às nossas necessida<strong>de</strong>s. Literal efigurativamente, sem mobilida<strong>de</strong> não vamos muito longe.IntroduçãoComeço com dois exemplos <strong>de</strong> mobilida<strong>de</strong> entre crianças. NaFigura 1, vemos uma criança da tribo <strong>de</strong> índios norte-americanosNez Percé fotografada por Edward S. Curtis em 1911. Como po<strong>de</strong>mosver, a criança está totalmente imobilizada 19 e <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte doapoio dos pais ou <strong>de</strong> outros membros da tribo a que pertence. Acriança está sendo carregada e as necessida<strong>de</strong>s básicas são levadaspara ela. Já na Figura 2 vemos uma criança um pouco mais velha,que está explorando o ambiente <strong>de</strong>ntro do qual vive. Neste caso,está utilizando um apoio mecânico, um triciclo. Ela está se movendo,utilizando mobilida<strong>de</strong> para chegar on<strong>de</strong> vai encontrar algo18 Professor titular <strong>de</strong> <strong>Psicologia</strong> no Instituto <strong>de</strong> <strong>Psicologia</strong> da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong>Brasília e coor<strong>de</strong>nador do Laboratório <strong>de</strong> <strong>Psicologia</strong> Ambiental, on<strong>de</strong> realiza pesquisasnas áreas <strong>de</strong> <strong>Psicologia</strong> Ambiental, <strong>Psicologia</strong> do Trânsito e <strong>Psicologia</strong> Social. En<strong>de</strong>reçopara contato hartmut.gunther@gmail.com.19 Eu posso até imaginar que algumas pessoas aqui na audiência, ao se lembrar dosseus filhos adolescentes, talvez gostassem que eles fossem temporariamente imobilizados.151


<strong>de</strong> interesse para ela. Nessas figuras temos dois exemplos, ambosenvolvendo uma criança, apontando para a importância e as implicaçõesda mobilida<strong>de</strong>, no caso para o <strong>de</strong>senvolvimento humano.Dentro <strong>de</strong> poucos dias (9 <strong>de</strong> novembro 2009) lembraremos o20º aniversário da queda do muro <strong>de</strong> Berlim. Com a queda do muro,chegou ao fim a divisão física geográfica da Alemanha e a impossibilida<strong>de</strong><strong>de</strong> ir e vir, livremente, <strong>de</strong> um lado para o outro <strong>de</strong> uma dasfronteiras mais intransponíveis. A título <strong>de</strong> exemplo, apresenta-sena Figura 3 uma vista <strong>de</strong> um vilarejo antes da queda do muro e naFigura 4 a mesma vista após o fim da divisão da Alemanha. Emborapossa parecer um exemplo extremo, <strong>de</strong>monstra o que po<strong>de</strong> acontecerquando se impe<strong>de</strong> a movimentação <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um mesmo lugar.TeoriaVoltando à mobilida<strong>de</strong> e a seu impacto sobre nossa vida cotidiana,escolhi quatro conceitos básicos da <strong>Psicologia</strong> Ambiental,que dizem respeito ao conforto e ao bem-estar espacial em volta daspessoas: espaço pessoal, território, <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong>/aglomeração e privacida<strong>de</strong>.Sommer (1969) <strong>de</strong>fine espaço pessoal como uma “área com limitesinvisíveis cercando o corpo <strong>de</strong> uma pessoa na qual intrusos não sãopermitidos” (p. 26). Esse espaço em volta do indivíduo, uma área comlimites invisíveis que cerca o corpo <strong>de</strong> uma pessoa varia, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ndo<strong>de</strong> situações, dos contextos nos quais as pessoas se encontram. Nós nossentimos confortáveis quando o cabeleireiro se aproxima muito pertoe mexe com o cabelo, mas quando o mesmo cabeleireiro fica tão pertoem outra situação, a mesma distância interpessoal po<strong>de</strong> ser percebidacomo invasão do espaço pessoal e po<strong>de</strong> causar <strong>de</strong>sconforto. Assim,cabe observar que espaço pessoal é algo que está em volta da pessoa eacompanha a pessoa, à medida que esta se <strong>de</strong>sloca.Por outro lado, temos o território, que é um espaço mais estável.Gifford (1997) apresenta uma <strong>de</strong>finição abrangente <strong>de</strong> territorialida<strong>de</strong>como “conjunto <strong>de</strong> comportamentos e atitu<strong>de</strong>s porparte <strong>de</strong> um indivíduo ou grupo, baseados em controle percebido,tentado ou real sobre um espaço físico <strong>de</strong>finível, objeto ou i<strong>de</strong>ia,152


que po<strong>de</strong> implicar ocupação habitual, <strong>de</strong>fesa, personalização e <strong>de</strong>marcação”(p. 120). Tipicamente, território refere-se a espaços físicos. Nós temoscontrole ou existe controle sobre esse território. Controle esse que épercebido, mas também po<strong>de</strong> ser contestado, outra pessoa po<strong>de</strong> (tentar)invadir esse território. Porém, em princípio, é um território fixo, alguémtem algum controle, po<strong>de</strong> dizer, “este é meu” sem que haja contestação.Por exemplo, se temos um território chamado “casa”, geralmente po<strong>de</strong>mossupor que esse território é nosso – seja alugado, seja próprio. Assim,no momento em que alguém quer assaltar a casa, essa pessoa estáviolando o contrato social subjacente que estabelece este espaço comosendo seu território. Mais adiante veremos como essa noção <strong>de</strong> territorialida<strong>de</strong>se aplica, também, para outros contextos, por exemplo, para oespaço urbano. Outra coisa que frequentemente fazemos com territórioshabitualmente ocupados por nós é estabelecer algum tipo <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa oualgum tipo <strong>de</strong> personalização, que reforça e sinaliza “olha, esse é meu”:veja aqui o meu nome na porta, a minha ban<strong>de</strong>ira sobre o meu território.O terceiro elemento, <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong>, trata do número <strong>de</strong> indivíduospor unida<strong>de</strong> <strong>de</strong> espaço ou território. É, portanto uma medida objetiva,enquanto aglomeração refere-se a um estado psicológico queinclui o estresse e a motivação para sair <strong>de</strong> uma situação percebidasubjetivamente como <strong>de</strong>nsa (BELL et al., 2001, p. 320). A variaçãona <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong>, isto é, do número <strong>de</strong> elementos em um <strong>de</strong>terminadoespaço, contribui para o grau <strong>de</strong> <strong>de</strong>sconforto e implica, também,maior ou menor invasão do espaço pessoal do outro.Contrapõe-se à <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong> o conceito <strong>de</strong> privacida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>finidopor Altman como “controle seletivo do acesso a si mesmo, ou aseu grupo” (ALTMAN, 1975, p. 18). Contrapõe-se porque, antes <strong>de</strong>tudo, tal controle seletivo do acesso a si ou a seu grupo implica po<strong>de</strong>r– potencialmente – reduzir <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong> e aglomeração. Se possocontrolar quem tem acesso a mim, posso falar em privacida<strong>de</strong>; casocontrário, não existe privacida<strong>de</strong>. Pense na sua casa. Você, <strong>de</strong> certomodo, po<strong>de</strong> dizer: “Olha, esse aqui é meu quarto”, e outras pessoassó po<strong>de</strong>m entrar no seu quarto se bater à porta. Então, vocêcontrola o acesso a você e, <strong>de</strong>sta maneira, assegura privacida<strong>de</strong>.153


Inversamente, muitas donas <strong>de</strong> casa julgam que po<strong>de</strong>m entrar noquarto da empregada, até sem bater. Nesse sentido, por <strong>de</strong>finição, aempregada não tem privacida<strong>de</strong>.Com exceção <strong>de</strong> privacida<strong>de</strong>, cada um <strong>de</strong>sses conceitos tem duasvertentes: uma refere-se a espaço físico, cujas proprieda<strong>de</strong>s po<strong>de</strong>mser aferidas <strong>de</strong> maneira objetiva e uma segunda vertente que refleteuma avaliação subjetiva, pessoal/social por parte do indivíduo, especialmentedo indivíduo enquanto parte <strong>de</strong> um grupo: espaço pessoal,territorialida<strong>de</strong> e privacida<strong>de</strong>, especialmente significando o inverso <strong>de</strong>aglomeração, têm função <strong>de</strong> estabelecer, esclarecer e manter relaçõessociais, da mesma maneira como são consequência <strong>de</strong> acordos sociais.A <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> territorialida<strong>de</strong> como algo “baseado em controle percebido,tentado ou real” implica que território não é algo estável, mas<strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>de</strong> acordos sociais entre o <strong>de</strong>tentor <strong>de</strong> direitos e os que respeitam,ou não. Acrescentamos que tais acordos sociais igualmente seaplicam a espaço pessoal, privacida<strong>de</strong> e, até certo ponto, a aglomeração.Se espaço pessoal é algo “cercando o corpo <strong>de</strong> uma pessoa na qualintrusos não são permitidos”, tal regra somente faz sentido diante daexistência <strong>de</strong> outra, que potencialmente po<strong>de</strong> se tornar um intruso.Privacida<strong>de</strong> <strong>de</strong>finida como “controle seletivo do acesso a si mesmo oua seu grupo” igualmente supõe um outro acesso que precisa ser controlado.Aglomeração, i<strong>de</strong>m, supõe que outro(s), esteja(m) presente(s)ou não. Observa-se, finalmente, que embora amplamente estudadosno contexto da <strong>Psicologia</strong>, esses quatro conceitos se aplicam em diferentescontextos. A seguir apresento um exemplo do contexto Trânsito,para mostrar como os conceitos <strong>de</strong> espaço pessoal, privacida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong>e territorialida<strong>de</strong> impactam sobre a mobilida<strong>de</strong> urbana.AplicaçãoPara ilustrar a relação entre espaço pessoal, territorialida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong>e privacida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> um lado, com o conceito da mobilida<strong>de</strong>, apresentona Figura 5 uma fotografia <strong>de</strong> uma cena urbana. Mostra um ônibus euma calçada bastante apertada. Nessa calçada não existe divisão entreo espaço reservado para bicicletas e para pe<strong>de</strong>stres. Vemos um pe<strong>de</strong>stre154


que está um pouco reticente para entrar no espaço, está olhando oque está acontecendo. Selecionei essa cena porque retrata a mobilida<strong>de</strong>urbana, a mobilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vários participantes do trânsito: ônibus,pe<strong>de</strong>stre, bicicleta. No caso, é o ônibus que mais <strong>de</strong>limita e restringe oespaço. O espaço que sobra, assim, é o espaço entre o ônibus, que estána via, e a pare<strong>de</strong> <strong>de</strong> um prédio. No meio, bicicletas e pe<strong>de</strong>stres têm <strong>de</strong>se acomodar <strong>de</strong> uma forma ou <strong>de</strong> outra. De que maneira, então, essacena po<strong>de</strong> ser analisada sob a ótica da mobilida<strong>de</strong> urbana?Olhamos a cena inicialmente sob a perspectiva <strong>de</strong> espaço pessoal.À medida que a bicicleta se aproxima dos pe<strong>de</strong>stres, estes recuam.O espaço pessoal do pe<strong>de</strong>stre está sendo invadido. Em alemão se tematé agora uma gíria que fala em surfando, surfando os idosos. Istoquer dizer que o ciclista aproxima-se perigosamente do pe<strong>de</strong>stre idoso,assusta-o e vai embora. Um exemplo extremo <strong>de</strong> um “barato urbano”,baseado na invasão do espaço pessoal do idoso e no <strong>de</strong>sconfortoque isso gera. Por outro lado, o monte <strong>de</strong> pe<strong>de</strong>stres ocupando espaço,como estamos vendo, a ciclista <strong>de</strong> mochila vermelha vê suas opções,seu espaço limitado, ficando mais lenta. A ciclista sabe que à medidaque avança, inva<strong>de</strong> o espaço pessoal das pessoas.A segunda dimensão analítica nesta cena <strong>de</strong> mobilida<strong>de</strong> urbanatoca na questão do território. Afinal <strong>de</strong> contas, <strong>de</strong> quem é acalçada? Dos pe<strong>de</strong>stres? Dos ciclistas? Não observamos nenhuma<strong>de</strong>marcação no chão. Embora as regras do trânsito requeiram, pelomenos, uma <strong>de</strong>marcação clara das calçadas no caso <strong>de</strong> uso compartilhado,as bicicletas estão, <strong>de</strong> fato, invadindo cada vez mais oespaço dos pe<strong>de</strong>stres. Consi<strong>de</strong>rando as consequências para ambasas parte no caso <strong>de</strong> uma colisão entre bicicleta e pe<strong>de</strong>stre, é claroque o pe<strong>de</strong>stre ce<strong>de</strong> e aceita a invasão do seu território. Po<strong>de</strong>mos,assim, verificar como mobilida<strong>de</strong> implica, também, uma disputa <strong>de</strong>território. Claramente o rapaz <strong>de</strong> mochila clara está sinalizando:vale a pena entrar nessa disputa <strong>de</strong> território.A terceira dimensão da mobilida<strong>de</strong> diz respeito à <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong>.Como po<strong>de</strong>mos ver, o espaço aqui representado é muito apinhado,a <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong> é alta. As pessoas e as bicicletas estão ocupando155


e compartilhando pouco espaço. Isto, por si, provoca estresse e<strong>de</strong>sconforto para todos estes participantes no trânsito.Quanto à privacida<strong>de</strong> – parece que não haver nesta cena. Àmedida que o pe<strong>de</strong>stre no lado direito da cena está observando e,suponho, avaliando a cena, está mantendo um controle seletivo <strong>de</strong>acesso a si. Nesse sentido, tenta manter um pouco <strong>de</strong> privacida<strong>de</strong>.Entretanto, no momento que saímos <strong>de</strong> casa e entramos na vidaurbana, nós nos tornamos participantes do trânsito com pouca privacida<strong>de</strong>.O aspecto do ‘controle seletivo’ <strong>de</strong> quem tem acesso a nósse traduz em não ser atingido e envolvido em sinistro <strong>de</strong> trânsito.Com isto, voltamos a um ponto levantado anteriormente nestamesa. Mobilida<strong>de</strong> como bem básico do ser humano. Mobilida<strong>de</strong>significa não somente acesso às necessida<strong>de</strong>s básicas, mas tambémcontrole sobre a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se movimentar.Nesse sentido, mobilida<strong>de</strong> como direito conquistado na situaçãourbana <strong>de</strong> trânsito significa po<strong>de</strong>r evitar uma situação perigosa,uma situação <strong>de</strong> <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong> alta, ou até fuga, no sentido <strong>de</strong> nem sequerprecisar entrar no conflito espacial, no conflito <strong>de</strong> <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong>,na perda da privacida<strong>de</strong>.Ao mostrar o que consi<strong>de</strong>ro implícito na situação <strong>de</strong> trânsito,analiso a situação do ponto <strong>de</strong> vista <strong>de</strong> processos psicológicos básicose ambientais, isto é espaço pessoal, territorialida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong> eprivacida<strong>de</strong>. Tal análise me parece fundamental, já que, do ponto <strong>de</strong>vista ecológico e da sustentabilida<strong>de</strong>, é necessário que as pessoas aceitem<strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> lado cada vez mais o transporte individualizado paraaceitar um transporte compartilhado. O problema <strong>de</strong>ssa mudança estáno fato <strong>de</strong> que tal compartilhamento, por assim dizer, “viola” nossasnecessida<strong>de</strong>s elementares, à medida que implica redução <strong>de</strong> espaçopessoal, perda <strong>de</strong> controle sobre territórios, aumento <strong>de</strong> <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong>,menor privacida<strong>de</strong>. Resumindo, à medida que estamos tentando fazero que socialmente é necessário – reduzir o transporte individualizadoe aumentar o transporte compartilhado, po<strong>de</strong>mos estar indo contra “anatureza humana”. Isso é um problema sério a ser resolvido.156


ReferênciasALTMAN, I. The environment and social behavior: Privacy, personalspace, territory, crowding. Monterey, CA: Brooks/Cole. 1975.BELL, P. A; GREENE, T. C.; FISHER, J. D.; BAUM, A. Environmentalpsychology, 5 ed. Belmont, CA: Wadsworth/Thomson. 2001.GIFFORD, R. Environmental psychology: principles and practice. 2ed. Boston, MA: Allyn and Bacon, 1997.SOMMER, R. Personal space: The behavioral basis of <strong>de</strong>sign. EnglewoodCliffs, NJ: Prentice-Hall. 1969.Figura 1Nez Percé Baby, 1911, fotografado por Edward S. Curtis, retirado da internetem 28/5/2010.157


Figura 2Criança em um triciclo, retirado da internet em 28/5/2010http://health.nashville.gov/images/tricycle.jpg.Figura 3Vista da fronteira no vilarejo Hötensleben, 1983158


Figura 3bVista do mesmo lugar no villarejo Hötensleben em 2006, após a reunificaçãoda AlemanhaAmbas as fotos <strong>de</strong> Jürgen Ritter, retiradas da internet em 28/5/2010, dosite http://einestages.spiegel.<strong>de</strong>/external/ShowAuthorAlbumBackground/a5168/l38/l0/F.html#featuredEntryFigura 5Vista <strong>de</strong> uma cena urbana159


Mesa - Trânsito versus Mobilida<strong>de</strong>:antagonismo ou complementarida<strong>de</strong>?A visão da Saú<strong>de</strong> PúblicaRoberto Victor Pavarino Filho 20Bom dia. Procurarei trazer algo da minha experiência com educação<strong>de</strong> trânsito e da área <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, áreas em que trabalhei. Lembroque a partir <strong>de</strong> 2004, a Organização Mundial <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> (OMS) fez umgran<strong>de</strong> apelo mundial em relação aos aci<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> trânsito. A OMSjá havia feito outras incursões nessa área, nos anos 60 e 70, mas essapreocupação mais recente se <strong>de</strong>u muito em função <strong>de</strong> alguns númerosrelacionados à morbimortalida<strong>de</strong> no trânsito. Ressalto as questões doscustos, mas particularmente os prognósticos feitos e as projeções nadaalentadoras que vemos nas telas a seguir.20 Bacharel em Sociologia (1993), licenciado em Ciências Sociais (1993) e mestreem Transportes (1996) pela Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Brasília (UnB). Atualmente, é pesquisadordo Centro <strong>de</strong> Formação <strong>de</strong> Recursos Humanos em Transportes (Ceftru/UnB), atuando emprojetos <strong>de</strong> transportes e na coor<strong>de</strong>nação <strong>de</strong> cursos <strong>de</strong> capacitação e aperfeiçoamento <strong>de</strong>cursos <strong>de</strong> profissionais nas áreas <strong>de</strong> transportes e trânsito. O pesquisador tem experiênciacom temas relacionados à Sociologia e à Educação <strong>de</strong> Trânsito, mobilida<strong>de</strong> urbana e segurançaviária, tendo realizado pesquisas sobre o perfil das vítimas e sobre causas recorrentes<strong>de</strong> aci<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> trânsito.161


162


Esses dados foram atualizados em 2009. Vemos uma projeção bemsombria e que ten<strong>de</strong> a piorar. Enfatizo, no grupo das vítimas dos aci<strong>de</strong>ntesos segmentos socioeconomicamente menos favorecidos em função darepresentativida<strong>de</strong> <strong>de</strong>les. Vemos que cerca <strong>de</strong> 90% das mortes no trânsitoocorrem em países <strong>de</strong> média ou baixa renda que respon<strong>de</strong>m por menos dameta<strong>de</strong> da frota do planeta. Neles as taxas <strong>de</strong> mortalida<strong>de</strong> são entre a 19,5e 21,5 por 100 mil habitantes (é mais ou menos o que temos aqui no Brasil).E os principais atingidos são sempre os usuários mais vulneráveis das vias.Nos países pobres chegam até a 70% das vítimas. E os mais pobres entre osmais pobres, <strong>de</strong>sses países – o pessoal com menos condição – são exatamenteos que têm menor condição <strong>de</strong> arcar com os custos da mortalida<strong>de</strong>no trânsito. E os segmentos menos favorecidos que são as populações commenos acesso a atendimentos emergenciais e pós-traumáticos. O impactodisso nos países sub<strong>de</strong>senvolvidos é gran<strong>de</strong>: implica uma sobrecarga muitogran<strong>de</strong> nos setores <strong>de</strong> radiologia, fisioterapia, reabilitação, os prontossocorros<strong>de</strong> maneira geral e outros. Respon<strong>de</strong>m por cerca da meta<strong>de</strong> daocupação dos centros cirúrgicos em vários países. O trânsito representaentre 30% a 86% da <strong>de</strong>manda das hospitalizações, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ndo do país.163


E há ainda aqueles custos menos tangenciáveis – isso eu mesinto na obrigação dizer, na condição <strong>de</strong> alguém que trabalhou emum hospital <strong>de</strong> reabilitação: não se trata apenas <strong>de</strong> quem morre, mastambém dos que ficam (e como ficam os que ficam, e os que “ficamcom os que ficam”). Há o problema das lesões “invisíveis”, os traumasnão físicos, às vezes não tão invisíveis. Isso tem a ver particularmentecom a área <strong>de</strong> atuação <strong>de</strong> vocês, o impacto no círculo <strong>de</strong> convivênciadireta e indireta, os efeitos psicológicos. Isso talvez precisasse aindamais <strong>de</strong> pesquisa. Algumas <strong>de</strong>las falam <strong>de</strong> algo entre 85%-90% <strong>de</strong> algumasfamílias <strong>de</strong> falecidos ou incapacitados que tiveram a condição<strong>de</strong> vida muito <strong>de</strong>teriorada, ou seja, não atinge apenas quem morre oufica incapacitado diretamente. Um aci<strong>de</strong>nte que lesa ou mata umapessoa, pelo que eu acompanhei, é uma bomba que cai na família,<strong>de</strong>sestrutura tudo – quem tem alguma experiência parecida sabemuito bem disso: o que significa um pai <strong>de</strong> família que <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> serum provedor e passa a ser um ônus para a família? Ou per<strong>de</strong> um filho?Essas coisas são bem mais difíceis <strong>de</strong> ser mensuradas, mas não po<strong>de</strong>mser esquecidas. Há uma gran<strong>de</strong> representativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> pe<strong>de</strong>stres e onúmero <strong>de</strong> internações por aci<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> transporte terrestre aqui noBrasil, por moto, é in<strong>de</strong>terminado. E essa tendência para moto, comovimos, inclusive, nas exposições anteriores, só ten<strong>de</strong> a aumentar eaumentar muito. No relatório que foi feito pela OMS em 2004, háuma série <strong>de</strong> intervenções e recomendações que a organização faz,mas há muito pouca referência à educação. No relatório da OMS, emsuas duzentas e tantas páginas, há pouco mais <strong>de</strong> dois parágrafos eum boxe com referência à educação. E o pouco que fala disso, queeu me lembre, é para questionar sua eficiência. Isso causou um malestarmuito gran<strong>de</strong> com o pessoal que lida com a área <strong>de</strong> Educação<strong>de</strong> Trânsito, psicólogos, educadores, entre outros, e, inclusive, causourevolta <strong>de</strong> pessoas <strong>de</strong> outros países. Eu lembro um colega argentinofalando: que total <strong>de</strong>scaso que se tem em relação à Educação. E oque eu colocava para ele era isso: será que é a questão <strong>de</strong> ficar reclamandodisso ou <strong>de</strong> procurar enten<strong>de</strong>r algumas das razões pelas quaisse questiona tanto a eficiência <strong>de</strong> educação – educação no trânsito,164


particularmente? Há algumas dificulda<strong>de</strong>s que eu percebi durantea experiência, dificulda<strong>de</strong>s e limitações das práticas <strong>de</strong> educação eprevenção. Resumindo: uma <strong>de</strong>las está relacionada ao discurso dapriorida<strong>de</strong> <strong>de</strong> educação. Ela está muito mais presente no discurso doque na prática e, infelizmente, isso não é só na área <strong>de</strong> educação <strong>de</strong>trânsito – quem lida com educação sabe muito bem disso. Há muitovoluntarismo correndo nesses setores. Há, obviamente, exceçõese belas exceções, mas <strong>de</strong> maneira geral, na experiência do país, euvejo muito voluntarismo e pouca ciência no trato <strong>de</strong>ssas questões<strong>de</strong> educação para o trânsito e muitos métodos antigos – na verda<strong>de</strong>eram métodos usados nos anos 50 e 60, só que apresentados comroupagem nova. Antes se tinha isso com xerox e mimeógrafo e agora,temos CDRom para fazer um monte <strong>de</strong> coisa, mas na essência eunão vi fundamentalmente muita diferença. Há, ainda, problemas relacionadosà própria natureza do ambiente <strong>de</strong> circulação, o ambientepolítico e o ambiente técnico, como o Marcos Bicalho falou, anteriormente.E algumas contradições que eu vejo, também. Uma <strong>de</strong>las,as advertências voltadas a ocupantes <strong>de</strong> veículos. Neste segmento,enfrentam-se problemas como o fato <strong>de</strong> o êxito <strong>de</strong> algumas medidaseducativas estar geralmente associado a um esforço legal, que é a fiscalização,cujo custo político é muito gran<strong>de</strong>. É muito fácil falar quese quer a segurança no trânsito, mas quando isso implica impedir queas pessoas ocupem o espaço público da maneira que bem enten<strong>de</strong>m,começam as reservas por parte das pessoas. Diz-se haver “uma indústria<strong>de</strong> multa” e coisa e tal. E o outro ponto, citando hábitos, também,e alguns avanços tecnológicos: eu não sei se vocês já ouviram a teoriada compensação <strong>de</strong> riscos. De uma forma bem resumida, ela diz que,à medida que você tem uma tecnologia que protege cada vez maisas pessoas <strong>de</strong>ntro do veículo, nessa mesma proporção as pessoas sepermitem dirigir <strong>de</strong> forma mais insegura, exatamente porque po<strong>de</strong>mcontar com um airbag, com barras <strong>de</strong> proteção laterais. Eu, em umapickup <strong>de</strong>ssas, acabo me sentido mais seguro e mais à vonta<strong>de</strong> paradirigir <strong>de</strong> modo a ameaçar quem está do lado <strong>de</strong> fora – e estes ameaçadossão, <strong>de</strong> novo, o segmento a que eu quero dar ênfase. São165


exatamente aqueles segmentos mais vulneráveis aqui referidos. Algumasadvertências que são feitas a esses mais vulneráveis (e quandoeu falo vulnerável não é só física, mas socialmente também) como ospe<strong>de</strong>stres e ciclistas. Algumas das contradições mais flagrantes que eutinha notado estão relacionadas, em boa parte, à própria formação <strong>de</strong>parte <strong>de</strong>ssa população <strong>de</strong> vulneráveis. Po<strong>de</strong>mos falar que motoristasmal-educados. Mas pe<strong>de</strong>stres não educados – ninguém tira carteirapara ser pe<strong>de</strong>stre. Outro ponto que eu <strong>de</strong>stacaria é a internalizaçãoda condição <strong>de</strong> cidadãos <strong>de</strong> segunda classe que o pe<strong>de</strong>stre e o ciclista,para falar <strong>de</strong> alguns <strong>de</strong>les, acabam tendo em boa parte do país. Eles sãovistos como “cidadãos menores” no trânsito e essa visão está também<strong>de</strong>ntro da área técnica <strong>de</strong> Engenharia <strong>de</strong> Tráfego, com que eu trabalhei.Às vezes, o pe<strong>de</strong>stre é visto mais como um empecilho ao trânsito doque como trânsito propriamente dito. O efeito que isso acaba tendo éque o próprio pe<strong>de</strong>stre acaba internalizando essa condição <strong>de</strong> cidadão<strong>de</strong> segunda classe, <strong>de</strong> alguém que “não é” trânsito, mas alguém que, naverda<strong>de</strong>, é visto como quem “atrapalha” o trânsito. À medida que elese vê nessa condição, também sente-se <strong>de</strong>sobrigado <strong>de</strong> cumprir regras<strong>de</strong> um sistema do qual não faz parte. Para que iria ter <strong>de</strong> atravessar arua nesse lugar aqui se ele não se sente parte do trânsito, mas sim algocomo uma pedra atrapalhando o trânsito?Nas passarelas <strong>de</strong> Brasília, um pe<strong>de</strong>stre, uma gestante ou umidoso tem <strong>de</strong> dar toda essa volta ali por cima para, na verda<strong>de</strong>, nãoatrapalhar o fluxo <strong>de</strong> veículos. Na verda<strong>de</strong>, passarela <strong>de</strong> pe<strong>de</strong>stre, emboa parte das vias, não é feita para pe<strong>de</strong>stre. É feita para não atrapalharo carro. Isso tem <strong>de</strong> ser colocado às claras. Essa outra imagemaqui é em Recife. Essa suposta passarela parece mais um andaime.E se essas pessoas não passarem por aí são consi<strong>de</strong>radas “culpadas”pelos aci<strong>de</strong>ntes. Isso aqui é uma passagem subterrânea em Brasília.Brasília, que é tida como um lugar em que se respeita muito o pe<strong>de</strong>stre.Essas outras imagens, para quem conhece Brasília, são no EixãoNorte. São as passagens subterrâneas que vocês, têm a sorte <strong>de</strong> nãoconseguir sentir o cheiro. Elas não inspiram nem segurança nem higienenem conforto.166


Mas será que é o caso <strong>de</strong> abdicar da educação <strong>de</strong> trânsito ou <strong>de</strong>pensar nela com outras bases? Um caminho promissor para isso sãoas contribuições que o setor da Saú<strong>de</strong> tem a nos trazer. A Saú<strong>de</strong> teveum envolvimento muito mais tardio do que <strong>de</strong>veria ter, nas questões<strong>de</strong> trânsito, mas felizmente o fez. Ela traz consigo um peso muitogran<strong>de</strong> relacionado à força do setor. E traz a ênfase da essencialida<strong>de</strong>da vida, que é fundamental. A lógica, para minha área <strong>de</strong> transportes,é a flui<strong>de</strong>z do trânsito. E isso é internalizado <strong>de</strong> maneira geral pelosenso comum. Quando falamos que o trânsito é bom? Trânsito bomé trânsito fluido. Ninguém fala que o trânsito está bom quando eleestá seguro. Fala-se que ele está bom quando ele não está congestionado.Assim há uma oportunida<strong>de</strong> que o setor da Saú<strong>de</strong> traz, parapromovermos novas formas <strong>de</strong> intervenções, que eu vejo i<strong>de</strong>ntificadaprincipalmente nos conceitos <strong>de</strong> promoção <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>. A OMS, <strong>de</strong> 1962até 2004, passou por algumas mudanças do paradigma <strong>de</strong> segurançaviária. Os paradigmas atuais se resumem a estes sete pontos – seteitens “cabalisticamente” escolhidos no relatório a que me referi.167


Nesse primeiro, está se dizendo que os traumas do trânsito são previsíveise evitáveis, cabendo análise racional e aplicação <strong>de</strong> medidas corretivas.Isso, <strong>de</strong> novo, procura reforçar que a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> o aci<strong>de</strong>nte não ser algo“aci<strong>de</strong>ntal” não está bem resolvida entre nós. Continuamos achando queaci<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> trânsito são fatalida<strong>de</strong>s aleatórias, e esse conceito é muitoconveniente, principalmente para o Estado, as autorida<strong>de</strong>s, que acabam seeximindo <strong>de</strong> suas responsabilida<strong>de</strong>s. Outro ponto: a segurança viária é umproblema <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> pública e multissetorial. Também: os erros mais comunsdos condutores e o comportamento do pe<strong>de</strong>stre não <strong>de</strong>vem, apesar disso,levá-los necessariamente a ter lesões ou a morrer. Isso diz que o fato <strong>de</strong> aspessoas errarem não significa que tenham <strong>de</strong> sofrer pena <strong>de</strong> morte. Comose o erro, <strong>de</strong> certa forma, bastasse e justificasse a situação – “morreu porquefoi impru<strong>de</strong>nte”. E pronto.Outro ponto: a vulnerabilida<strong>de</strong> do ser humano <strong>de</strong>ve ser tida comoparâmetro <strong>de</strong>terminante nos <strong>de</strong>senhos do sistema <strong>de</strong> trânsito e o controleda velocida<strong>de</strong> é essencial. Isso não tem ocorrido! Quinto ponto: é<strong>de</strong>sproporcional a carga <strong>de</strong> lesões e mortes em segmentos mais pobres e168


mais vulneráveis. Esse ponto está nos dizendo que os traumas <strong>de</strong> trânsito<strong>de</strong>vem ser vistos com a questão <strong>de</strong> equida<strong>de</strong>. Fragilida<strong>de</strong>s diferentes têm<strong>de</strong> ser tratadas <strong>de</strong> forma diferente. Há às vezes aquela confusão: tem <strong>de</strong>ter “igualda<strong>de</strong>”. Não, equida<strong>de</strong> não significa igualda<strong>de</strong>. Equida<strong>de</strong> é tratardiferentemente para po<strong>de</strong>r ser igual. Eu não posso falar que uma senhoracomo essa, levando uma criança, é igual a quem está protegido no carro.Ela tem <strong>de</strong> ter priorida<strong>de</strong> sobre outros participantes no trânsito. Sexto: atransferência <strong>de</strong> tecnologias, <strong>de</strong> conhecimentos <strong>de</strong> países <strong>de</strong>senvolvidos,<strong>de</strong>ve ser estudada e pon<strong>de</strong>rada antes <strong>de</strong> aplicada. E o sétimo ponto, <strong>de</strong>certa forma, é um <strong>de</strong>sdobramento <strong>de</strong>sse sexto. Fala que o conhecimento ea realida<strong>de</strong> local <strong>de</strong>vem orientar a aplicação das soluções locais. Era comumfalar: olha, não temos uma pesquisa aqui, mas tem uma pesquisa que foifeita em Reikjavick, na Islândia. Aí tenta-se aplicar essa pesquisa na cida<strong>de</strong><strong>de</strong> “Cata Coquinhos” no interior <strong>de</strong> sei lá on<strong>de</strong>. Com isso a gente tem <strong>de</strong>ter bastante cuidado. Esses preceitos propostos pela OMS têm i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>muito gran<strong>de</strong> com os conceitos <strong>de</strong> promoção <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, que coloco aqui <strong>de</strong>forma bem simplificada. Para quem não sabe, os princípios fundantes dapromoção <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> foram colocados na Carta <strong>de</strong> Ottawa, <strong>de</strong> 1986, e <strong>de</strong>senvolvidos<strong>de</strong>pois em várias conferências. A promoção <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> evoluiu <strong>de</strong>um nível <strong>de</strong> medicina preventiva para uma conotação mais política e socialao enfatizar alguns pontos como o protagonismo social, po<strong>de</strong>r <strong>de</strong>cisório<strong>de</strong> comunida<strong>de</strong>s, entre outros. Lembro que o Ministério da Saú<strong>de</strong> brasileirotambém incorporou o conceito <strong>de</strong> promoção <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>. E está fazendo suapromoção <strong>de</strong>ssas políticas. Faço aqui, agora, uma comparação em relaçãoà educação e a saú<strong>de</strong> tradicional e a promoção <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>. Na educação emsaú<strong>de</strong> temos uma organização sistemática das ações educativas e o focono comportamento saudável, enquanto a promoção <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> transcen<strong>de</strong>essa dimensão comportamental individual e parece dar mais ênfase às dimensõessociais. É o foco nos ambientes que estimulam comportamentossaudáveis, procurando tornar mais fácil a opção, a saudável. Um exemplo,bem superficial: a educação em saú<strong>de</strong> informa e alerta sobre riscos da Aids,sobre tabagismo e o problema da alimentação gordurosa, por exemplo. Jána promoção <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> eu i<strong>de</strong>ntifico como uma ação um pouco mais proativa,<strong>de</strong> procurar propiciar os meios para facilitar esse acesso a tudo isso,169


porque não é fácil ter alimentação saudável. Não é barato ter alimentaçãosaudável. Então, a promoção <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, por exemplo, procuraria dar maisacesso aos preservativos e a essa alimentação que se advoga ser melhor doque outra. Em uma analogia com o trânsito, principalmente com base naquelesautores aqui referidos (que é um grupo <strong>de</strong> Leeds na Inglaterra), coloca-se,por exemplo, que a educação em saú<strong>de</strong>, estaria para a redução <strong>de</strong>aci<strong>de</strong>ntes e danos assim como a promoção da saú<strong>de</strong> estaria para a redução<strong>de</strong> riscos. A redução <strong>de</strong> aci<strong>de</strong>ntes e danos procura, por exemplo, diminuira taxa <strong>de</strong> aci<strong>de</strong>nte reduzindo a exposição das pessoas ao risco, enquanto aredução do risco visa a diminuir os perigos que propiciam os aci<strong>de</strong>ntes. Elaprocura ir lá na fonte. A redução <strong>de</strong> aci<strong>de</strong>ntes proce<strong>de</strong> à análise <strong>de</strong> boletins<strong>de</strong> ocorrência, e tenta trazer informações preventivas com cartilhas, etc.Algumas consi<strong>de</strong>rações que têm <strong>de</strong> ser feitas em relação a isso. A reduçãodos aci<strong>de</strong>ntes po<strong>de</strong> ocorrer sem que necessariamente se obtenha umambiente seguro. Eu posso, por exemplo, zerar ou diminuir os aci<strong>de</strong>ntes<strong>de</strong> trânsito em <strong>de</strong>terminado local, mas isso não significa necessariamenteque esse ambiente está seguro. Às vezes, ele ficou <strong>de</strong> tal forma hostil aossegmentos mais vulneráveis que eles praticamente <strong>de</strong>ixam <strong>de</strong> realizar seus<strong>de</strong>slocamentos por lá. As pessoas <strong>de</strong>sistem <strong>de</strong> percorrer alguns caminhos.Se eu pu<strong>de</strong>sse fazer para a área <strong>de</strong> transporte o mesmo que se faz com a<strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, seria como erradicar a paralisia infantil com abortos. Eu zero osatropelamentos “matando” a mobilida<strong>de</strong>. Você não vai ter aci<strong>de</strong>nte porquenão tem gente se <strong>de</strong>slocando em algumas áreas. Isso acontece muito. Naredução <strong>de</strong> riscos, busca-se i<strong>de</strong>ntificar o perigo na fonte. Ela visa à redução<strong>de</strong> aci<strong>de</strong>ntes sem prejuízo à mobilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> segmentos mais vulneráveis;enfatiza a sustentabilida<strong>de</strong>, a equida<strong>de</strong> dos usuários e dos meios que oferecemmenos perigos. Tem também uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> maior com medidascomo mo<strong>de</strong>ração <strong>de</strong> tráfego, que é uma intervenção no ambiente, nomeio. A redução <strong>de</strong> aci<strong>de</strong>nte vai advertir o pe<strong>de</strong>stre para usar a passarela eadvertir o ciclista que ele tem <strong>de</strong> usar capacete. Já a redução <strong>de</strong> riscos, quei<strong>de</strong>ntifico com promoção <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, vai procurar pressionar por ciclovias ereivindicar alternativas mais atrativas. Esses pe<strong>de</strong>stres, nessa imagem, nãoestão caminhando na calçada porque não há calçada. É o óbvio que, às vezes,não é dito. A promoção da saú<strong>de</strong> tem i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> maior com a redução170


<strong>de</strong> riscos. Ela não vai dispensar a informação da educação, que é necessária,mas i<strong>de</strong>ntifica que só isso individualizaria <strong>de</strong>mais o problema, pois ten<strong>de</strong>a culpar a negligência da vítima, como tem sido a prática há tanto tempo.Essa prática, por exemplo, critica o ciclista que não usou capacete, mastambém não faz nada para mudar a estrutura que propiciou os aci<strong>de</strong>ntes.Alguns focos centrais da promoção da saú<strong>de</strong>, da redução do risco, estãorelacionados aos produtores do ambiente <strong>de</strong> circulação, não somente osusuários. E qualifica agentes sociais para isso. Procura fazer uma pressãosocial via mídia, via grupos organizados e incentiva uma cultura que favoreçaa mudança <strong>de</strong> atitu<strong>de</strong>s políticas também. Ela visa a intervenções queestão relacionadas a políticas <strong>de</strong> transporte eficiente. Transporte eficientesignifica efetivamente que se está reduzindo a exposição das pessoas aosmeios <strong>de</strong> maior risco. No que concerne à educação, os trabalhos estão relacionadosà percepção das limitações do organismo humano, à percepçãodas fragilida<strong>de</strong>s, mas, principalmente, à necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> trabalhar atitu<strong>de</strong>scríticas e reflexões na promoção da saú<strong>de</strong>, comprometida com a integrida<strong>de</strong>física das pessoas, mas sem conformá-las ao espaço perigoso. Algunsmo<strong>de</strong>los que temos <strong>de</strong> educação e prevenção, mais conservadores, estãomuito relacionados às premissas e ao mo<strong>de</strong>lo baseados na percepção <strong>de</strong>“aci<strong>de</strong>ntes” mesmo, como fatalida<strong>de</strong> ou negligência, uma visão sob enfoquedo motorista. Isso fica claro nos discursos <strong>de</strong> educação <strong>de</strong> trânsitopara criança, que se empenham mais em formar “os motoristas do futuro”.E eu digo: “Ora, por que não estamos formando o pe<strong>de</strong>stre do presente,ou o usuário <strong>de</strong> ônibus da atualida<strong>de</strong>?” Bem, eu procurei fazer uma comparaçãoentre educação em saú<strong>de</strong> e promoção <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, mas lembro quea educação em saú<strong>de</strong> não está em necessária oposição à promoção dasaú<strong>de</strong>. Elas são, antes, complementares, mas o foco com que me i<strong>de</strong>ntifico,em que vejo maior potencial para ações efetivas <strong>de</strong> educação e prevençãoda morbimortalida<strong>de</strong> no trânsito, está mesmo mais relacionado à i<strong>de</strong>ia dapromoção <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>. Obrigado.171


172


Edinilsa Ramos <strong>de</strong> Souza 21Abordaremos as questões das lesões no trânsito, as mortes e asinternações do ponto <strong>de</strong> vista da saú<strong>de</strong> pública. Eu faço parte <strong>de</strong> umainstituição <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> pública e tenho realizado algumas análises, algunsestudos em relação aos aci<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> trânsito, tentando dar visibilida<strong>de</strong>à magnitu<strong>de</strong>, aos impactos disso na saú<strong>de</strong> da população e aosfatores <strong>de</strong> risco associados a essas questões. Inspirada no tema <strong>de</strong>steseminário, busquei na Declaração dos Direitos Humanos dois artigosque consi<strong>de</strong>ro que estão associados ao tema. O Artigo II da DeclaraçãoUniversal dos Direitos Humanos, <strong>de</strong> 1948, que foi retirada da AssembleiaGeral das Nações Unidas, diz que toda pessoa tem capacida<strong>de</strong>para gozar os direitos e as liberda<strong>de</strong>s estabelecidas na Declaração, semdistinção <strong>de</strong> qualquer espécie, seja <strong>de</strong> raça, cor, sexo, língua, religião.Ou seja, não existiriam, em termos <strong>de</strong> direitos humanos, diferenciaçõesem função <strong>de</strong>ssas características que estão listadas nessa <strong>de</strong>claração,ou pelo menos não <strong>de</strong>veriam existir.Na prática, quando olhamos os dados, vemos que os diferenciaisocorrem. A distribuição <strong>de</strong>sses eventos, <strong>de</strong>sses agravos, e o impactodisso na saú<strong>de</strong> se dá <strong>de</strong> forma diferenciada. E o Artigo XIII da Declaraçãorege as questões do direito humano à liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> locomoção.Então, eu listei esses dois direitos, que são consi<strong>de</strong>rados, por essa carta<strong>de</strong> 1948, como direitos humanos universais. Veremos que, na prática,as coisas não acontecem bem assim.Eu apresento uma tentativa do que alguns trabalhos e estudiososestão <strong>de</strong>finindo como aci<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> trânsito ou <strong>de</strong> transporte. Ele é <strong>de</strong>finidocomo todo evento com dano que envolva um veículo, a via, a pessoahumana e/ou animais. Para caracterizar-se como aci<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> trânsito ou<strong>de</strong> transporte, necessida<strong>de</strong> da presença do veículo e <strong>de</strong> outro <strong>de</strong>sses elementos:um veículo, um ser humano ou um animal, e da ocorrência dofato em uma via. Já foi chamada a atenção aqui para a i<strong>de</strong>ia equivocada,errônea, <strong>de</strong> que esses eventos são casuais, são fatalida<strong>de</strong>s, são aci<strong>de</strong>ntais.21 Psicóloga, especialista em Metodologia <strong>de</strong> Pesquisa em Saú<strong>de</strong> Mental, doutoraem Saú<strong>de</strong> Pública. Pesquisadora da Fundação Osvaldo Cruz.173


O próprio nome traz essa conotação, <strong>de</strong> que é uma casualida<strong>de</strong>, é umacoisa que aconteceu ao acaso e que não foi intencional, mas nem sempreisso é verda<strong>de</strong>iro, ou seja, quase sempre isso não é verda<strong>de</strong>iro. São poucosos aci<strong>de</strong>ntes que tem real conotação <strong>de</strong> ter acontecido ao acaso. A gran<strong>de</strong>maioria dos aci<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> trânsito e transporte que ocorrem em nossopaís são previsíveis, são perfeitamente evitáveis e é com essa noção que asaú<strong>de</strong> pública tem trabalhado.O trânsito no Brasil expressa relações sociais violentas, <strong>de</strong>siguais.O acesso não é igual, a mobilida<strong>de</strong> não é igual. Isso tudo varia emfunção do grupo social, socioeconomicamente falando, no aquele indivíduoou aquela comunida<strong>de</strong> está inserida. Então, ele expressa relações<strong>de</strong> <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s e, sobretudo, expressa relações <strong>de</strong> <strong>de</strong>scaso coma vida humana, inclusive pelos usuários, consi<strong>de</strong>rando usuários nãosó motoristas, mas também os pe<strong>de</strong>stres. O mo<strong>de</strong>lo, as formas <strong>de</strong> intervençãocostumam priorizar ou pensar o usuário como aquele queestá <strong>de</strong>ntro do automóvel (motorista ou ocupante), esquecendo-seque o pe<strong>de</strong>stre também faz parte <strong>de</strong>sse sistema e também é usuáriodo trânsito, porque eles também afrontam os riscos e vitimizam a simesmos e aos outros. Os mo<strong>de</strong>los e as formas <strong>de</strong> abordagem tambémcontemplam as imprudências <strong>de</strong>sses usuários.Sabe-se que os aci<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> trânsito, as lesões e as mortes <strong>de</strong>les<strong>de</strong>correntes não acontecem simplesmente pelo comportamentodo usuário, pela imprudência <strong>de</strong>sse usuário, seja ele pe<strong>de</strong>stre, sejaocupante <strong>de</strong> um veículo, seja motorista, mas também pelos po<strong>de</strong>respúblicos, que falham na manutenção das vias. Sabemos que nossasestradas, nossa malha viária é extremamente mal-conservada e issotem propiciado muitos aci<strong>de</strong>ntes no trânsito. É preciso, pois, investirna manutenção <strong>de</strong>ssas vias, na fiscalização do cumprimento das normase na educação para o trânsito. Precisamos, portanto, refletir umpouco, não só sobre esses mo<strong>de</strong>los, esses paradigmas com os quaisabordamos os problemas no trânsito, mas também temos <strong>de</strong> pensarno comportamento humano no trânsito. Isso tem muito a ver com a<strong>Psicologia</strong>, que tem esta missão: refletir sobre o comportamento humanono sentido <strong>de</strong> formação <strong>de</strong> valores para a cidadania. E o trânsito174


está completamente marcado por essas relações, que estão embasadasnos valores culturais vigentes a respeito do que se valoriza, do que semenospreza ou se consi<strong>de</strong>ra <strong>de</strong> forma pejorativa em nossa socieda<strong>de</strong>.No trânsito, o ciclista é visto como um cidadão <strong>de</strong> segunda categoriae o pe<strong>de</strong>stre é consi<strong>de</strong>rado um cidadão <strong>de</strong> terceira categoria.O trânsito é pensado para os cidadãos <strong>de</strong> primeira categoria, que sãoos donos <strong>de</strong> carros, e sabemos quais são suas características. Se pensarmosem termos coletivos sobre qual é a inserção socioeconômica<strong>de</strong>ssas pessoas, veremos que os pe<strong>de</strong>stres, ciclistas e motociclistasconstituem um grupo populacional menos favorecido do que o grupodos possuidores <strong>de</strong> automóvel, muitas vezes <strong>de</strong> luxo, que fazem parte<strong>de</strong> uma classe ou um estrato social mais favorecido. Então, essas <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s<strong>de</strong> inserção social estão por <strong>de</strong>trás <strong>de</strong>ssas relações que seestabelecem no trânsito. Elas imprimem valores e visões <strong>de</strong> mundodiferenciadas e são esses conflitos entre esses estratos/grupos sociaisque se expressam nas relações <strong>de</strong> trânsito. No interior <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong>estruturalmente <strong>de</strong>sigual, o trânsito provoca mortes, ferimentose <strong>de</strong>ixa sequelas físicas e psíquicas nas vítimas, não só nas vítimasdiretas, quando elas sobrevivem, mas também nas vítimas indiretas(seus parentes, seus amigos).Se fizéssemos um inquérito para saber quem já teve um parenteque sofreu um aci<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> trânsito grave ou que morreu por essacausa, ou se indagássemos se nós mesmos já sofremos algum aci<strong>de</strong>nte<strong>de</strong> trânsito, veríamos que isso é uma coisa muito frequente, comoobservaremos nos dados que apresento aqui. No entanto, apesar <strong>de</strong>provocar mortes evitáveis, ele não provoca a mesma indignação queobservamos em relação a outros problemas <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>. Seria o caso <strong>de</strong>perguntarmos por que a morte no trânsito não nos <strong>de</strong>sperta a indignaçãocomo aquela que sentimos, por exemplo, em relação à mortepor homicídio? Por que as autorida<strong>de</strong>s e nós mesmos, como socieda<strong>de</strong>organizada em entida<strong>de</strong>s representativas, em movimentos sociais, aindanão nos mobilizamos da mesma forma como nos mobilizamos paraenfrentar, por exemplo, a Aids? Hoje em dia, temos um controle <strong>de</strong>ssadoença e ela nunca provocou o número <strong>de</strong> óbitos que os aci<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong>175


trânsito provocam. No entanto, aceitamos e achamos possível convivercom este elevado número <strong>de</strong> óbitos.O Sistema <strong>de</strong> Informação sobre Mortalida<strong>de</strong> do Ministério daSaú<strong>de</strong> informa que, em 2007, mais <strong>de</strong> 38 mil pessoas morreram poraci<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> trânsito no Brasil. Se pensarmos nesse número, veremosque isso é muito mais do que acontece em muitas <strong>de</strong>ssas guerrascontemporâneas. Estamos matando no nosso trânsito mais do que semata em uma guerra. Isso representa quase 30% <strong>de</strong> todos os aci<strong>de</strong>ntese violências que são classificados na categoria das Causas Externasda Classificação Internacional <strong>de</strong> Doenças. Isso significa uma taxa <strong>de</strong>quase 20 óbitos em grupos <strong>de</strong> cem mil habitantes, o que é uma taxaelevada se consi<strong>de</strong>rarmos países <strong>de</strong>senvolvidos, países da Europa queficam com taxas em torno <strong>de</strong> um ou dois, no máximo. Vemos que adiferenciação por sexo é muito gran<strong>de</strong>: morre muito mais homem doque mulher. A taxa dos homens é <strong>de</strong> 33 em cada 100 mil habitantes,enquanto a taxa das mulheres é <strong>de</strong> 7,2 em cada 100 mil habitantes<strong>de</strong>sse sexo. Em termos <strong>de</strong> internações hospitalares os aci<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong>trânsito contabilizaram 124.013 registros, representando quase 15%<strong>de</strong> todas as causas externas, ou seja, <strong>de</strong> todos os aci<strong>de</strong>ntes e violênciasque levaram à hospitalização no Brasil, no ano <strong>de</strong> 2007. A gran<strong>de</strong>maioria <strong>de</strong>las (77,4%) vitimizou os homens. Esses dados também nospermitem refletir sobre o que está acontecendo na realida<strong>de</strong> do nossopaís. Ao analisar as mortes no trânsito do Brasil, em 2007, por tipo <strong>de</strong>pessoa vitimizada (pe<strong>de</strong>stre, motociclista, ocupante <strong>de</strong> automóvel eaquele que morreu por aci<strong>de</strong>nte aéreo), vemos diferenciações em termos<strong>de</strong> número absoluto. Foram 9.657 óbitos <strong>de</strong> pe<strong>de</strong>stres, 8.078 óbitos<strong>de</strong> motociclistas, 7.982 mortes <strong>de</strong> ocupantes <strong>de</strong> automóvel e 281óbitos por aci<strong>de</strong>ntes aéreos. Um aci<strong>de</strong>nte aéreo nos <strong>de</strong>ixa perplexos,mas o montante <strong>de</strong> pe<strong>de</strong>stres mortos é 34,4 vezes maior do que osmortos em aci<strong>de</strong>nte aéreo. Há diferenças também em relação ao sexo:os homens sempre são os mais vitimizados e a proporção é maiorquando se trata <strong>de</strong> motociclista – 89,4% dos que morreram em 2007no país por aci<strong>de</strong>ntes com moto eram homens. Ainda buscando diferenciaçõesanalisamos esses dados <strong>de</strong> acordo com a cor da pele da176


vítima. Para o país, em 2007, observamos que 50% dos que morrerampor aci<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> trânsito eram <strong>de</strong> cor branca, 44,3% eram <strong>de</strong> cor parda.É crescente o percentual em função da cor e do tipo <strong>de</strong> vítima. Noaci<strong>de</strong>nte aéreo, só 8,5% dos que morreram tinham a cor preta ouparda; entre os ocupantes <strong>de</strong> automóvel, 36,6% eram <strong>de</strong>ssa cor; paraos motociclistas essa proporção é <strong>de</strong> 46,3% e é ainda maior entre osciclistas (47,7%). Finalmente, quase 50% dos pe<strong>de</strong>stres que morrerameram <strong>de</strong> cor preta ou parda. Ou seja, é uma relação inversa em queuma pessoa <strong>de</strong> cor preta ou parda tem uma probabilida<strong>de</strong>, uma possibilida<strong>de</strong><strong>de</strong> vir a morrer por aci<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> trânsito muito maior do queas pessoas <strong>de</strong> cor branca. A escolarida<strong>de</strong> tem sido analisada comouma aproximação da condição socioeconômica da vítima. Aqui foramconsi<strong>de</strong>rados dois grupos <strong>de</strong> anos <strong>de</strong> estudo: <strong>de</strong> zero a sete anos <strong>de</strong>estudos e <strong>de</strong> 12 e mais anos <strong>de</strong> estudos, constituindo pessoas compouca escolarida<strong>de</strong> e pessoas com escolarida<strong>de</strong> superior. Assim, os dadosmostram que 47,1% dos pe<strong>de</strong>stres que morreram tinham apenaso ensino fundamental, zero a sete anos. Em contraposição, 52,3% dosque morreram em aci<strong>de</strong>nte aéreo tinham o ensino superior, ou seja, adistribuição do tipo <strong>de</strong> aci<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> trânsito fatal varia em função damaior ou da menor escolarida<strong>de</strong> das pessoas. A compreensão dos <strong>de</strong>terminantessocioepi<strong>de</strong>miológicos das lesões e mortes no trânsito éfundamental para quem trabalha na área <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> pública, a fim <strong>de</strong>planejar a assistência às vítimas e as ações <strong>de</strong> prevenção <strong>de</strong>sses eventos.Privação <strong>de</strong> sono, <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>ns do sono e sonolência são fatores queacarretam aci<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> trânsito. Essas condições costumam se relacionarà <strong>de</strong>satenção e à fadiga. A pessoa sonolenta fica <strong>de</strong>satenta ecansada, seja ela motorista, seja pe<strong>de</strong>stre. Essa <strong>de</strong>satenção po<strong>de</strong> serprovocada pela sonolência <strong>de</strong>vido à privação do sono e pelas <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>nsdo sono entre pessoas que trabalham por turnos ou que variamo turno <strong>de</strong> trabalho. Isso altera o ciclo <strong>de</strong> sono e se torna um fatorpredisponente <strong>de</strong> aci<strong>de</strong>nte. Quais são os grupos <strong>de</strong> maior risco paraessa sonolência? De acordo com estudos já realizados no país, são osjovens e adultos entre 18 e 39 anos, que trabalham em turnos e têmfragmentação do sono. Pessoas que apresentam problemas <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>177


como apneia e a narcolepsia também constituem um grupo <strong>de</strong> maiorrisco à sonolência. O consumo <strong>de</strong> álcool interage aumentando o sono e<strong>de</strong>bilitando mais as pessoas. Quais são as categorias profissionais mais vulneráveisa essas lesões do trânsito? Pelas condições adversas <strong>de</strong> trabalhoencontram-se os motoristas <strong>de</strong> táxi, <strong>de</strong> ônibus e <strong>de</strong> ambulância, além dosmotociclistas e caminhoneiros. Resultados <strong>de</strong> alguns estudos feitos emLondrina apontam comportamentos <strong>de</strong> risco das vítimas, como o uso <strong>de</strong>álcool. Variações <strong>de</strong> 10% a 29% <strong>de</strong>sses usuários do trânsito apresentavamhálito etílico (15% a 22% dos pe<strong>de</strong>stres; 20% a 29% dos ciclistas; 10% a20% dos motociclistas e 12% a 19% dos ocupantes <strong>de</strong> veículo). Aindachama a atenção que 55% dos motoristas que trabalhavam em horárioirregular e 81% dos que trabalhavam em horários fixos haviam consumidocerveja. A motocicleta tem sido i<strong>de</strong>ntificada como um tipo <strong>de</strong> veículo altamenteperigoso. É crescente o número <strong>de</strong> aci<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> trânsito fatal e nãofatal no Brasil envolvendo esse meio <strong>de</strong> transporte. Então, ela tem sido associadaa maior vulnerabilida<strong>de</strong> e gravida<strong>de</strong> dos casos, porque quando nãomata, sua vítima acaba ficando com incapacida<strong>de</strong>s e sequelas sérias, graves,severas. O potencial <strong>de</strong> mortalida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sse tipo <strong>de</strong> veículo é 10 vezes maiorque o dos automóveis, porque a pessoa em uma motocicleta está muitomenos protegida, a pancada é direta, seja no asfalto, seja no veículo. Osestudos têm mostrado que as principais vítimas <strong>de</strong> aci<strong>de</strong>ntes com motossão adultos, <strong>de</strong> 20 a 30 anos, do sexo masculino, que estavam trabalhando,5% não usavam capacete. Os membros inferiores são os mais afetados nossobreviventes e a cabeça é a parte do corpo mais afetada entre os mortos.Qual <strong>de</strong>ve ser a atuação do profissional <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> diante <strong>de</strong>sta realida<strong>de</strong>:<strong>de</strong>ssa magnitu<strong>de</strong>, distribuição diferenciada e <strong>de</strong>sses fatores <strong>de</strong>terminantes?A resposta consiste na atenção integral e integrada, médica e psicossocial,às vítimas diretas e indiretas, porque, quando não morre, essa vítima procuraum serviço <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>. A área da saú<strong>de</strong> tem interseção com a questão dotrânsito exatamente pelo ônus <strong>de</strong> ter <strong>de</strong> aten<strong>de</strong>r às vítimas <strong>de</strong>sses problemas.É fundamental o atendimento psicossocial aos usuários <strong>de</strong> álcool edrogas ilícitas, sejam eles motoristas ou pe<strong>de</strong>stres, porque o risco <strong>de</strong> aci<strong>de</strong>nte<strong>de</strong> trânsito entre usuários <strong>de</strong> droga não é só quando eles estão nadireção, mas também como pe<strong>de</strong>stres, pois eles per<strong>de</strong>m a atenção e aca-178


am provocando, muitas vezes, seu próprio aci<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> trânsito. Então, oatendimento a esses usuários é fundamental, o psicólogo e os Caps, têmuma missão muito gran<strong>de</strong> em relação a essas questões. Maior cuidado comos exames psicológicos para habilitação <strong>de</strong> motoristas. Sabemos que tem<strong>de</strong> tudo nessa questão da habilitação por uma série <strong>de</strong> problemas que nãonos cabe analisar, mas a habilitação precisa ser feita <strong>de</strong> forma bastante rigorosa,bastante séria, porque boa parte <strong>de</strong>sses aci<strong>de</strong>ntes é provocada porum grupo <strong>de</strong> reinci<strong>de</strong>ntes, infratores contumazes. Essas pessoas precisamser muito bem avaliadas até ser consi<strong>de</strong>radas habilitadas para dirigir. I<strong>de</strong>ntificargrupos em áreas mais afetadas, sair do ponto <strong>de</strong> vista individual etrabalhar mais com a ótica da saú<strong>de</strong> coletiva, buscando caracterizar, porexemplo, quem são essas vítimas. Em termos epi<strong>de</strong>miológicos, é possívelsaber as condições <strong>de</strong>ssas pessoas em termos <strong>de</strong> faixa <strong>de</strong> ida<strong>de</strong> e outrasvariáveis que constituem um perfil socioeconômico e <strong>de</strong>mográfico <strong>de</strong>ssegrupo que está morrendo e <strong>de</strong>sse grupo que está se internando, bem comodas áreas on<strong>de</strong> esses eventos mais ocorrem. Este conhecimento é essencialpara se pensar medidas preventivas, mais específicas e mais dirigidas àsáreas e aos grupos mais afetados. Atuar com gestores, auxiliando na estruturaçãoe na organização da re<strong>de</strong> <strong>de</strong> atenção às vítimas nos distintos níveis<strong>de</strong> atuação (primário, secundário e terciário). Ora, se eu sou estudioso dotema, se tenho conhecimento da área on<strong>de</strong> mais ocorrem aci<strong>de</strong>ntes, se seiqual é o tipo <strong>de</strong> aci<strong>de</strong>nte mais frequente e os grupos mais afetados, possocontribuir para o planejamento <strong>de</strong> ações <strong>de</strong> prevenção e <strong>de</strong> promoção dasaú<strong>de</strong>, no nível do atendimento pré-hospitalar. Posso contribuir com oSamu, com o pessoal que está nos hospitais, com o pessoal da saú<strong>de</strong> queestá nos serviços <strong>de</strong> reabilitação e com os que estão planejando as ações <strong>de</strong>assistência e <strong>de</strong> prevenção. Posso atuar em prol <strong>de</strong> políticas públicas <strong>de</strong>prevenção dos aci<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> trânsito dirigidas aos grupos mais vitimizadose vulneráveis, realizar estudos e pesquisas dos fatores <strong>de</strong>terminantes dosaci<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> transporte no nível local. Temos no país uma heterogeneida<strong>de</strong>muito gran<strong>de</strong>. Os dados aqui apresentados são para o Brasil, mas se os<strong>de</strong>talharmos por município, por áreas específicas <strong>de</strong>ntro do município, teremospanoramas completamente distintos, diferenciados e que precisamosconhecer para respon<strong>de</strong>r a essas questões.179


Letícia Marín-León 22À Saú<strong>de</strong> Pública compete evitar mortes precoces e diminuir o elevadonúmero <strong>de</strong> vítimas incapacitadas por aci<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> trânsito (AT), querepresentam um transtorno à mobilida<strong>de</strong>, uma vez que paralisam ruas eestradas até que o socorro seja provi<strong>de</strong>nciado e a polícia apure os fatos.Inserido nessa temática mais ampla, este texto analisa os AT e sua relaçãocom os comportamentos infratores <strong>de</strong> jovens do sexo masculino, na faixaetária entre 15 e 34 anos. Discute possíveis causas político-sociais <strong>de</strong>ssesaci<strong>de</strong>ntes e suas consequências. Analisa dados resultantes <strong>de</strong> pesquisas,ao mesmo tempo que apresenta possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> prevenção dos AT.Os jovens do sexo masculino têm elevado risco <strong>de</strong> morte por aci<strong>de</strong>ntesComo as pesquisas epi<strong>de</strong>miológicas apontam que mais <strong>de</strong>90% dos aci<strong>de</strong>ntes estão relacionados a comportamentos infratores(MARIN e QUEIROZ, 2000), centralizarei a discussão nesses comportamentos,na sua <strong>de</strong>terminação social e nas possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> prevenção.Consi<strong>de</strong>rando o tema, cabe comentar que mesmo quandoos comportamentos infratores não causam aci<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> trânsito,po<strong>de</strong>m, por exemplo, quebrar a harmonia da mobilida<strong>de</strong> ao forçaroutros a ce<strong>de</strong>r o passo ou brecar bruscamente.Em 1996, coor<strong>de</strong>nei uma pesquisa sobre comportamentos notrânsito com estudantes universitários (MARÍN-LEÓN e VIZZOTTO,2003). Embora já tenham <strong>de</strong>corrido mais <strong>de</strong> <strong>de</strong>z anos, seus resultadospersistem válidos e, pela leitura da bibliografia, observo que essescomportamentos <strong>de</strong> risco se reproduzem entre os jovens brasileirose <strong>de</strong> outros países do mundo. Tal pesquisa foi solicitada pelo Dr. JoelGiglio, coor<strong>de</strong>nador do Núcleo <strong>de</strong> Pesquisas Psicológicas que, abaladopela morte <strong>de</strong> dois filhos <strong>de</strong> seu vizinho, os quais, em alta velocida<strong>de</strong>,se esmagaram contra um poste <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> uma festa, consi<strong>de</strong>rou im-22 Médica <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> Pública da Universida<strong>de</strong> Estadual <strong>de</strong> Campinas. Atuação: epi<strong>de</strong>miologia,mortalida<strong>de</strong>, saú<strong>de</strong> mental, aci<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> trânsito, idoso e insegurança alimentar.181


portante analisar aci<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> trânsito entre os jovens. O primeiropasso da pesquisa foi o levantamento bibliográfico, nacional e internacional,que levou ao convencimento <strong>de</strong> que a faixa etária que apresentao maior risco <strong>de</strong> morte em aci<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> trânsito é a dos jovensdo sexo masculino. Ao focalizar exclusivamente esse grupo <strong>de</strong> risco,não serão consi<strong>de</strong>rados, nestas reflexões, os aci<strong>de</strong>ntes que envolvemo sexo feminino nem os atropelamentos, que matam mais os idosos.No Brasil, em 2007, foram registradas 7.320 mortes <strong>de</strong> jovens <strong>de</strong>15 a 24 anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>, o que representa 20 mortes por dia; númerosuperior às mortes ocasionadas pelo conjunto <strong>de</strong> todas as doençasnessa mesma faixa etária.No gráfico 1, a linha do sexo masculino apresenta valores superioresa 30 óbitos por 100 mil homens, enquanto a linha do sexo feminino flutuaentre 6 e 9 óbitos por 100 mil mulheres. Dessa forma, fica claro, no gráfico1, que as mulheres não representam um problema para a Saú<strong>de</strong> Pública.Ainda nesse gráfico, observa-se que entre 1997 e 2000, a mortalida<strong>de</strong> dosexo masculino diminui, provavelmente <strong>de</strong>vido às medidas implantadas apartir do novo Código <strong>de</strong> Trânsito, que entrou em vigor em 1998. No entanto,após o ano 2000, a tendência da mortalida<strong>de</strong> por AT volta a ser crescente,o que significa que a introdução do código conseguiu diminuir oscomportamentos <strong>de</strong> risco para aci<strong>de</strong>ntes, mas não teve efeito duradouro.Por esse motivo, é importante compreen<strong>de</strong>r por que, embora tenham sidoimplantadas diversas medidas para punir as infrações, inclusive com a perdada Carteira Nacional <strong>de</strong> Habilitação (CNH), a tendência da mortalida<strong>de</strong>por AT no sexo masculino retomou a tendência ascen<strong>de</strong>nte.Tais estatísticas apontam para a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> novamente focalizaro controle dos comportamentos no trânsito. Não são os pe<strong>de</strong>stresque ocasionam os aci<strong>de</strong>ntes, embora eventualmente um pe<strong>de</strong>stre bêbadopossa <strong>de</strong>scer da calçada <strong>de</strong> forma totalmente imprevista, sendoimpossível ao condutor <strong>de</strong>sviar o automóvel; mas certamente as lesõesserão menores se o motorista estiver conduzindo em velocida<strong>de</strong> compatívelcom uma rua com pe<strong>de</strong>stres. Então, para mim, quase sempre éo condutor que <strong>de</strong>ve ser responsabilizado.182


O maior risco <strong>de</strong> quem conduz uma motoUma categoria com risco ainda maior <strong>de</strong> falecimento em <strong>de</strong>corrência<strong>de</strong> AT é a dos motociclistas. Observa-se que, <strong>de</strong> 1996 para cá,embora tenhamos o novo código, a mortalida<strong>de</strong> provocada por aci<strong>de</strong>ntescom moto vem aumentando <strong>de</strong> forma vertiginosa em todo oBrasil, sendo provável que os mais atingidos sejam indivíduos pobres,que adquirem moto por ser a opção mais barata. No Brasil, em 1996,morreram em aci<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> moto 514 jovens do sexo masculino <strong>de</strong> 15 a34 anos, e em 2007 esse valor atingiu 5016 indivíduos da mesma faixaetária. Dessa forma, faz-se necessário intervir preventivamente paraevitar mortes precoces por aci<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> motos.Está muito claro que a moto é um veículo que <strong>de</strong>ixa o indivíduototalmente vulnerável. Como é possível que hoje seja exigido, por umlado, que o carro tenha uma estrutura <strong>de</strong> engenharia tal que absorvamuito bem os impactos, que, além do cinto <strong>de</strong> segurança, tenhaseis airbags e, por outro lado, seja aceito que se vendam motos semnenhum tipo <strong>de</strong> proteção? A indústria automotora, por exemplo, po<strong>de</strong>riacolocar nas motos sensores controladores <strong>de</strong> distância, mas osmotoqueiros teriam <strong>de</strong> respeitar esses sensores, não os <strong>de</strong>sativando.A indústria do marketing incentiva as vendas sem qualquer alusãoao perigo <strong>de</strong> morte no trânsito. Pessoas famosas emprestam suaimagem para essa propaganda irresponsável <strong>de</strong> motos, <strong>de</strong>sgraçadamentesem pon<strong>de</strong>rar que estão incentivando a morte precoce dosjovens ou <strong>de</strong>stinando muitos a uma vida limitada pela incapacida<strong>de</strong>.Dirijo-me a psicólogos, mas também advirto mães e pais: se eutivesse um filho que pedisse uma moto, falaria: “Eu não dou o dinheiropara moto e, se você tem seu dinheiro e compra a moto, compretambém o seu terreno lá no cemitério”. A família é a corresponsávelpor permitir que o filho use um veículo que o <strong>de</strong>ixa tão vulnerável.Eu torço para que as ONGs dos ciclistas consigam mais a<strong>de</strong>ptos<strong>de</strong> bicicleta e menos <strong>de</strong> moto, porque a diferença entre bicicleta emoto é a velocida<strong>de</strong> que elas atingem: é o impacto da velocida<strong>de</strong> queocasiona a morte ou <strong>de</strong>ixa sequelas graves.183


Também apoio o incentivo ao transporte público e <strong>de</strong>staco a responsabilida<strong>de</strong>do governo em incrementá-lo. Igualmente, cabe a todosnão solicitar serviços que <strong>de</strong>pendam <strong>de</strong> motoboys. Na cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo,está em estudo o uso <strong>de</strong> vias exclusivas para os motoqueiros; mas semdúvida, o mais pru<strong>de</strong>nte será não usá-las.Outra <strong>de</strong>ficiência que possibilita a morte <strong>de</strong> motoqueiros é a fiscalizaçãoineficiente, aliada ao baixo índice <strong>de</strong> municipalização do trânsito,sobretudo em municípios pequenos, com menos <strong>de</strong> 100 mil habitantes.Ou eles não usam capacete ou pilotam em velocida<strong>de</strong>s muito acima daspermitidas e acabam morrendo.É possível prevenir as mortes por aci<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> trânsito?Sim, pois tanto os aci<strong>de</strong>ntes com moto como com os <strong>de</strong>mais veículosestão relacionados a comportamentos <strong>de</strong> risco, tais como o <strong>de</strong>srespeito àsnormas do trânsito, a direção logo após ingestão abusiva <strong>de</strong> bebida alcoólica,a direção em velocida<strong>de</strong> acima da permitida, a execução <strong>de</strong> ultrapassagensnão permitidas ou perigosas, o avanço em sinal vermelho.Esses são dados da minha pesquisa com universitários, em que foramcomparados estudantes, entre 18 e 25 anos, que dirigiam e nunca tinhamtido aci<strong>de</strong>nte com os que tinham tido aci<strong>de</strong>nte. Observou-se que, emboraambos os grupos referissem ter tido comportamentos <strong>de</strong> risco, no grupocom ocorrência <strong>de</strong> aci<strong>de</strong>ntes todos esses comportamentos foram mais frequentes:os respon<strong>de</strong>ntes informaram dirigir habitualmente em velocida<strong>de</strong>acima <strong>de</strong> 130 km/h, dirigir pelo acostamento, dirigir logo após beber e tersido multados por diferentes infrações.Ainda, ao comparar os estudantes que tinham tido um ou dois aci<strong>de</strong>ntescom os que tinham tido três ou mais aci<strong>de</strong>ntes, observou-se queestes apresentavam maior frequência <strong>de</strong> cada um dos comportamentos <strong>de</strong>risco investigados – avançar sinal vermelho, dirigir após beber, fazer ultrapassagensproibidas, conduzir em velocida<strong>de</strong> acima <strong>de</strong>130 km/h, brigar notrânsito e participar <strong>de</strong> rachas. Também referiram maior frequência <strong>de</strong> multase intento <strong>de</strong> suborno. Em relação às multas cabe lembrar que antes <strong>de</strong>1998, o Código <strong>de</strong> Trânsito era mais brando, não havia incorporado critérios184


<strong>de</strong> gravida<strong>de</strong> <strong>de</strong> comportamento e reincidência e também a fiscalizaçãoera menos frequente e, assim, ser multado era raro.No início <strong>de</strong> 2009, fiquei muito indignada com o caso do <strong>de</strong>putadoque matou dois jovens em uma colisão em Curitiba: ele estava alcoolizadoe dirigia em altíssima velocida<strong>de</strong>. Talvez essas mortes tivessem sido evitadasse, anteriormente, a socieda<strong>de</strong> tivesse se postado contra o comportamentotemerário <strong>de</strong>sse <strong>de</strong>putado que, embora houvesse ultrapassado os 20 pontospor infrações no trânsito, continuava dirigindo <strong>de</strong> forma temerária.Por que houve omissão do pessoal da fiscalização e dos responsáveispelo processamento das multas? Por que não foram à casa ou ao local <strong>de</strong>trabalho <strong>de</strong>le, que é muito bem-conhecido, para notificá-lo? Quantos casoscomo esse acontecem diariamente?A meu ver, esse fato caracteriza a aceitação social dos comportamentosinfratores. Ainda nos primeiros dias, os meios <strong>de</strong> comunicação não noticiaramque o ex-<strong>de</strong>putado estava alcoolizado, provavelmente por causa <strong>de</strong> suaposição. Também a mãe <strong>de</strong> uma das vitimas teve dificulda<strong>de</strong> para ser escutadanas suas <strong>de</strong>núncias sobre o estado <strong>de</strong> embriaguez do ex-<strong>de</strong>putado. Seráque os meios <strong>de</strong> comunicação tentavam impor a imagem <strong>de</strong> um simplesaci<strong>de</strong>nte, produto do azar, para não ter problema com uma pessoa influente?O gráfico 2 mostra como o exercício da fiscalização, da punição e daeducação para o trânsito, entre outros, varia entre estados. Nesse gráfico,representam-se apenas os estados com estatísticas <strong>de</strong> boa qualida<strong>de</strong> noSistema <strong>de</strong> Informações <strong>de</strong> Mortalida<strong>de</strong> em 2007, e inclui-se apenas a faixaetária que é a mais recorrente em aci<strong>de</strong>ntes, que é a <strong>de</strong> 15 a 34 anos.Observa-se que, na faixa etária <strong>de</strong> 15 a 24, Rio Gran<strong>de</strong> do Sul, Minas Gerais,Rio <strong>de</strong> Janeiro e São Paulo apresentaram taxas <strong>de</strong> no máximo 80 óbitos por100.000 homens; já em Mato Grosso do Sul, Espírito Santo, Paraná e SantaCatarina, essa mortalida<strong>de</strong> foi superior a 120 óbitos por 100.000 homens.Então, as estatísticas do Paraná, que é o estado do ex-<strong>de</strong>putado, apontampara elevada frequência na população <strong>de</strong> comportamento infrator, queconduz a mortes por aci<strong>de</strong>ntes no trânsito. É uma pena que em Curitiba,cida<strong>de</strong> famosa por seu transporte público e ciclovias, existam pessoas comoesse ex-<strong>de</strong>putado, que transgri<strong>de</strong>m ostensivamente a lei, e funcionáriosencarregados da fiscalização e <strong>de</strong> controle <strong>de</strong> infrações no trânsito, que185


não fiscalizam ou não zelam pelo cumprimento da lei. Assim, um problemapara a adoção <strong>de</strong> comportamentos cidadãos é a falta <strong>de</strong> fiscalização efetivaaliada à falta <strong>de</strong> credibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> que a lei será cumprida.A população não cobra atuação exemplar das autorida<strong>de</strong>s. Frequentemente,assim como esse <strong>de</strong>putado, há diversas outras autorida<strong>de</strong>s infringindoas leis <strong>de</strong> trânsito. O fato é noticiado, mas nada acontece. Outro casoque mereceu <strong>de</strong>staque é <strong>de</strong> uma guarda no Rio <strong>de</strong> Janeiro, que multouo filho <strong>de</strong> um <strong>de</strong>sembargador. Injustamente, ela foi punida. Então, outrosguardas ficam ressabiados em multar alguém que possa ser influente. Qualé o aprendizado? As crianças, vendo a impunida<strong>de</strong> estampada nos jornais,na televisão, que razões encontrarão para cumprir as normas <strong>de</strong> trânsitoquando forem motoristas? Não tem sentido cumprir se quem viola as regrasnão tem punição nenhuma.A fiscalização presencial no trânsito é uma tarefa complicada, vistoa pressão que os guardas sofrem dos condutores infratores que, ao serparados, alegam toda classe <strong>de</strong> motivos para seu comportamento não serpunido, como por exemplo: “A rua está muito livre, por isso eu podia correr”,“Dava para ver que não vinha ninguém nessa mão, por isso eu fuicontramão”, e, ainda, aqueles que usam o famoso “Você sabe com quemestá falando?” para intimidar o guarda. Muitos motoristas não assumemque têm comportamento <strong>de</strong> risco que coloca a mobilida<strong>de</strong> e, sobretudo, avida em risco, e ainda conseguem convencer os guardas a não multá-los.Embora a legislação seja muito boa e clara, com um sistema <strong>de</strong> infraçõesmuito bem-<strong>de</strong>finido, a ela se opõe, além da falta <strong>de</strong> manifestação dasocieda<strong>de</strong>, outro problema, contrário aos interesses da cidadania: o individualismo,que faz surgir a indústria <strong>de</strong> anular multas. Existem advogadosque ganham a vida com processos <strong>de</strong> anulação <strong>de</strong> infrações <strong>de</strong> trânsito.Há também famílias que contribuem para a manutenção <strong>de</strong> comportamentostransgressores e o individualismo e a irresponsabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> seusfilhos, ao aceitar a transferência das infrações. Não estão fazendo nenhumfavor aos filhos, mas ce<strong>de</strong>m ante a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> eles serem prejudicados por nãopo<strong>de</strong>r dirigir ou por ter <strong>de</strong> fazer novamente o curso e a prova para obter acarteira <strong>de</strong> habilitação. Com esse comportamento, as famílias estão aceitandoque o filho morra no trânsito ou mate alguém.186


Como atuar para prevenir o consumo <strong>de</strong> bebidas alcoólicas?A lei seca <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 2008 é importante, mas é fundamental queo governo fiscalize e faça cumprir a legislação. Os bares po<strong>de</strong>m ajudare as autorida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>veriam dar exemplo, mantendo-se longe do volanteapós beber.Uma pesquisa recente com dados do Vigitel analisou as respostas<strong>de</strong> pessoas do sexo masculino <strong>de</strong> 18 anos ou mais, à pergunta “Bebeualguma vez nos últimos 30 dias, 5 doses ou mais e <strong>de</strong>pois dirigiu?” (MOU-RA et al., 2009). Trata-se <strong>de</strong> entrevistas a usuários <strong>de</strong> telefone fixo, isto é,pessoas com um maior po<strong>de</strong>r aquisitivo, realizadas entre julho <strong>de</strong> 2007 emaio <strong>de</strong> 2009. Foram entrevistas pelo menos duas mil pessoas por cida<strong>de</strong>,totalizando 54 mil entrevistas por ano. Analisando-se os dados mensaisda prevalência <strong>de</strong> “beber e logo dirigir”, observa-se que no mês <strong>de</strong> junho<strong>de</strong> 2008, mês da instituição da Lei nº 11.705 (lei seca), 1,9% dos motoristasreferiam dirigir após consumo abusivo <strong>de</strong> bebidas alcoólicas. Houvequeda <strong>de</strong>sse comportamento para 0,8% em agosto <strong>de</strong> 2008, mas voltaa aumentar até atingir 1,6% em <strong>de</strong>zembro daquele ano; caindo nos primeirosmeses <strong>de</strong> 2009, mas novamente voltando a aumentar e atingindo2,9% em maio <strong>de</strong> 2009.A lei é ótima, mas quem a cumpre? Percebe-se que não está sendocumprida. Se houvesse fiscalização e punição, seria respeitada e os valores<strong>de</strong>ssa prevalência estariam próximos <strong>de</strong> zero. Cabe <strong>de</strong>stacar que essasestatísticas não são <strong>de</strong> alcoólatras: trata-se <strong>de</strong> pessoas que, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> umdia normal, saíram para beber cerveja ou outras bebidas alcoólicas, beberammais <strong>de</strong> quatro doses e voltaram para casa dirigindo um carro. O fatoé que esse comportamento está associado em todo o mundo a elevadorisco <strong>de</strong> aci<strong>de</strong>ntes e por isso <strong>de</strong>ve ser controlado e punido.Quais são as possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> prevenção <strong>de</strong> AT pela família?Acompanhar, orientar e fiscalizar o <strong>de</strong>sempenho dos filhos no volante.A família po<strong>de</strong> estabelecer que o jovem, nos primeiros anos comomotorista, use apenas carros <strong>de</strong> baixa potência. Provavelmente, para mui-187


tos adolescentes, o i<strong>de</strong>al seria dirigir um veículo que possa atingir velocida<strong>de</strong>ssuperiores a 160 km/h, mas em um primeiro momento, realmenteé muito mais seguro que comecem com um automóvel <strong>de</strong> pequena potência.Os pais têm <strong>de</strong> saber dizer não e manter sua disposição <strong>de</strong> nãopermitir o uso <strong>de</strong> carros velozes.Também <strong>de</strong>vem <strong>de</strong>ixar claro para os jovens que eles têm <strong>de</strong> respon<strong>de</strong>rpor seus erros, assumindo seus pontos por infração e pagando suasmultas. Além disso, atentar para que os componentes do grupo familiarque costumam apresentar comportamentos <strong>de</strong> risco aprendam a respeitaras normas, recorrendo a tratamento psicológico se for o caso. Outrossim,propiciar que os amantes <strong>de</strong> esportes radicais que apresentam operfil <strong>de</strong> high sensation seeking aprendam a dissociar o trânsito da arena<strong>de</strong> seu prazer, apren<strong>de</strong>ndo a ter um comportamento cidadão no trânsito,<strong>de</strong>ixando a procura por “adrenalina” apenas para os esportes radicais.A família é fundamental, em se tratando da prevenção dos AT dosjovens. Quando não há família por perto, como no caso <strong>de</strong> muitos estudantesou <strong>de</strong> jovens que trabalham em outras localida<strong>de</strong>s, são os amigosou colegas que têm <strong>de</strong> assumir o papel protetor.Como os psicólogos po<strong>de</strong>m contribuir para a prevenção dos aci<strong>de</strong>ntes<strong>de</strong> trânsito?Quando a avaliação <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> mental para a carteira <strong>de</strong> habilitaçãoapontar: falta <strong>de</strong> controle emocional, consumo excessivo <strong>de</strong> álcool,agressivida<strong>de</strong>, raiva, high sensation seeking, baixa tolerância à frustraçãoou consumo <strong>de</strong> drogas, sugeriria que os psicólogos orientem o candidatoe sua família para maior cuidado e vigilância no trânsito.Para que os psicólogos pu<strong>de</strong>ssem orientar a família, teria <strong>de</strong> serexigido que todo candidato jovem comparecesse à avaliação <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>mental acompanhado do pai, da mãe ou <strong>de</strong> ambos. Dessa forma, antequalquer suspeita <strong>de</strong> <strong>de</strong>svio da normalida<strong>de</strong>, os psicólogos po<strong>de</strong>riamconversar com a família, orientando para redobrar a atenção sobre aquelefilho. Ainda conforme a avaliação, alguns <strong>de</strong>sses casos po<strong>de</strong>riam atéser encaminhados a sessões <strong>de</strong> terapia para melhor acompanhamento.188


Outra sugestão seria submeter o candidato à avaliação psicológicaante qualquer indício <strong>de</strong> problema psicológico.Os psicólogos ainda po<strong>de</strong>riam orientar as famílias para instituir <strong>de</strong>forma rígida a condução apenas <strong>de</strong> carros <strong>de</strong> pouca potência, por aquelesjovens com agressivida<strong>de</strong> exacerbada ou com outros indícios <strong>de</strong> comportamento<strong>de</strong> risco para o trânsito.Caberia ainda discutir a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> os <strong>Conselho</strong>s Regionais <strong>de</strong><strong>Psicologia</strong> terem um conselheiro que analisasse casos, encaminhados pelosdiversos municípios por apresentar indícios <strong>de</strong> algum problema <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>mental que pu<strong>de</strong>sse ameaçar a segurança no trânsito. Assim, principalmenteos psicólogos <strong>de</strong> cida<strong>de</strong>s pequenas se sentiriam respaldados pelaentida<strong>de</strong> <strong>de</strong> classe, que seria a que daria o último veredicto.O Gráfico 3 é a prova <strong>de</strong> que é possível prevenir. Nesse gráfico, apresentam-seas taxas <strong>de</strong> mortalida<strong>de</strong> por AT <strong>de</strong> diversos países, <strong>de</strong> jovens dosexo masculino, sendo que o dado do Brasil correspon<strong>de</strong> ao do conjuntodos estados com estatísticas muito confiáveis.Na faixa <strong>de</strong> 15 a 24 anos, no Brasil observam-se 89 óbitos por 100 milhomens; enquanto no Japão, nessa mesma faixa etária, morrem 10 jovens,na Argentina, 14 e na Alemanha, 14,9.Perguntei a uma amiga que mora na Alemanha: “Como é possívelessa mortalida<strong>de</strong> baixa nos jovens, se vocês têm estradas em que o normalé 160 km/h?” A resposta <strong>de</strong>la foi: “Aqui nenhum adolescente que sai parauma festa ou para um bar vai com seu carro. Ele usa táxi ou transportepúblico, existe muita fiscalização e você per<strong>de</strong> a carteira por um mês, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ndoda infração, por dois, por três meses, por um ano, conforme for”.Assim, po<strong>de</strong>mos concluir que o Brasil conseguirá as cifras baixas dos paísesdo Gráfico 3 somente quando for implantada fiscalização a<strong>de</strong>quada.Qual é o papel do governo na prevenção dos AT?Para mim, o principal é a fiscalização. Consi<strong>de</strong>ro que os programaseducativos em escolas, universida<strong>de</strong>s ou trabalho conseguirãoatingir seu objetivo apenas se a família e a fiscalização <strong>de</strong>governo estiverem presentes e muito atuantes.189


A fiscalização governamental não <strong>de</strong>ve se limitar às ruas e rodovias:ela <strong>de</strong>ve estar atenta a que não se pratiquem frau<strong>de</strong>s viainternet ou por maus funcionários que só visam ao lucro. Ainda, ogoverno <strong>de</strong>ve agilizar o trabalho <strong>de</strong> seus funcionários, cuidando paraque empreguem seu tempo construtivamente, e não em processosburocráticos iniciados por pessoas que querem continuar infringindoas normas do trânsito, recorrendo das multas.Outro aspecto que <strong>de</strong>veria ser repensado situa-se na área judicial,em que muitas ações terminam por meio <strong>de</strong> acordo entre omotorista infrator e a vítima <strong>de</strong> AT. Visto que mudar comportamentosé difícil e acordos exclusivamente monetários são insuficientes paradiminuir as infrações, sugiro que, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente <strong>de</strong> qualqueracordo, os infratores tenham a obrigação <strong>de</strong> passar por sessões educativas<strong>de</strong> reavaliação do comportamento no trânsito.Também o governo <strong>de</strong>ve estar atento a que as autoescolas ministremtoda a carga horária necessária para que o aluno consiga vir aser um motorista capacitado para enfrentar o trânsito sem ocasionaraci<strong>de</strong>ntes. Na carga <strong>de</strong> aulas práticas <strong>de</strong>veria ser cobrada a práticada direção <strong>de</strong>fensiva. Deveria o governo eliminar as autoescolas quevisam apenas ao lucro e entregam uma carteira <strong>de</strong> habilitação semter formado os alunos.Advogo também que o governo <strong>de</strong>veria disponibilizar um canal direto<strong>de</strong> comunicação da socieda<strong>de</strong> com as autorida<strong>de</strong>s municipais, estaduaise fe<strong>de</strong>rais para que os cidadãos pu<strong>de</strong>ssem informar sobre pessoas comcomportamentos infratores das normas do trânsito em sua comunida<strong>de</strong>.Embora seja fundamental a atuação do governo, as ONGs, osmeios <strong>de</strong> comunicação e os conselhos profissionais têm muito a contribuirpara que os motoristas apresentem comportamentos realmentecidadãos e éticos no trânsito. É incumbência <strong>de</strong> todos pressionar ogoverno para que aprimore as medidas <strong>de</strong> fiscalização e que o sistema<strong>de</strong> pontos e cobrança <strong>de</strong> multas seja ágil e eficiente para toda a população,sem privilégios para os protegidos das autorida<strong>de</strong>s do momento.190


ReferênciasMARÍN, L. e QUEIROZ, M. S. A atualida<strong>de</strong> dos aci<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> trânsito naera da velocida<strong>de</strong>: uma visão geral. Cad. Saú<strong>de</strong> Pública, jan./2000, v. 16,n.1, p. 7-21.MARÍN-LEÓN, L e VIZZOTTO, M. M. Comportamentos no trânsito: umestudo epi<strong>de</strong>miológico com estudantes universitários. Cad. Saú<strong>de</strong> Pública,abr./2003, v. 19, n. 2, p. 515-523.MOURA, E. C. et al. Direção <strong>de</strong> veículos motorizados após consumoabusivo <strong>de</strong> bebidas alcoólicas, Brasil, 2006 a 2009. Rev. Saú<strong>de</strong> Pública,out./2009, v. 43, n. 5, p. 891-894.Gráfico 1 - Tendências das taxas <strong>de</strong> mortalida<strong>de</strong> por aci<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> trânsitosegundo sexo. Brasil, 1990-200640353025201510501990199119921993199419951996Masculino19971998199920002001Feminino20022003200420052006191


Gráfico 2Coeficientes <strong>de</strong> mortalida<strong>de</strong> por Aci<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong>Trânsito no sexo masculino, segundo faixa etária eUF, Brasil 2007.180160140120100 ób/100.000 72 homens 72 72806040200RioGran<strong>de</strong>do SulMinasGeraisRio <strong>de</strong>Janeiro81SãoPaulo118 120MatoGrossodo SulEspíritoSanto136Paraná153SantaCatarina15-2425-34Gráfico 31009080706050403020100Coeficientes <strong>de</strong> mortalida<strong>de</strong> por Aci<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong>Trânsito no sexo masculino, segundo faixa etária epaís.ób/100.000 homens10,5 14,2 14,9 15,1 16,8JapãoArgentinaAlemanhaChileGra BretanhaCanada22 23,5 26,6 27,7MexicoEspanhaFrança35,5EUA89Brasil UF selec15-2425-34Países obtidos <strong>de</strong> WHO Mortality Database disponível em www.who.int acessado em 8/10/2009.192


Amélia Luisa Damiani 23O processo <strong>de</strong> proletarização nas gran<strong>de</strong>s cida<strong>de</strong>s e a urbanizaçãocrítica acessam a situação <strong>de</strong> penúria social nas periferias urbanas 24 , incluindouma mobilida<strong>de</strong> social <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>nte – gente que sai dos seus espaços<strong>de</strong> moradia, para residir ainda mais precariamente, como estratégia<strong>de</strong> sobrevivência (quando há uma urbanização ou qualquer programasocial <strong>de</strong> promoção dos lugares periféricos em que resi<strong>de</strong>) –, seja porqueos mais pobres não conseguem pagar novos tributos, na área agora maisurbanizada, seja porque é a única coisa <strong>de</strong> valor que passam a possuir eacabam por comercializar, seja porque sumariamente são expulsos. Então,a geografia urbana, além da mobilida<strong>de</strong> pendular – casa-trabalho –, queconstituiu um pensamento sobre a sinsingularida<strong>de</strong> da casa urbana25reúne elementos para a compreensão <strong>de</strong>ssa mobilida<strong>de</strong> urbana muitoperversa, com raízes econômicas implicadas nas crises sociais que oravivemos. Ainda a consi<strong>de</strong>rar, além <strong>de</strong>ssa mobilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>nte, a reprodução<strong>de</strong> movimentos migratórios, como a migração NE-SE, entre assignificativas, apesar da redução relativa e dos limites <strong>de</strong> postos <strong>de</strong> trabalhonos lugares <strong>de</strong> <strong>de</strong>stino consolidados, como as gran<strong>de</strong>s cida<strong>de</strong>s26. Emoutros trabalhos, consi<strong>de</strong>ramos a migração dirigida – <strong>de</strong> peões <strong>de</strong> obrada construção – gente que, com ou sem documentação pessoal, é trazidapara São Paulo ou outros centros, para um suposto trabalho.23 Professora doutora do Departamento <strong>de</strong> Geografia, da Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Filosofia, Letrase Ciências Humanas, da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo. ameluisa@usp.br.24 Há periferias nas áreas centrais. Po<strong>de</strong>mos, mais apropriadamente, falar em umadiferenciação <strong>de</strong> centros e periferias.25 GEORGE, Pierre. Geografia Urbana. São Paulo: Difel, 1983. Texto original datado <strong>de</strong>1961, sob o título <strong>de</strong> Précis <strong>de</strong> géographie urbaine.26 TORRES, Haroldo. A fronteira paulistana. In: MARQUES, Eduardo; TORRES, Haroldo.São Paulo – Segregação, pobreza e <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s sociais. São Paulo: SENAC SãoPaulo, 2005, p. 101-119.193


A retenção <strong>de</strong>ssa documentação, quando ela existe, não é umaexceção, mas uma prática reinci<strong>de</strong>nte 27 .À mobilida<strong>de</strong> do trabalho, necessária à constituição <strong>de</strong> uma massa<strong>de</strong> trabalhadores disponível para novas rotações <strong>de</strong> capital, acresce-sea mobilida<strong>de</strong> do habitat, quando a produção do espaço urbano tornasecentral, entre os negócios capitalizados, e envolve uma economiapolítica do espaço, que o produz enquanto raro e, economicamente,produtivo; espaço antes menos capitalizado. Assim, o processo <strong>de</strong> urbanizaçãoinclui a expropriação social, ao mesmo tempo que a exploraçãodo trabalho. Uma concepção inauguradora <strong>de</strong> seus conteúdos éaquela sobre a espoliação urbana, por Lucio Kowarick 28 .Quando há perspectiva <strong>de</strong> consolidação <strong>de</strong> centralida<strong>de</strong>s subordinadasnas periferias (gran<strong>de</strong>s avenidas, como eixos <strong>de</strong> circulação),logo há quem garanta a sua soli<strong>de</strong>z – apesar da informalida<strong>de</strong> dosloteamentos – pela presença <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s re<strong>de</strong>s comerciais, como asCasas Bahia, por exemplo, e re<strong>de</strong>s bancárias, como o Banco Bra<strong>de</strong>sco.Po<strong>de</strong>-se falar <strong>de</strong> uma estratificação espacial das centralida<strong>de</strong>s: <strong>de</strong>centralida<strong>de</strong>s locais – que facilitam a vida cotidiana da populaçãoem sua mobilida<strong>de</strong> diária e oferecem os serviços e comércio básicos– às regionais (na mesma zona da metrópole) – que incluem as re<strong>de</strong>scomerciais e <strong>de</strong> serviços <strong>de</strong> maior porte às metropolitanas – cujoacesso é mais reduzido e que po<strong>de</strong>m incluir uma inserção profissionalnecessária à sobrevivência – e assim por diante. Portanto, trata-se da<strong>de</strong>nsida<strong>de</strong> relativa da composição orgânica do espaço.Ao mesmo tempo tem-se a produção <strong>de</strong> novas centralida<strong>de</strong>s,que conduzem à mobilida<strong>de</strong> espacial da população originária do lugare a empurra para a fronteira <strong>de</strong>ssa nova nucleação.Se a história recente do capitalismo, <strong>de</strong> pelo menos um século,expõe a produção do espaço urbano como negócio lucrativo, a mo-27 DAMIANI, Amélia Luisa. Na busca das favelas o encontro do ‘peão’ que permanece– as favelas <strong>de</strong> Cubatão num quadro <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento do centro petroquímicosi<strong>de</strong>rúrgico.Dissertação <strong>de</strong> mestrado. São Paulo: Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Filosofia, Letras e CiênciasHumanas da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo, 1984.28 KOWARICK, Lúcio. A espoliação urbana. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Paz e Terra, 1979.194


ilida<strong>de</strong> pendular, recru<strong>de</strong>scida exatamente por esta mercantilizaçãodo espaço, <strong>de</strong>fine o estranhamento <strong>de</strong> segundo grau a que os moradoresestão expostos, diante dos longos percursos diários. Po<strong>de</strong>ria sertraduzida como um dos conteúdos da urbanização, mas seria precisoalçá-la à noção do tempo obrigatório 29 . Tempo da cotidianida<strong>de</strong>, retiradoda vida social e humana, esvaziado <strong>de</strong> relações sociais vivas,cumprindo a função estrita do movimento casa-trabalho e a funçãohistórica <strong>de</strong> <strong>de</strong>stituição da subjetivida<strong>de</strong> humana, pela humilhação eredução da experiência urbana, que significa.Em relação à temática – mobilida<strong>de</strong> do trânsito e mobilida<strong>de</strong> humana–, seria preciso consi<strong>de</strong>rar que a mobilida<strong>de</strong> do trânsito não po<strong>de</strong>ser <strong>de</strong>sprezada, pois as periferias, hoje, estão a horas dos lugares possíveis<strong>de</strong> trabalho – chegando a mais <strong>de</strong> três horas, em alguns casos.Se o trabalhador tem passe ou ajuda <strong>de</strong> custo para transporte,quando o tem, <strong>de</strong>svia essa verba para outros usos e anda a pé, mais doque se imagina 30 .Carro, sim, alguns têm; alguns, perante os milhões que <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>mdo transporte coletivo. Houve e há movimentos urbanos que continuama lutar não só pelo transporte coletivo, mas por seu trajeto – o que ébem significativo –, na tentativa <strong>de</strong> reduzir o tempo obrigatório gasto nacirculação. Psicologicamente, o que significa?O homem comum e pobre convive com uma série <strong>de</strong> formas <strong>de</strong>humilhação, que reproduzem as sujeições sociais. O tempo obrigatórioé um tempo cotidiano e não é menor na explicação das diferençassociais e na sua reprodução.Em uma concepção reconhecida em bibliografia geográfica significativa,o espaço social se realiza enquanto vivência, social e individual,redutora <strong>de</strong> experiências possíveis – uma noção ampliada <strong>de</strong> sobrevi-29 GEORGE, Pierre. Geografia Urbana. São Paulo: Difel, 1983. Texto original datado <strong>de</strong>1961, sob o título <strong>de</strong> Précis <strong>de</strong> géographie urbaine.30 ROCHA, Alexandre Souza da. Centralida<strong>de</strong> e Periferia na Gran<strong>de</strong> São Paulo – Abordagemcrítica sobre o morar na periferia da metrópole. Dissertação <strong>de</strong> Mestrado. São Paulo:Departamento <strong>de</strong> Geografia, Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universida<strong>de</strong><strong>de</strong> São Paulo, 2000.195


vência apoia-se nessa realida<strong>de</strong> social. A própria circulação diária nametrópole metamorfoseia o espaço em tempo <strong>de</strong> circulação ou tempoobrigatório. Nesse caso, estamos no caminho <strong>de</strong> localizar a compreensãonecessária do plano do cotidiano, nos estudos geográficos.Disso po<strong>de</strong>-se chegar às formas <strong>de</strong> confinamento: sem emprego, semdinheiro para condução, só se “vive” o entorno e suas mazelas. Tendo ounão carro. A socieda<strong>de</strong> imperante é a do automóvel, que passa a ser umsigno <strong>de</strong> promoção social para todos. Com todas as consequências <strong>de</strong> umainserção precária incluída: não se tem emprego, mas não se está excluído,pois se <strong>de</strong>sejam essas formas fictícias <strong>de</strong> inserção. O crédito mantém esseimaginário como latente, para parte da população empobrecida. A classemédia instaura a vida cotidiana, no sentido <strong>de</strong> ser parâmetro e i<strong>de</strong>ário paraos mais pobres. A televisão produz e/ou reforça essa mística.Ambas as mobilida<strong>de</strong>s: a do trânsito e a do trabalho – consi<strong>de</strong>randoo que é o transporte nas e para as periferias urbanas e o limitedos postos <strong>de</strong> trabalho – são indícios dos limites sociais que vivemos;<strong>de</strong> um estado social crítico.Guy Debord traduz <strong>de</strong> forma extraordinária o que é a vida cotidiana,mencionando neste momento a contribuição <strong>de</strong> Henri Lefebvre,diz: terminadas as especialida<strong>de</strong>s, é o resto 31 . De Certeau avalia se haveriaum método para discernir os resíduos, o que sobra do que é concertado,organizado 32 . Agnes Heller estabelece a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> superaro individual-particular, próprio do cotidiano 33 . Como é trabalhar com oresto? Ele nos diz sobre as gran<strong>de</strong>s estruturas e também quão distantese estrangeiras são, embora se imiscuam na vida <strong>de</strong> cada um.A “realida<strong>de</strong> vivida”, ainda que materialmente invadida pelas abstrações,é distinta <strong>de</strong>las e até oposta 34 .Há uma correspondência entre todas as formas <strong>de</strong> submissão e <strong>de</strong>alienação e a vida com seus limites reais, mas correspondência não é coin-31 INTERNATIONALE SITUATIONNISTE. Paris: Fayard, 1997.32 CERTEAU, Michel <strong>de</strong>. A invenção do cotidiano – artes <strong>de</strong> fazer. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994.33 HELLER, Ágnes. Sociología <strong>de</strong> la vida cotidiana. Barcelona: Península, 1977.34 Parafraseando Jappe sobre a relação entre realida<strong>de</strong> vivida e espetáculo. (JAPPE,Anselm. Guy Debord. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999, p. 46).196


cidência. É preciso examinar como chega à vida real e comum, a ponto<strong>de</strong> torná-la estrita sobrevivência, o que a pressiona e nega. O trabalho donegativo está incluso nessa relação e ele está sempre por resgatar. O ponto<strong>de</strong> partida não é a coincidência, simples i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, mas o embate. Assim,po<strong>de</strong>-se incluir, na produção dos limites do viver, a violência. A violênciada presença <strong>de</strong> institucionalida<strong>de</strong>s várias que atravessam a vida, ainda mais,nas áreas mais empobrecidas. Po<strong>de</strong>mos pensar, nos termos <strong>de</strong> Neil Smith 35 ,na produção <strong>de</strong> escalas geográficas; elas, também, não como premissas aconferir, mas em constituição, e, portanto, é importante esclarecer o significadoda constituição <strong>de</strong> escalas geográficas <strong>de</strong> maior amplitu<strong>de</strong>, quepercorrem as <strong>de</strong> menor alcance e inva<strong>de</strong>m, <strong>de</strong> modo por vezes bizarro,a vida diária do homem comum. Sim, a or<strong>de</strong>m distante paira na vidacotidiana, aquela discernida como próxima para esse homem. Aquilo quedo exterior o envolve, que não domina, que po<strong>de</strong> encantá-lo, submetêlo,tornar-se po<strong>de</strong>roso diante <strong>de</strong>le, assombrá-lo, vem <strong>de</strong> uma escala maisampla, com outra racionalida<strong>de</strong> e estratégias que se impõem perante ele.Vem <strong>de</strong> cima. Toda a literatura sobre o cotidiano, especialmente aquelacom raiz em uma teoria crítica, o inclui como conceito necessário pela<strong>de</strong>sigual relação entre o vivido imediato e as mediações que <strong>de</strong> cima chegama ele e, interiorizadas, <strong>de</strong>finem contradições internas. Muitos falamem atraso da vida cotidiana, relativamente às possibilida<strong>de</strong>s técnicas ecientíficas próprias <strong>de</strong> nossa história.Extensiva e intensivamente, essas autorida<strong>de</strong>s e abstrações inva<strong>de</strong>ma vida cotidiana. Extensivamente, pois, mais e mais “momentos”sofrem seu comando; intensivamente, então, o que é exterior se interioriza<strong>de</strong> modo que se <strong>de</strong>fina a vida cotidiana como cotidianida<strong>de</strong>,quando as pressões a comandam <strong>de</strong> modo a regular tempos e espaçosque lhe são próprios. Aqui, nos estudos existentes, faz-se uma distinçãoentre estilos <strong>de</strong> vida e cotidianida<strong>de</strong>, esta última como expressãoda <strong>de</strong>terioração dos primeiros 36 . Nessa <strong>de</strong>terioração po<strong>de</strong>mos incluir a35 SMITH, Neil. Geografia, diferencia y políticas <strong>de</strong> escala. In: Terra Livre. São Paulo:AGB, ano 18, n. 19, jul./<strong>de</strong>z./2002, p. 127-146.36 LEFEBVRE, Henri. Métaphilosophie – Prolégomènes. Paris: Les Éditions DeMinuit, 1965.197


autonomia das representações: um tênis <strong>de</strong> marca po<strong>de</strong> seduzir um jovemda periferia urbana e ele po<strong>de</strong> morrer ou matar para consegui-lo.A sedução do consumo é um gran<strong>de</strong> agente <strong>de</strong> inserção precária, inclusivepara quem não tem mais inserção produtiva, pelo menos formal.Mesmo obtendo-se como resultado a total aniquilação da liberda<strong>de</strong><strong>de</strong> viver o imediato, sem fantasmagorias reais, e nesse imediatonão encontrar nada além <strong>de</strong>ssa a<strong>de</strong>quação, o imediato é um momento,que não parte <strong>de</strong>sse conciliar-se, como pressuposto, coloca-se a possibilida<strong>de</strong><strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> ou resistência: residualmente, contém o ato.O espaço, em princípio, guarda tempos, guarda ações, guarda representações,guarda momentos e atos; ele se realiza como mais <strong>de</strong>um espaço, realiza-se como implicação <strong>de</strong> espaços sociais 37 . Enquantotemporalida<strong>de</strong>s, são temporalida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>siguais coexistentes. Nas periferiasda Metrópole <strong>de</strong> São Paulo, não é difícil verificar a presença doagrário, da cultura camponesa, meio perdida, mais ou meio rota, convivendocom o industrial e o urbano.Consi<strong>de</strong>rando a implicação dos espaços sociais, muitos são os espaçosque se vivem <strong>de</strong> modo subterrâneo, premidos por outro maisfuncional e aparentemente exclusivo: espaços históricos, referênciasculturais; espaços híbridos – incluindo a convivência do rural e do urbano,em áreas tidas como francamente urbanas ou rurais; espaços naturais,que como tais acontecem na vida das pessoas – e trazem, paraa escala da vida comum, outras escalas mais abrangentes, que po<strong>de</strong>maparecer como representação não dominada, veja-se a problemáticaambiental e sua vivência por quem mora em áreas <strong>de</strong> proteçãoambiental, por exemplo; as hierarquias miúdas e profundas nos espaçosmenores e locais – entre elas, a das li<strong>de</strong>ranças do tráfico <strong>de</strong> drogas nasáreas mais pobres, submetidas a seu comando, etc.Tem-se um quadro mais aprofundado do que é viver nos várioslugares, <strong>de</strong>finidos então como tais: como lugares.Entre o espaço puro e frio, grau zero, hiperfuncional, plasmadoem um projeto e em uma estratégia que só refletem os negócios capitalistas,e a realida<strong>de</strong> e ocupação do espaço, po<strong>de</strong>m existir relevos e37 LEFEBVRE, Henri. La production <strong>de</strong> l’espace. Paris: Anthropos, 2000, 4. ed.198


sítios psicogeográficos. Eis uma expressão gráfica da distância entreesses dois pontos:0 100____________________________________________________EspaçoSítios e relevosPuropsicogeográficosFrioO relevo psicogeográfico inclui o exercício psicogeográfico ou o jogopsicogeográfico, que acorda o sujeito para os limites <strong>de</strong> sua relação com ocorpo e com o espaço e, ao mesmo tempo, é a busca <strong>de</strong> uma relação realpossível com o espaço, sem ser alienante. Sobre o caráter psicogeográfico,é “o que manifesta a ação direta do meio geográfico sobre a afetivida<strong>de</strong>”. 38Quando a relação com o espaço é abstrata e mediática – ao modo<strong>de</strong> nossa economia –, ela <strong>de</strong>strói o corpo, como sensibilida<strong>de</strong>, afeto, felicida<strong>de</strong>,atos lúdicos. A busca da mudança cotidiana é central na negação datotalização da vida pelo econômico, que absorve francamente as cida<strong>de</strong>s.Do ponto <strong>de</strong> vista da Geografia, estaríamos assim recuperando oespaço que Pierre George chamou <strong>de</strong> espaço <strong>de</strong> relação, enquanto espaçoque “associa o vivido ao representado, a realida<strong>de</strong> ao mito”, sendoo mundo, na <strong>de</strong>finição do autor <strong>de</strong>fine como “dividido em espaços <strong>de</strong>relações, na verda<strong>de</strong> superpostos, não sem contradições”.A consciência <strong>de</strong> ocupar um espaço <strong>de</strong> localização é uma das formas maissimples da consciência da própria existência. A consciência <strong>de</strong> viver no interior<strong>de</strong> um sistema <strong>de</strong> relações que concerne a porções <strong>de</strong> espaço maisou menos distantes, é, sem dúvida, menos imediata e menos generalizada.A imprensa e a informação audiovisual mundializam o espaço exteriore o espaço vivido mais do que contribuem para que se perceba o espaço<strong>de</strong> relação que concerne a uma coletivida<strong>de</strong> <strong>de</strong>terminada. 3938 DEBORD, Guy (org.). Potlatch (1954-1957). Paris: Gallimard, 1996, p. 200.39 GEORGE, Pierre. Sociologia y Geografia. Barcelona: Península, 1974, 2. ed, p. 43-44.199


O acento na vivência po<strong>de</strong> sugerir <strong>de</strong>s<strong>de</strong> encontrar uma resistênciaàs institucionalida<strong>de</strong>s postas no dia a dia, como <strong>de</strong>cifraros termos <strong>de</strong>sumanizadores do que pesa do alto e <strong>de</strong> fora e atingea vida cotidiana do homem comum. Até o limite da constituiçãodo tempo cotidiano como a negação do tempo histórico, comotempo pseudocíclico 40 . Não vivemos as socieda<strong>de</strong>s tradicionais,com seus estilos <strong>de</strong> vida, mas enredamo-nos em um tempo queparalisa nossa ação e consciência, em relação às transformaçõespossíveis. O tempo da história aparta-se, separa-se, <strong>de</strong> nós. Asformas particulares <strong>de</strong> mobilida<strong>de</strong> humana, inclusiva, superada,a mobilida<strong>de</strong> do trânsito, expõem a totalização das alienaçõestêmporo-espaciais: as separações.O tempo espacializado, alienado, o ritmo linear do trabalho abstrato,realizado como tempo <strong>de</strong> trabalho, <strong>de</strong> Georges Lukács 41 , estendidoe <strong>de</strong>sviado por Guy Debord, remete à alienação espacial: à perdada qualida<strong>de</strong> do trabalho, acresce-se àquela <strong>de</strong> todos os lugares,qualida<strong>de</strong> perdida e espaço reduzido a espaço livre da mercadoria 42 .Equivale à perda <strong>de</strong> espaços e tempos dos indivíduos, mergulhados namercantilização generalizada, que envolve seus espaços e tempos <strong>de</strong>trabalho, <strong>de</strong> moradia, <strong>de</strong> lazer; <strong>de</strong> vida <strong>de</strong> modo geral.Sinaliza-se um momento importante da interpretação da subjetivida<strong>de</strong>humana possível e das formas <strong>de</strong> seu comprometimento. O sujeitoaparece, neste momento, vivenciando a personificação <strong>de</strong> todo esse processoabstrato: a <strong>de</strong>stituição <strong>de</strong> sua subjetivida<strong>de</strong>, personificando os objetose superobjetos; o carro, por exemplo 43 . Há estudos sobre as metamorfosescomportamentais dos indivíduos nesta situação: o po<strong>de</strong>r do carro; ahumilhação vivida com os limites dos transportes coletivos; a concorrênciaentre os transportes <strong>de</strong> cargas, <strong>de</strong> pessoas, transporte privado e público...40 DEBORD, Guy. La Société du Spectacle. Paris: Gallimard, 1992.41 LUKÁCS, Georg. História e Consciência <strong>de</strong> Classe – estudos sobre a dialéticamarxista. São Paulo: Martins Fontes, 2003.42 DEBORD, Guy. La Société du Spectacle. Paris: Gallimard, 1992.43 Sobre os objetos e superobjetos, ver: LEFEBVRE, Henri. Du rural à l’urbain.Paris: Anthropos, 2001, 3. ed.200


A mobilida<strong>de</strong> do trânsito sinaliza, em seu fundamento, não somente umproblema <strong>de</strong> circulação, stricto sensu, mas os termos da produção socialgeral e do mundo mercantil, enquanto vivência problemática da subjetivida<strong>de</strong>humana. A migração pendular nas cida<strong>de</strong>s cumpre as distânciasdo lugar <strong>de</strong> trabalho e <strong>de</strong> moradia, em um universo mercantil; universoeste que produz a segregação socioespacial e amplia as distâncias físicase sociais, apesar do aparato técnico à disposição, encurtando distâncias,como o metrô, por exemplo – sem consi<strong>de</strong>rar que diante da dimensão daproblemática da circulação diária da população, ele ainda pouco significa.Ainda a consi<strong>de</strong>rar que este aparato material e técnico valoriza os lugarese equivale, também, à expropriação <strong>de</strong> sua população originária (potencialmente).As exigências do sistema <strong>de</strong> circulação acabam por tornar as gran<strong>de</strong>svias espaços produtivos, no sentido, por exemplo, <strong>de</strong> <strong>de</strong>finir sistemascondominiais nas suas proximida<strong>de</strong>s, e, atualmente, estruturas logísticasapropriadas à circulação mais rápida das mercadorias. Aqui a noção <strong>de</strong> separaçãose explicita: a cisão na proximida<strong>de</strong> 44 .A mobilida<strong>de</strong> do trânsito ampliada e re<strong>de</strong>finida como mobilida<strong>de</strong>humana aprofunda sua concepção, no interior <strong>de</strong> uma teoriacrítica, pois se aproxima da essência da problemática em questão:a mobilida<strong>de</strong> do trabalho, ampliada como mobilida<strong>de</strong> do habitat,consi<strong>de</strong>rando a produção do espaço e sua valorização, nos termoshistóricos <strong>de</strong> realização da mobilida<strong>de</strong> humana.A mobilida<strong>de</strong> do trabalho, inerente à realização da socieda<strong>de</strong>mo<strong>de</strong>rna, que equivale a <strong>de</strong>semprego, mudança <strong>de</strong> emprego, migraçõesinternas e externas – nacionais, regionais, internacionais–, enfim, a crise do trabalho, também implica a mobilida<strong>de</strong> pendularcotidiana, como tempo obrigatório da cotidianida<strong>de</strong>.Po<strong>de</strong>mos, como dissemos anteriormente, indicar no interiorda mobilida<strong>de</strong> do trabalho, a mobilida<strong>de</strong> do habitat, diante dasvalorizações constantes do espaço produzido, propondo novascentralida<strong>de</strong>s. A i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> sustentabilida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> superação da cotidianida<strong>de</strong>posta, sem atingir os conteúdos fundamentais <strong>de</strong>s-44 DEBORD, Guy. Le déclin et la chute <strong>de</strong> l’économie spectaculaire-marchan<strong>de</strong>.Abbeville: Jean-Jacques Pauvert Aux Belles Lettres, 1993.201


se processo econômico e social, é uma representação ilusória e,ao mesmo tempo, eficaz, pois é parte <strong>de</strong>ssa economia políticado espaço. Portanto, constitui novo modo <strong>de</strong> reprodução social econtinuida<strong>de</strong> crítica da mobilida<strong>de</strong> humana, como problemáticacrucial da constituição <strong>de</strong> subjetivida<strong>de</strong>s humanas: a naturalizaçãodo social.E o resto?Ele nos interessa.A busca <strong>de</strong> sítios espontaneamente psicogeográficos e o reconhecimentodas construções e formas <strong>de</strong> mobilida<strong>de</strong> que enquadrammilhares <strong>de</strong> pessoas nas periferias, alojando pessoas tristes,são momentos indispensáveis 45 .45 Potlatch, p. 54.202


Mesa – Impactos da (i)mobilida<strong>de</strong> naprodução da subjetivida<strong>de</strong>Gislene Maia <strong>de</strong> Macedo 46O tema “Impactos da (i)mobilida<strong>de</strong> na produção da subjetivida<strong>de</strong>”é bastante enigmático quando nos convida a pensar sobre as implicações<strong>de</strong>ssa contradição. No curso <strong>de</strong> <strong>Psicologia</strong> da Universida<strong>de</strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong><strong>de</strong> Ceará, no Campus <strong>de</strong> Sobral, temos o projeto <strong>de</strong> pesquisa e extensãoque se chama “A estrada <strong>de</strong> quem vê passar: subjetivida<strong>de</strong>s em trânsito” 47 .Diferentemente do recorte urbano da metrópole, pensamos sob umaperspectiva muito singular <strong>de</strong> realida<strong>de</strong>s que estão, eu acredito, aindafora da discussão que acontece sobre mobilida<strong>de</strong> e <strong>Psicologia</strong>. Coisasacontecem pelo Brasil e não acontecem apenas nas gran<strong>de</strong>s cida<strong>de</strong>s.Eu diria até que elas acontecem com muito mais singularida<strong>de</strong> em outroslugares. E é um pouco por essa experiência <strong>de</strong> estar em gran<strong>de</strong>s cida<strong>de</strong>s,ter morado em gran<strong>de</strong>s metrópoles, mas particularmente, hoje,trabalhar e residir no interior do Ceará, que pu<strong>de</strong> formular melhor asquestões sobre a relação entre a <strong>Psicologia</strong> e mobilida<strong>de</strong>. Preparei umtexto que versa tanto sobre digressões teóricas como por alguns resultadosdos estudos que realizamos no “Estrada”. Nós trabalhamos coma realização <strong>de</strong> um documentário etnográfico sobre mobilida<strong>de</strong> humana,no semiárido do Ceará. Muitas idas e vindas, muito movimento,surge-me o título para esse texto: Desconstruindo Helenas. O texto foi46 Professora doutora adjunta I da Universida<strong>de</strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> do Ceará/Sobral/<strong>Psicologia</strong> – gislene.macedo@uol.com.br.47 Projeto <strong>de</strong> extensão vinculado ao Laboratório <strong>de</strong> I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, Cultura eSubjetivida<strong>de</strong>, Laicus, grupo <strong>de</strong> pesquisa do CNPq.203


se fazendo a partir <strong>de</strong>sse título: Desconstruindo Helenas 48 , mas não seique Helenas são essas. Descobriremos juntos.Pensar o fenômeno da ‘movimentação humana’ em nossos diasé consi<strong>de</strong>rar a diversida<strong>de</strong> <strong>de</strong> usos (e abusos) do espaço público e osmodos <strong>de</strong> subjetivação inerentes ao constructo adverso das relaçõese pactos sociais engendrados a conflitos <strong>de</strong> toda sorte, evi<strong>de</strong>nciadosquando estamos em trânsito. Em quase todo lugar hoje em dia é possívelestar conectado, em sintonia com a velocida<strong>de</strong> dos nossos tempos.Vindo no Air Bus, no ônibus do aeroporto <strong>de</strong> Guarulhos para SãoPaulo, fui surpreendida com um ônibus que já tem wireless, duas mesinhas<strong>de</strong> trabalho, <strong>de</strong> maneira que as pessoas que chegam a negócios,<strong>de</strong>sembarcam, embarcam no ônibus e já po<strong>de</strong>m continuar trabalhando.Então, o recorte da produção, esse território, mesmo em movimento,on<strong>de</strong> temos a impressão <strong>de</strong> estar parados, tem a ver com o manter-seprodutivo e não há <strong>de</strong>sculpa <strong>de</strong> dizer que você não viu seu e-mail hojeem dia. E foi com base nisso que eu escrevi essa frase.Para ser menos precisa, diria que não são nossos os tempos, massão tempos das coisas, ou <strong>de</strong> outros entre os tempos das coisas. Falarem tempo como categoria <strong>de</strong> análise, aqui, me remete ao que chamamosmovimento e, inevitavelmente, a relacioná-lo a velocida<strong>de</strong>, o quenovamente nos faz retornar ao tempo e certamente ao espaço que porventuraocupamos momentaneamente. Movimento, tempo, velocida<strong>de</strong>,espaço. Delineamentos imprecisos <strong>de</strong> nossa relação com o mundo.Autores como Marc Augé 49 <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>m a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que a experiência contemporânea<strong>de</strong> locomoção, <strong>de</strong> ser transportado, também transformao lugar em não-lugar, <strong>de</strong>ssensibiliza os sujeitos na sua relação com oespaço transformando-o em mero lugar <strong>de</strong> passagem. No processo <strong>de</strong>48 Artigo apresentado em 24/10/2009, na mesa-redonda Impactos da (i)mobilida<strong>de</strong>na produção da subjetivida<strong>de</strong> do Seminário Nacional <strong>Psicologia</strong> e Mobilida<strong>de</strong>:O espaço público como direito <strong>de</strong> todos, promovido pelo <strong>Conselho</strong><strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>de</strong> <strong>Psicologia</strong>, em São Paulo.49 Augé, M. Não-lugares: Introdução a uma antropologia da supermo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>.Campinas, SP: Papirus, 1994 (5 ed., 2005).204


individuação, os sujeitos se integram ao espaço e buscam <strong>de</strong>limitações<strong>de</strong> lugares, territórios, referências geográficas que também inci<strong>de</strong>m sobrea construção <strong>de</strong> referências da cultura, um lugar antropológico,uma [...] construção concreta e simbólica do espaço que não po<strong>de</strong>riadar conta, somente por ela, das vicissitu<strong>de</strong>s e contradições da vida social[...] (AUGÉ, 1994, p. 50-51). Sob o olhar antropológico, os lugarespossuem pelo menos três características em comum: são i<strong>de</strong>ntitários,relacionais e históricos. Pelo olhar da psicologia, argumento que os lugaressão subjetivos, subjetivados, uma vez que a cada momentoos ressignificamos, a cada movimento nos reapropriamos <strong>de</strong>les e <strong>de</strong>nós mesmos. Essa análise nos permite avançar no paradoxo fixaçãonomadismoe em que marca cultural e i<strong>de</strong>ológica estão assentadosos mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> ir e vir e na forma como estabelecemos relações como espaço. Em situações <strong>de</strong> transitorieda<strong>de</strong> que se colocam como permanentesno cotidiano, po<strong>de</strong>mos consi<strong>de</strong>rar os modos <strong>de</strong> se <strong>de</strong>slocarcomo modos e processos <strong>de</strong> subjetivação, tanto como o são a música, amoda ou outro aparato i<strong>de</strong>ológico qualquer. In mobilis os processos <strong>de</strong>subjetivação dos lugares, a paisagem, a passagem nos percursos diáriosou esporádicos se constituem em tentativas <strong>de</strong> tornar a vida viável,possível. Bourdin, em A questão local nos diz:Mais que uma socieda<strong>de</strong> sem territorialida<strong>de</strong>, sem local, a mobilida<strong>de</strong>generalizada produz uma socieda<strong>de</strong> cujos territórios sãoconstruídos a partir do movimento e on<strong>de</strong> o local se fundamentana diferença das mobilida<strong>de</strong>s. (Bourdin, A questão local, 2001:69,citado por Costa, 2007:237)Retomando Augé, como lugar antropológico consi<strong>de</strong>ra-se a geometriae a geografia como <strong>de</strong>marcação <strong>de</strong> itinerários. Subjetivamente, asatribuições <strong>de</strong> sentidos dos itinerários, eixos ou caminhos refletem a formacomo estabelecemos relações e nos fazemos existência. Deslocamos<strong>de</strong> um lugar a outro mais que o corpo e as coisas carregadas. Desloca-sejunto uma i<strong>de</strong>ia do lugar aon<strong>de</strong> vamos. Entre um lugar e outro lugar,mediados pelo movimento, está a paisagem, a passagem, o não-lugar.205


Em uma <strong>de</strong>talhada revisão sobre os conceitos <strong>de</strong> territorialização,Costa (2007) 50 analisa o pensamento <strong>de</strong> Deleuze e <strong>de</strong> Guattari e i<strong>de</strong>ntificanos autores a noção <strong>de</strong> espaço como processo, <strong>de</strong>vir. Em uma cartografiada multiplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> conceitos, Deleuze e Guattari constitueme <strong>de</strong>sintegram a concepção <strong>de</strong> território e problematizam radicalmenteos processos <strong>de</strong> <strong>de</strong>sterritorialização, passíveis <strong>de</strong> ser vividos pelos indivíduose grupos (e aqui há uma gran<strong>de</strong> contribuição para pensarmosa relação entre <strong>Psicologia</strong> e mobilida<strong>de</strong>), consi<strong>de</strong>rando três linhas <strong>de</strong>segmentarida<strong>de</strong>: rígida ou molar (se<strong>de</strong>ntário), flexível ou molecular(migrante) e as linhas <strong>de</strong> fuga que representam a “<strong>de</strong>sterritorializaçãoabsoluta” (nôma<strong>de</strong>). Esta última, permitiria uma (<strong>de</strong>s)articulação entreespaço e movimento/mobilida<strong>de</strong> que levaria ao encontro com o <strong>de</strong>sconhecido,o acaso ou o que ainda não existe. Nesse possível encontrose reorganizam as formas <strong>de</strong> agenciamentos maquínicos <strong>de</strong> corpos ecoletivos <strong>de</strong> enunciação em um movimento constante <strong>de</strong> <strong>de</strong>sterritorializaçãoe reterritorialização. Existem alguns estudos, feitos atualmentena Universida<strong>de</strong> Estadual <strong>de</strong> São Paulo (Unesp), por um grupo <strong>de</strong>pesquisa interessantíssimo, que estuda os andarilhos. Quem sabe nofuturo não tenhamos essas pessoas para acrescentar essa perspectivada mobilida<strong>de</strong> a partir do andarilho, que chamam também <strong>de</strong> errantes,trecheiros. São vários os termos atribuídos, no entanto se aproximambastante da i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> Deleuze e <strong>de</strong> Guattari quando falam da <strong>de</strong>sterritorializaçãoabsoluta. São essas pessoas que chegam nas gran<strong>de</strong>s cida<strong>de</strong>s,constituem-se como população <strong>de</strong> rua e algumas <strong>de</strong>las <strong>de</strong> fatose tornam usuário dos Centros <strong>de</strong> Atenção Psicossocial (Caps) ou <strong>de</strong>instituições psiquiátricas. José Sterza Justo 51 tem um texto maravilhosoem que discute essas questões.50 COSTA, R. H. da. O mito da <strong>de</strong>sterritorialização: do ‘fim dos territórios’ àmultiterritorialida<strong>de</strong>, Rio <strong>de</strong> Janeiro: Bertrand Brasil, 2007.51 Justo J. S. Saú<strong>de</strong> mental em trânsito: loucura e condição <strong>de</strong> itinerânciana socieda<strong>de</strong> contemporânea. In: BOARINI, M. L. et al, (Orgs.). Desafios na atençãoà saú<strong>de</strong> mental. Maringá: Eduem, pp. 9-29, 2000.206


Bem, mas para além disso tudo, aqui também é encantadora ai<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> discutir sobre os “entremeios”, as veredas, o caráter rizomáticodo movimento. A experiência <strong>de</strong> estar ENTRE apresenta possibilida<strong>de</strong>sexistências ao estar EM movimento, estabelecer pontos <strong>de</strong> contato,criar linhas <strong>de</strong> fuga, tanto <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ias como da relação entre corpo eespaço, corpo e lugar, corpo e movimento. Ou ainda, percebendo que oENTRE está sempre, mesmo que estejamos fixados em um lugar, restanosa possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> encontrar formas <strong>de</strong> ressignificação dos lugarese do próprio movimento. Há o ENTRE mesmo na suposta imobilida<strong>de</strong>.Essa mesma que se emaranhou no título <strong>de</strong>sta mesa, como querendosurpreen<strong>de</strong>r-nos. Essa que é fruto <strong>de</strong> um recorte específico, o urbano,o lugar do engarrafamento, a suposta impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> estar ENTRE.O sujeito sempre ENTRE em um mundo <strong>de</strong> muitas particularida<strong>de</strong>s modais<strong>de</strong> ir e vir, diria mais, <strong>de</strong> ser e estar.Mobilida<strong>de</strong> como atributo humano <strong>de</strong>sengana aos afoitos por sinônimos.O termo também está “entre”. Não é trânsito, mas faz parte<strong>de</strong>le, não é <strong>de</strong>slocamento, mas o compõe, associa-se à locomoção, masainda não é exatamente isso. Longe dos conceitos e <strong>de</strong> jargões panfletáriosou estigmatizadores das normas, <strong>de</strong> sinônimos equivocados e <strong>de</strong><strong>de</strong>finições padronizadas, mobilida<strong>de</strong> é também evasão e po<strong>de</strong> ser vistaa um só tempo como possibilida<strong>de</strong> e como ação, como <strong>de</strong>sejo e reparação,como lugar e não-lugar, como itinerância e modo <strong>de</strong> subjetivação.Sob protesto <strong>de</strong> alguns autores, como Milton Santos e RogérioHaesbaert, Augé (1994) caracteriza nesse meio, nesse entrevero, os lugaresda supermo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, que se <strong>de</strong>sarticularam do lugar antropológico,<strong>de</strong>sintegraram as relações i<strong>de</strong>ntitárias, relacionais e históricas eproduziram espaços vazios <strong>de</strong> sentido. A tensão presente entre lugar enão-lugar <strong>de</strong>corre <strong>de</strong> oscilações inconstantes entre estar e não-estar.Auge (ib<strong>de</strong>m) especifica as medidas (ou <strong>de</strong>smedidas) do não-lugar citandoos modos presentes para garantir <strong>de</strong>slocamentos: vias aéreas,ferroviárias, rodoviárias, para citar alguns.Em meio a contrapontos entre lugar e não-lugar muito do movimentose dá em função do trabalho, da produção, do rendimento.Os espaços <strong>de</strong> circulação se tornam relevantes, sobretudo, por causa207


do escoamento <strong>de</strong> mercadorias, o que faz girar a economia, gerando umaflui<strong>de</strong>z seletiva e <strong>de</strong>sigual. Mello 52 (1998) afirma que o uso do espaço públicoficou vinculado a uma i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> “aceitação do espaço como contingenteao movimento, como <strong>de</strong>rivação <strong>de</strong>le”. A concepção dos espaços fica,assim, condicionada à <strong>de</strong> locomoção. Em trânsito, os sujeitos <strong>de</strong>senvolvemum pensar e um agir envoltos em contextos conflitantes, contraditórios,incompletos, fragmentados. É preciso instigar a restauração do espaço subjetivo.Sair do falso nomadismo on<strong>de</strong> tudo circula (músicas, chips, pessoas,automóveis). Evadir-se na busca do re-estabelecimento <strong>de</strong> vínculos, daprodução <strong>de</strong> sentidos que atribuímos aos espaços, como sugere Guattari(apud SANT’ANNA 53 , 2001), e recriar as relações com os lugares, com os queneles se encontram e com os próprios sujeitos.No projeto <strong>de</strong> pesquisa e extensão A estrada <strong>de</strong> quem vê passar: subjetivida<strong>de</strong>sem trânsito, que realizamos na Universida<strong>de</strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> do Ceará, Campus<strong>de</strong> Sobral, <strong>de</strong>senvolvemos um trabalho que culminará com um documentárioetnográfico sobre mobilida<strong>de</strong> humana naquela região do semiárido do Ceará.Até o momento, sistematizamos algumas imagens e o conteúdo <strong>de</strong> quatropessoas entrevistadas, i<strong>de</strong>ntificando algumas categorias afins às formulaçõesconceituais que venho <strong>de</strong>senvolvendo 54 , e que compartilho agora com vocês:1. Deslocamento por questões econômicas, materialismo econômicoe i<strong>de</strong>alismoAí eu passei 16 anos no Jenibaú. Aí, <strong>de</strong>pois a gente veio embora praViçosa por que lá não tava mais dando. (M)52 MELLO, K. R. C. <strong>de</strong>. Transporte urbano <strong>de</strong> passageiros: As contradições dopo<strong>de</strong>r público. Tese <strong>de</strong> Doutoramento. Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo, Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong>Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Departamento <strong>de</strong> Geografia, 1998.53 SANT’ANNA, D. B. <strong>de</strong>. Corpos <strong>de</strong> passagem: ensaios sobre a subjetivida<strong>de</strong>contemporânea. São Paulo: Estação Liberda<strong>de</strong>, 2001.54 MACÊDO, G. M. <strong>de</strong>, CARVALHO, N. M. C. e MOURA, E. R. Mobilida<strong>de</strong> Humanae Subjetivida<strong>de</strong>: Ensaios poéticos em trânsito. Artigo <strong>de</strong>fendido no XV EncontroNacional da ABRAPSO, a ser publicado integralmente em seus Anais, 2009.208


(...) Já venho procurando, a partir do momento que <strong>de</strong>sce um, já, automaticamente,procurando outro passageiro.(N)Porque aqui a gente trabalha por produção, (...) eu que <strong>de</strong>termino aquestão <strong>de</strong> horários, <strong>de</strong> valores.(N)2. Deslocamento por questões afetivasEu só faço essas viagens por que eu tenho, por exemplo, meus filhos,né? Aí preciso ver eles, tenho sauda<strong>de</strong>s <strong>de</strong>les, aí eu venho, dou umjeitinho e venho.(M)3. O Tempo e a velocida<strong>de</strong>4. O não-lugar(...) a gente fica pensando...que a gente fica louca pra chegar...loucapra ver as pessoas da gente.(M)Quem domina o nosso caminho é o passageiro, é ele quem diz praon<strong>de</strong> a gente vai...(N)5. A percepção da natureza e a esperança <strong>de</strong> ser evasãoAh, muito bom.(...) No sertão...Morei lá, <strong>de</strong>pois (...) vim pra Sobral, maseu acho bom, eu gosto mais <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong>, <strong>de</strong> natureza. A cida<strong>de</strong> é bompra trabalhar, mas estressa muito.(N)6. Desterritorialização-imobilida<strong>de</strong> e territorialização-mobilida<strong>de</strong>E aí, quando eu passo lá, por eu ter morado por lá, eu me lembro....edá uma sauda<strong>de</strong>..!! Boa, sauda<strong>de</strong> boa(...). (M)209


A pessoa, a vida na cida<strong>de</strong>, eu acho que envelhece mais rápido, porcausa <strong>de</strong> estresse, a preocupação.(...) no sertão não, a gente tem osproblemas da gente, mas a gente não tá vendo, tá por fora ali e émuito bom.(N)7. Iteração e Repetição (Poiesis em Trânsito)...a gente observa as coisas né... Tem aqui, acolá, a gente vê uma coisainteressante... daqui pros terreno a gente vê tanta coisa...é mercantil,é uma casa bonita, é um carro bonito que passa... (E)Quando não é aqui, eu fico lá no mercado, é lá que eu pego os frete... todo dia... (E)Essas falas, esses trechos <strong>de</strong> falas evi<strong>de</strong>nciam a riqueza <strong>de</strong> singularida<strong>de</strong>sno nosso trabalho na UFC. Ousadias que nos fizeram conhecer facetaspeculiares na mobilida<strong>de</strong> humana presente no semiárido do Ceará, nos sertões,nos inusitados campos do interior do estado.À <strong>Psicologia</strong> e aos psicólogos, o que posso dizer é que, mesmo na interfacecom outros saberes, há algo <strong>de</strong> específico ao se falar em mobilida<strong>de</strong> quenos distingue das <strong>de</strong>mais áreas. Po<strong>de</strong>mos nos colocar em posição <strong>de</strong>rivante eperceber os muitos sentidos atribuídos e experiências <strong>de</strong> movimento. Vou meatrever a trazer essa, que não é bem uma categoria, mas uma provocação. EmApologia da Deriva 55 (JACQUES; 2003), que reúne escritos da InternacionalSituacionista, Guy Debord nos apresenta a psicogeografia. Como um “convite”para que possamos nos colocar à <strong>de</strong>riva, que possamos experimentarmais os espaços e nos <strong>de</strong>ixar surpreen<strong>de</strong>r pelo que o acaso po<strong>de</strong> tambémnos trazer. Para Debord, isso também é uma forma <strong>de</strong> intervir, intervir naquiloque não esperamos, ter um pouco <strong>de</strong> prontidão diante do inusitado, sair donosso nicho, sair do nosso lugar-comum, o que também é uma propostaDeleuziana: atrair-nos para a linha <strong>de</strong> fuga. O nomadismo, também está naforma <strong>de</strong> pensar, <strong>de</strong> conceber e <strong>de</strong> formular, <strong>de</strong> nos levar a liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> pos-55 JACQUES, P. B. (Org.). Apologia da <strong>de</strong>riva: escritos situacionistas sobre acida<strong>de</strong>. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Casa da Palavra, 2003.210


síveis criações. No nosso caso, associamos pesquisa ao processo criativo. Porisso usamos linguagens audiovisuais, fotografia, ví<strong>de</strong>o. Para dar essa dinâmicapara o trabalho da <strong>Psicologia</strong>, que tem um diálogo muito empobrecido nessaárea. Os estudiosos da imagem, que trabalham com imagem, cinema, enfim,se apropriaram muito mais da <strong>Psicologia</strong> do que a <strong>Psicologia</strong> <strong>de</strong>ssas linguagens.Nós escolhemos trabalhar com imagem em movimento, porque issotambém retrata, é uma perspectiva singular certamente sobre o que aconteceem relação ao movimento. Imagem em movimento. Tempo e imagem, quetambém é algo que Deleuze 56 (2005) pensou. Então, proponho que a <strong>Psicologia</strong>saia do seu nicho, mas sem se per<strong>de</strong>r <strong>de</strong> si, ou, então, per<strong>de</strong>ndo-se umpouquinho. Mas sabendo que é uma experiência <strong>de</strong> <strong>de</strong>rivação e que <strong>de</strong>poisnos encontramos novamente. No fundo, nunca nos per<strong>de</strong>mos <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>.Experimentamos novos caminhos. Faço essa recomendação <strong>de</strong> perceber osmuitos sentidos atribuídos às experiências <strong>de</strong> movimento.Jacques Levy 57 , po<strong>de</strong> nos ajudar a pensar o lugar da <strong>Psicologia</strong> na relaçãocom mobilida<strong>de</strong> quando diz que:Po<strong>de</strong>-se <strong>de</strong>finir mobilida<strong>de</strong> como a relação social ligada à mudança <strong>de</strong>lugar, isto é, como o conjunto <strong>de</strong> modalida<strong>de</strong>s pelas quais os membros <strong>de</strong>uma socieda<strong>de</strong> tratam a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> eles próprios ou outros ocuparemsucessivamente vários lugares. Por essa <strong>de</strong>finição excluímos duas outras opções:aquela que reduziria a mobilida<strong>de</strong> ao mero <strong>de</strong>slocamento [...], eliminandoassim as suas dimensões i<strong>de</strong>ais e virtuais, e aquela que daria um sentidomuito geral ao termo, jogando com as metáforas (tal como “mobilida<strong>de</strong>” social)ou com extensões incontroladas (a comunicação, por exemplo).Com essa citação nos presenteio com um haiku da poetiza Alice Ruiz, quenos instiga a perceber...Que viagemFicar aquiparada56 DELEUZE, G. A Imagem-tempo, São Paulo: Brasiliense, 2005.57 LEVY, J. Os novos espaços <strong>de</strong> mobilida<strong>de</strong>. Universida<strong>de</strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> Fluminense,Revista GEOgraphia, v.. 3, n. 6, pp. 7-17, (2001). Acessado em http://www.uff.br/geographia/ojs/in<strong>de</strong>x.php/geographia/issue/view/7.211


Luís Antônio Baptista 58Gostaria <strong>de</strong> iniciar minha contribuição a este seminário formulandoas seguintes perguntas: Qual a relevância para nós, psicólogos, em trabalharcom a questão da mobilida<strong>de</strong>/imobilida<strong>de</strong> humana no estudo dasubjetivida<strong>de</strong>? Em que política sobre este tema apostamos em nossas pesquisas?Qual mobilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sejamos? Meu objetivo na formulação <strong>de</strong>ssasquestões justifica-se na presença em gran<strong>de</strong> parte dos discursos psi da dicotomiasubjetivida<strong>de</strong>-cida<strong>de</strong>, mobilida<strong>de</strong>-sujeito, incluindo-os em lógicasparticulares, em alguns casos antagônicas, em suas constituições. Tradicionalmenteos discursos psi utilizam o argumento que caracteriza a cida<strong>de</strong>como um exterior que age na subjetivida<strong>de</strong>, como se o traçado urbano nãocontivesse em suas linhas formas particulares <strong>de</strong> experienciar o tempo, aalterida<strong>de</strong> e a nós mesmos. Esses discursos apropriam-se da tese na qual omovimento das metrópoles interfere no corpo citadino, como se o corponão fosse o efeito ou a recusa <strong>de</strong>ste movimento; adjetiva o móvel e o imóvelna contramão do argumento que os <strong>de</strong>fine como criações da história;a arte também ilustra-nos a diversida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sentidos do movimento e doseu impedimento por meio da literatura, e fundamentalmente do cinema.Minha provocação é baseada na tese <strong>de</strong> que as cida<strong>de</strong>s, assimcomo suas propostas <strong>de</strong> mobilida<strong>de</strong>/imobilida<strong>de</strong>, longe <strong>de</strong> restringir-seao assentamento no qual o homem <strong>de</strong>sloca-se ou é impelido a reterseu movimento, seriam também um modo <strong>de</strong> operar e dar sentido àexistência. Muros, pavimentos, espaços vazios, gra<strong>de</strong>s, calçadas e a paisagemconstruída, longe <strong>de</strong> reduzir-se a funções necessárias da vidaurbana, enunciam memórias, medos, passagens, gestos nem semprevisíveis por aqueles que os usam. Desses enunciados, músculos e rostossão tecidos e/ou recusados incansavelmente.58 Doutor em <strong>Psicologia</strong> Social, Pós-Doutorado na Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Sociologia daUniversida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Roma “La Sapienza”. Professor da Universida<strong>de</strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> Fluminense.213


As metrópoles do capitalismo não favoreceriam ou bloqueariama mobilida<strong>de</strong> humana, mas requerem um mover-se diferenciado , assimcomo um novo homem, um novo outro e um novo corpo, semprecom reduzida data <strong>de</strong> valida<strong>de</strong> para consumo. Os projetos e as utopiasurbanas são <strong>de</strong>stituídos <strong>de</strong> qualquer inocência ou neutralida<strong>de</strong>.O uso <strong>de</strong>sta linha <strong>de</strong> pensamento convoca o mover-se na cida<strong>de</strong>, aoscorpos móveis e imóveis e aos modos <strong>de</strong> subjetivação a nos apresentaras tramas <strong>de</strong> suas políticas.Walter Benjamin foi o primeiro autor que me apresentou apossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> refletir sobre as articulações entre subjetivida<strong>de</strong> e cida<strong>de</strong>.Benjamin, em seu estudo sobre a Paris dos oitocentos, indica-nosa indissociabilida<strong>de</strong> dos sonhos do capitalismo dos modos <strong>de</strong> existir docitadino. Para esse pensador materialista, que se apropriou do marxismo<strong>de</strong> forma particular, o modo <strong>de</strong> produção capitalista ultrapassariaos limites do econômico, forjando sonhos e modos <strong>de</strong> <strong>de</strong>spertar, produzindoa barbárie da cultura e as brechas para sua <strong>de</strong>struição; forjoutambém movimentos na e da cida<strong>de</strong>, mitos e possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> enfrentá-los.Essas produções, longe <strong>de</strong> ser entendidas como reflexo do econômico,seriam um fecundo campo <strong>de</strong> ação política. Na análise da obrado poeta Charles Bau<strong>de</strong>laire, o filósofo berlinense analisa o impacto damo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> na alma citadina; reflete sobre o <strong>de</strong>slocamento das multidões,o pavor e o fascínio do corpo burguês diante do frenético movimentodo capitalismo, dissipando formas estáveis das mercadorias,<strong>de</strong> valores e da cristalização das i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s. Na Paris <strong>de</strong> Bau<strong>de</strong>laire, ochoque das ruas advindo da fugacida<strong>de</strong> e da fúria das multidões on<strong>de</strong>se refugiava o estranho e o anonimato; do estilhaçar <strong>de</strong> um tempo e<strong>de</strong> um espaço plenos <strong>de</strong> eternida<strong>de</strong>, as almas e suas líricas do passadoeram transfiguradas. Para o burguês atônito <strong>de</strong>vido aos choquesda vida urbana, na qual nada se estabilizava, restaria o isolamento doconforto do lar. Entre as quatro pare<strong>de</strong>s do espaço privado anestesiavaas tensões do movimento <strong>de</strong>molidor do lado <strong>de</strong> fora. O citadino isoladoe protegido do perigo das ruas elegia para seu conforto o restritomovimento da sua alma. Benjamin nos alerta: “O conforto isola”. Nesteisolamento, a turbulência da psique em movimento focava-o em si214


mesmo, traduzindo o mundo que o cercava como cenário ou estorvo.Bau<strong>de</strong>laire em sua prosa poética traduz o conforto do individualismoque <strong>de</strong>spreza a “eletricida<strong>de</strong> das multidões” como um pesado fardo;alerta-nos para o peso das quimeras <strong>de</strong>ste refúgio para a viagem interior,em que os rastros <strong>de</strong> si, sinais <strong>de</strong> um eu soberano impediriam a<strong>de</strong>sestabilizadora mobilida<strong>de</strong> das ruas. Na multidão, segundo o poetafrancês, movimentos sem forma <strong>de</strong>finida ou <strong>de</strong>stituídos da previsibilida<strong>de</strong>do tempo, nos dariam a chance <strong>de</strong> sair dos limites da soberaniada subjetivida<strong>de</strong> privatizada. Para Bau<strong>de</strong>laire, as fantasias, os tormentosdas almas abrigadas no recolhimento do espaço privado à procura dasverda<strong>de</strong>s da sua essência, teriam uma pesada imobilida<strong>de</strong>. Em sua obra,a mobilida<strong>de</strong> sugerida teria a leveza do escape do eu dos seus herméticoslimites, propiciada por encontros e por conexões nunca esgotadas.Leveza talvez dolorosa, como os paradoxos da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, mas<strong>de</strong>safiadora para as existências se<strong>de</strong>ntárias. Proposta arriscada, porémcarregada <strong>de</strong> oxigênio para que algo vivo possa acontecer.Walter Benjamin também nos fornece um relevante legado parapensarmos o tema <strong>de</strong>sta mesa, isto é, sua proposta metodológica. Nolivro inacabado Passagens ele adverte: “Método <strong>de</strong>ste trabalho: montagemliterária. Não tenho nada a dizer. Somente mostrar”. No limite dotempo que me cabe neste seminário, <strong>de</strong>staco <strong>de</strong>sta proposta metodológicaa atenção aos fatos menores, insignificantes do cotidiano urbanocomo <strong>de</strong>tonadores <strong>de</strong> sentidos inesperados ao pesquisador. O “dizer” sobreo objeto, ou seja, a tentativa <strong>de</strong> incluí-lo no arcabouço teórico quefundamenta a pesquisa, dá lugar, por meio do “mostrar”, ao impacto daempiria aos pressupostos direcionadores da investigação. Esse “mostrar”suspen<strong>de</strong> conclusões <strong>de</strong>finitivas, <strong>de</strong>sfoca a soberania do sujeito do conhecimentocomo o intérprete do mundo que vislumbra. Benjamin, àsemelhança <strong>de</strong> um colecionador, arranca o fato da or<strong>de</strong>m que <strong>de</strong>terminaa sua verda<strong>de</strong>, e o torna estranho ao significado que o <strong>de</strong>fine. Sugerenosvislumbrá-lo como se o percebêssemos pela primeira vez, <strong>de</strong>sencantando-oda aura das naturalizações. Discorrendo sobre os hábitos doscitadinos na Paris dos oitocentos, na análise dos brinquedos ao longo dahistória, atento à fisionomia das metrópoles, encontra resíduos, pistas em215


imagens que interrompem conclusões totalizadoras <strong>de</strong> um pensamento<strong>de</strong>satento à força <strong>de</strong>sacomodadora da empiria. O filósofo berlinense emum aforismo do seu ensaio Rua <strong>de</strong> mão única prenuncia o nascimentodo nazismo nos anos 30 no seguinte texto da tabuleta <strong>de</strong> uma cervejaria:“Alemão bebe cerveja alemã”. As insignificâncias dos episódios urbanossão utilizadas como objetos cortantes, dilacerando compactas conclusões.Restos, <strong>de</strong>tritos jogados fora por reflexões apressadas, colocam emanálise o pensamento, <strong>de</strong>sdobram seu foco, complicam hipóteses triunfaisda razão ou as inspiradas em ceticismos arrogantes. O nazismo queemerge da tabuleta retira-o da localização das datas, do reducionismoeconômico, <strong>de</strong>sdobrando-o para múltiplas ações, tais como, no corpo,nos <strong>de</strong>senhos das almas, em utopias e modalida<strong>de</strong>s do mover-se na cida<strong>de</strong>.Nesse método, o nazismo não estaria <strong>de</strong>finitivamente sepultado pelotempo dos calendários. Desdobrado em ações cotidianas seria convertidoem modalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida.Desejo neste momento retomar a primeira frase da <strong>de</strong>finição dametodologia citada anteriormente: “método <strong>de</strong>ste trabalho: montagemliterária”. A tabuleta da cervejaria é usada por Benjamin comoimagem <strong>de</strong> um fragmento que <strong>de</strong>sfoca análises panorâmicas da origemdo nazismo. O filósofo berlinense, como se po<strong>de</strong>ria supor, não estáà cata <strong>de</strong> indícios para <strong>de</strong>scobrir a gênese <strong>de</strong> um fato, à semelhança<strong>de</strong> um diagnóstico médico ou <strong>de</strong> uma procura <strong>de</strong>tetivesca. As imagenspara ele escapam do encargo <strong>de</strong> representar algo ausente. Elas talham,suspen<strong>de</strong>m tentativas <strong>de</strong> sínteses, fazem estranhar generalizações panorâmicas.Benjamin inspirado na vanguarda europeia do início do século20, usa o reclame da cervejaria como fragmento do cotidiano alemãoe ressalta a potência das cenas miúdas do dia a dia como dispositivotalhante <strong>de</strong> histórias que intentam a compacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> assertivasconclusivas. No cinema e na literatura, a fragmentação das imagens, ocorte da cena, impe<strong>de</strong>m a continuida<strong>de</strong> linear <strong>de</strong> uma narração. Pormeio dos cortes somos convidados a <strong>de</strong>sfamiliarizar a história narrada,a estranhá-la, a montá-la <strong>de</strong> outra forma e simultaneamente <strong>de</strong>sejarque ela não se esgote. O cinema e a literatura são máquinas que produzemtempo, espaço; forjam também modalida<strong>de</strong>s díspares <strong>de</strong> movi-216


mento, <strong>de</strong> alterida<strong>de</strong> e modos inesgotáveis <strong>de</strong> se operar a existência.No intuito <strong>de</strong> experimentar, <strong>de</strong>spretensiosamente, esse método, peçoa vocês a atenção para insignificantes episódios ocorridos em algumascida<strong>de</strong>s brasileiras. São cenas <strong>de</strong> mobilida<strong>de</strong> e <strong>de</strong> imobilida<strong>de</strong> urbanas.Conversava com um amigo gaúcho sobre a largura das calçadas.Estávamos na Cida<strong>de</strong> Baixa, bairro do centro <strong>de</strong> Porto Alegre. Quem opercorre percebe o convite daquele bairro para caminhar e ter curiosida<strong>de</strong>pelo que po<strong>de</strong>rá encontrar no trajeto, diferentemente <strong>de</strong> algumascida<strong>de</strong>s projetadas para o fluxo dos carros. Naquela zona antiga dacida<strong>de</strong> as calçadas são largas, o corpo é chamado a mover-se sem per<strong>de</strong>r<strong>de</strong> vista os <strong>de</strong>talhes da paisagem que o olhar sem pressa consegueperceber. Comentávamos sobre esse fato, sobre o meu prazer em estarali. Lembrei <strong>de</strong> outras capitais brasileiras projetadas para a liberda<strong>de</strong> docarro, no intuito <strong>de</strong> <strong>de</strong>scongestionar o trânsito, cida<strong>de</strong>s tristes on<strong>de</strong> sepassa, circula-se e nada acontece. As calçadas estreitas parecem <strong>de</strong>svitalizaro inesperado, o acaso do espaço público. Ali on<strong>de</strong> estávamosalgo acontecia. Arquiteturas <strong>de</strong> diferentes épocas, pare<strong>de</strong>s <strong>de</strong>scascadasdas velhas moradias anunciavam que aquele bairro teria muita coisa acontar. Recusava-se a ser um território museu, um patrimônio mortoda memória oficial. Nada se apresentava como cartão postal. Em certomomento, lembrei-me do Rio <strong>de</strong> Janeiro dos anos 60, quase invadidopor uma pesada nostalgia, mas a mobilida<strong>de</strong> singular do fim do tar<strong>de</strong>interrompeu o prenúncio <strong>de</strong> indiferença à intensa alterida<strong>de</strong> daqueleterritório. Nostalgias bloqueiam sopros <strong>de</strong> ar ofertados pelo acaso. Nascalçadas largas, o corpo não se sentia um intruso, misturava-se curiosoàs pare<strong>de</strong>s <strong>de</strong>scascadas. A mobilida<strong>de</strong> naquele território extrapolava olimite dos músculos do passante; o caminhar daquele fim <strong>de</strong> tar<strong>de</strong> tornavaanacrônicas velhas certezas sobre as cida<strong>de</strong>s; analogias, comparaçõescom outros lugares ruíam. Imagens urbanas familiares apagavamseem cada surpresa dos <strong>de</strong>talhes daquele bairro atravessado por ruídose matizes <strong>de</strong> gestos gastos por uma história ainda viva. As ruas queatravessava faziam-me esquecer <strong>de</strong> mim. Sons <strong>de</strong> gente apropriandosedas ruas, ruídos do velho comércio local, tons gastos das pare<strong>de</strong>simpediam minhas tentativas <strong>de</strong> reconhecer neles espaços da minha217


autobiografia. As portas <strong>de</strong> algumas casas não possuíam o anteparo dojardim, abriam-se diretas para a calçada. Nas ruas da Cida<strong>de</strong> Baixa nãoresidiriam perigos, os anteparos seriam <strong>de</strong>snecessários. Na caminhada,ouvíamos vários sons, mas um chamou-me a atenção: eram batidas <strong>de</strong>tambores. Curioso, perguntei ao parceiro que tipo <strong>de</strong> música tocavam.Poucos metros <strong>de</strong>pois encontramos uma porta aberta, era um cultoafro-brasileiro. O amigo gaúcho contou-me que no passado negros eemigrantes ocuparam aquele território, <strong>de</strong>nominado pela elite portalegrenseda época <strong>de</strong> Cida<strong>de</strong> Baixa. Continuamos a caminhada, mas ostambores persistiam, mesmo ao longe.Paramos em um bar e prosseguimos a conversa sobre racismo eas cida<strong>de</strong>s. O amigo do Sul iniciava a narração da sua cida<strong>de</strong> natal nafronteira. Uma pequena história <strong>de</strong> mobilida<strong>de</strong>/imobilida<strong>de</strong>. Os tamborestocados com a porta aberta estavam quase inaudíveis, mas insistiam amisturar-se a nós. Segundo ele, as gran<strong>de</strong>s e as pequenas cida<strong>de</strong>s po<strong>de</strong>mfornecer surpresas para as análises acadêmicas <strong>de</strong>satentas aos minúsculospo<strong>de</strong>res do cotidiano. Uma cida<strong>de</strong>la teria a chance <strong>de</strong> cortar comouma lâmina verda<strong>de</strong>s compactas assentadas na metrópole. Quandocriança perguntou ao avô italiano por que inexistiam negros no pequenolugar on<strong>de</strong> nasceu. O avô respon<strong>de</strong>u que os negros que tentavam seaproximar daquela comunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> trabalhadores italianos, no início doséculo 20, eram jogados no rio. A al<strong>de</strong>ia não os tolerava. Perguntei aoamigo se a proposta <strong>de</strong> mobilida<strong>de</strong>/imobilida<strong>de</strong> narrada pelo avô estariaregistrada nos ensaios referentes à história do trabalho no Brasil. O somdo tambor ficava quase inaudível, mas ainda conseguíamos ouvi-lo. Oafogamento no rio daquela al<strong>de</strong>ia negava-nos manter hierarquias entremicros e macropo<strong>de</strong>res, mais que isso, indicava-nos o inacabamento dopassado, quando a atenção ao que nos suce<strong>de</strong> no agora toca-nos comoo som do batuque. Após o café concordávamos que os mortos privadosda mobilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ir e vir, jogados nas águas frias do Sul, têm muito acontar-nos, como a tabuleta da cervejaria alemã.***218


Concluindo, gostaria <strong>de</strong> recordar o tema <strong>de</strong>ste seminário: o espaçopúblico como o direito <strong>de</strong> todos. Concordo com essas palavras <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m,mas proponho as seguintes indagações: O que <strong>de</strong>sejamos com este direito?O que apostamos com esta possível ocupação da cida<strong>de</strong>? Qual cida<strong>de</strong>?O poeta pernambucano Sebastião Uchoa Neto, em um dos seuspoemas, afirma que a cida<strong>de</strong> é uma lâmina fria que corta cômodassuposições. Esta é a minha aposta. Ocupar a cida<strong>de</strong> e estar atento aosparadoxos que colocarão em questão, como uma lâmina afiada, cômodasverda<strong>de</strong>s. Penso que uma das ações do fascismo contemporâneo,que se entranha nas minúsculas práticas cotidianas, caracterizasepela neutralização do impacto dos paradoxos da vida pública. Pormeio <strong>de</strong>sses paradoxos não teremos paz ou conforto <strong>de</strong>finitivo, masnada estará <strong>de</strong>finitivamente sedimentado, nem a alegria que nos dáesperança ou a dor insuportável que nos lega a imobilida<strong>de</strong>. Ocupar acida<strong>de</strong> com paradoxos, inspirado em Borges, incita-nos a ensaiar sermos“o fazedor”, como eram <strong>de</strong>signados os poetas no mundo antigo.Finalizando, sugiro a atenção às tabuletas das cervejarias do solo brasileiro,às larguras das calçadas, à liberda<strong>de</strong> dos movimentos <strong>de</strong>ntrodos nossos casulos, aos cadáveres jogados no rio, e estar atento aossons dos tambores que não param <strong>de</strong> soar, apesar <strong>de</strong> tudo.219


A publicação traz os resultados do Seminário Nacional<strong>Psicologia</strong> e Mobilida<strong>de</strong>: o espaço público como direito <strong>de</strong>todos, no qual foram discutidos temas como liberda<strong>de</strong>s individuais,espaço público, saú<strong>de</strong> pública, <strong>de</strong>senvolvimentourbano, relações sociais no contexto urbano, qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong>vida, impactos da mobilida<strong>de</strong> na produção <strong>de</strong> subjetivida<strong>de</strong>,políticas públicas para o trânsito e a mobilida<strong>de</strong>, e os <strong>de</strong>safiospara a <strong>Psicologia</strong> discutir e atuar em relação à temática.SAF/SUL Quadra 2, Bloco B, Edifício Via Office, térreo, sala 104220

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!