pelo pre<strong>do</strong>mínio da ideologia individualista,torna difícil para nossa sociedade, altamentepolitizada, no senti<strong>do</strong> organizacional e técnico,a capacidade de reconhecer-se num perfilantropológico fundamental ou de referir-sea uma imagem coerente <strong>do</strong> homem. Ora,essa fragmentação da imagem <strong>do</strong> homemna pluralidade <strong>do</strong>s universos culturais nosquais ele se socializa e se politiza efetivamente– o universo da família, <strong>do</strong> trabalho,<strong>do</strong> bem-estar, da realização profissional,da política, da fruição cultural e <strong>do</strong> lazer– torna problemática e difícil a adequaçãodas convicções <strong>do</strong> indivíduo e de sua liberdadea idéias e valores universalmentereconheci<strong>do</strong>s e legitima<strong>do</strong>s num sistema denormas e fins aceito pela sociedade.Reside aí a raiz provável <strong>do</strong> para<strong>do</strong>xode uma sociedade, de um la<strong>do</strong>, obsessivamentepreocupada em definir e proclamaruma lista crescente de direitos humanos,mas impotente, de outro, para fazer desceresses direitos <strong>do</strong> plano de um formalismoabstrato e inoperante, e levá-los a uma efetivaçãoconcreta nas instituições e práticassociais. Na verdade, entre a universalidade<strong>do</strong> direito e as liberdades singulares arelação permanece abstrata e, no espaçodessa abstração, desencadeiam-se formasmuito reais de violência que acabam porconsumar a cisão entre Ética e Direito nomun<strong>do</strong> contemporâneo: aquela degradadaem moral <strong>do</strong> interesse e <strong>do</strong> prazer, esseexila<strong>do</strong> na abstração da lei ou confisca<strong>do</strong>pela violência ideológica 7 .Numa sociedade na qual a fabricação etroca de produtos era a principal atividade,até mesmo os operários coteja<strong>do</strong>s com osproprietários da riqueza e das merca<strong>do</strong>riasproduzidas ainda eram proprietários da sua“força de trabalho”. Mas isso termina como advento da sociedade de consumo.Numa sociedade de consumo, os homenspassam a ser avalia<strong>do</strong>s segun<strong>do</strong> as funçõesque exercem no processo de trabalhar e deprodução social. Assim, se antes a “forçade trabalho” era ainda apenas um meio deproduzir objetos de uso ou de troca, na sociedadede consumo, confere-se à “força detrabalho” o mesmo valor que se atribui àsmáquinas, aos instrumentos de produção.7 Cf. Henrique Vaz, Ética eDireito, São Paulo, 2002,especialmente pp. 205 esegs.REVISTA <strong>USP</strong>, São Paulo, n.74, p. 6-21, junho/agosto 2007 11
Com isso se instaura uma nova mentalidade:a mentalidade da máquina eficaz,que primeiro uniformiza coisa e sereshumanos, para depois desvalorizar tu<strong>do</strong>,transforman<strong>do</strong> a natureza e os homens embens de consumo, isto é, bens não destina<strong>do</strong>sa permanecer, mas a serem consumi<strong>do</strong>se confundi<strong>do</strong>s como coisas, a serviço daprópria sobrevivência, numa escalada emvelocidade que bem se vê na rapidez comque tu<strong>do</strong> se supera na chamada civilizaçãoda técnica. O que está em jogo aqui não éo conceito de instrumento, o emprego demeios para atingir fins, mas a generalizaçãoda experiência da produção, na qual a utilidadee a serventia são estabelecidas comocritérios últimos para a vida natural e parao mun<strong>do</strong> <strong>do</strong>s homens.Ora, essa instrumentalização de tu<strong>do</strong>(por exemplo, a criança que de manhãescova os dentes usa a escova e a pasta e aágua e, com isso, contribui para o produtointerno bruto) conduz à idéia de que tu<strong>do</strong>,afinal, é meio, to<strong>do</strong> produto é meio para umnovo produto. De tal mo<strong>do</strong> que a sociedadeeconômica – como um to<strong>do</strong> – se concentraem produzir objetos de consumo, cujoconsumo é, de novo, meio para o aumentoda produção e assim por diante.Com isso, as linhas distintivas entre políticae economia se tornam confusas. Nãose trata mais, por exemplo, <strong>do</strong> exercíciopolítico pelo detentor <strong>do</strong> poder econômico,na medida em que esse passa de uma esferade atuação (atividade econômica) para outra(atividade política), mas de atividades comlógicas estruturalmente indiferenciadas,<strong>do</strong>nde a estreita aproximação entre tecnocraciapública e privada.Isso não faz com que o poder político-jurídico,o Esta<strong>do</strong> soberano, deixe dedesempenhar um papel decisivo.O poder político-jurídico não é elimina<strong>do</strong>,mas repensa<strong>do</strong>. Aparece numa formanova. Antes ele se colocava como umarelação de império entre o governante e ogoverna<strong>do</strong>, e como não havia ainda a premênciada questão econômica, essa relaçãoera exterior, isto é, o território e sua administraçãoeram os objetos <strong>do</strong> governante,que era externo a eles. Agora, surge umasituação em que o governo não se destaca,como um outro, da própria territorialidadeadministrada, da qual faz parte. E, assim, opoder político-jurídico (soberania) se tornaum problema de exercício interno <strong>do</strong>s atosde gestão governamental: política como economia,soberania como política econômica,tu<strong>do</strong> conforme uma lógica tecnocrática, alógica da “governamentalidade”, em cujocerne acaba por se estabelecer um triânguloestrutural: império, disciplina e gestãoeconômica.Vale dizer, aquele conjunto constituí<strong>do</strong>pelas instituições, procedimentos, análises,reflexões que permitem exercer essa novaforma de poder político-jurídico (soberania)que tem por alvo a população, por formaprincipal de saber, a economia política, epor instrumentos técnicos, os dispositivosjurídicos de segurança e organização, passaa <strong>do</strong>minar a concepção de direito comoinstrumento de exercício <strong>do</strong> poder.E esse é, afinal, o desafio <strong>do</strong> direito quese esboça para o futuro.O CURTO-CIRCUITO INFORMÁTICODA LIBERDADEEsse problema tem a ver com um problemainerente à concepção de liberdadetrazida pela própria era moderna, o chama<strong>do</strong>“para<strong>do</strong>xo da consciência livre” (Max Scheler):a liberdade de consciência, afirmadaradicalmente como prevalência absolutadas decisões íntimas sobre qualquer normaheterônoma, conduziria a uma espécie de“anarquia cívica”.No mun<strong>do</strong> pantécnico, <strong>do</strong>mina<strong>do</strong> sobretu<strong>do</strong>pela tecnologia informática, essepara<strong>do</strong>xo, situa<strong>do</strong> no terreno da simultaneidadee da rapidez das trocas de informações,provoca uma espécie de curto-circuito nanoção de liberdade: toda decisão de informartorna-se, ao mesmo tempo, anárquicae conformada. Com isso, o conteú<strong>do</strong> danoção de liberdade torna-se vazio.Por exemplo, de um la<strong>do</strong>, ninguémpode ser coagi<strong>do</strong> a não informar, caben<strong>do</strong> a12REVISTA <strong>USP</strong>, São Paulo, n.74, p. 6-21, junho/agosto 2007