13.07.2015 Views

BAOBÁS, CARNEIROS E ROSAS - Ministério Público - RS

BAOBÁS, CARNEIROS E ROSAS - Ministério Público - RS

BAOBÁS, CARNEIROS E ROSAS - Ministério Público - RS

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

BAOBÁS, <strong>CARNEIROS</strong> E <strong>ROSAS</strong>A LEI MARIA DA PENHA E UM OLHAR SOBRE A REALIDADEAna Lara Camargo de Castro *A Lei 11.340 foi promulgada em 07 de agosto de 2006 ecarinhosamente denominada Lei Maria da Penha, em homenagem à luta dabiofarmacêutica Maria da Penha Maia Fernandes para obter punição para seumarido agressor e para despertar o país sobre a necessidade de mecanismos para acontenção do drama doméstico-familiar de muitas mulheres.A lei foi aclamada em todo o Brasil por introduzir no cenáriojurídico mecanismos mais eficientes no combate a essa espécie de violência. Opresente artigo pretende abordar aspectos e problemas práticos decorrentes dasdiversas interpretações propostas, pela doutrina e jurisprudência em construção,para a exegese do novo diploma legal.Cumpre primeiro registrar para os propósitos desse enfoque asprincipais alterações introduzidas pela Lei Maria da Penha:a) A alteração do próprio conceito de violência doméstica efamiliar, uma vez que estabelece em seu art. 5º que compreende aviolência havida na unidade doméstica, mesmo oriunda de pessoasesporadicamente agregadas e sem vínculo familiar; aquela ocorridano âmbito da família, hipótese em que o alcance da lei é bem amplo,porque se entende como comunidade formada por indivíduos quesão ou que apenas se consideram aparentados por quaisquer tipos delaços, inclusive a simples vontade expressa; bem como toda aviolência havida em qualquer relação íntima de afeto, independentede coabitação.Muita discussão tem se estabelecido nos Tribunais Pátriosacerca dessa amplitude conceitual e muitos julgados têm excluídoatos de violência cujos autores sejam pessoas do mesmo sexo, aoargumento de inexistência do conflito de gênero que foi objetocentral da lei, outros julgados têm excluído atos de violência emrelações erótico-afetivas já findas ou em vínculos mais tênues comonamoro ou romance esporádico.Mas, em verdade, o escopo dessa definição inserta na próprialei – a pouco recomendada interpretação autêntica de conceitos1


prisão em flagrante se consolide, com a liberação do agressor nãoapenas com a assinatura do termo de comparecimento em juízo, massomente mediante fiança ou liberdade provisória, e também afasta apossibilidade de retratação de representação e de transação penal,em especial visando coibir o pagamento de cestas básicas ou deprestação pecuniária, o que também se extrai do seu artigo 17.Em síntese, a Lei Maria da Penha é o carneiro destinado a ajudar oPequeno Príncipe no trabalho de arrancar todas as manhãs os arbustos de baobásque podem destruir sua rosa. 1O carneiro, ainda que desenhado às pressas e escondido invisíveldentro da caixa, tem uma missão extraordinária – vai se alimentar dos arbustos debaobás, que não são propriamente maus, mas que naquele minúsculo universodoméstico do Pequeno Príncipe, se não contidos ainda no nascedouro, acabam porse agigantar, perfurando o ambiente com suas raízes e, assim, culminam por ruir oplanetinha e, claro, destruir a rosa.rosa...Mas também é preciso vigiar o carneiro ou ele haverá de comer aA Lei Maria da Penha encontra-se à solta no universo jurídicobrasileiro e para muitos foi suficiente como panacéia para os males da violênciadoméstica e familiar contra a mulher. Basta que a lei exista, não obstante aausência de meios eficientes para a sua execução, para que o problema estejasolucionado. E, no mais, a sociedade pode esperar a moda passar e o burburinhodo novo assentar, que a lei encontrará seu canto na prateleira da biblioteca, bemacompanhada de códigos e compêndios que, em teoria vicejam, mas que na vidaútil agonizam.A Lei Maria da Penha foi extremamente positiva para a sociedadebrasileira. É uma lei confusa, de rigor técnico duvidoso. Polêmica, sem dúvida.Mas o simples fato de ter introduzido a problemática no cenário nacional e1 Saint-Exupéry, Antoine de. Le petit prince. Folio.3


incitado a coletividade a refletir esse drama, colocando a violência doméstica naordem do dia dos governos, das escolas e da mídia, já lhe confere méritoinquestionável. E depois, ainda que um tanto desajeitados, os seus mecanismosgerais de proteção são interessantes e, se bem aplicados, fortes instrumentos deinibição dos delitos dessa natureza.A dificuldade é como trazê-la à luz da realidade, sem fazê-ladesbotar lentamente ao ponto de consumir-se. E que realidade é essa?Sob a perspectiva da aplicação prática, na realidade brasileira,cumpre registrar, para início da conversa, que os casos são numerosos e asDelegacias de Polícia Civil não têm estrutura material e humana para fazer frenteà demanda. Os atendimentos emergenciais das Polícias Militares (190),identicamente, não têm condições de priorizar esse tipo de delito que temaparência de menor importância. As equipes policiais são reduzidas e muitasvezes despreparadas ao extremo de simplesmente ignorar a ocorrência, negar-seao registro ou orientar a vítima à reconciliação. E ainda pior, quando se formaequipe policial interessada e combativa, em regra, as chefias de ambas as Polícias eas Secretarias de Segurança Pública administram essa matéria como fim da lista deprioridades na destinação de recursos.E isso é complexo porque, tendo a Lei Maria da Penha afastado aaplicação da lei dos Juizados Especiais Criminais, não há mais termocircunstanciado de ocorrência, nem possibilidade de retratação da representaçãoou de liberação do agressor mediante compromisso de comparecimento em juízo,é preciso lavrar flagrantes e instaurar inquéritos policiais para todo tipo de delitoque antes estava englobado na competência dos JEC – ameaça, vias de fato, lesõescorporais, violação de domicílio, desobediência, etc. E, como não há estruturainstalada, o primeiro gargalo se forma logo ali na porta de entrada.Ao depois, os feitos são centenas, melhor, milhares e chegam aoMinistério Público já com considerável tempo passado da data do fato e, como,por força do art. 41, da Lei 11.340/06, não mais se aplica a Lei 9.099/95 para os4


casos de violência doméstica, não há mais audiência preliminar para composição,é preciso denunciar e, depois, não há mais possibilidade de retratação, exceto emraras hipóteses, pois, se a lei for aplicada comme il le faut, exclui-se a previsão doart. 89, da Lei 9.099/95, que passou a admitir a retratação nas lesões corporais e,por via de conseqüência, na contravenção penal de vias de fato.As pautas de audiências são intermináveis e a cada dia com maiordistância da data do fato, às vezes ano, ano e meio, quando nitidamente o feito jácaminha para a prescrição, já que, uma vez imposta pena in concreto, ela nãoultrapassará o quantum para o mínimo prescricional.Além do fantasma da prescrição, assombra as promotoriasespecializadas o monstro do desconsolo e da incredibilidade, já que inúmerasvítimas e testemunhas se apresentam nas audiências verdadeiramente revoltadaspor estarem sendo trazidas a juízo depois de decorrido tanto tempo dos fatoscriminosos, que não raro tornaram a se repetir sem contenção, e serem obrigadas afalar de assuntos íntimos e dolorosos que estão já superados, ou por umareconciliação forçada pelas árduas condições da vida, ou pela ruptura de vínculo econstituição de novo relacionamento, hipóteses em que para a mulher-vítima oprocesso tardio acarreta mais males do que benefícios.Mais triste ainda são as condenações retardatárias. Quando oprocesso chega, enfim, ao término e a mulher-vítima espera uma reprimendarazoável ao agressor, depara-se com o fato de que a divulgação feita pela mídiaacerca da Lei Maria da Penha é completamente ficcional, uma vez que pena deprisão não haverá. E haverá sim, substituição, contra legem, por restritiva dedireitos, consistente em prestação de serviços à comunidade, correspondente aotempo de pena fixado, ou seja, quatro ou seis horas semanais, por quinze ou trintadias ou, no máximo, três ou quatro meses.E para o sentenciado-agressor, a vantagem é apenas aparente,tendo em vista que, na verdade, vê-se privado inutilmente da sua primariedade,porque a sanção é tão irrisória que não se presta a contê-lo, mas ele está marcado5


por uma sentença condenatória que constituirá antecedente criminal que oprejudicará ou o rebaixará no mercado de trabalho, e em alguns casos o afastarádefinitivamente.Permito-me aqui um longo parêntese para discutir a justificativada afirmação contra legem acima utilizada.Muitos juízes têm sistematicamente substituído a pena privativade liberdade por restritiva de direitos, consistente em prestação de serviços àcomunidade nas hipóteses da Lei Maria da Penha, ao argumento de políticacriminal.A referida substituição não é aplicável aos delitos praticados comviolência ou grave ameaça à pessoa, conforme se vê da redação do artigo 44 doCódigo Penal:Art. 44. As penas restritivas de direitos são autônomas e substituem asprivativas de liberdade, quando: (Redação dada pela Lei nº 9.714, de 1998)I - aplicada pena privativa de liberdade não superior a quatro anos e o crimenão for cometido com violência ou grave ameaça à pessoa ou, qualquer queseja a pena aplicada, se o crime for culposo; (Redação dada pela Lei nº 9.714,de 1998)II - o réu não for reincidente em crime doloso; (Redação dada pela Lei nº9.714, de 1998)III - a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade docondenado, bem como os motivos e as circunstâncias indicarem que essasubstituição seja suficiente. (Redação dada pela Lei nº 9.714, de 1998)Veja-se a explicação do doutrinador Guilherme Nucci, além dadominante corrente jurisprudencial 2 :“Não cabe ao juiz estabelecer exceção não criada pela lei, de forma que estãoexcluídos todos os delitos violentos ou com grave ameaça, ainda quecomportem penas de pouca duração. No caso da lesão corporal dolosa – leve,2 “É incabível a substituição da pena privativa de liberdade pela restritiva de direitos, nos termos doinc. I do art. 44 do CP, em relação aos crimes cometidos com violência à pessoa, como na hipótese de lesãocorporal de natureza leve, consistente em uma mordida no braço.” (RT 789/631).“Não é cabível a substituição da pena privativa de liberdade aplicada por uma restritiva de direitosquando o crime é cometido com violência à pessoa, por força do artigo 44, I, do Código Penal.” (TJMG – JM150/285).6


grave ou gravíssima (pouco importando se de ‘menor potencial ofensivo’ ounão) – para efeito de aplicação da substituição da pena, não mais tem cabimentoa restritiva de direitos. O juiz, em caso de condenação, poderá conceder o sursisou fixar o regime aberto para cumprimento.” 3“Há posição contrária, sustentando que, nas hipóteses de infração de menorpotencial ofensivo, se cabe transação por certo seria aplicável a substituição porpena restritiva de direitos. Pensamos de modo diverso. Se o autor desse tipo deinfração merecer a transação, está será aplicada. Não sendo o caso, é processadoregularmente, vedada a substituição por restrição de direitos, restando outrasmedidas alternativas de política criminal.” 4É fundamental observar que até mesmo a doutrina e ajurisprudência que admitem a substituição da pena privativa de liberdade porrestritiva de direitos, em caso de infrações penais com violência ou grave ameaça àpessoa, fazem-no com a utilização do raciocínio de que, diante de delitosconsiderados de menor potencial ofensivo e que se processam perante o JuizadoEspecial Criminal, haveria um contra-senso no impedimento da concessão dobenefício, conforme se vê:“A primeira indagação que se levanta é a seguinte: Se uma das finalidades dasubstituição é justamente evitar o encarceramento daquele que teria sidocondenado ao cumprimento de uma pena de curta duração, nos crimes de lesãocorporal leve, de constrangimento ilegal ou mesmo de ameaça, onde a violênciae a grave ameaça fazem parte desses tipos, estaria impossibilitada asubstituição? Entendemos que não, pois que se as infrações penais se amoldamàquelas consideradas de menor potencial ofensivo, sendo o seu julgamentorealizado, inclusive, no Juizado Especial Criminal, seria um verdadeiro contrasensoimpedir justamente nesses casos a substituição. Assim, se a infração penalfor da competência do Juizado Especial Criminal, em virtude da pena máxima aela cominada, entendemos que mesmo que haja o emprego de violência ougrave ameaça será possível a substituição”.“Alguns crimes como os de constrangimento ilegal, lesão corporal dolosasimples e ameaça ‘que pela pena em abstrato cominada podem ser alcançadospela solução consensual da Lei dos Juizados Especiais Criminais, estariam fora3 NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 7 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007,p. 342.4 NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal. 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p.395.7


da incidência das penas alternativas, se houvesse processo criminal. Essaaparente iniqüidade, caso seja feita uma interpretação literal, levaria a umabsurdo: permitir o mais (aplicação das medidas alternativas da Lei 9.099/95),sem qualquer processo) e não o menos (medida assemelhada, após o processo).’(Sérgio Salomão Shecaira, ‘Penas alternativas’, Penas Restritivas de Direitos, SãoPaulo, Ed. RT, 1999, p. 223). No mesmo sentido: Luiz Regis Prado (op. cit., p.391) e José Antonio Paganella Boschi (op. cit., p. 398). Daí, a afirmação deDamásio Evangelista de Jesus e de Luiz Flávio Gomes (‘Lesão corporal dolosasimples e penas alternativas’, Bol. IBCCrim 75, fev. 1999, p. 1, Encarte especial)no sentido de que ‘a contradição só pode ser desfeita com uma interpretaçãocontextualizada de todo o ordenamento jurídico, que concluiria: de fato, crimescometidos com violência ou grave ameaça não autorizam a substituição, excetoquando já admitem a aplicação de outras formas alternativas de sanção, porquenesse caso o legislador já fez alhures uma valoração menos severa da mesmainfração’”. 5Ademais, importa observar que, após a edição da Lei 9.714/1998,que alterou o caput do artigo 46 do Código Penal, não é mais possível asubstituição por prestação de serviços à comunidade em condenações inferiores a6 (seis) meses de privação de liberdade, exatamente as condenações aplicadas àquase totalidade dos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher:Art. 46. A prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas éaplicável às condenações superiores a seis meses de privação da liberdade.(Redação dada pela Lei nº 9.714, de 1998)Explica novamente NUCCI:“[...] somente após a edição da Lei 9.714/98 estabeleceu-se um piso mínimopara a aplicação da pena de prestação de serviços à comunidade,provavelmente para incentivar o magistrado a aplicar outras modalidades derestrição de direitos, como a prestação pecuniária ou a perda de bens e valores,bem como para facilitar a fiscalização e o cumprimento – afinal, é dificultosa amobilização para cumprir apenas um ou dois meses de prestação de serviços,escolhendo o local, intimando-se o condenado e obtendo-se resposta daentidade a tempo de, se for o caso, reconverter a pena em caso dedesatendimento.” 65 FRANCO, Alberto Silva. STOCO, Rui. Código Penal e sua interpretação jurisprudencial. 7. Ed. São Paulo:Revista dos Tribunais. 2001, p. 903.6 NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 7 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007,p. 351.8


Daí extrai-se que, apesar de admissível o sursis, previsto no artigo77 do Código Penal, como forma de benefício ao sentenciado, com cumulação deprestação de serviços à comunidade no primeiro ano 7 , a simples substituição porrestritiva de direitos é completamente incompatível com essa espécie decondenação.E toda essa discussão se torna ainda mais relevante diante docomplexo paradoxo que se instala diante da proibição de aplicação do benefício dasuspensão condicional do processo, pois, grande parte dos magistrados queaceitam a substituição contra lei, como antes apresentado, ao argumento depolítica criminal, recusa-se permitir a suspensão condicional do processo ao réu,em razão do artigo 41 da Lei Maria da Penha.É fato que o legislador da Lei 11.340/2006 agiu no sentido deafastar, nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, a ritualística ea praxe dos Juizados Especiais Criminais, estabelecendo uma efetivadiscriminação de gênero, cuja análise da constitucionalidade ainda permanece semsolução definitiva enquanto não julgada a Ação Declaratória deConstitucionalidade 19/2009, ajuizada pela Presidência da República, viaAdvocacia-Geral da União, perante o Supremo Tribunal Federal.Entretanto, sem adentrar na polêmica acerca da quebra ou não dotratamento isonômico entre homens e mulheres assegurado pela Carta Magna, écerto que a temática da concessão do benefício da suspensão condicional doprocesso pode ser enfrentada de plano independente da questão constitucional.7 Art. 78 - Durante o prazo da suspensão, o condenado ficará sujeito à observação e ao cumprimentodas condições estabelecidas pelo juiz. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)§ 1º - No primeiro ano do prazo, deverá o condenado prestar serviços à comunidade (art. 46) ousubmeter-se à limitação de fim de semana (art. 48). (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984).9


A constitucionalidade integral da Lei 11.340/2006, conformepleiteia a Presidência da República com a ADC 19/2007, não é afrontada pelaconcessão do benefício pretendido pelo acusado.O objetivo do legislador foi de impedir a aplicação do ritoinformal dos Juizados Especiais Criminais, como, por exemplo, a simpleslavratura de termo circunstanciado de ocorrência, a audiência preliminar semdenúncia, as retratações em crime de lesões corporais, bem como obstar osmétodos de solução de litígios trazidos pela lei dos juizados, como a transaçãopenal mediante contrapartida em cestas básicas.A suspensão condicional do processo não pretende alcançar oschamados delitos de menor potencial ofensivo, de pena máxima de 2 (dois) anos e,sim, os delitos com pena mínima de até 01 (um) ano, o que, de fato, demonstra nãose tratar de instituto exclusivo do Juizado Especial Criminal, tanto que aplica-se aquaisquer crimes, dentro dos parâmetros legais, ainda aqueles da Justiça Comumou Especial Eleitoral e Militar.O que prevalece nesse benefício não é a pequena ofensividade dodelito, típica daqueles feitos destinados aos juizados, mas, sim, o estabelecimentode uma política criminal voltada a oferecer alternativas à condenação e ao falidosistema de execução penal brasileiro.A suspensão condicional do processo reforça o caráter protetivoda Lei Maria da Penha, por ser instituto que dá solução mais célere ao conflitofamiliar, sem submissão das partes ao sofrimento do trâmite processual, não rarasvezes muito mais lento do que o desejável para a sociedade, bem como oferecendoa mulher efetiva atenção do Estado, concedida logo após a prática do delito, com apossibilidade de determinação de afastamento imediato do agressor, inclusive aperdurar durante todo o período de prova, e imposição a ele de condiçõesjudiciais de prestação de serviços à comunidade.Ademais, conforme dito antes, em análise superficial pode parecermais desejável para o acusado deixar transcorrer o processo para não se sujeitar ao10


período de prova (mínimo de dois anos) da suspensão condicional do processo ese ver condenado a uma pena de poucos dias ou meses, substituída por restritivade direitos ou sursis, ou, no máximo, a ser cumprida em regime aberto (issoconsiderando que quase a totalidade dos delitos relacionados à violênciadoméstica e familiar contra a mulher tem penas baixas previstas em lei e a LeiMaria da Penha não trouxe inovações relevantes nesse sentido), essa perspectiva éfalaciosa, porque a maioria absoluta dos réus envolvidos em delitos dessanatureza é primária e de bons antecedentes, constituídas de trabalhadores que pormotivos diversos de origem cultural, de embrutecimento pelas precárias condiçõessociais, de alcoolismo ou de dependência química, vêem-se envolvidos em açõespenais, cuja condenação deixa mácula indelével em sua ficha criminal que teráefeitos nocivos para obtenção de posição no mercado de trabalho.Denilson Feitoza enfrenta a problemática e esclarece a questão nosseguintes termos:“O art. 41 da Lei 11.340/2006, como vimos, estabelece que, 'Aos crimespraticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independenteda pena prevista, não se aplica a Lei 9.099, de 26 de setembro de 1995'.Isso poderia significar que, nessa hipótese: a) as infrações penais praticadas com'violência doméstica e familiar contra a mulher' não são infrações penais demenor potencial ofensivo e, portanto, não estão sujeitas aos juizados especiaiscriminais; b) a homologação da composição do dano civil não acarreta renúnciaao direito de queixa ou de representação e, por conseguinte, tampouco aextinção da punibilidade; c) não cabe a transação penal; d) não caberepresentação em crime de lesão corporal leve e de lesão corporal culposa; e)não cabe suspensão condicional do processo. [...]Devemos atentar para os critérios de aplicação do princípio da igualdade, quepossibilitam o tratamento desigual.Desse modo, enquanto se admitiu a representação em crime de lesão corporalleve para os crimes praticados com violência doméstica e familiar contra amulher, tratando o agressor, nos âmbitos doméstico e familiar, como se fosseuma pessoa qualquer, isso acarretou uma imensa quantidade de representaçõesnão oferecidas, muitíssimo acima do que ocorreria com um infrator qualquer, ede retratações de representações. Em última análise, isso somente reforçou opoder de opressão ilegítima do agressor sobre as pessoas que se encontram noseu âmbito de relações domésticas e familiares, inconstitucionalmentefavorecido o agressor pela aplicação de uma igualdade meramente formal, emvez da igualdade material preconizada pela Constituição da República.Do mesmo modo ocorreu com as transações penais. Conforme exposto porNucci, a banalização das transações penais acarretou o esvaziamento daproteção da vítima nos âmbitos familiar e doméstico. Dessa maneira, tendo em11


vista que a Constituição estabeleceu que 'O Estado assegurará a assistência àfamília na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos paracoibir a violência no âmbito de suas relações', a vedação da transação penalpretende realizar esse dever estatal, inclusive em consonância com o princípioconstitucional da igualdade, pois a situação de hipossuficiência da ofendida,nas relações doméstica ou familiar que estabelece com o agressor, justifica essetratamento desigual.O mesmo não se pode dizer da suspensão condicional do processo (art. 89 daLei 9.099/1995). Não vemos presentes, no caso deste instituto, as razões quepossibilitam o tratamento diferenciado do agressor.Os juízes e membros do Ministério Público não se submetem às possíveisintimidações que a ofendida, no ambiente familiar e doméstico, poderia sofrerpor parte do agressor na hipótese de representação em crime de ação penalpública condicionada à representação.Não há, portanto, elemento diferencial, quanto à suspensão condicional doprocesso que possibilite ao legislador infraconstitucional o tratamentodiferenciado do agressor.Ademais, não vemos a suspensão condicional do processo (sursis processual)como redução da proteção à mulher que sofre violência doméstica e familiar,mas uma ampliação de sua proteção. O agressor poderá ficar dois anos sobsuspensão, submetido a ´outras condições´ (art. 89, §2º, Lei 9.099/1995) comoprestação de serviços à comunidade (talvez nas associações de ´alcoólicosanônimos´ para se curar da embriaguez), o que é muito mais eficaz do que umapequena pena restritiva de liberdade ou uma futura suspensão condicional dapena (sursis). Além disso, se descumprir as condições impostas, o processopenal prosseguirá.Portanto, entendemos que o instituto da suspensão condicional do processoaplica-se às infrações penais praticadas com violência familiar ou domésticacontra a mulher, com fundamento no princípio constitucional da igualdade.” 8Desse modo, o que se percebe é que a Lei Maria da Penha gerouenorme expectativa quanto a punições efetivas aos agressores de mulheres, porém,ela esbarra em uma série de entraves, que vão desde a morosidade que conduz àprescrição ou ao desinteresse, até a própria previsão legal de sanções baixas queadmitem a substituição por uma série de benefícios na fase de execução da pena eque somente em raríssimas hipóteses poderão resultar em regime fechado paracumprimento de pena.E assim é que a realidade se impõe no sentido de exigir análisemais detida, quanto ao instituto da suspensão condicional do processo, que podesignificar, quando bem aplicado e fiscalizado, mormente se concedido com8 PACHECO, Denílson Feitoza. Direito Processual Penal. Teoria, crítica e práxis. 5 ed. Niteroi, RJ.Impetus. 2008, p. 538-41.12


cumulação de condição judicial de prestação de serviços à comunidade, algumalento ao sentimento de impunidade ou de injustiça que passou a permear a LeiMaria da Penha e que, ao longo prazo, pode levá-la ao descrédito.Outro ponto que ainda merece destaque acerca da (não)-efetividade da Lei Maria da Penha é a temática da prisão preventiva. Após aentrada em vigor da lei, no ano inaugural, era muito comum a segregação préviado agressor que, descumprindo ordem judicial da qual fora regularmenteintimado em medida protetiva, voltava a se aproximar da vítima e a reiterar osmesmos delitos.Entretanto, com o passar do tempo, tais decisões foram rareandoe, principalmente, após a publicação da Resolução 66, de 27 de janeiro de 2009, doConselho Nacional de Justiça (CNJ), que determinou a elaboração de relatóriosperiódicos acerca das prisões provisórias – o que representou trabalho redobradopara magistrados e servidores, já sobrecarregados, em varas superlotadas defeitos. Por esse e outros fatores tais decisões têm minguado, o que acarreta perdade vigor da Lei Maria da Penha e faz com que as vítimas desanimem do registrode novas ocorrências contra o agressor, já que não mais obtém os resultadospráticos das medidas protetivas, o que ocasiona também desvalor à autoridadejudiciária e completa insegurança jurídica.Mereceria também uma análise detida a questão da falta desuporte do Poder Executivo quanto à criação e à manutenção digna deestabelecimentos para o encaminhamento dos agressores com dependênciaquímica, alcoólica ou transtornos mentais, haja vista que, muitas vezes, é a ordemjudicial para internação compulsória, seguida de programa multidisciplinar dereabilitação, unicamente o que desejam as vítimas quando procuram a Delegaciaou o Ministério Público para providências. As vítimas, não em rarasoportunidades, chegam a implorar por ajuda do Estado nesse sentido. Entretanto,toda a questão do abandono da saúde mental no Brasil e a interpretaçãoequivocada da reforma psiquiátrica seria tema para um artigo à parte, mas ainda13


assim a mensagem aqui já se registra, pois, não há como obter resultado nocombate à violência doméstica e familiar contra a mulher sem mecanismospúblicos para o enfrentamento desse drama.Diante de tantos obstáculos expostos à efetivação da Lei Maria daPenha, o que se teme é que ela se arraste ao desuso, como, diga-se, já ocorre emimensa quantidade de comarcas no país, onde a sua entrada em vigor noordenamento jurídico brasileiro foi e continua totalmente ignorada, sujeitando-seo tratamento da matéria ao juizado especial criminal e à sua ritualística, sob apecha da inconstitucionalidade, por ferimento ao tratamento isonômico entrehomens e mulheres.A Lei Maria da Penha, como hipótese de discriminação positiva,representou inenarrável avanço no resgate histórico da igualdade material entre ossexos, bem como perspectiva para o combate à desagregação familiar que éresponsável por grande parte da grave e crescente criminalidade no país,praticada por autores oriundos de lares desconstruídos e sem qualquer basemoral, em virtude da falta de sólidas figuras paterna e materna.Porém, sem aplicabilidade, a Lei Maria da Penha pode acabar poragravar a situação das vítimas, tanto lhes gerando, de início, uma falsa sensaçãode proteção, quanto, por fim, condenando-as ao conformismo diante da sensaçãode abandono e de impotência.A Lei Maria da Penha alcançou a vigência e validade, segundo oscritérios da doutrina de Hans Kelsen, também galgou os degraus dos planos daexistência, validade e eficácia, segundo a escada de Pontes de Miranda, falta-lhe,ainda, alcançar o plano da efetividade, hodiernamente debatido à luz das teoriasde Konrad Hesse e Ronald Dworkin. Para isso é preciso vigiá-la com atenção eimpedir que a aplicação excessivamente formalista de seus artigos, de precáriatécnica legislativa, destrua o elevado espírito da norma.“Mas eis que acontece uma coisa extraordinária. Na mordaça que eu desenheipara o Pequeno Príncipe, eu esqueci de juntar a correia de couro. Ele jamais14


poderá prendê-la ao carneiro. E então eu me pergunto: “O que terá se passadono planeta? Talvez o carneiro tenha comido a flor...”Ora eu me digo: “Certamente não! O pequeno príncipe guarda sua flor todas asnoites dentro da sua redoma de vidro, e ele vigia bem seu carneiro...” E entãoeu me alegro. E todas as estrelas riem docemente.Ora eu me digo: “A gente se distrai vez ou outra, e pronto! Ele esquece, umanoite, a redoma de vidro, ou o carneiro sai silenciosamente durante a noite... “ Etodos os guizos se transformam em lágrimas!...” 9É preciso atentar ao desenho da mordaça, e ao propósito de suaexistência, a fim de atar a correia ao carneiro ou ele, ao invés de ceifar o baobá,ainda haverá de destruir a rosa...9 Saint-Exupéry, Antoine de. Le petit prince. Folio. Livre tradução da autora.15


* A autora é Promotora de Justiça do Ministério Público do Estado de Mato Grosso do Sul, titularda 48ª Promotoria da Capital (Campo Grande), com atuação exclusiva na Lei Maria da Penha,perante a Vara da Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, desde 24 de novembro de 2006.16

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!