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MEU DEUS, MEU DEUS, POR QUE ME ABANDONASTES?<br />
Causa-me assombro como essa fisionomia<br />
expressa uma forma de<br />
sofrimento de Nosso Senhor que<br />
não me lembro de ter visto representado,<br />
de modo tão preciso e extremo, em nenhum<br />
outro crucifixo.<br />
Olhos escancarados e salientes, a tensão<br />
de toda a carnatura da face e a posição<br />
do pescoço dão a impressão de algo<br />
muito mais aflitivo do que a dor: é o malestar.<br />
Um mal-estar terrível, pior do que<br />
qualquer padecimento, inundando completamente<br />
a Alma adorável e o sagrado<br />
Corpo de Nosso Senhor no alto da Cruz.<br />
Dir-se-ia que, nessa posição e com essa<br />
expressão fisionômica, o Divino Redentor<br />
não estava distante de dar o brado<br />
sublime que precedeu de momentos a sua<br />
morte: “Meu Deus, meu Deus, por que<br />
me abandonastes?” Tudo n’Ele está prestes<br />
a estalar, a desaparecer. O “consummatum<br />
est” se aproxima.<br />
Sofrimento indizível, cuja consideração<br />
deve nos preparar para nos unirmos<br />
a Jesus, pelos rogos de Maria Santíssima,<br />
em nossas dores, em nossas perplexidades<br />
e aflições de espírito, nas horas em<br />
que parecemos sucumbir ao peso da angústia<br />
e pensamos estar, nós também,<br />
abandonados pela Providência.<br />
Comentários de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> sobre o milagroso<br />
crucifixo que se encontra no altar-mor<br />
da Igreja de São Francisco de Assis,<br />
em São João del Rey, MG (foto acima).
Sumário<br />
Na capa,<br />
Dona Lucilia aos<br />
91 anos, e <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
no início desta<br />
década<br />
4<br />
EDITORIAL<br />
Eloqüente Prefácio<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
<strong>Revista</strong> mensal de cultura católica, de<br />
propriedade da Editora Retornarei Ltda.<br />
Diretor:<br />
Antonio Augusto Lisbôa Miranda<br />
Jornalista Responsável:<br />
Othon Carlos Werner – DRT/SP 7650<br />
Conselho Consultivo:<br />
Antonio Rodrigues Ferreira<br />
Marcos Ribeiro Dantas<br />
Edwaldo Marques<br />
Pedro Paulo de Figueiredo<br />
Carlos Alberto S. Corrêa<br />
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Jorge Eduardo G. Koury<br />
Redação e Administração:<br />
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Impressão e acabamento:<br />
Takano Editora Gráfica Ltda.<br />
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Esta revista não é órgão oficial nem oficioso da<br />
SBDTFP.<br />
5<br />
10<br />
13<br />
18<br />
23<br />
25<br />
GESTA MARIAL DE UM VARÃO CATÓLICO<br />
Vida de Professor<br />
DENÚNCIA PROFÉTICA<br />
A grande esperança da Igreja<br />
para o século XXI<br />
DR. PLINIO COMENTA...<br />
São José, esposo de Maria<br />
e pai adotivo de Jesus<br />
DONA LUCILIA<br />
Brisas de saudade e benquerença<br />
A EXPANSÃO DA OBRA DE DR. PLINIO<br />
Guatemala, Colômbia,<br />
Portugal, Costa Rica<br />
ECO FIDELÍSSIMO DA IGREJA<br />
Nós também<br />
Preços da assinatura anual<br />
MARÇO de 1999<br />
Comum. . . . . . . . . . . . . . . R$ 60,00<br />
Colaborador . . . . . . . . . . . R$ 90,00<br />
Propulsor . . . . . . . . . . . . . R$ 180,00<br />
Grande Propulsor. . . . . . . R$ 300,00<br />
Exemplar avulso. . . . . . . . R$ 6,00<br />
Serviço de Atendimento<br />
ao Assinante<br />
Telefone: (011) 6971-1027<br />
28<br />
33<br />
36<br />
PERSPECTIVA PLINIANA DA HISTÓRIA<br />
Os povos e seus arquétipos<br />
LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
Magnífico crepúsculo da<br />
Idade Média<br />
ÚLTIMA PÁGINA<br />
Maria, o Paraíso do novo Adão<br />
3
Editorial<br />
Eloqüente prefácio<br />
E<br />
m junho de 1994, recebeu o Revmo.<br />
Frei Antonio Royo Marín, O.P. —<br />
um dos maiores teólogos e pregadores<br />
de nosso tempo —, em seu Convento<br />
de Nossa Senhora de Atocha, em Madri, a<br />
última redação de uma obra que estava para<br />
ser lançada. O autor, seu amigo pessoal — o Sr.<br />
João S. Clá Dias —, pedia-lhe examiná-la e<br />
preparar-lhe um prefácio, ao que o célebre sacerdote<br />
dominicano aquiesceu de muito bom<br />
grado. O nome da obra: “Dona Lucilia”.<br />
“Comecei a ler estas páginas ignorando totalmente<br />
o altíssimo valor de seu conteúdo” —<br />
escreveu depois Frei Royo Marín. “O que no<br />
princípio se configurou como simples curiosidade<br />
ante o desconhecido, evoluiu rapidamente<br />
para franca simpatia, a qual foi aumentando<br />
progressivamente até se converter em<br />
verdadeira admiração e assombro. Mais que<br />
os dados biográficos de uma mulher extraordinária,<br />
o que eu ia lendo era a vida de uma<br />
verdadeira santa, em toda a extensão da palavra.”<br />
No seu entusiasmo pela obra, Frei Royo<br />
Marín nunca perde a objetividade, e, tendo<br />
analisado conscienciosamente os 15 capítulos,<br />
faz uma sinopse muito bem-apanhada de cada<br />
um deles. E a completa, dizendo:<br />
“É impossível recolher, nesta brevíssima síntese,<br />
a enorme riqueza documental que o autor<br />
pôde reunir de primeiríssima mão (muitas de<br />
suas páginas contêm relatos vividos pessoalmente<br />
com Dona Lucilia). Trata-se de uma<br />
autêntica e completíssima Vida de Dona Lucilia,<br />
que pode equiparar-se às melhores ‘Vidas<br />
de Santos’ aparecidas até hoje, no mundo inteiro.<br />
Sobretudo tem um valor inapreciável a<br />
correspondência epistolar entre ela e seus filhos,<br />
particularmente com o <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>. Em<br />
suas magníficas cartas, Dona Lucilia diz com<br />
freqüência coisas tão sublimes e de uma espiritualidade<br />
tão elevada que o leitor é tomado<br />
por uma emoção parecida à que produz a leitura<br />
do inimitável epistolário de Santa Teresa de<br />
Jesus.”<br />
No presente número de nossa revista, em<br />
meio aos ricos comentários de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> sobre<br />
múltiplos temas — como a Paixão de Nosso<br />
Senhor, o papel dos arquétipos na História<br />
das nações, o futuro da América Latina, ou<br />
reminiscências de sua vida de professor — oferecemos<br />
aos leitores o ensejo de degustar uma<br />
amostra dessas cartas. Elas revelam o grande<br />
“tesouro de prudência e sabedoria cristã” —<br />
outro termo utilizado pelo Frei Royo Marín<br />
— transbordante da alma de Dona Lucilia,<br />
permitindo também entrever a profunda influência<br />
que esta grande dama exerceu sobre<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> e, por reflexo, sobre a obra que ele<br />
fundou.<br />
DECLARAÇÃO: Conformando-nos com os decretos do Sumo Pontífice Urbano VIII, de 13 de março de 1625<br />
e de 5 de junho de 1631, declaramos não querer antecipar o juízo da Santa Igreja no emprego de palavras<br />
ou na apreciação dos fatos edificantes publicados nesta revista.Em nossa intenção, os títulos elogiosos não<br />
têm outro sentido senão o ordinário, e em tudo nos submetemos, com filial amor, às decisões da Santa Igreja.<br />
4
GESTA MARIAL DE UM VARÃO CATÓLICO<br />
Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, no<br />
início do século. Poucos anos após ter atravessado<br />
suas arcadas como advogado, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> ali retornaria<br />
para encetar sua carreira de mestre universitário<br />
Vida de<br />
Professor<br />
D<br />
esde seu tempo de estudante na Faculdade de Direito, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> pressentia sua vocação<br />
para lecionar, pois tinha gosto em dar explicações, expor idéias, fazer entender. De fato,<br />
a carreira do magistério acabou se tornando uma das facetas mais conhecidas de sua vida.<br />
Quando, numa reunião em 1989, jovens discípulos seus se mostraram ávidos de algumas<br />
recordações a tal respeito, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> começou por dizer que, apenas se formara advogado, desejoso<br />
de obter mais recursos financeiros para reforçar seu orçamento, resolveu realizar sua primeira<br />
experiência no estabelecimento onde estudara, o Colégio São Luís.<br />
P<br />
rocurei o reitor do colégio,<br />
Padre Dante, e lhe<br />
disse sem rodeios:<br />
— Padre Dante, preciso ajuntar<br />
um certo pecúlio e, para isso, queria<br />
ser professor. O senhor não me conseguiria<br />
uma vaga?<br />
— Olhe — respondeu ele —,<br />
de momento me seria necessário<br />
verificar o quadro do corpo docente.<br />
Com efeito, não poderia ele demitir<br />
um professor cujo salário era<br />
certamente indispensável para a sua<br />
sobrevivência e a dos seus, dizendolhe:<br />
“Ponha-se fora daqui, pois desejo<br />
colocar outro em seu lugar”.<br />
Então ficou acertado que ele tomaria<br />
certas providências, a fim de me<br />
abrir um espaço sem prejudicar ninguém.<br />
E me assegurou:<br />
5
GESTA MARIAL DE UM VARÃO CATÓLICO<br />
— O senhor volte dentro de uma<br />
semana, que nós o contrataremos.<br />
Primeiros passos no<br />
magistério<br />
O Pe. Dante manteve a promessa<br />
e, na data aprazada, telefonou-me<br />
dizendo ter obtido uma vaga, e me<br />
perguntou se eu ainda queria ser<br />
professor. Diante de minha enfática<br />
confirmação, ele me propôs lecionar<br />
um tema que aceitei de muito<br />
bom grado.<br />
Durante uma semana exerci minha<br />
nova profissão, e tudo me pareceu<br />
correr bastante bem. Entretanto,<br />
logo depois adoeci seriamente,<br />
acometido de uma terrível gripe, a<br />
ancestral e a maior de todas as que<br />
tive em minha vida. Como é de supor,<br />
essa grave enfermidade impôs<br />
meu afastamento das salas de aula.<br />
Quando me restabeleci, estava<br />
em curso a Revolução de 1932, que<br />
redundou na convocação de uma<br />
Assembléia Nacional Constituinte.<br />
Almejando importantes conquistas<br />
para a Igreja no texto da nova Carta,<br />
tornei-me secretário da Liga<br />
Eleitoral Católica (LEC), pela qual<br />
fui eleito deputado.<br />
Naturalmente, faltar-me-ia tempo<br />
para continuar com minha carreira<br />
de professor. Além disso, estava<br />
resolvido a lecionar em universidades<br />
e não em colégios, por uma<br />
ponderável razão. Sempre desejei<br />
ensinar História, por me parecer a<br />
mais bela das matérias para a cultura<br />
geral do homem. Porém, uma<br />
História bem focalizada, ao invés da<br />
que às vezes se costuma ensinar — e<br />
de algum modo é preciso fazê-lo<br />
nos cursos secundários —, isto é,<br />
um enfadonho estudo de datas e<br />
cronologias que os alunos devem<br />
decorar. E eu não me considerava<br />
apto para tratar da História dessa<br />
maneira, ao passo que para comentá-la,<br />
analisá-la, tomar seu significado,<br />
sentia-me mais ou menos habilitado.<br />
Faculdade Sedes Sapientiae<br />
E<br />
sse acalentado desejo de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> se tornaria realidade<br />
quando terminava sua legislatura. Aprovada<br />
pela Assembléia Constituinte a organização<br />
de universidades particulares no Brasil, foi ele convidado<br />
a ocupar cátedras nas recém-fundadas faculdades “Sedes<br />
Sapientiae”, da Congregação das Cônegas de Santo<br />
Agostinho, e “São Bento”, dos beneditinos. Obteve ainda a<br />
cátedra de História da Civilização no Colégio Universitário,<br />
anexo à Faculdade de Direito do Largo de São Francisco.<br />
Assim recordava ele essa etapa de sua vida, na qual conciliava<br />
o magistério, a advocacia e as atividades de líder católico:<br />
6
A<br />
diei a posse da minha<br />
cátedra na Faculdade<br />
São Bento. Ainda assim,<br />
trabalhando ao mesmo tempo<br />
na Faculdade de Direito e na Sedes<br />
Sapientiae — quatro dias por semana<br />
naquela, e três nesta — assumi<br />
um considerável número de aulas,<br />
que exigiam cuidadosa preparação,<br />
pois muitas vezes versavam sobre<br />
temas para mim desconhecidos. Motivo<br />
pelo qual comprei, por indicação<br />
do Pe. Leonel Franca (um astro<br />
da intelectualidade católica de<br />
então), a mais recente e famosa História<br />
Universal, em diversos volumes,<br />
de João Baptista Weiss, um<br />
austríaco também de boa orientação<br />
católica.<br />
Minha rotina diária era organizada<br />
da seguinte maneira: pela manhã,<br />
após voltar da Comunhão, preparava<br />
as aulas. Almoçava e saía<br />
para as faculdades, deslocando-me<br />
em geral de bonde, uma vez que<br />
nunca quis dirigir um automóvel e<br />
os táxis eram raros. Com isto se escoavam<br />
as tardes quase inteiras. No<br />
período vespertino que me restava,<br />
eu trabalhava no meu escritório de<br />
advocacia. E à noite, depois do jantar,<br />
dedicava-me ao apostolado no<br />
Movimento Católico. Meu tempo<br />
era, assim, todo tomado.<br />
As aulas na Faculdade<br />
Sedes Sapientiae<br />
A Sedes Sapientiae era uma faculdade<br />
para moças, que não causavam<br />
problemas em questões de disciplina,<br />
mas solicitavam do professor<br />
um particular empenho didático. E,<br />
para isto, era necessário que as aulas<br />
tivessem substância e a matéria<br />
fosse exposta num tom de discurso.<br />
Eu procurava atender a essas necessidades,<br />
cuidando de seguir um conselho<br />
de meu pai: ter clareza!<br />
Ainda me lembro quando, certa<br />
feita, recebeu ele no escritório de<br />
casa um conhecido seu, com quem<br />
tratou de negócios. Esse amigo, homem<br />
muito verboso, de belas e rutilantes<br />
palavras, entretanto não era<br />
claro ao se expressar. Eu, então menino,<br />
achava-me ali ouvindo a conversa<br />
dos dois. Após a saída do visitante,<br />
meu pai exclamou com ar<br />
aborrecido:<br />
— Como fala este homem!<br />
E, voltando-se para mim, disse:<br />
— Vou lhe dar um conselho.<br />
Quando você for advogado, cuide<br />
de ser claro. Quem é claro tem metade<br />
da causa ganha. Exponha com<br />
clareza, para o juiz entender bem o<br />
que você quer. Em tudo o que você<br />
disser ou escrever, prefira ser claro<br />
a ter palavras bonitas. O ideal é unir<br />
a beleza à limpidez de pensamento.<br />
Mas pode ser que você não seja<br />
capaz disso. Então, pelo menos seja<br />
claro. Fazer como este homem<br />
que você acabou de ouvir aqui, não<br />
adianta de nada!<br />
Precioso conselho, que me foi de<br />
inestimável auxílio quando se abriram<br />
para mim as vias do ensino e da<br />
oratória. Semelhante ajuda encontrei<br />
nas aulas de um dos meus professores<br />
de Direito, que possuía extraordinária<br />
clareza. Resolvi prestar<br />
atenção no modo como as idéias se<br />
formavam na mente dele e como ele<br />
lhes conferia tanta nitidez. À força<br />
de observar, acabei compreendendo<br />
Pátio<br />
interno da<br />
Faculdade<br />
Sedes<br />
Sapientiae<br />
e procurei, eu mesmo, ser claro em<br />
tudo quanto dizia.<br />
Entendi, também, ser necessário<br />
evitar palavras fofas e vagas, empregando<br />
aquelas que exprimam exatamente<br />
o meu pensamento. Para isso,<br />
dispor de um amplo vocabulário<br />
de termos precisos, e usá-lo à vontade.<br />
Depois, muito método no raciocínio,<br />
condição essencial para se ter<br />
clareza.<br />
Raciocínios metódicos com palavras<br />
claras, utilizando um vocabulário<br />
exato: assim deve proceder o professor.<br />
Conduta na qual tratei de me<br />
adestrar tanto quanto possível. Adicionando,<br />
nas aulas da Sedes Sapientiae,<br />
um pouco de literatura, para<br />
que as alunas pudessem saborear<br />
pormenores da História mais significativos.<br />
Aliás, como anteriormente<br />
frisei, as aulas para elas decorriam<br />
sem nenhuma dificuldade, e assim o<br />
foi durante todo o período em que<br />
lecionei naquele estabelecimento.<br />
Os alunos da<br />
Faculdade de Direito<br />
O mesmo não posso afirmar das<br />
aulas para os estudantes da Faculdade<br />
de Direito... Em geral, estes eram<br />
apenas cinco anos mais jovens do<br />
que eu. Não chegáramos a ser cole-<br />
7
GESTA MARIAL DE UM VARÃO CATÓLICO<br />
gas, mas a Faculdade ainda estava<br />
quente da minha presença. Esses fatores<br />
podiam facilmente despertar<br />
naqueles rapazes a idéia de serem<br />
indisciplinados comigo.<br />
O primeiro problema era imporme<br />
ao respeito de todos. Segundo,<br />
fazer com que prestassem atenção<br />
na aula e gostassem dela. Terceiro,<br />
tornar-lhes manifesto a que ponto<br />
eu era católico, de um lado. De outro,<br />
incutir-lhes a certeza de que eu,<br />
como ex-aluno da Faculdade, estava<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> em traje de professor catedrático<br />
ciente da existência de uma forte,<br />
radical e declarada corrente anticatólica<br />
ali dentro, da qual muitos deles<br />
faziam parte. Corrente esta contra<br />
a qual eu mesmo lutara, peito a<br />
peito.<br />
Não podendo fazer o papel do<br />
mocinho que se aventurou a ensinar<br />
e não logrou obter o respeito de<br />
seus alunos, estabeleci meu plano<br />
de ação: seria um professor-torpedo,<br />
impondo-me ao acatamento deles<br />
e tratando da questão católica<br />
de modo rombudo. Essa era a única<br />
forma segura de agir, para que<br />
os indisciplinados curvassem a cabeça.<br />
Professor-torpedo<br />
Naquele tempo, as cátedras da Faculdade<br />
de Direito se erguiam sobre<br />
um elevado estrado, ao qual se tinha<br />
acesso por uma escada lateral.<br />
Em cima havia um banco — aliás,<br />
muito incômodo — dentro de um<br />
cercado de madeira. Para entrar,<br />
uma pequena porta. No minúsculo<br />
recinto, uma tábua inclinada para se<br />
colocar livros e apontamentos.<br />
Cada classe dispunha de um bedel,<br />
teoricamente encarregado de<br />
manter a disciplina. Os alunos, porém,<br />
não davam a menor importância<br />
a esses funcionários que, no decorrer<br />
das aulas, prestavam pequenos<br />
serviços aos professores, como<br />
pegar giz, trazer um livro, ou um<br />
copo de água, etc.<br />
Pondo em prática o plano que<br />
traçara, no meu primeiro dia de<br />
aula subi na cátedra sem olhar para<br />
os alunos. Sentei-me com segurança.<br />
Eles, como tinham entrado havia<br />
pouco na sala, estavam entregues à<br />
sua costumeira baderna. Eu permanecia<br />
quieto, com uma fisionomia<br />
de pouca amizade. Não demorou<br />
muito, e notaram que algo diferente<br />
vinha entrando em cena...<br />
Então, eu disse:<br />
— O primeiro ponto de meu programa<br />
é tal; passarei a discorrer sobre<br />
esse assunto. — E dei início à<br />
exposição.<br />
Passada a primeira surpresa, noto<br />
cochichos percorrerem a sala. Bati<br />
com força a mão na mesa, dizendo<br />
firme:<br />
— Silêncio!<br />
Outros cochichos e outras vigorosas<br />
intervenções, até que eles ficaram<br />
quietos e silenciosos. Prossegui<br />
a la torpedo, dando minha<br />
aula sem nenhuma outra consideração.<br />
8
Quando soou o toque de fim da<br />
aula, eu interrompi e avisei:<br />
— Amanhã vou continuar a matéria.<br />
— E saí com passo decidido.<br />
As aulas eram claras, e a maioria<br />
dos alunos adquiriu atração por elas,<br />
prezava-as e prestava muita atenção.<br />
A minoria agitada percebeu que<br />
sua vida não seria fácil. Preparou algumas<br />
desordens, mas disciplinei-a<br />
com energia.<br />
No desenvolvimento do curso da<br />
História, ensinei tudo quanto havia<br />
de mais católico, acrescentando, de<br />
vez em quando, num tom resoluto:<br />
— Se os senhores quiserem me<br />
perguntar alguma coisa, ou mesmo<br />
fazer uma objeção, estejam à vontade.<br />
E eles, quietos...<br />
Certo dia, ao entrar na sala, percebi<br />
que haviam traçado no quadro<br />
negro uma caricatura minha (por<br />
sinal, muito bem feita). E eles à espera<br />
da minha reação. Passei devagar<br />
diante da lousa, com ar distraído,<br />
indolente, sem lhe deitar os<br />
olhos. E ninguém teve a coragem de<br />
me dizer: “Olhe ali, professor!”<br />
Furando uma greve<br />
de estudantes<br />
Noutra ocasião houve greve em<br />
toda a Faculdade. Quando cheguei,<br />
um piquete de grevistas estava percorrendo<br />
as classes, a fim de obrigar<br />
os alunos a aderirem à manifestação<br />
e impedir os professores de lecionarem.<br />
Nesse dia eu estava dando aulas<br />
na “Sala João Mendes”, um recinto<br />
especial, mais utilizado como salão<br />
de conferências, muito solene, com<br />
uma cátedra bem alta e uma imensa<br />
porta de entrada. Em determinado<br />
momento, o bedel veio me dizer,<br />
aflito:<br />
— Professor, queria avisar ao senhor<br />
que está havendo essa greve...<br />
Seria mais prudente o senhor desistir<br />
de dar a aula hoje.<br />
Minha resposta:<br />
— Desistir de dar aula por causa<br />
de greve, não desisto.<br />
— Mas, professor, não sei... Se os<br />
alunos baterem aí na porta...<br />
— Arranje-se, porque eu dou conta<br />
do caso.<br />
Ele se afastou, eu continuei a exposição.<br />
E ouvia os grevistas que<br />
corriam pelo prédio da Faculdade,<br />
gritando: “Greve! Greve!” Percebi<br />
que haveria de chegar o momento<br />
de passarem por mim, pois<br />
não iriam bloquear toda a Faculdade<br />
e poupar a sala onde eu me<br />
encontrava. De fato, dali a pouco se<br />
aproximaram da minha porta, repetindo<br />
seu brado de protesto: “Greve!<br />
Greve!”<br />
Os alunos, sobretudo aqueles revoltados,<br />
começaram a cochichar.<br />
Eu continuei como se nada estivesse<br />
acontecendo. Ocorreu então o inevitável.<br />
Um dos grevistas desferiu<br />
um pontapé na porta, e o bedel me<br />
perguntou:<br />
— O que faço, professor? Agora<br />
estão eles aqui.<br />
Disse-lhe:<br />
— Vá lá e abra a porta. E abra de<br />
par em par... Depressa!<br />
Ele foi e fez o que eu lhe dissera.<br />
Na sala toda, expectativa: o que irá<br />
acontecer? Assim que o bedel abriu<br />
a porta, dei de frente com os grevistas.<br />
Olhando-os fixamente, perguntei-lhes<br />
num vigoroso timbre de voz:<br />
— Que é?!!<br />
— Professor... nós... estamos fazendo<br />
greve...<br />
— Greve?! Fora!!!<br />
Minha recusa era declarada com<br />
tal força e decisão que eles compreenderam<br />
não haver remédio. Dissolveram-se.<br />
Eu disse ao bedel:<br />
— Feche a porta.<br />
Ele a fechou, e eu prossegui a<br />
aula.<br />
Não é difícil imaginar como essa<br />
atitude causou profunda decepção<br />
no clã de alunos que me eram desafetos.<br />
Terminei a aula tranqüilamente,<br />
e saí pelos corredores, nos<br />
quais alguns manifestantes ainda<br />
transitavam de um lado para outro,<br />
insistindo no seu grito de “greve!<br />
greve!” Pensei: “Eles agora vão se<br />
vingar de mim. Devem estar furiosos<br />
e tentarão me vaiar. Posso sair<br />
por uma porta do fundo, mas, se<br />
perceberem, hão de achar que estou<br />
com medo. Isso será pior. Devo enfrentá-los<br />
e me distanciar com serenidade.”<br />
E foi o que fiz. Com toda a calma<br />
atravessei pelo meio deles, e nada<br />
disseram. Voltei para casa. Tinha<br />
chegado ao fim mais um dia de aula<br />
na Faculdade de Direito...<br />
Faculdade de Filosofia São Bento<br />
9
DENÚNCIA PROFÉTICA<br />
S<br />
acudida por tempestades colossais<br />
neste ocaso do segundo milênio,<br />
a humanidade vê, de dentro da<br />
borrasca, saltarem incógnitas que podem<br />
trazer consigo a indicação de um rumo<br />
salvador ou da completa perdição. Como<br />
interpretá-las? Onde encontrar nelas<br />
esperançosos sinais quanto ao futuro?<br />
A solução estará nalgum povo cuja<br />
regeneração poderá revigorar todo<br />
o mundo?<br />
Em nossos dias de incerteza, as<br />
palavras de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> aparecem como<br />
extraordinário facho de luz a refulgir no<br />
horizonte. Segundo elas, as reservas<br />
humanas que servirão de base ao século<br />
XXI se encontram no continente nascido<br />
da colonização luso-espanhola.<br />
Consideremos, a seguir, uma síntese<br />
desse pensamento de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, por ele<br />
expresso em diversas ocasiões ao longo de<br />
quase sete décadas de militância católica.<br />
E<br />
m cada época da História, Deus<br />
suscita um povo para realizar seus<br />
maravilhosos e sábios desígnios.<br />
Assim, enquanto algumas civilizações conhecem<br />
seu ocaso, outras vão sendo erguidas pelas<br />
mãos da Providência. Tal se verificou, por<br />
exemplo, com os povos judeu, egípcio, assírio,<br />
caldeu, persa e europeu.<br />
A grande esperança<br />
da Igreja para o século XXI<br />
10
Entardecer da<br />
civilização ocidental<br />
Ora, estamos novamente na tarde<br />
de uma civilização.<br />
O homem ocidental já não encontra<br />
encantos na liberdade de que<br />
abusou, na igualdade com que sonhou<br />
e na fraternidade que não realizou.<br />
Sua economia pujante, orgulho<br />
de seus velhos dias, foi devorada<br />
pela superprodução. A filosofia, a<br />
quem erguera um altar na sua admiração,<br />
foi abeberar-se nas correntes<br />
envenenadas a que não resistem povos<br />
nem civilizações. Servem-lhe de<br />
leito funerário os escombros de suas<br />
glórias passadas.<br />
Nesta tarde de civilização, que<br />
ameaça ser a tarde da própria humanidade,<br />
só dois fatores nós vemos,<br />
realmente capazes de abrir<br />
para o homem uma janela salvadora<br />
sobre o futuro: no plano espiritual,<br />
a Igreja Católica, e no plano terreno,<br />
a América Latina.<br />
Uma lenda antiga nos conta que<br />
à beira de certo lago havia um rochedo<br />
que crescia à medida que as<br />
ondas o acometiam, de sorte a nunca<br />
ser submergido, ainda nas maiores<br />
tempestades. Hoje em dia, este<br />
rochedo é a Pedra, é a Cátedra de<br />
Pedro, que tem avultado com as revoluções,<br />
zombando das heresias,<br />
crescendo em vigor à medida que<br />
seus adversários crescem em rancor.<br />
Há já vinte séculos que ela vem espargindo<br />
água benta sobre os adversários<br />
que tombam no caminho.<br />
Assistiu ao nascer de todos os<br />
países do Ocidente. Vê-los-ia morrer<br />
sem receios por seus próprios<br />
dias, que não se contam com a brevidade<br />
dos dias de uma nação.<br />
Em sua doutrina divina, tem todos<br />
os tesouros espirituais e morais<br />
necessários para solucionar todas as<br />
crises. Neste mar revolto do século<br />
XX, em que naufragam homens,<br />
idéias e fortunas, só Ela continua e<br />
será via, veritas et vita, que a humanidade<br />
há de aceitar, para levantar<br />
um vôo salvador sobre o próprio<br />
abismo que ameaça tragá-la.<br />
Para atuar, porém, ela também<br />
se serve de fatores humanos. E, destes,<br />
o mais promissor é a América<br />
Latina.<br />
Continente reservado<br />
para o dia de amanhã<br />
A afirmação pode parecer ousada.<br />
Pois, em geral, tem-se a idéia —<br />
mais consciente ou menos — de que<br />
os povos latino-americanos ocupam<br />
posição secundária no mundo hodierno.<br />
De fato, no concerto dos<br />
países desenvolvidos, estimulados<br />
pelo mecanicismo, pelo capitalismo<br />
e, não raras vezes, pelo materialismo,<br />
sempre estiveram à margem,<br />
como uma zona de sombras, as nações<br />
oriundas de Portugal e Espanha.<br />
Objetos dessa espécie de preconceito<br />
internacional, fica-nos a<br />
impressão de que os acontecimentos<br />
e realizações ocorridos em nossos<br />
países não têm senão uma importância<br />
secundária, como corolário<br />
normal daquilo que se encontra<br />
em segundo plano. Nessa situação,<br />
quase inevitável é concebermos que<br />
o destino da gigantesca crise contemporânea<br />
— e, portanto, o próprio<br />
futuro da humanidade — será<br />
decidido entre os povos de primeira<br />
linha, cabendo a nós tão-só aceitar a<br />
resolução dos grandes.<br />
Essa concepção, porém, é precisamente<br />
falsa.<br />
Tenho a convicção de que, para o<br />
dia de amanhã, a grande reserva é a<br />
América Latina. Antes de tudo, porque<br />
somos o maior bloco de população<br />
católica na face da Terra. Não<br />
há, entre nossos países, nenhum cuja<br />
esmagadora maioria dos indivíduos<br />
não siga a única e verdadeira<br />
Igreja de Nosso Senhor Jesus Cristo.<br />
Somos, ademais, um conjunto católico<br />
particularmente unido, pois<br />
como que da mesma raça. Apesar<br />
das mais diversas e numerosas imigrações,<br />
a tônica é latina, enriquecida<br />
pelo fato de que castelhanos e<br />
portugueses são povos muito fraternos<br />
e afins. Daí a homogeneidade<br />
cultural e religiosa, ocupando uma<br />
vastíssima continuidade territorial.<br />
Acrescente-se a essa identidade<br />
de raça e religião a inestimável vantagem<br />
de, graças à benevolência divina,<br />
possuirmos imensos recursos<br />
naturais que não foram consumidos<br />
de maneira errônea por uma civilização<br />
excessivamente técnica, como<br />
é a dos países anglo-saxões.<br />
Estes se desenvolveram com maior<br />
rapidez, porém a industrialização<br />
exauriu seus excelentes meios naturais,<br />
que agora se encontram à míngua.<br />
A América Latina, pelo contrário,<br />
poderá amanhã cultivar suas<br />
magníficas riquezas materiais sem<br />
os erros cometidos por aqueles povos.<br />
Entraremos para o século XXI<br />
com muitas extensões de nosso território<br />
como folhas de pergaminho<br />
ainda em branco, nas mãos da Providência.<br />
E mesmo que nosso progresso<br />
seja mais lento e menos técnico,<br />
há de ser, entretanto, sobremodo<br />
orgânico, uma vez que podemos<br />
explorar nossos recursos com<br />
espírito católico e latino. Eis um<br />
precioso dom que nos obteve Maria<br />
Santíssima: ter a sutileza, a plasticidade,<br />
a flexibilidade e o gênio latinos,<br />
bem como a latina clareza de<br />
olhar e de entendimento. Essa é<br />
uma imensa vantagem, se nossos<br />
povos forem seriamente católicos.<br />
11
DENÚNCIA PROFÉTICA<br />
Com todos esses predicados espirituais<br />
e materiais, estamos aptos<br />
a, por meio de uma profunda correspondência<br />
à graça divina, nos<br />
tornarmos um todo de grandes nações<br />
católicas, cujos brilhos reluzirão<br />
lado a lado, sem ofuscações<br />
nem rivalidades. E se tivermos fé e<br />
virtude, nenhuma glória nos será<br />
negada.<br />
Então, para o dia de amanhã, a<br />
magna possibilidade vem dos povos<br />
latino-americanos, essa grande reserva<br />
que a Providência separou para<br />
as suas horas de esplendor. Reserva<br />
que carrega, até certo ponto,<br />
o ônus das suas próprias infidelidades<br />
e merecidas punições. Estas,<br />
porém, são castigos regeneradores,<br />
pois Deus pune sobretudo nesta<br />
Terra as incorrespondências daqueles<br />
a quem Ele mais ama e deseja,<br />
pelo corretivo, converter e salvar.<br />
Assim também, as nações que foram<br />
punidas têm possibilidades de<br />
se reabilitar, de perseverar no bem<br />
e ser conduzidas pelo Divino Espírito<br />
Santo, a rogos de Maria, ao ponto<br />
central da História.<br />
O século XXI será nosso<br />
Quando, portanto, da imensa caldeira<br />
em que fervem os restos de<br />
nossa civilização emergirem os primeiros<br />
princípios de uma nova ordem<br />
de coisas, tendo por base o respeito<br />
à Igreja, à propriedade e à família,<br />
só a América Latina oferecerá<br />
ao mundo um caminho a ser edificado,<br />
com suas regiões imensas,<br />
que as crises econômicas não esgotaram,<br />
e seus povos de reservas morais<br />
sólidas, que até lá terão passado<br />
pelo cadinho do sofrimento, e nele<br />
terão formado sua têmpera de povos<br />
fortes.<br />
A América Latina é, então, o<br />
grande laboratório onde a nova civilização<br />
católica se vai erguer. O<br />
mesmo fator sobrenatural que, no<br />
século V, propiciou a conversão da<br />
Europa e a fez frutificar na Idade<br />
Média, fará com que brote daqui,<br />
não a cristandade medieval, mas a<br />
plenitude que esta deveria ter alcançado,<br />
se não houvesse decaído.<br />
Sim, a grande esperança da Igreja<br />
para o século XXI é a América<br />
Latina, essas imensidades de gentes,<br />
de terras e de riquezas que se<br />
estendem do norte do México até os<br />
extremos glaciais da Patagônia.<br />
O século XXI será nosso, como<br />
o século XX é dos Estados Unidos,<br />
e o século XIX foi da Europa colonialista.<br />
(Excertos, com adaptações, de matérias<br />
do “Legionário”, nº 130, 15/10/1933;<br />
da “Folha de S. Paulo”, 29/12/1979;<br />
e de conferências)<br />
Passados os dias de glória<br />
da Europa e dos Estados<br />
Unidos, a América Latina<br />
surge como a grande<br />
reserva da Providência<br />
para o século XXI<br />
Na foto ao lado,<br />
Santuário<br />
do Bom Jesus<br />
de Matosinhos,<br />
Congonhas do<br />
Campo<br />
Na página anterior,<br />
filhos espirituais de<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> sobre as<br />
muralhas do Forte<br />
de Cartagena,<br />
Colômbia<br />
12
DR. PLINIO COMENTA...<br />
Retábulo<br />
da Igreja da<br />
Santa Cruz,<br />
em Sevilha.<br />
Desponsórios<br />
de Nossa Senhora<br />
com São José<br />
E<br />
leita pela Santíssima Trindade para ser a<br />
Mãe Admirável do Verbo Encarnado, Nossa<br />
Senhora é a mais perfeita de todas as<br />
meras criaturas. Mesmo se considerássemos, num só<br />
conjunto, as excelências dos Anjos, dos Santos e dos homens<br />
que existiram, existem e existirão até o fim do<br />
mundo, não teríamos sequer uma pálida idéia das celestes<br />
perfeições de Maria, que reluziram aos olhos de<br />
Deus desde o primeiro instante de sua Imaculada Conceição.<br />
Para cumprir os eternos desígnios da Divina Providência<br />
no tocante à Redenção da humanidade, foi pre-<br />
13
DR. PLINIO COMENTA...<br />
ciso que, em determinado momento, essa criatura excelsa<br />
contraísse legítimo matrimônio. Assim poderia<br />
Ela, sem detrimento de sua reputação, conceber miraculosamente<br />
e dar à luz o Filho do Altíssimo.<br />
O único homem<br />
à altura de Jesus e Maria<br />
Ora, entre esposo e esposa deve haver certa proporcionalidade:<br />
não pode um ser por demais superior ao<br />
outro. Era necessário, portanto, surgir um homem que,<br />
por seu amor a Deus, por sua justiça, pureza, sabedoria,<br />
enfim, por todas as suas qualidades, estivesse à altura<br />
daquela augusta Esposa.<br />
Mais ainda. É também conveniente que o pai seja<br />
proporcionado ao filho. Por isso, era preciso que esse<br />
mesmo varão, com toda a dignidade, arcasse com a honra<br />
de ser o pai adotivo do Verbo feito carne.<br />
E houve um único homem criado para essa sublime<br />
missão, um homem cuja alma recebeu do Pai Eterno todos<br />
os adornos e predicados que o colocassem inteiramente<br />
à altura de seu chamado. Esse homem, entre todos<br />
escolhido por estar na proporção de Nossa Senhora<br />
e de Nosso Senhor Jesus Cristo, foi São José.<br />
A ele coube essa glória, esse píncaro inimaginável de<br />
ser esposo da Virgem-Mãe e pai legal do Menino Jesus.<br />
Como legítimo consorte de Nossa Senhora, possuía São<br />
José plenos direitos sobre o Fruto das imaculadas entranhas<br />
d’Ela, embora este Fruto houvesse sido engendrado<br />
pelo Espírito Santo. Quer dizer, sem contar a própria<br />
maternidade divina, não se pode conceber vocação<br />
mais extraordinária! É uma grandeza inconcebível.<br />
Pensemos, por exemplo, nos momentos em que São<br />
José trouxe em seus braços o Menino Jesus, ou naqueles<br />
em que ele O viu praticar os atos da vida comum na<br />
santa casa de Nazaré, ou ainda nas horas em que O contemplou<br />
imerso nos colóquios com o Padre Eterno...<br />
Consideremos quão puros deviam ser seus lábios, e<br />
quão insondável a sua humildade para conversar com o<br />
Divino Infante, responder às perguntas d’Ele ou Lhe<br />
dar um conselho, quando solicitado. Um simples ser humano,<br />
formado e plasmado pelas mãos do Criador, ensinando<br />
a Deus!<br />
Pensemos, ainda, no trato repassado de elevação e<br />
respeito entre São José e Nossa Senhora, quando Ela se<br />
ajoelhava diante dele para o servir. Ele vê aquela Criatura,<br />
que é o Céu dos Céus, inclinada à sua frente, e<br />
aceita seus préstimos. Como se tal não bastasse, a Esposa<br />
também se aconselha com ele, troca opiniões e<br />
acata suas ordens.<br />
Numa palavra, ele era o homem que tinha bastante<br />
sabedoria e pureza para governar a Deus e a Virgem<br />
Maria. Então se compreende quão inimaginável é a<br />
grandeza de São José!<br />
Excelências de príncipe e operário<br />
Para se traçar o verdadeiro perfil moral do chefe da<br />
Sagrada Família, seria preciso saber interpretar a Divina<br />
Face do Santo Sudário de Turim e, à maneira de suposição,<br />
deduzir algo da personalidade de quem foi o<br />
educador daquele semblante que ali está, e o esposo da<br />
Mãe d’Ele.<br />
Casado com Aquela que é chamada de o “Espelho<br />
da Justiça”, pai adotivo do “Leão de Judá”, São José<br />
devia ser um modelo de fisionomia sapiencial, de castidade<br />
e de força. Um homem firme, cheio de inteligência<br />
e critério, capaz de tomar conta do Segredo de<br />
Deus. Uma alma de fogo, ardente, contemplativa, mas<br />
também impregnada de carinho.<br />
Descendia da mais augusta dinastia que já houve no<br />
mundo, isto é, a de David. Segundo São Pedro Julião<br />
Eymard, Fundador da Congregação dos Padres Sacramentinos,<br />
os judeus reconheciam em São José o homem<br />
com direito ao trono real, caso a monarquia legítima<br />
fosse restaurada na Terra Santa. Direito este que Nosso<br />
Senhor Jesus Cristo herdou de seu pai legal, e por isso<br />
foi aclamado como “o filho de David”, quando entrou<br />
em Jerusalém. Ou seja, não era um descendente qualquer<br />
do Rei Profeta, mas o primogênito pretendente ao<br />
trono. E São José era o varão por meio de quem esta<br />
dignidade se transferiu para o próprio Filho de Deus.<br />
Quis a Providência nobilitar a classe operária, fazendo<br />
com que o pai adotivo de Jesus fosse também trabalhador<br />
manual, exercendo o ofício de carpinteiro. Desse<br />
modo, São José reunia em si os dois extremos da escala<br />
social na harmonia interior da santidade e da pessoa<br />
dele. Estava no ápice como príncipe da Casa de David,<br />
mas era um príncipe empobrecido, que tirava do seu labor<br />
artesanal o sustento da Sagrada Família.<br />
Como operário, soube ser humilde e tributar o devido<br />
respeito aos que lhe eram superiores. Como príncipe,<br />
conhecia também a missão de que estava imbuído, e<br />
a cumpriu de forma magnífica, contribuindo para a<br />
preservação, defesa e glorificação terrena de Nosso Senhor<br />
Jesus Cristo. Em suas mãos confiara o Padre Eterno<br />
esse Tesouro, o maior que jamais houve e haverá na<br />
História do universo! E tais mãos só podiam ser as de<br />
um autêntico chefe e dirigente, um homem de grande<br />
prudência e de profundo discernimento, bem como de<br />
elevado afeto, para cercar da meiguice adorativa e veneradora<br />
necessária o Filho de Deus humanado.<br />
Ao mesmo tempo, um homem pronto para enfrentar,<br />
com perspicácia e firmeza, qualquer dificuldade<br />
que se lhe apresentasse: fossem as de índole espiritual e<br />
14
interior, fossem as originadas pelas<br />
perseguições dos adversários de<br />
Nosso Senhor.<br />
O herói da confiança<br />
São José, príncipe e carpinteiro,<br />
herói da confiança<br />
Consideremos, por exemplo, a<br />
tremenda provação que sobre ele se<br />
abateu, logo no início de seu matrimônio<br />
com Maria Santíssima.<br />
No Antigo Testamento, a maior<br />
ventura que podia almejar um judeu<br />
era a de ser contado entre os ancestrais<br />
do Messias. Em vista disso, a<br />
imensa maioria do povo eleito procurava<br />
contrair matrimônio e ter filhos,<br />
não sendo raro considerar-se a<br />
esterilidade como um sinal de desprezo<br />
e opróbrio.<br />
Mas, São José, movido pela graça,<br />
não quisera se casar, a fim de<br />
conservar a virgindade. Levava ele<br />
sua tranqüila vida de homem casto e<br />
puro, quando, inesperadamente, recebe<br />
uma convocação: todos os descendentes<br />
diretos de David deviam<br />
comparecer diante de uma Virgem<br />
chamada Maria, a fim de se poder<br />
escolher um marido para Ela.<br />
Obediente, São José se apresenta<br />
ao lado de seus parentes, confiando<br />
na voz da graça que o fizera abraçar<br />
a virgindade. No seu íntimo, alimentava<br />
a certeza de que o escolhido<br />
seria outro.<br />
Como naquele tempo se viajava<br />
com o apoio de um bordão, todos se<br />
apresentaram com o seu. O sacerdote<br />
encarregado da cerimônia determinou:<br />
aquele em cujo bastão<br />
desabrochar uma flor, este será o<br />
eleito para se unir a Maria.<br />
São José olha para seu cajado... e<br />
nele vê aparecer uma flor! Evanesceram<br />
de súbito todos os seus anseios<br />
de virgindade. Como será agora?<br />
Ele confia. É um milagre que o<br />
obriga a se casar com Maria. Entretanto,<br />
no fundo de sua alma, quer<br />
continuar virgem!<br />
Sereno e corajoso, aceita a disposição<br />
divina.<br />
15
DR. PLINIO COMENTA...<br />
Entra em confabulação com a jovem e descobre que<br />
Ela também fizera voto de virgindade. A dificuldade<br />
parecia estar resolvida: ambos se manteriam intactos.<br />
Que felicidade! Seus anelos permaneciam vivos. Com o<br />
passar dos dias, ele percebe a incomparável riqueza de<br />
alma dessa Virgem que foi posta no seu lar. Pensa:<br />
“Protegê-La-ei magnificamente. Aqui estou para defendê-La<br />
no esplendor de sua personalidade contra toda<br />
espécie de ataques.”<br />
Em determinado momento, porém, o impensável<br />
acontece: ele nota que a Virgem está à espera de um<br />
Filho. No espírito de São José se estabelece a perplexidade.<br />
Ele não podia entender o que se passava, depois de<br />
tantos milagres... O florescimento do bordão, o encanto<br />
com que os dois se comunicaram o recíproco desejo da<br />
perpétua virgindade, a alegria de alma que então sentiram:<br />
“É claro! Deus nos colocou no mesmo caminho.<br />
Ele prometeu e está cumprindo a promessa!”<br />
Mas, agora, o incompreensível...<br />
São José passa por uma inenarrável provação, e<br />
Nossa Senhora também, uma vez que Ela percebia em<br />
toda a medida o sofrimento de seu esposo. Angústia<br />
tanto mais intensa quanto ele sabia ser impossível uma<br />
traição da parte d’Aquela Virgem incomparável. Ora,<br />
pela lei judaica, se uma esposa prevaricasse, o marido<br />
tinha a obrigação de expulsá-la do seu lar.<br />
Mas São José tinha a certeza de que Maria não havia<br />
cometido nenhum pecado.<br />
Não querendo tomar uma atitude injusta em relação<br />
a essa Virgem tão santa, e não sendo capaz de encobrir<br />
aquela situação irremediável, São José resolve deixar<br />
despercebido a casa de Nazaré. Antes da longa jornada<br />
que o esperava, resolveu descansar para reparar suas<br />
forças. Na madrugada seguinte ele partiria, levando<br />
simplesmente seu bordão, um pouco de comida e o fardo<br />
de uma grande incógnita, mais pesada que o Monte<br />
Evereste: Como se passou isto? Meu Deus, meu Deus...<br />
eu confio na vossa promessa!<br />
Apesar da aflição, tinha a alma tão confiante e tão<br />
serena que adormeceu. E, ao dormir, sonhou. No sonho<br />
teve esta recompensa: Deus lhe comunicou que aquela<br />
Criança formada no claustro virginal de Maria era o<br />
Verbo Encarnado, Filho do Divino Espírito Santo.<br />
Quando São José despertou, a paz reinava na sua alma.<br />
E Nossa Senhora, ao ver o semblante luminoso de<br />
seu esposo, soube que a provação dele havia cessado.<br />
Porque foi um herói da confiança, São José recebeu<br />
a maior e mais extraordinária missão que um homem<br />
teve na Terra. Ele era o consorte da Virgem Mãe,<br />
d’Aquela que daria à luz o Homem-Deus e Redentor do<br />
mundo. Nisto florescia a promessa de virgindade que<br />
lhe fora feita. Tudo se cumprira além do inimaginável.<br />
Cavaleiro-modelo<br />
na proteção do Rei dos Reis<br />
Entretanto, as dificuldades não haviam abandonado<br />
as sendas pelas quais caminharia São José. Basta recordar,<br />
por exemplo, as recusas de que foi objeto nas estalagens<br />
de Belém, quando procurava abrigo para Nossa<br />
Senhora, na iminência do nascimento do Menino-Deus.<br />
Ou então a fuga para o Egito.<br />
“Fuga para o Egito”... Quatro palavras que a nós,<br />
homens do século XX, parecem banais: toma-se um<br />
avião e em pouco tempo se vai de Jerusalém ao Egito.<br />
Não era assim no tempo em que São José, recebendo o<br />
aviso de que o cruel Herodes procurava matar o recém-<br />
16
conquista de Jerusalém. É uma linda proeza! Ele é o<br />
cruzado por excelência.<br />
Porém, muito mais do que retomar o Santo Sepulcro<br />
é defender o próprio Nosso Senhor Jesus Cristo! E disso<br />
São José foi gloriosamente encarregado, tornando-se<br />
o cavaleiro-modelo na proteção do Rei dos Reis e Senhor<br />
dos Senhores.<br />
Na coorte dos Santos,<br />
o primeiro abaixo de Nossa Senhora<br />
Avisado em sonho das intenções homicidas de<br />
Herodes, São José levou o Menino Jesus e Nossa<br />
Senhora para o Egito, tornando-se assim o<br />
cavaleiro-modelo na proteção do Rei dos Reis.<br />
(Fuga para o Egito, pintura de Fra Angélico)<br />
nascido Rei dos judeus, foi obrigado a tomar a Mãe e o<br />
Menino e com eles partir para a terra dos faraós.<br />
Uma viagem incerta, longa, através de desertos onde<br />
se ocultavam toda sorte de perigos: das feras famintas<br />
aos ladrões e salteadores, capazes de não só roubar e<br />
matar, como também de levar os viajantes em cativeiro,<br />
a fim de comercializá-los nos mercados de escravos. E<br />
São José, com seu coração de fogo, sua previdência e<br />
força varonil, enfrentou todos esses obstáculos, levando<br />
Nossa Senhora sobre um burriquinho e, ao colo d’Ela, o<br />
Menino Jesus, o Deus que quis ser fraco nos braços e<br />
nas mãos do glorioso Patriarca.<br />
Costuma-se apreciar e louvar, com justiça, a vocação<br />
de Godofredo de Bouillon, o vitorioso guerreiro que, na<br />
Primeira Cruzada, comandou as tropas católicas na<br />
Ao lado de todas as glórias que se acumularam sobre<br />
ele, São José recebeu, já nesta Terra, um prêmio inestimável:<br />
é o patrono da boa morte.<br />
Com efeito, dir-se-ia que ele teve um passamento de<br />
causar inveja, pois faleceu entre os braços de Nossa Senhora<br />
e os de Nosso Senhor, que o cercaram de todo o<br />
carinho e consolação na sua última hora. Não se pode<br />
imaginar morte mais perfeita, com Eles ali, fisicamente<br />
presentes. De um lado, Nosso Senhor cumulava seu pai<br />
adotivo de graças cada vez maiores, à medida que a alma<br />
de São José continuava a se santificar nos derradeiros<br />
transes da agonia. De outro, Nossa Senhora<br />
lhe sorria com respeito, e procurava aumentar-lhe a<br />
confiança:<br />
— Meu esposo! Lembre-se de que tudo se cumprirá.<br />
Coragem! vamos para a frente!<br />
Em determinado momento, São José exala o último<br />
suspiro, e o Limbo se abre para a alma dele. Ali ficaria<br />
ele até o instante, entre todos bendito, em que a alma<br />
santíssima de Jesus, que morrera crucificado, desceu ao<br />
encontro daqueles eleitos, a fim de colocar um jubiloso<br />
termo na sua grande espera. Alguns — Adão e Eva, por<br />
exemplo — lá se achavam desde os primórdios da humanidade,<br />
aguardando durante milênios o Redentor<br />
que os levaria para a eterna bem-aventurança.<br />
E o Messias veio. Podemos bem imaginar que toda a<br />
coorte do Limbo se reuniu em torno de São José para<br />
receber o Salvador. E que Este, tão logo ali se mostrou,<br />
resplandecente de glória, tendo perdoado e redimido o<br />
gênero humano, manifestou-se de modo especial a São<br />
José, como que exclamando: “Oh! meu pai!”<br />
Era o ápice do cumprimento de todas as promessas,<br />
a perfeita realização de um chamado que passou por indizíveis<br />
perplexidades e incomparáveis glórias. E São<br />
José, esposo de Maria Virgem, pai adotivo de Jesus, declarado<br />
Patrono da Igreja, ocupa no Céu um lugar tão<br />
eminente que recebe o culto de protodulia. Ou seja,<br />
abaixo de Nossa Senhora — a qual merece a devoção de<br />
hiperdulia — é ele o primeiro a ser venerado na extensa<br />
hierarquia dos Santos.<br />
Grandiosa recompensa à qual fez jus esse varão que<br />
praticou em grau elevadíssimo a virtude da confiança.<br />
17
DONA LUCILIA<br />
E<br />
vocativas de momentos inesquecíveis são as cartas trocadas entre Dª Lucilia e<br />
seu “filhão querido” — como ela costumava tratar <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>. Isto vale não só<br />
para os que puderam conhecer a ambos, como para aqueles que não tiveram<br />
esta felicidade, mas se sentem, pela simples leitura de sua correspondência, inseridos na<br />
atmosfera de benquerença e virtude reinante no relacionamento entre mãe e filho.<br />
Um dos mais belos conjuntos de cartas, e mais adequados a essa verificação, originouse<br />
por ocasião da viagem de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> à Europa, em 1950. Para apresentar algumas dessas<br />
missivas ao leitor e o situar numa perspectiva apropriada para saboreá-las, utilizamos<br />
excertos (adaptados) da excelente obra “Dona Lucilia”, de autoria de João Clá Dias.<br />
18
T<br />
rês dias após a partida de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> — para<br />
Dª Lucilia, três longos dias —, sem aguardar<br />
notícias dele e movida pelas saudades que já<br />
lhe faziam sofrer o coração, ela toma da pena. Agradece<br />
a seu filho todos os cuidados em lhe ocultar a viagem<br />
para lhe evitar preocupações. De nenhum modo susceptibilizada<br />
por isto, Dª Lucilia não cessa de manifestar<br />
seu carinho e exclusivo desejo de que ele se beneficiasse<br />
da viagem. Além disto, não deixa de se preocupar, aconselhar<br />
e rezar.<br />
São Paulo – 19-4-1950.<br />
Filho querido de meu coração!<br />
Com o coração transbordante de saudades,<br />
venho dizer-te a enorme falta que me fazes, pois<br />
parece-me ver-te entrar a todas as horas, e ver-te<br />
em todos os lugares, e o meu espirito voa — sem<br />
avião — em busca do teu! Contudo, filho querido,<br />
procuro ser calma, e agradecer a Deus e à<br />
Virgem Santíssima, a graça de poder ver-te realizar<br />
este sonho tão necessário e útil à tua vida e<br />
a teus futuros trabalhos, e também a felicidade de<br />
poderes ver, talvez ouvir e falar mesmo ao nosso<br />
Papa! — E, tudo isso, em companhia de tão bons<br />
companheiros! (...)<br />
Agradeço-te imenso, tudo o que, como excelente<br />
filho, fizeste para evitar-me a angústia da<br />
travessia. Mandei acender uma vela a Nossa<br />
Senhora das Graças, e fiz muitas orações pela tua<br />
feliz chegada. (...)<br />
Conta-me tudo o que têm feito e o que de bonito<br />
por aí já viram: Granada, Alhambra... o túmulo<br />
de Dom Filipe,.... históricos palácios, conventos...<br />
e o que mais? — Já comeram muitos<br />
figos de capa-rota e cerejas? — Penso ser agora<br />
a época. — Quando seguem para Paris para respirarem<br />
o já celebre “doux air de France” 1 ? (...)<br />
Muito cansada e com sono, termino esta, enviando-te<br />
todas as minhas bênçãos, e te pedindo<br />
para que veles bem pela tua preciosa saúde.<br />
Mais uma vez, que Deus te abençoe, te faça<br />
muito feliz e envio-te saudosíssima, muitos beijos<br />
e abraços. — De tua mamãe extremosa,<br />
Lucilia<br />
Aniversário marcado por<br />
grande ausência<br />
Por imperiosas necessidades da causa católica, <strong>Dr</strong>.<br />
<strong>Plinio</strong> foi obrigado a partir para a Europa nas vésperas<br />
de uma grande data, muito cara a ele: 22 de abril,<br />
aniversário de sua mãe. A fim de atenuar em algo a irremediável<br />
lacuna que sua ausência representava para<br />
Da. Lucilia, logo na manhã daquele dia um telegrama é<br />
entregue no apartamento dela:<br />
19
DONA LUCILIA<br />
BARCELONA – 22.04.50<br />
MILHOES BEIJOS AFETUOSISSIMOS<br />
PLINIO<br />
À mesma hora seu esposo, <strong>Dr</strong>. João Paulo, passoulhe<br />
uma carta deixada por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, acompanhada de<br />
um belíssimo buquê de flores. Dessa forma, nos primeiros<br />
momentos da manhã, recebia ela manifestações<br />
de amor e veneração de seu filho, tal como se ele estivesse<br />
presente. À vista do carinhoso gesto, seu coração<br />
se comoveu e não conseguiu conter as lágrimas, só que,<br />
desta vez, de puro contentamento, enquanto lia estas<br />
expressivas linhas:<br />
13 de Abril 22-IV 2<br />
Meu amorzinho querido.<br />
Quis que, logo ao acordar, minhas felicitações fossem<br />
as primeiras, com as de Papai. Mil beijos, mil abraços,<br />
carinho sem fim, um oceano de saudades.<br />
Poucas vezes fiz um sacrifício tão grande quanto o de<br />
marcar viagem nas vésperas de seu aniversário, que eu<br />
gostaria imensamente de passar com a Senhora. Mas,<br />
meu bem, foi indispensável organizar as coisas assim. A<br />
ida foi antecipada: se-lo-á implicitamente a volta.<br />
Hoje, comungarei pela Senhora, e pensarei na Senhora<br />
o dia todo.... o que aliás farei nos outros dias também!<br />
As flores da casa são todas compradas por mim.<br />
Mil felicidades, querida. Que Nossa Senhora dê tudo à<br />
Senhora.<br />
Pede sua bênção com um afeto e um respeito sem conta<br />
o seu taludíssimo e esporudíssimo ex-Pimbinche<br />
<strong>Plinio</strong><br />
Sobre a mesa do escritório<br />
de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, a carta que ele<br />
deixou para Dª Lucilia, com<br />
a data do 22 de abril de 1950<br />
Tendo sido o 22 de abril tomado por visitas, as quais,<br />
por sua inalterável benevolência, Dª Lucilia ia receber<br />
com os já conhecidos requintes de boa-acolhida, só pôde<br />
responder a seu filho na manhã seguinte. Fê-lo com<br />
palavras repassadas de ardente amor a Deus:<br />
São Paulo, 23-04-50<br />
Filho querido de meu coração!<br />
De todo o coração, de toda a minha alma,<br />
agradeço-te a carta tão afetuosa que me deixaste,<br />
e que tanto conforto me trouxe, e mais as lindas,<br />
“belíssimas mesmo”, palmas brancas, rubras, amarelas<br />
e lilases, que Zili enviou-me pela manhã.<br />
Chorei é verdade, mas, “graças a Deus”, foi de felicidade<br />
por ter recebido eu, tão indigna,“liberal ”, a<br />
imensa dádiva dos Sagrados Corações de Jesus<br />
e Maria Santíssima, de um filho tão santo, tão<br />
bom e carinhoso, que abençôo de todas as veras de<br />
minha alma, por quem peço toda a proteção Divina,<br />
e a Luz do Divino Espirito Santo. — Destas<br />
palmas, levei duas para a capela do “sexto<br />
andar”, uma para tua imagem do Imaculado<br />
Coração de Maria em teu quarto, onde, como de<br />
costume rezei por ti, e duas outras para a imagem<br />
do Sagrado Coração de Jesus, no salão (e o resto<br />
— muitas, na jarra do imperador). (...)<br />
Fui hoje ouvir missa e comungar por ti na<br />
“minha” igreja do Sagrado Coração de Jesus,<br />
onde encomendei uma missa por tua intenção, e<br />
bom êxito em teus empreendimentos. É o padre polonês<br />
que vai rezá-la. Disse-me que te estima<br />
muito. Ele está horrorizado com o progresso do<br />
comunismo; [disse] que tem setenta e nove anos,<br />
mas não quer morrer, sem ver o comunismo esfacelado<br />
e exterminado, pelo que fez à Polônia.<br />
Esperava que já estivessem em Portugal, e<br />
fiquei admirada de ver que me telegrafavas de<br />
Barcelona. Estou ansiosa por receber uma carta<br />
tua, trazendo-me tuas impressões do lugar. As<br />
primeiras, geralmente não são favoráveis; mas<br />
depois aos poucos, já ambientado, aprecia-se<br />
muito mais. Escreva-me sempre; sim? Vê se encomenda<br />
a missa para Nossa Senhora da Begoña<br />
por intenção de Rosée; sim?<br />
20
Com muitas saudades, “espiritualmente” (...)<br />
rezamos o terço, faço-te uma cruzinha na testa,<br />
e... cubro-a de beijos e bênçãos. Um longo e saudoso<br />
abraço, Pimbinchen querido, de tua “manguinha”<br />
afetuosa,<br />
Lucilia<br />
Notícias de Espanha<br />
Finalmente, por volta de 25 de Abril, Dª Lucilia recebeu<br />
uma carta de seu filho com as tão ansiadas notícias<br />
e impressões de viagem.<br />
Madrid, 18-IV-50<br />
Mãezinha querida do meu coração, e querido Papai<br />
Escrevo-lhes depois de três dias de intensas viagens, isto<br />
é, 24 horas de avião, um dia de visitas em Madrid, e um<br />
dia de Escorial. Faço-o com enormes saudades. É meia<br />
noite, hora de uma última conversa com minha gente do<br />
6º andar no Fasano, e poucos minutos antes de minha<br />
conversa tête-à-tête com a Lu.... Como gostaria de os ter<br />
todos comigo aqui!<br />
A viagem aérea foi boa. Espero que tenham recebido o<br />
telegrama que mandei a Tia Zili no próprio aeroporto, no<br />
dia de minha chegada. Cerca de 24hs. tocamos em Recife:<br />
aeroporto bem arranjado e calor tremendo. A cidade se<br />
percebia bem em todos os seus contornos graças à iluminação:<br />
é bem grande. Dormimos passavelmente e no dia<br />
seguinte voamos sobre o Saara, que pudemos ver muito<br />
bem e por muito tempo. O dia ainda era claro quando sobrevoamos<br />
Gibraltar, vendo bem o forte. Chegamos a<br />
Madrid entre 21 e 22 horas. (...)<br />
Nosso hotel é razoável. Encontrei logo à chegada o<br />
Cel. Barrera (filho do Marquês de Valdegamas e Conde de<br />
Miraflores) (...), com seu cunhado Olague (historiador<br />
prodigiosamente culto e inteligente, e que parece muito influente<br />
aqui). (...)<br />
Visitei o Prado com eles (o Olague é um conhecedor<br />
perfeito). Os Murillos, Velasques, Ticianos, Flamengos,<br />
Goyas, pululam por lá. A riqueza do Museu é indescritível.<br />
Quanto à beleza dos quadros é supérfluo dizer algo. Depois<br />
fomos à casa de Lope de Vega onde o Olague nos<br />
apresentou à Embaixatriz (notável) da França, em cuja<br />
companhia a visitamos.<br />
Todos os interstícios disto foram preenchidos pela dupla<br />
Barrera.<br />
Deitei-me assim mais morto do que vivo.<br />
Hoje pela manhã, Barrera! Depois Olague para um<br />
passeio ao Escorial. Este — como as outras coisas que tenho<br />
visto aqui, não é descritível em palavras. Rezei junto à<br />
sepultura de Filipe II, à cama em que expirou, e à sepultura<br />
de Dom João d’Áustria, a um enorme autógrafo de<br />
“... e o resto (das palmas), muitas, na jarra do Imperador...”<br />
Sta Teresa, e ao tinteiro em que ela escreveu. Foi um dia<br />
inteiro, horrivelmente fatigante. Amanhã, Toledo, outro<br />
grande mas compensatório cansaço, com os Barreras! (...)<br />
Amanhã se Deus quiser continuarão as visitas.<br />
E a Lu? Tem dormido bem? Tem dormido à hora?<br />
Tem tido energia em matéria de saudades? (...) Tem tomado<br />
muita água Prata? Tem tomado muito táxi?<br />
E Papai? Tem tido muito trabalho com o escritório?<br />
Tem comido muito coco? (...)<br />
Espero que Tia Yayá esteja melhor. Muitos abraços a<br />
ela, Dora e Telêmaco. Muitos beijos para tia Zili, cujo excelente<br />
estojo já experimentei. Abraços para o Tatão 3 .(...)<br />
Para Papai, com abraços muito afetuosos, inúmeras<br />
saudades.<br />
E para a Senhora, minha Mãezinha, o que? Tudo<br />
quanto pode haver neste mundo em matéria de abraços,<br />
beijos, carinho, respeito, saudades, afeto; e abençoe o seu<br />
filhão.<br />
<strong>Plinio</strong><br />
“Quantas saudades... meu Deus!!...”<br />
Termina o jantar em casa dos Corrêa de Oliveira, na<br />
rua Vieira de Carvalho. O casal se levanta, faz as orações<br />
do término da refeição, o marido se dirige a seu<br />
quarto a fim de se refazer do cansaço do trabalho, enquanto<br />
a senhora se entrega às orações diante da imagem<br />
do Sagrado Coração de Jesus.<br />
Depois de repassar todas as suas intenções, em especial<br />
por seu filho tão querido, ela oscula as mãos, os<br />
joelhos e os pés da imagem. Em seguida, lança mais um<br />
21
DONA LUCILIA<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> em sua viagem pela Europa, em 1950<br />
olhar amoroso à figura d’Aquele que é a Bondade em<br />
pessoa. Lentamente se afasta, senta-se numa poltrona<br />
próxima, e percorrendo as vias dos encantos de seu<br />
coração materno, pensa:<br />
“Bem, amanhã um portador vai encontrar-se com<br />
meu Pimbinchen. Ai! que pena não ser eu! Quanto eu<br />
gostaria de fazer essa viagem para poder revê-lo! O único<br />
jeito de entrar em contato com ele é escrever-lhe<br />
uma carta”.<br />
Levanta-se, abre a escrivaninha, acende a luz e com<br />
delicada letra, quase desenhada, transpõe a umas folhas<br />
de papel a expressão de seus carinhos e saudades:<br />
S. Paulo, 30-4-950<br />
Filho tão querido!<br />
Ignoro ainda se já recebeste minha primeira<br />
carta, pois as tuas nada me dizem a este respeito;<br />
quanto à segunda, escrita no dia vinte e três,<br />
segue com esta, porque pensávamos que seria<br />
mais rápido e seguro em mãos de [um portador],<br />
mas ele foi forçado a adiar a viagem, de sorte que<br />
seguem agora duas.— Recebi anteontem uma<br />
do dia vinte e um, e estou ansiosa por ouvir tuas<br />
impressões e descrições da Espanha e do nosso<br />
Portugal, que não conheço, assim como de tudo<br />
mais que te resta a ver. Nada me dizes sobre tua<br />
saúde. Não estarás, movido pela curiosidade,<br />
abusando de tuas forças? — Pelo amor de Deus,<br />
não faça imprudências de gourmands e gourmets<br />
4<br />
, e não te movas em excesso, o que não te permitiu<br />
até aqui o teu gênero de vida. (...)<br />
Você lembrou-se de mandar dizer a missa<br />
para Nossa Senhora da Begoña, conforme te<br />
pedi? A que mandei dizer por tua intenção no<br />
dia três deste, no Sagrado Coração de Jesus será<br />
ouvida com a minha máxima fé e amor, e também<br />
comungarei, pedindo a Deus para que te<br />
abençoe, te faça sempre um verdadeiro católico,<br />
reto, bom e justo, para Sua maior gloria, e como<br />
sempre, o melhor e mais querido dos filhos, por<br />
quem dou, até mesmo, os poucos dias que ainda<br />
me restam. É bem provável que indo a Versailles,<br />
te lembres das estuatas 5 brancas; no Trianon, das<br />
carruagens reais, e passeando “a pé” pela avenida<br />
dos Champs-Elysées, no “rond point” te lembres<br />
dos teatrinhos de bonecos! Quantas saudades...<br />
meu Deus!!...<br />
É bom que tenhas um bom e pequeno mapa da<br />
cidade, fácil de ser manuseado o que te facilitará<br />
os passeios. Quanto ao mais, nada te recomendo,<br />
pois saberás melhor do que eu, o que tens a ver.<br />
Escreve-me sempre; sim? Não te esqueças de<br />
mim em Nossa Senhora de Lourdes; sim? Como<br />
vão teus amigos? estão também gostando muito?<br />
Recomenda-me a todos eles.<br />
Com muitas saudades, abençoa-te, abraça-te<br />
e beija-te muito, tua mamãe extremosa,<br />
Lucilia<br />
1) “Doce ar de França”.<br />
2) <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> colocou as duas datas na carta. A primeira era do dia<br />
em que a escreveu.<br />
3) Epíteto de Nestor Barbosa Ferraz, dado pelos netos dele.<br />
4) Os que se alimentam fartamente e os apreciadores da boa mesa.<br />
5) Alusão ao modo de o pequeno <strong>Plinio</strong> designar as estátuas do<br />
Palácio de Luís XIV, quando o visitou durante a viagem da<br />
família à Europa, em 1912.<br />
22
A expansão da obra de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
Guatemala<br />
A fim de implorar à SSma. Virgem<br />
que Ela seja efetivamente<br />
Rainha da Guatemala,<br />
um destemido grupo de jovens<br />
seguidores de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> naquele país<br />
deposita uma imagem<br />
de Nossa Senhora das Graças<br />
junto à orla de um dos muitos vulcões<br />
ali existentes (fotos maiores).<br />
Ao lado de outros entusiasmados jovens<br />
provenientes de El Salvador, os<br />
guatemaltecos realizaram também<br />
interessantes programas apostólicos,<br />
como um passeio às margens do<br />
legendário Lago Atiplan (foto menor).<br />
23
Segundo São Luís Grignion,<br />
entre os caridosos deveres que<br />
Nossa Senhora, como a melhor<br />
das mães, cumpre em relação a<br />
seus fiéis servos, está o de<br />
provê-los de tudo para a alma e<br />
para o corpo. Assim, a par de<br />
favorecer, com insignes graças, o<br />
afervoramento espiritual de<br />
seus filhos, obtêm-lhes Ela<br />
ótimas instalações, onde possam<br />
melhor honrá-La e servi-La,<br />
fixarem-se e amadurecerem<br />
novas vocações, e se lançarem a<br />
maiores conquistas apostólicas.<br />
Colômbia<br />
Sede dos mais<br />
jovens em Bogotá<br />
(acima),<br />
e uma excursão<br />
organizada para eles<br />
(ao lado)<br />
Propriedade<br />
campestre em Palmela<br />
(ao lado),<br />
e peregrinação a Lourdes<br />
de Correspondentes e<br />
Simpatizantes em Portugal<br />
(abaixo)<br />
Portugal<br />
24<br />
Sede<br />
central<br />
em<br />
São José<br />
Costa Rica
ECO FIDELÍSSIMO DA IGREJA<br />
Nós também<br />
O beijo de Judas<br />
(Pintura de Fra Angelico)<br />
E m<br />
nosso último artigo, mostramos que as<br />
meditações que tão freqüentemente se<br />
fazem a respeito da ingratidão, da covardia<br />
e da cegueira dos Apóstolos, durante a<br />
Paixão, não devem ter, para nós, interesse meramente<br />
especulativo. Também nós temos, para com Nosso Senhor,<br />
ingratidões, covardias e cegueiras muito parecidas<br />
com as dos Apóstolos, e seria ridículo pensar apenas<br />
nos defeitos deles, sem tomarmos também em consideração<br />
a “trave que está em nosso próprio olho”. Ninguém<br />
se santifica pela meditação sobre as virtudes ou<br />
defeitos alheios, se não o fizer de modo a acrescer suas<br />
próprias virtudes, ou combater seus próprios defeitos.<br />
Assim, pois, olhos postos na Paixão de Nosso Senhor,<br />
não devemos por isto nos esquecer de nós mesmos, pois<br />
que Nosso Senhor nos pede, não tanto que choremos<br />
com Nossa Senhora os padecimentos do Cordeiro de<br />
Deus, mas que cuidemos de não transformar nossa própria<br />
alma em uma segunda edição dos que O imolaram.<br />
Essa reflexão, absolutamente verdadeira no que diz<br />
respeito às suaves tristezas da Semana Santa, também se<br />
aplica, ponto por ponto, às austeras alegrias da Ressurreição.<br />
Tanta gente se admira e se indigna com a perturbação<br />
cheia de abatimento, e a vacilação de espírito<br />
manifestada depois da morte de Nosso Senhor, pelos<br />
Apóstolos, a propósito da Ressurreição. O Redentor<br />
tinha predito de modo positivo que ressurgiria dos mortos.<br />
Entretanto, tendo Ele expirado na cruz, os Apóstolos<br />
se deixaram dominar por um abatimento que fazia<br />
transparecer claramente toda a vacilação que lhes ia na<br />
25
ECO FIDELÍSSIMO DA IGREJA<br />
alma. E São Tomé quis tocar com os dedos o Salvador,<br />
para crer na objetividade da Ressurreição.<br />
Ora, a realidade é que também nós estamos sujeitos<br />
à mesma fraqueza e não raramente ela vence em nós,<br />
contando com nosso próprio consentimento. Certamente,<br />
todos nós cremos, graças a Deus, com toda a firmeza<br />
e sem a menor vacilação, na objetividade da Ressurreição<br />
de Nosso Senhor Jesus Cristo. Mas há uma<br />
outra verdade, que sem dúvida admitimos, mas que admitimos<br />
às vezes com tanto temor, que lhe damos um<br />
sentido quase puramente especulativo e tão restrito,<br />
que nos tornamos perfeitamente merecedores da censura<br />
do Espírito Santo: “Estão diminuídas as verdades<br />
entre os filhos dos homens”. Não se trata de uma verdade<br />
posta em dúvida, mas sobre a qual temos, em nosso<br />
espírito, uma noção diminuída. Entretanto, quantos<br />
e quantos erros daí decorrem!<br />
Essa verdade que Nosso Senhor afirmou de modo<br />
insofismável, e a respeito da qual sua palavra não é menos<br />
infalível do que quando predisse sua ressurreição, é<br />
a fecundidade sobrenatural da Santa Igreja Católica<br />
Apostólica Romana, que permanecerá de pé, sobranceira<br />
em relação às investidas de todos os seus inimigos,<br />
até a consumação dos séculos, sempre capaz de atrair<br />
pela graça os homens de boa vontade.<br />
Todos os católicos, evidentemente, estão obrigados a<br />
crer nessa verdade. A Igreja jamais perderá esse dom<br />
de atrair as almas. Negá-lo implica em negar que Jesus<br />
Cristo é Deus, ou que os Evangelhos são livros inspirados.<br />
Negá-lo é, pois, negar a própria Religião. Mas essa<br />
verdade, que todos aceitam, todos a possuem em igual<br />
extensão? Todos vêem com igual clareza? Todos tiram<br />
dela as mesmas conclusões?<br />
Nos dias torvos que atravessamos, quando vemos a<br />
heresia se dilatar por toda a Europa, e ameaçar o mundo<br />
inteiro, quanta gente há que julga a Igreja tão ameaçada,<br />
que se sente inclinada a concessões doutrinárias<br />
perante os atuais dominadores do mundo? Hoje em dia,<br />
a paganização geral dos costumes penetrou em todas as<br />
esferas da sociedade, e cavou um abismo que se vai tornando<br />
cada vez mais profundo, entre o espírito da Igreja<br />
e o espírito da época. À vista disto, quanta gente<br />
aconselha concessões morais capazes de a reconciliar<br />
com esta sociedade sem cujo apoio se receia, no mundo,<br />
que ela venha a sofrer um colapso que, se não fosse a<br />
morte, seria ao menos um prolongado desmaio? À vista<br />
da formação de correntes pseudo-científicas cada vez<br />
mais contrárias aos ensinamentos infalíveis da Igreja,<br />
quanta gente desejaria que a Igreja, se não alterasse as<br />
verdades já definidas, ao menos não explicitasse sua<br />
doutrina em pontos ainda controversíveis, em que qualquer<br />
definição por parte do Catolicismo poderia tornar<br />
as divergências com a nossa época ainda maiores?<br />
Evidentemente, todos estes erros procedem de um<br />
temor mais ou menos inconsciente quanto à fecundidade<br />
da Igreja.<br />
De fato, o que é a doutrina católica? É um conjunto<br />
de verdades. Desde que, nesse conjunto, uma só verdade<br />
fosse adulterada, a doutrina católica já não seria<br />
ela mesma. Assim, tentar acomodá-la, adaptá-la, ajeitála,<br />
é trabalhar para que ela perca sua identidade consigo<br />
mesma: em outros termos, é tentar matá-la. E achar<br />
que o apostolado não é possível sem essa adaptação é<br />
achar que a Igreja só pode vencer morrendo!<br />
Evidentemente, essa vacilação, em um verdadeiro<br />
católico, não se pode referir a certas verdades já irretorquivelmente<br />
definidas pela Igreja. Mas há um semnúmero<br />
de aplicações práticas de princípios, ou de deduções<br />
doutrinárias a respeito de princípios já definidos,<br />
em que essa fraqueza se manifesta. Em lugar de<br />
se procurar, na utilização doutrinária ou prática dos<br />
princípios, a verdade, toda a verdade, e só a verdade, as<br />
reflexões feitas a este respeito se deixam imbuir mais ou<br />
menos pela preocupação de condescender com os erros<br />
do século. E, assim, em vez de procurar tirar do tesouro<br />
das verdades católicas todos os frutos de ordem intelectual<br />
e moral que contêm, procura-se saber mais o que<br />
pode ser rotulado como discutível, e portanto como<br />
matéria livre, do que o que pode ser rotulado como verdadeiro,<br />
e portanto como matéria certa.<br />
Em outros termos, a mania invariável de condescender<br />
leva muita gente a procurar dilatar os espaços intelectuais<br />
reservados à dúvida. Em presença de uma afirmação<br />
deduzida da doutrina católica, a pergunta deveria<br />
ser esta: posso incorporar mais esta riqueza ao patrimônio<br />
de minhas convicções? Mas, em geral é esta<br />
outra: que razões posso descobrir, para duvidar também<br />
disto?<br />
Pio XI, recebendo em audiência o Exmo. Revmo. Sr.<br />
Arcebispo de Cuiabá, lhe deu como palavra de ordem<br />
para os jornalistas católicos do Brasil: “Dilatate spatia<br />
veritatis”. [Dilatai os espaços da verdade.] Muita gente<br />
gosta de fazer o contrário: em lugar de se esforçar por<br />
descobrir novas verdades doutrinárias deduzidas das já<br />
conhecidas, ou de estender o mais possível a aplicação<br />
dessas verdades na prática, todo seu esforço vai em negar<br />
o mais possível qualquer coisa de positivo que se<br />
faça neste caminho. Em suma, isto é exatamente o oposto<br />
do verdadeiro espírito construtivo, é dilatar espaços,<br />
não da verdade, mas da dúvida.<br />
26
Se a Revelação é<br />
um tesouro, e a difusão<br />
do Evangelho um<br />
bem, quanto mais esse<br />
tesouro se espalha e<br />
esse bem se distribui,<br />
tanto mais contentes<br />
devemos ficar. Muita<br />
gente, entretanto, acha<br />
que é o contrário.<br />
Quanto mais se ocultam<br />
os desdobramentos<br />
lógicos da Revelação<br />
e se encurtam as<br />
conseqüências do que<br />
está no Evangelho,<br />
tanto mais caridoso se<br />
é! Como Deus teria sido<br />
caridoso, se tivesse<br />
imposto uma moral<br />
Nascida do<br />
flanco chagado do<br />
Divino Redentor,<br />
a Santa Igreja<br />
permanecerá de pé<br />
até a consumação<br />
dos séculos.<br />
Verdade na qual<br />
todos os católicos<br />
estão obrigados a<br />
crer, sem nenhuma<br />
concessão aos<br />
dominadores do<br />
mundo.<br />
Ao lado, Cristo da<br />
Boa Morte, Espanha.<br />
Abaixo, o Vaticano<br />
menos severa! Por que não previu Ele que no século<br />
XX, essa moral seria um trambolho indifusível? Corrijamos<br />
a obra de Deus: encurtemos o que na sua obra está<br />
por demais longo, empanemos a luz do que brilha demais,<br />
e assim teremos beneficiado largamente a humanidade.<br />
Quanta gente, na prática, raciocina assim!<br />
Ora, proceder assim não reflete o receio de que a<br />
Igreja já não conte com o apoio de Deus, e, se não se<br />
baratear, já não possa arrastar as turbas? E essa dúvida<br />
sobre o auxílio sobrenatural que Deus dá à Igreja, não<br />
se parece muito com a dúvida que, antes da Ressurreição,<br />
se sentiu a respeito deste fato?<br />
Reflitamos nisto. E peçamos a Nosso Senhor que,<br />
fazendo ressuscitar em nós os tesouros das graças que<br />
rejeitamos, voltemos novamente àquela ortodoxia virginal<br />
da Fé, e àquela perfeição de vida, que talvez o<br />
pecado, por nossa máxima culpa, nos tenha roubado.<br />
(Publicado no “Legionário”, nº 448, 13/4/1941)<br />
27
PERSPECTIVA PLINIANA DA HISTÓRIA<br />
OS POVOS<br />
E SEUS ARQUÉTIPOS<br />
Luís XIV —<br />
Protótipo da nação<br />
primogênita da Igreja,<br />
foi chamado de “amigo” pelo<br />
Sagrado Coração de Jesus<br />
R<br />
epetir, em diversas ocasiões,<br />
esquemas de<br />
exposição laboriosamente<br />
redigidos é um modo de<br />
agir comum à quase totalidade<br />
dos conferencistas e palestrantes.<br />
Mesmo pessoas célebres<br />
por sua erudição e renomados<br />
autores, com centenas de livros<br />
publicados, não escapam a esta<br />
regra.<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, contudo, constituía<br />
exceção. Qualquer que fosse<br />
o tema por ele abordado, nunca<br />
se repetia. Seus ouvintes sabiam<br />
de antemão que seriam<br />
brindados com perspectivas inteiramente<br />
novas, grandes panoramas,<br />
assuntos tratados em<br />
profundidade e de modo atraente,<br />
porque brotavam de uma<br />
alma dotada de admirável discernimento<br />
e de uma singular<br />
capacidade de análise e reflexão.<br />
Qualidades que o leitor poderá<br />
constatar, uma vez mais,<br />
na reunião transcrita a seguir,<br />
na qual <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> relaciona a<br />
ascensão e queda das nações<br />
com a atitude tomada por elas<br />
diante do que ele denominava<br />
de “arquétipos” (aplicando este<br />
termo a pessoas que exprimem<br />
em grau eminente as características<br />
de um povo, constituindo<br />
um paradigma).<br />
28
E<br />
m geral, quando determinada nação tem<br />
um grande governante, este se transforma<br />
no arquétipo de seu povo.<br />
Primeiramente, porque a situação em que a arquetipia<br />
aparece de modo mais claro é, com efeito, a de chefe<br />
de Estado. Em segundo lugar, porque uma das características<br />
fundamentais de todo líder insigne é o fato de<br />
ele ser a pessoa por excelência na qual seus conterrâneos<br />
se sentem refletidos. Aquele que, pela sua simples<br />
presença aos olhos do país, faz com que este tenha a<br />
concretização de seus próprios ideais de perfeição e<br />
queira realizá-los, reconhecendo no dirigente o seu modelo.<br />
A recusa ao arquétipo pode<br />
gerar a decadência de sua nação<br />
Muitas vezes, a heróica virtude de um chefe de Estado não é<br />
suficiente para evitar que um povo se extravie pelas tortuosas<br />
sendas da decadência. Exemplo: São Luís IX, cujo neto, Filipe<br />
o Belo, foi uma das remotas causas da Revolução Francesa.<br />
Muitas vezes, porém, um povo não corresponde ao<br />
valor de seus máximos expoentes. Então sucede que a<br />
pessoa à frente de sua nação é um ótimo soberano, mas<br />
exerce suas funções na indiferença e no descaso públicos.<br />
Ele se sacrifica pelo bem-estar de seus governados,<br />
funda universidades, hospitais, propicia a formação de<br />
diversas e extraordinárias instituições, etc., e... não lhe<br />
dão importância. Como resultado dessa infidelidade,<br />
Deus, por punição, pode permitir que tal povo perca<br />
paulatinamente a pujança que o fez reluzir no concerto<br />
das nações.<br />
Não são raros os exemplos nesse sentido. Um deles<br />
permanece gravado na História pelo incomparável estro<br />
de Camões. Ao se referir a uma “austera, apagada e<br />
vil tristeza”, o poeta cantava, sozinho e contristado, a<br />
moribunda grandeza de um Portugal que recebera da<br />
Providência o gênio, a coragem e, sobretudo, a têmpera<br />
varonil para realizar tantos e tão celebrados “cristãos<br />
atrevimentos”. Ao menos naquele momento, os dias de<br />
glórias iam conhecendo seu fim. E Camões lavrou em<br />
versos imortais o triunfo e o crepúsculo de um Portugal<br />
que já não tinha ouvidos para apreciar o cântico dele.<br />
Austera, apagada e vil tristeza...<br />
Engano é pensar que, diante de um povo em crise,<br />
bastaria surgir um bom dirigente, digamos mesmo um<br />
líder santo, para reerguê-lo. A santidade de um soberano<br />
nem sempre é suficiente para, em qualquer circunstância,<br />
regenerar sua nação. Haveria nisto uma espécie<br />
de automatismo que as coisas sobrenaturais não comportam.<br />
Exemplo paradigmático é o de São Luís, Rei de França.<br />
Arquétipo de seu povo, ele foi avô, nada mais nada<br />
menos, do que de Filipe o Belo, um monarca péssimo.<br />
Segundo muitos visos históricos, este último esteve implicado<br />
no crime de Guilherme de Plaisance e Luís Nogaret,<br />
que atentaram contra o Papa Bonifácio VIII. O<br />
Pontífice, então em Agnani, não quis ceder às pressões<br />
do rei francês a respeito de assuntos internos da Igreja<br />
na França. Era seu direito e seu dever não transigir. Ao<br />
perceber que o Pontífice não estava disposto a capitular,<br />
um dos enviados de Filipe o esbofeteou. O Papa não se<br />
mexeu, e manteve fixo seu olhar no Crucificado que tinha<br />
sobre sua mesa. Atitude digna e sensata, pois aqueles<br />
celerados o podiam matar ali mesmo.<br />
Esse episódio é característico do reinado de Filipe o<br />
Belo, que deu início ao absolutismo na França, com todas<br />
as suas infaustas conseqüências. Quer dizer, uma<br />
das remotas causas da Revolução Francesa foi o neto de<br />
São Luís IX.<br />
Nessa linha, caso também frisante é o de São Fernando,<br />
Rei de Castela. Soberano vitorioso contra os mouros,<br />
teve ele um filho e sucessor, Afonso X, o Sábio, que<br />
não seguiu as virtuosas pegadas do pai e esteve na origem<br />
de todo o Humanismo e de toda a penetração prérenascentista<br />
na Espanha.<br />
Não se pense, portanto, que o santo é uma espécie de<br />
coringa que vence sempre, ou uma panacéia que cura<br />
todos os males.<br />
29
PERSPECTIVA PLINIANA DA HISTÓRIA<br />
Havendo, então, um povo que não correspondeu aos<br />
méritos e ideais de seu arquétipo, soçobrando assim em<br />
perigosa decadência, a solução é esse modelo se compenetrar<br />
do fato de que a Igreja Católica é o fundamento<br />
de todo bem existente na Terra. E de que, se um determinado<br />
país não tem como alicerce esse bem irradiado<br />
pela Igreja, ele está perdido. Pois, uma vez extinta a<br />
Fé, tudo se acaba. Pode levar mais ou menos tempo: está<br />
aberto o caminho para a ruína.<br />
Compenetrado dessa verdade, ele deve pensar: “Meu<br />
povo está se extraviando. Ora, eu não o amo apenas<br />
nem principalmente por ser meu, e sim porque ele pertence<br />
antes a Nosso Senhor Jesus Cristo. Mas, se Nosso<br />
Senhor o está perdendo, isso eu não posso tolerar!”<br />
Aí ele se torna também o exemplo de todas as virtudes,<br />
do incansável bom pastor atrás do rebanho desgarrado,<br />
daquele que se sacrifica pelo seu povo e chega<br />
mesmo a se oferecer como vítima expiatória pela regeneração<br />
dele. Esse holocausto, feito por amor a Nosso<br />
Senhor, a Nossa Senhora e à Santa Igreja, o levará para<br />
o Céu e, muito provavelmente, atrairá para seu país as<br />
graças que o reconduzirão às vias da Providência.<br />
Os arquétipos ao longo da História<br />
Quando, porém, um povo é fiel aos desígnios de<br />
Deus para com ele, quando é grande e ama sua grandeza,<br />
esse povo, por assim dizer, clama pelo seu arquétipo,<br />
e este é plasmado pelas circunstâncias.<br />
A História não carece de ilustres exemplos de arquétipos<br />
que a marcaram ao longo dos séculos, sendo a<br />
Europa o continente onde eles mais se fizeram notar.<br />
Qualquer soberano europeu que se tenha distinguido<br />
por seus eminentes feitos, tornou-se o modelo de sua<br />
nação.<br />
Para não recuarmos muito no tempo, mencionemos<br />
Filipe II, na Espanha, D. Manoel, o Venturoso, em Portugal,<br />
Maria Teresa de Áustria. Ou então o Rei-Sol,<br />
Luís XIV da França, protótipo do francês no que este<br />
povo teve de mais brilhante, de mais magnífico, de mais<br />
estupendo. Quando Santa Margarida Maria<br />
Alacoque recebeu do Sagrado Coração de<br />
Jesus o encargo de levar uma mensagem a<br />
Luís XIV, a fim de estimular no seu reino a<br />
devoção a Ele, Nosso Senhor pronunciou<br />
estas palavras iniciais: “Diga ao meu amigo,<br />
o Rei de França...”, etc. E os intérpretes<br />
muito se aplicaram para compreender em<br />
que sentido Luís XIV foi então chamado de<br />
“meu amigo” por Jesus.<br />
Na realidade, Nosso Senhor o considerava<br />
seu amigo pelo fato de ele ser o monarca e o<br />
arquétipo da França, a nação querida da Providência.<br />
Enquanto expressão máxima desse<br />
povo, Deus o estimava com aquela predileção<br />
gratuita e insondável com que Ele amava<br />
a nação primogênita da Cristandade.<br />
D. Pedro II, “avô” do Brasil,<br />
cercado da Família Imperial<br />
Dom Pedro II,<br />
arquétipo do Brasil<br />
Insignes figuras de arquétipos surgiram<br />
também no continente colonizado por Espanha<br />
e Portugal.<br />
Por exemplo, o povo brasileiro, na época<br />
do Segundo Reinado, constituía indiscutivelmente<br />
uma sociedade em que a organização<br />
da família era ainda muito viva e pujante.<br />
Tal organização convém de modo perfeito<br />
à índole afetiva de meus patrícios.<br />
Ora, o velho Imperador D. Pedro II, com<br />
sua barba e cabelos brancos, aspecto respeitável,<br />
venerável, mas bondoso, foi durante<br />
30
Filipe II,<br />
Rei de Espanha,<br />
uma das mais<br />
extraordinárias<br />
figuras<br />
de arquétipos<br />
surgidos ao longo<br />
da História<br />
Filipe II<br />
D. Pedro II<br />
representou de<br />
modo ímpar o<br />
arquétipo do<br />
povo brasileiro,<br />
que se comprazia<br />
em tomá-lo como<br />
sendo o “vovô”<br />
de sua nação<br />
D. Pedro II<br />
em traje de coroação<br />
31
PERSPECTIVA PLINIANA DA HISTÓRIA<br />
décadas o arquétipo do Brasil. Porém, um arquétipo a<br />
la “vovô”. E o Brasil sentiu delícias em ser “neto” de<br />
Dom Pedro II. O modo pelo qual ele dirigia a política<br />
nacional era inteligente e recheado de jeitinhos, tão do<br />
agrado dessa gente que não vê com bons olhos o emprego<br />
da força para solucionar seus problemas.<br />
Monarca constitucional, os poderes de<br />
D. Pedro II eram reduzidos pelas leis<br />
do Estado. Entretanto, governante<br />
esperto e sagaz, servia-se ele do<br />
prestígio imperial para negociar<br />
por fora o curso da Política,<br />
de tal maneira que o<br />
parlamentar número 1 do<br />
país era ele. E com tanto<br />
zelo se empenhou nas<br />
suas ações, que seu reinado<br />
representou para<br />
o Brasil um longo período<br />
de paz e grande<br />
prosperidade. Chegou<br />
a ser, ao lado dos Estados<br />
Unidos, uma das<br />
maiores nações americanas,<br />
com sua marinha<br />
mercante ocupando<br />
o segundo lugar no<br />
mundo.<br />
Aos adversários que o<br />
censuravam por exercer,<br />
juntos, o poder constitucional<br />
e o pessoal, o Imperador<br />
respondia: “Eu não me desvio<br />
uma linha da Constituição, pois nada<br />
me impede de ter influência política.<br />
Se um parlamentar me procura e pede<br />
um conselho, eu o atendo e, assim, cumpro<br />
com minha obrigação. Se a minha orientação o convence,<br />
é porque ela foi eficaz. Vocês têm algo contra isso?”<br />
Os inimigos vociferavam, pois eles não podiam enfrentar<br />
a força moral do Imperador. E D. Pedro II usou<br />
dessa força até o fim do regime monárquico. Sem nenhuma<br />
dúvida, ele representou arquetipicamente o<br />
brasileiro.<br />
Garcia Moreno, modelo dos<br />
hispano-americanos<br />
Gabriel Garcia Moreno<br />
– Fé, firmeza e elevação<br />
de alma, num varão que<br />
se tornou o arquétipo<br />
de todo o povo<br />
hispano-americano<br />
Termino recordando o exemplo de uma grande personalidade<br />
que foi o arquétipo, não apenas de seu país,<br />
mas de toda uma família de povos: Garcia Moreno, Presidente<br />
da República do Equador.<br />
Com os traços físicos característicos do hispano nascido<br />
no norte da América do Sul, nele sobressaem a<br />
profundidade de espírito, a firmeza, a lógica de pensamento,<br />
o domínio sobre si mesmo e uma permanente<br />
mobilização de todo o seu ser para cumprir um dever<br />
muito árduo, que brilha na sua pessoa revestida do uniforme<br />
de chefe de Estado, com que ele se fez fotografar<br />
ou pintar mais de uma vez.<br />
Sobretudo, nele reluzem a Fé católica<br />
apostólica romana, a afinidade com a<br />
Igreja, a elevação de alma para as<br />
coisas sobrenaturais, sem dúvida<br />
infundida pela graça, mas que<br />
encontra um ponto de inserção<br />
na natureza. Tudo isso<br />
Garcia Moreno possuía de<br />
modo esplêndido, tornando-se<br />
assim o arquétipo<br />
do equatoriano e de todo<br />
o povo sul-americano<br />
de origem hispânica,<br />
com eventualmente<br />
alguma miscigenação<br />
indígena.<br />
Cumpre dizer, como<br />
fundamento de mais<br />
um louvor a esse extraordinário<br />
personagem,<br />
que é próprio das pessoas<br />
em cujas veias corre<br />
essa mistura de sangue,<br />
um pendor para o sonho de<br />
olhos abertos, para o sentimentalismo,<br />
para a moleza e a<br />
inconstância. Mas, é próprio do<br />
católico, quando ele nasce com essas<br />
inclinações, virá-las pelo avesso e<br />
ser salientíssimo nas virtudes opostas. Não<br />
existem grandes povos que não tenham seus defeitos<br />
e más tendências nativos virados pelo avesso. Ou<br />
estes são levados no látego e na rédea curta, ou impõem<br />
seu jugo e nos dominam.<br />
E, a meu ver, a maior pulcritude de alma do Garcia<br />
Moreno é exatamente essa vitória sobre seus maus<br />
pendores. E até nisso foi um arquétipo, pois soube dobrar<br />
ao avesso os defeitos do povo dele — comuns com<br />
as lacunas de todas as nações desse continente —, realizando<br />
o melhor do desígnio divino a respeito do<br />
Equador.<br />
Arquétipo, ainda, no seu martírio, posto ter sido assassinado<br />
por ódio à Fé católica, em cuja defesa empregou<br />
a mesma admirável intransigência com que modelou<br />
sua nobre e magnífica alma.<br />
Aí estão alguns interessantes exemplos de arquétipos<br />
surgidos ao longo da História.<br />
32
LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
E<br />
xpressiva característica<br />
das grandes construções<br />
medievais é o fato<br />
de elas solicitarem, de quem as contempla,<br />
o tributo de um eminente e<br />
abnegado amor, estimando-as mais<br />
do que a si próprio. Exemplo disso<br />
é a belíssima Catedral de Notre-<br />
Dame de Paris, que manifesta, ante<br />
os que dela se aproximam, perene<br />
convite para essa superior dileção.<br />
O mesmo pedido nos é feito, à<br />
maneira de sussurro, por outra pre-<br />
ciosa jóia de arquitetura, esta já não<br />
medieval, mas que conserva algo de<br />
medievalizante: o castelo de Chambord.<br />
Quando o visitei, em fins de 1988,<br />
tive ocasião de ali perceber restos<br />
da graça que soprou sobre a Europa<br />
e deu origem à Idade Média,<br />
pondo-se séculos depois, lentamente,<br />
como um sol esplendoroso.<br />
Chambord é uma das irradiações<br />
desse ocaso da Cristandade medieval,<br />
mas um ocaso magnífico, como<br />
magnífica é também a Cristandade.<br />
Durante minha visita, voltei a vista<br />
continuamente para esta consideração:<br />
cada detalhe do castelo espelha<br />
de modo esplêndido o espírito<br />
católico, ainda que sob a forma de<br />
um glorioso crepúsculo. No fundo,<br />
eu contemplava em Chambord cintilações<br />
da Santa Igreja Católica, à<br />
qual amamos de um amor tão imenso,<br />
que este amor se torna a razão e<br />
o fundamento de todas as nossas de-<br />
33
LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
mais benquerenças. E é porque a alma católica me encanta,<br />
é porque nela discirno o reluzimento do Divino<br />
Espírito Santo, que me apraz admirar Chambord.<br />
Nesse castelo, tudo é amabilidade, harmonia, leveza,<br />
elegância, força e coragem. Ora, é a graça de<br />
Deus que concede aos homens a possibilidade de<br />
serem assim e de imprimirem nas suas obras reflexos<br />
desses predicados. E a graça lhes vem através da Igreja<br />
Católica, de seus ensinamentos, de seu apostolado e<br />
maternal influência. Graças e influxo materno que,<br />
em Chambord, tocaram profundamente minha sensibilidade.<br />
“Chambord<br />
é uma das irradiações do<br />
magnífico ocaso da<br />
Cristandade medieval”<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> contemplando o castelo,<br />
durante sua visita em 1988<br />
Essa maravilha que eu sonhava<br />
em conhecer, achava-se fechada aos<br />
turistas na tarde em que ali cheguei.<br />
Sozinha, silenciosa, envolta nas<br />
discretas penumbras do pré-anoitecer<br />
que começava. O conjunto refletia<br />
aquela espécie de poesia, de tristeza<br />
e de beleza especiais das coisas<br />
abandonadas. Separava-me do castelo<br />
um terreno coberto por uma erva<br />
que nasceu de modo mais ou<br />
menos fortuito, mas que adquiriu<br />
extraordinário encanto, realçado<br />
aqui e ali por graciosas florzinhas<br />
brancas surgindo inocentemente da<br />
relva.<br />
À direita, destacava-se uma capelinha<br />
de gótico flamboyant, do século<br />
passado, em perfeita harmonia<br />
com o estilo de Chambord.<br />
A floresta, sobre a qual incidia<br />
uma luminosidade amena, pareceume<br />
de rara beleza, imersa em suave<br />
e discreta melancolia. Contemplando<br />
aquelas árvores, tinha-se a impressão<br />
de ver um mundo de personagens<br />
que participaram de toda<br />
a existência áurea de Chambord, e<br />
que agora se encontravam para<br />
além do rio que nos separa da eternidade,<br />
considerando com certo pesar<br />
a derrota de tudo quanto eles<br />
conheceram e representaram.<br />
Já o castelo, com sua imensa beleza,<br />
altivez e fantasia, erguia-se à<br />
maneira de um grand-seigneur passeando<br />
por seus domínios. Hierático,<br />
algum tanto distante do mundo<br />
ao seu redor, um grand-seigneur<br />
que, no mesmo dia, pela manhã tomou<br />
parte numa batalha, à tarde recebeu<br />
convidados para uma festa na<br />
34
qual dançou, e no fim da noite se<br />
pôs a caminhar sozinho pela floresta.<br />
E leva consigo alguma coisa da<br />
batalha, da dança e do mato.<br />
O que tem o castelo?<br />
Proporções muito bonitas e um<br />
universo de chaminés de tamanhos<br />
variegados, surdindo como champignons<br />
por toda parte, numa verdadeira<br />
feeria de pequenas cúpulas<br />
e torres, algumas maiores, outras<br />
menores, causando a impressão de<br />
que um certo húmus passou do solo<br />
para o castelo, e deste para o ar.<br />
Esse húmus, indescritível, é o responsável<br />
pela grande fantasia que<br />
existe em Chambord, emoldurada<br />
por uma regra, uma linha e uma<br />
harmonia que nos deixam encantados.<br />
De vez em quando, o silêncio<br />
daqueles instantes era interrompido<br />
por diferentes piados de pássaros.<br />
Ora era um longo trinado, como se<br />
do fundo dos séculos algo dissesse:<br />
“Eu ainda vivo!” Ora era uma ave<br />
que, perseguida por outra, exalava<br />
um grito de desespero, atraindo<br />
nossa atenção para uma espécie de<br />
pungente e oculto drama que se<br />
desenrolava no meio daquele arvoredo.<br />
Dali a pouco os pássaros emudeciam,<br />
o silêncio se recompunha em<br />
“Em Chambord tudo é amabilidade,<br />
harmonia, leveza,<br />
elegância, força e coragem...”<br />
torno do castelo, e Chambord continuava<br />
seu velho sonho, triste, digno,<br />
seguro de si mesmo e abandonado.<br />
E as penumbras do entardecer,<br />
e as derradeiras incidências de um<br />
lindo crepúsculo, tremeluzindo sobre<br />
um extenso gramado de relva<br />
selvagem, mal plantada mas que deveria<br />
ser assim — tudo se tornava<br />
úmido de absoluto, impregnado de<br />
graças celestiais.<br />
Sim, mais uma vez é a graça que<br />
nos faz admirar em Chambord o<br />
que, sem o auxílio dela, não nos seria<br />
perceptível. São expressões do<br />
castelo, são impressões e sentimentos<br />
que ele só transmite a quem é<br />
favorecido com essa assistência sobrenatural.<br />
E deixamos o tempo transcorrer<br />
ali com a intenção de vislumbrar a<br />
graça como uma luz acesa no interior<br />
de Chambord. O próprio castelo<br />
seria o abat-jour, esplendoroso,<br />
extraordinário, porém o mais aprazível<br />
era considerar essa luz celeste<br />
que acentua sua inenarrável beleza,<br />
sua tranqüilidade recolhida, sua majestade.<br />
Era impossível que Chambord fosse<br />
tão belo, tão perfeito, e que Deus<br />
não estivesse presente ali. Era impossível<br />
que aquele castelo possuísse<br />
essa perfeição e essa beleza, se<br />
estas não fossem fruto das lágrimas<br />
de Maria e do preciosíssimo sangue<br />
de Nosso Senhor Jesus Cristo.<br />
35
Ao pronunciar<br />
seu “fiat” para a<br />
Encarnação do<br />
Verbo, Nossa Senhora<br />
concebeu do Espírito<br />
Santo e passou a<br />
formar em suas<br />
imaculadas entranhas o<br />
Filho de Deus. A<br />
geração da humanidade<br />
santíssima de Nosso<br />
Senhor Jesus Cristo<br />
deve ter sido admirável,<br />
a maravilha das<br />
gerações!<br />
Jesus é considerado<br />
o novo Adão, que veio<br />
ao mundo para reparar<br />
o pecado cometido pelo<br />
primeiro homem. Ora,<br />
assim como este,<br />
enquanto permaneceu<br />
inocente, viveu em<br />
meio aos esplendores<br />
do Éden Terrestre,<br />
também Nosso Senhor<br />
teve seu Paraíso,<br />
incomparavelmente<br />
melhor e mais precioso<br />
do que aquele: o<br />
claustro virginal de sua<br />
Mãe.<br />
Sim, Jesus se achava<br />
em estado paradisíaco<br />
durante os noves meses<br />
que passou no interior<br />
de Nossa Senhora,<br />
<strong>Plinio</strong> Corrêa de Oliveira<br />
como num<br />
tabernáculo<br />
perfeitíssimo, onde<br />
encontrava<br />
alegrias, belezas e<br />
delícias de que<br />
eram pálidos<br />
símbolos as<br />
conhecidas por<br />
Adão. Além disso,<br />
numa inefável<br />
união de espíritos,<br />
o Filho ia<br />
revelando à Mãe, a<br />
respeito de Si<br />
próprio, todas as<br />
magnificências que<br />
fossem cabíveis a<br />
uma criatura<br />
entender. Nesse<br />
indizível convívio,<br />
Jesus elevava a<br />
alma de Maria a<br />
um inimaginável<br />
grau de<br />
formosura,<br />
tornando-a mais<br />
bela e luminosa do<br />
que todo o resto<br />
do universo!<br />
Maria, o Paraíso do novo Adão