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MUHM - Museu de História da Medicina

Um acervo vivo que faz ponte entre o ontem e o hoje.

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© Copyright: dos autores<br />

1ª edição: 2016<br />

Direitos reservados <strong>de</strong>sta edição<br />

<strong>Museu</strong> <strong>de</strong> <strong>História</strong> <strong>da</strong> <strong>Medicina</strong> do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul<br />

Fotos:<br />

Eduardo Rocha, Letícia Castro, Juliane Soska e Equipe do Setor Educativo <strong>MUHM</strong>.<br />

Revisão linguística<br />

Felícia Volkweis<br />

Produção gráfica e impressão<br />

Evangraf<br />

(51) 3336.2466<br />

Dados Internacionais <strong>de</strong> Catalogação na Publicação (CIP)<br />

M986 <strong>Museu</strong> <strong>de</strong> <strong>História</strong> <strong>da</strong> <strong>Medicina</strong> – <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz<br />

ponte entre o ontem e o hoje / Dr. Paulo <strong>de</strong> Argollo Men<strong>de</strong>s<br />

[prefácio]; Éverton Reis Quevedo, Angela Beatriz Pomatti<br />

(organizadores). – Porto Alegre : Evangraf, 2016.<br />

248 p. : il.<br />

Inclui bibliografia.<br />

ISBN 978-85-7727-837-4<br />

1. <strong>Medicina</strong> - <strong>História</strong> - Rio Gran<strong>de</strong> do Sul. 2. <strong>Medicina</strong> - <strong>Museu</strong>s<br />

- Rio Gran<strong>de</strong> do Sul. 3. <strong>Museu</strong> <strong>de</strong> <strong>História</strong> <strong>da</strong> <strong>Medicina</strong> do Rio<br />

Gran<strong>de</strong> do Sul. I. Quevedo, Éverton Reis. II. Pomatti, Angela Beatriz.<br />

III. Men<strong>de</strong>s, Paulo <strong>de</strong> Argollo.<br />

CDU 61(816.5)(091)<br />

CDD 610.98165<br />

(Bibliotecária responsável: Sabrina Leal Araujo – CRB 10/1507)


Porto Alegre, 2016


Realização:<br />

Patrocínio:


SIMERS<br />

Presi<strong>de</strong>nte:<br />

Dr. Paulo <strong>de</strong> Argollo Men<strong>de</strong>s<br />

Vice-Presi<strong>de</strong>nte:<br />

Dra. Maria Rita <strong>de</strong> Assis Brasil<br />

Secretário:<br />

Dra. Aria<strong>de</strong>ne Beatriz Porciuncula Duarte<br />

Tesoureiro:<br />

Dr. André Luiz Borba Gonzales<br />

AA<strong>MUHM</strong><br />

Presi<strong>de</strong>nte:<br />

Nereu Adilar Passaia<br />

Vice:<br />

Dr. Jorge Abib Cury<br />

Secretária:<br />

Dra. Aria<strong>de</strong>ne Beatriz Porciuncula Duarte<br />

Tesoureiro:<br />

Diego Proença Baisch<br />

<strong>MUHM</strong><br />

Diretor Geral:<br />

Dr. Germano Mostar<strong>de</strong>iro Bonow<br />

Diretor Técnico:<br />

Dr. Éverton Reis Quevedo<br />

Coor<strong>de</strong>nação <strong>de</strong> Acervo e Pesquisa:<br />

Me. Angela Beatriz Pomatti<br />

Coor<strong>de</strong>nação do Setor Educativos:<br />

Me. Gláucia Giovana Lixinski <strong>de</strong> Lima Kulzer<br />

Coor<strong>de</strong>nação <strong>de</strong> Projetos:<br />

Vanessa Corrêa Duso


Prefácio<br />

Dr. PAULO DE ARGOLLO MENDES<br />

Presi<strong>de</strong>nte do Sindicato Médico do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul - SIMERS


S<br />

empre em <strong>de</strong>fesa <strong>da</strong> categoria médica e <strong>da</strong> saú<strong>de</strong><br />

pública, o Sindicato Médico do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul<br />

(SIMERS), ao longo <strong>de</strong> sua história, dinamizou sua<br />

atuação agindo em frentes distintas. O <strong>Museu</strong> <strong>de</strong> <strong>História</strong> <strong>da</strong><br />

<strong>Medicina</strong> do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul (<strong>MUHM</strong>) é uma <strong>de</strong>ssas frentes,<br />

pois acreditamos no potencial <strong>da</strong> trajetória <strong>da</strong> medicina no<br />

estado para explicar a socie<strong>da</strong><strong>de</strong> e os seus mecanismos.<br />

O acervo <strong>da</strong> instituição é resultado <strong>de</strong> uma construção<br />

coletiva <strong>de</strong> profissionais do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul comprometidos<br />

com a memória médica. Com uma soma superior a 10 mil documentos,<br />

5 mil livros e 2 mil objetos, todos recebidos através<br />

<strong>de</strong> doações, tal acervo traz uma importante retrospectiva dos<br />

processos <strong>de</strong> adoecimento e cura bem como dos profissionais<br />

médicos envolvidos, oportunizando uma reflexão constante<br />

do público ao visitar o espaço expositivo do <strong>Museu</strong>.<br />

Ao longo <strong>de</strong> sua atuação, o <strong>Museu</strong> recebeu mais <strong>de</strong> 52<br />

mil visitantes, entre grupos, escolas e universi<strong>da</strong><strong>de</strong>s, que, passando<br />

por suas salas e participando <strong>de</strong> suas ações educativas,<br />

conheceram mais <strong>da</strong> história médica.<br />

Há <strong>de</strong>z anos investindo na preservação e difusão do patrimônio<br />

médico do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul, é com prazer que o<br />

SIMERS, a partir do Ministério <strong>da</strong> Cultura, apresenta à comuni<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

esta obra que, mais do que comemorativa, preten<strong>de</strong> ser<br />

uma fonte importante para a história do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul.


Sumário


INTRODUÇÃO......................................................................10<br />

PARA ALÉM DA MEDICINA DA ALMA: as artes <strong>de</strong><br />

curar na obra paraguay natural ilustrado,<br />

<strong>de</strong> José Sánchez Labrador, SJ<br />

Eliane Cristina Deckmann Fleck............................................12<br />

A MEDICINA MISSIONEIRA ENTRE A CIÊNCIA<br />

EUROPEIA E OS SABERES NATIVOS<br />

Roberto Poletto......................................................................24<br />

MEDICINA E CARIDADE: a construção dos serviços <strong>de</strong><br />

assistência à saú<strong>de</strong> <strong>da</strong> população<br />

Nikelen Acosta Witter............................................................40<br />

MEDICINA MILITAR NO RIO GRANDE DO SUL<br />

Blau Fabrício <strong>de</strong> Souza..........................................................56<br />

O ENSINO MÉDICO NO RIO GRANDE DO SUL<br />

Maria Beatriz M. Targa e Germano Mostar<strong>de</strong>iro Bonow ........72<br />

O SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE (SUS)<br />

Germano Mostar<strong>de</strong>iro Bonow ..............................................94<br />

MÉDICOS ALEMÃES, HÚNGAROS E AUSTRÍACOS NO<br />

RIO GRANDE DO SUL<br />

Claus Michael Preger, médico.............................................112<br />

A CONTRIBUIÇÃO DOS MÉDICOS ITALIANOS PARA<br />

A MEDICINA DO RIO GRANDE DO SUL<br />

Leonor Carolina Baptista Schwartsmann..............................144<br />

LUCIANO RAUL PANATIERI E VERIDIANO FARIAS: a<br />

trajetória <strong>de</strong> dois médicos negros sul-rio-gran<strong>de</strong>nses<br />

Arilson dos Santos Gomes...................................................156<br />

MÉDICOS JUDEUS NO RIO GRANDE DO SUL<br />

Lorena Almei<strong>da</strong> Gill e Micaele Irene Scheer........................172<br />

A PRESERVAÇÃO DA MEMÓRIA MÉDICA: o lugar<br />

do <strong>Museu</strong> <strong>de</strong> <strong>História</strong> <strong>da</strong> <strong>Medicina</strong> do<br />

Rio Gran<strong>de</strong> do Sul<br />

Juliane Conceição Primon Serres,<br />

Éverton Reis Quevedo,<br />

Angela Beatriz Pomatti e<br />

Gláucia Giovana Lixinski <strong>de</strong> Lima Kulzer............................184


Introdução


N<br />

o No ano <strong>de</strong> 2016 o <strong>Museu</strong> <strong>de</strong> <strong>História</strong> <strong>da</strong> <strong>Medicina</strong> do Rio Gran<strong>de</strong><br />

do Sul (<strong>MUHM</strong>) completará 10 anos <strong>de</strong> existência e temos a alegria<br />

<strong>de</strong> comemorar esta <strong>da</strong>ta com a publicação <strong>de</strong>ste livro que, além<br />

<strong>da</strong> temática que é o cerne <strong>de</strong> sua existência, a história <strong>da</strong> medicina, abor<strong>da</strong><br />

também os preceitos próprios <strong>de</strong> conservação, pesquisa e divulgação dos<br />

acervos <strong>da</strong> instituição.<br />

Tais questões são <strong>de</strong> fun<strong>da</strong>mental importância para o <strong>Museu</strong>, visto<br />

que se relacionam diretamente com a sua missão, centra<strong>da</strong> na promoção<br />

do interesse pela <strong>História</strong> <strong>da</strong> <strong>Medicina</strong> e <strong>da</strong> Saú<strong>de</strong>, como ferramenta para a<br />

compreensão e ação sobre a reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, através <strong>da</strong> promoção <strong>da</strong> preservação,<br />

investigação e divulgação do patrimônio cultural médico.<br />

Esta obra buscou ampliar as possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> divulgação do conhecimento<br />

sobre a <strong>História</strong> <strong>da</strong> <strong>Medicina</strong> no Rio Gran<strong>de</strong> do Sul, através <strong>de</strong> um<br />

seleto grupo <strong>de</strong> pesquisadores e renomados profissionais <strong>da</strong> área.


Para além <strong>da</strong> medicina <strong>da</strong> alma<br />

PARA ALÉM DA<br />

MEDICINA DA ALMA:<br />

as artes <strong>de</strong> curar na obra<br />

Paraguay Natural Ilustrado,<br />

<strong>de</strong> José Sánchez Labrador, SJ<br />

(América Platina, Século XVIII) 1<br />

ELIANE CRISTINA DECKMANN FLECK<br />

Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS<br />

1 Este texto constitui-se em resultado do projeto <strong>de</strong> pesquisa “A ciência por escrito, i<strong>de</strong>ias em movimento: um estudo <strong>de</strong> obras e <strong>de</strong><br />

trajetórias <strong>de</strong> naturalistas e <strong>de</strong> médicos (América meridional, séculos XVIII, XIX e XX)”, que conta com o apoio do CNPq, através do<br />

Edital Universal e <strong>de</strong> Bolsa <strong>de</strong> Produtivi<strong>da</strong><strong>de</strong> em Pesquisa (Pq 2), e vem sendo <strong>de</strong>senvolvido junto ao Programa <strong>de</strong> Pós-Graduação<br />

em <strong>História</strong> <strong>da</strong> UNISINOS. Agra<strong>de</strong>ço à bolsista UNIBIC Mariana Alliatti Joaquim, que <strong>de</strong>senvolve subprojeto <strong>de</strong> pesquisa sobre a<br />

trajetória do padre jesuíta José Sánchez Labrador, pela inestimável colaboração a esta investigação.<br />

12<br />

MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje


À<br />

Para além <strong>da</strong> medicina <strong>da</strong> alma<br />

GUISA DE INTRODUÇÃO<br />

Apesar <strong>da</strong> significativa contribuição dos jesuítas para a<br />

<strong>de</strong>scrição <strong>da</strong> natureza e dos costumes <strong>da</strong>s gentes do Novo<br />

Mundo, poucos foram os historiadores que se <strong>de</strong>dicaram a<br />

analisá-los levando em conta seu papel na história intelectual<br />

do Renascimento e dos inícios <strong>da</strong> era mo<strong>de</strong>rna. As pesquisas,<br />

em sua maioria, têm se <strong>de</strong>bruçado sobre as estratégias <strong>de</strong><br />

catequese e <strong>de</strong> controle emprega<strong>da</strong>s pelos irmãos e padres<br />

jesuítas sobre as populações indígenas, <strong>de</strong>dicando-se, preferencialmente,<br />

à análise <strong>de</strong> sua atuação como religiosos.<br />

Estudos mais recentes sobre a “ciência jesuíta” – tanto<br />

os realizados na Europa quanto na América – apontam para a<br />

<strong>de</strong>cisiva atuação <strong>de</strong> irmãos e padres <strong>da</strong> Companhia na implantação<br />

<strong>de</strong> uma cultura científica nas terras <strong>de</strong> missão americanas<br />

2 e, também, para a indiscutível contribuição dos indígenas<br />

na difusão <strong>de</strong>ste conhecimento científico, através <strong>da</strong> eficiente<br />

“re<strong>de</strong> <strong>de</strong> agentes <strong>da</strong> Companhia” encarrega<strong>da</strong> <strong>de</strong> promover<br />

sua circulação entre os colégios jesuíticos <strong>da</strong> América e os <strong>da</strong><br />

Europa (FIGUEROA; LEDEZMA, 2005, p. 28).<br />

Este último aspecto é <strong>de</strong>stacado por Sabine Anagnostou,<br />

para quem, se, por um lado, “a história natural e a farmácia<br />

missioneira po<strong>de</strong>m ser consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong>s como as duas facetas principais<br />

do naturalismo jesuítico na América do Sul”, por outro,<br />

2 Uma excelente discussão sobre esta temática po<strong>de</strong> ser encontra<strong>da</strong> em: ASÚA,<br />

Miguel <strong>de</strong>. La ciencia <strong>de</strong> Mayo: la cultura científica en el Río <strong>de</strong> la Plata, 1800-1820.<br />

Buenos Aires: Fondo <strong>de</strong> Cultura Económica, 2010.<br />

MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje 13


Para além <strong>da</strong> medicina <strong>da</strong> alma<br />

não <strong>de</strong>vem ser percebi<strong>da</strong>s como “precursoras <strong>de</strong>ficientes <strong>da</strong>s<br />

ciências atuais ou como cópias insuficientes dos mo<strong>de</strong>los europeus,<br />

mas como formas in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes e singulares <strong>da</strong> história<br />

<strong>da</strong> ciência” (ANAGNOSTOU; FECHNER, 2011, p. 175). Esta<br />

singulari<strong>da</strong><strong>de</strong>, segundo ela, fica evi<strong>de</strong>ncia<strong>da</strong> na “experimentação<br />

e na incorporação do saber etnofarmacêutico indígena”,<br />

<strong>de</strong>corrente <strong>da</strong> “posição relativamente imparcial e aberta dos<br />

jesuítas frente aos indígenas, basea<strong>da</strong> na espirituali<strong>da</strong><strong>de</strong> inaciana”,<br />

que possibilitou “um intercâmbio intenso e persistente<br />

no campo <strong>da</strong> medicina.” (ANAGNOSTOU; FECHNER, 2011, p.<br />

190). Encarregados também <strong>da</strong>s cópias <strong>de</strong> cartilhas com orientações<br />

para que os efeitos do contágio durante epi<strong>de</strong>mias fossem<br />

evitados ou minimizados, <strong>de</strong> fórmulas <strong>de</strong> medicamentos<br />

– recolhi<strong>da</strong>s diligentemente em receituários – e <strong>de</strong> obras <strong>de</strong><br />

botânica, medicina e cirurgia, muitos <strong>de</strong>stes indígenas copistas<br />

tornaram possíveis a troca e a disseminação <strong>de</strong> uma série <strong>de</strong><br />

saberes e práticas <strong>de</strong> cura entre as distintas e distantes terras<br />

<strong>de</strong> missão <strong>da</strong> Companhia <strong>de</strong> Jesus. 3<br />

Os argumentos expostos nestes recentes trabalhos justificam<br />

a realização <strong>de</strong> estudos que privilegiem a reconstituição<br />

<strong>da</strong> trajetória intelectual <strong>de</strong> alguns padres e irmãos <strong>da</strong> Or<strong>de</strong>m<br />

que se <strong>de</strong>dicaram à ciência bem como à análise dos manuscritos<br />

por eles redigidos que atestam os conhecimentos acumulados<br />

pela Companhia <strong>de</strong> Jesus durante os três séculos em<br />

que estiveram na América. Nesta perspectiva, os tratados <strong>de</strong><br />

botânica médica e <strong>de</strong> cirurgia, os receituários, os medicamentos,<br />

utensílios e instrumentos empregados nas artes <strong>de</strong> curar,<br />

que se encontram relacionados nos inventários <strong>da</strong>s bibliotecas<br />

e boticas realizados logo após a expulsão <strong>da</strong> Or<strong>de</strong>m, parecem,<br />

efetivamente, comprovar que padres e irmãos jesuítas promoveram<br />

a circulação <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ias – através <strong>da</strong> formação <strong>de</strong> re<strong>de</strong>s<br />

<strong>de</strong> conhecimento – e <strong>de</strong> experimentalismos que vali<strong>da</strong>ram ou<br />

contestaram práticas e saberes vigentes ao longo do Setecentos<br />

e do Oitocentos.<br />

Entre os jesuítas que se <strong>de</strong>dicaram, especificamente, à<br />

Botânica médica, se encontra o irmão Pedro Montenegro,<br />

autor <strong>da</strong> Materia medica misionera, escrita originalmente em<br />

3 Sobre esta temática, recomen<strong>da</strong>-se ver: DI LISCIA, María Silvia. Introducción. La<br />

medicina indígena como clave <strong>de</strong> interpretación religiosa, política y científica. In:<br />

DI LISCIA, María Silvia. Saberes, terapias y prácticas médicas en Argentina (1750-<br />

1910). Madrid: Consejo Superior <strong>de</strong> Investigaciones Científicas, 2002.<br />

1710. 4 Existe, ain<strong>da</strong>, uma cópia manuscrita <strong>da</strong> Materia medica<br />

misionera, com <strong>da</strong>ta <strong>de</strong> 1790, que se encontra no Acervo do<br />

Instituto Anchietano <strong>de</strong> Pesquisas (IAP), <strong>da</strong> UNISINOS. Esta<br />

versão não conta com os <strong>de</strong>senhos presentes no original, e,<br />

ao que tudo indica, foi copia<strong>da</strong> por uma pessoa pouco letra<strong>da</strong>,<br />

haja vista as incorreções gramaticais, como observado pelo padre<br />

Bartolomeu Melià, em anotação feita à mão, com <strong>da</strong>ta <strong>de</strong><br />

1986, no frontispício: “El presente manuscrito parece ser <strong>de</strong> la<br />

época y está escrito por quien no domina la lengua castellana,<br />

y asi podría ser un índio misionero”. 5<br />

Alguns <strong>de</strong>stes manuscritos, contudo, ain<strong>da</strong> se mantêm<br />

inéditos, como é o caso do Tratado <strong>de</strong> cirugía, também atribuído<br />

a Pedro Montenegro, e o Paraguay Natural Ilustrado, <strong>de</strong><br />

José Sánchez Labrador. É sobre este último manuscrito e sobre<br />

seu autor que este capítulo tratará. Na obra Paraguay Natural<br />

Ilustrado, Labrador apresenta informações sobre geografia,<br />

geologia, zoologia e botânica <strong>da</strong> vasta região que compreendia<br />

a então Província Jesuítica do Paraguay. Assim como Montenegro<br />

6 , Sánchez Labrador também se <strong>de</strong>dicou ao inventário<br />

<strong>de</strong> enfermi<strong>da</strong><strong>de</strong>s e <strong>de</strong> virtu<strong>de</strong>s terapêuticas <strong>de</strong> certas plantas<br />

medicinais nativas americanas, no entanto, diferentemente do<br />

irmão jesuíta, ele se propôs a escrever um compêndio <strong>da</strong> flora<br />

americana, que contemplasse critérios <strong>de</strong> classificação próprios<br />

<strong>da</strong> botânica, tais como taxonomia, morfologia, anatomia<br />

e, também, aspectos etnobotânicos e relativos aos tratos culturais,<br />

que, até o momento, eram tratados isola<strong>da</strong>mente por<br />

outros cientistas.<br />

4 Uma versão do texto <strong>de</strong> Pedro <strong>de</strong> Montenegro, que mantém sua <strong>de</strong>nominação<br />

original – Libro primero <strong>de</strong> la propie<strong>da</strong>d y virtu<strong>de</strong>s <strong>de</strong> los arboles i plantas <strong>de</strong> las misiones<br />

y provincias <strong>de</strong> Tucumán con algunas <strong>de</strong>l Brasil y <strong>de</strong>l Oriente –, se encontra<br />

guar<strong>da</strong><strong>da</strong> na Biblioteca Nacional <strong>de</strong> Madri. Sabe-se que a primeira versão impressa<br />

<strong>de</strong>sta obra foi publica<strong>da</strong> em 1888, por Ricardo Trelles, na Revista Patriótica Del<br />

Pasado Argentino.<br />

5 Sobre a atuação do irmão jesuíta Pedro Montenegro e sobre a Materia medica misionera,<br />

recomen<strong>da</strong>-se ver mais em: FLECK, Eliane Cristina Deckmann. Entre a cari<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

e a ciência: a prática missionária e científica <strong>da</strong> Companhia <strong>de</strong> Jesus (América platina,<br />

séculos XVII e XVIII). São Leopoldo, RS: Editora Oikos, 2014. Disponível em: ; e FLECK, Eliane Cristina Deckmann; RODRI-<br />

GUES, Luiz Fernando Me<strong>de</strong>iros; MARTINS, Maria Cristina Bohn. Enlaçar mundos – três<br />

jesuítas e suas trajetórias no Novo Mundo. São Leopoldo, RS: Oikos Editora, 2014.<br />

Disponível em: <br />

6 Sobre as experiências com plantas medicinais realiza<strong>da</strong>s por missionários jesuítas nos<br />

séculos XVII e XVIII, recomen<strong>da</strong>-se ver mais em: FLECK, Eliane Cristina Deckmann. Da<br />

mística às luzes – medicina experimental nas reduções jesuítico-guaranis <strong>da</strong> Província<br />

Jesuítica do Paraguai. Revista Complutense <strong>de</strong> <strong>História</strong> <strong>de</strong> América, v. 32, p. 153-<br />

178, 2006; e FLECK, Eliane Cristina Deckmann; POLETTO, Roberto. “Esto es lo que yo<br />

buscaba [...] el conocimiento <strong>de</strong> las yerbas, y su aplicación”: sistematização e difusão<br />

dos conhecimentos sobre virtu<strong>de</strong>s <strong>de</strong> plantas medicinais (América meridional, séculos<br />

XVII e XVIII). Anos 90, Porto Alegre, v. 19, n. 35, p. 419-444, jul. 2012.<br />

14<br />

MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje


Para além <strong>da</strong> medicina <strong>da</strong> alma<br />

SOBRE SÁNCHEZ LABRADOR E A OBRA<br />

PARAGUAY NATURAL ILUSTRADO<br />

José Sánchez Labrador nasceu em La Guardia, ci<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> La Mancha, no dia 19 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 1714 ou 1717. De<br />

acordo com Ruiz Moreno, ingressou na Companhia <strong>de</strong> Jesus<br />

em 5 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 1731, e para Sainz Ollero, em 19 <strong>de</strong> setembro<br />

<strong>de</strong> 1732. Iniciou seus estudos <strong>de</strong> Filosofia no colégio<br />

<strong>de</strong> Valladolid, interrompendo-os para viajar ao Rio <strong>da</strong> Prata em<br />

1734, acompanhando o Padre Antonio Machoni. De 1734 a<br />

1739, estudou Filosofia e Teologia na Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Córdoba,<br />

or<strong>de</strong>nando-se no verão <strong>de</strong> 1739. Entre os anos <strong>de</strong> 1741 e<br />

1744, atuou como professor na mesma ci<strong>da</strong><strong>de</strong>, <strong>de</strong>dicando-se,<br />

concomitantemente, aos estudos <strong>de</strong> <strong>História</strong> Natural.<br />

Os autores afirmam que foi <strong>de</strong>vido a sua atuação como<br />

missionário em diversas regiões <strong>da</strong> Província do Paraguai que<br />

Sánchez Labrador pô<strong>de</strong> observar e estu<strong>da</strong>r a natureza americana.<br />

Entre 1747 e 1757, o padre jesuíta atuou junto às reduções<br />

<strong>de</strong> Yapeyu, Trini<strong>da</strong>d, Jesús, Loreto, San Ignacio Mini,<br />

San Ignacio Guazu, San Cosme y San Damián e San Lorenzo,<br />

convivendo, assim, com indígenas guaranis, zamucos, chiquitos,<br />

mbayás e guaicurús. A partir <strong>de</strong> 1757, passou a atuar em<br />

Apóstoles (Santos Apóstolos ou Apóstolos São Pedro e São<br />

Pablo), tendo como companheiros os padres Lorenzo Ovando<br />

e Segismundo Asperger; este último, reconhecido por sua atuação<br />

como médico e boticário.<br />

Em 14 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 1767, quando regressava <strong>de</strong> uma<br />

<strong>de</strong> suas viagens exploratórias 7 , foi informado do <strong>de</strong>creto <strong>da</strong> expulsão<br />

8 dos jesuítas <strong>da</strong> Espanha e <strong>de</strong> suas colônias. Em 1768 9 ,<br />

7 Segundo Furlong, é muito provável que Labrador tenha feito esta última viagem –<br />

antes <strong>da</strong> expulsão dos domínios espanhóis – em busca <strong>de</strong> um caminho que ligasse<br />

as reduções <strong>de</strong> Guaranis às <strong>de</strong> Chiquitos.<br />

8 Os jesuítas foram expulsos <strong>da</strong> Espanha e <strong>da</strong>s áreas coloniais do Império em 1767<br />

e suas proprie<strong>da</strong><strong>de</strong>s foram confisca<strong>da</strong>s, em cumprimento ao Decreto <strong>de</strong> 27 <strong>de</strong><br />

fevereiro, assinado por Carlos III. A expulsão <strong>da</strong> Companhia <strong>de</strong> Jesus fazia parte<br />

<strong>de</strong> um conjunto <strong>de</strong> reformas <strong>da</strong> Coroa espanhola, conhecido como Reformas<br />

Bourbônicas, que tinha como objetivo aumentar o controle do po<strong>de</strong>r real sobre<br />

os domínios ultramarinos. Antes <strong>de</strong> Carlos III, outro déspota esclarecido, D. José<br />

I, <strong>de</strong> Portugal, havia expulsado os jesuítas dos seus domínios, em 1759, também<br />

buscando subordinar o clero ao Estado. Os jesuítas, além <strong>de</strong> terem sido acusados<br />

<strong>de</strong> tentar construir um estado <strong>de</strong>ntro do estado e <strong>de</strong> criar intrigas contra o governo<br />

espanhol, eram pouco populares entre as <strong>de</strong>mais or<strong>de</strong>ns religiosas, sendo bastante<br />

vulneráveis em função <strong>de</strong> sua in<strong>de</strong>pendência e <strong>de</strong> serem os menos enraizados na<br />

socie<strong>da</strong><strong>de</strong> hispano-americana.<br />

9 José Sánchez Labrador e os outros cerca <strong>de</strong> dois mil jesuítas expulsos <strong>da</strong> América<br />

espanhola foram exilados e se estabeleceram em outras locali<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>da</strong> Europa.<br />

chegava à Itália. Em Ravena, on<strong>de</strong> se instalaria, exerceu a<br />

função <strong>de</strong> Superior <strong>de</strong> uma <strong>da</strong>s casas que os jesuítas possuíam<br />

na ci<strong>da</strong><strong>de</strong>, <strong>de</strong>dicando-se também à escrita <strong>de</strong> suas principais<br />

obras, o Paraguay Católico, publicado em 1910, e o Paraguay<br />

Natural Ilustrado, que permanece inédito até o momento.<br />

Sánchez Labrador morreu nesta mesma ci<strong>da</strong><strong>de</strong>, em 10 <strong>de</strong> outubro<br />

<strong>de</strong> 1798.<br />

Acredita-se que o Paraguay Natural Ilustrado tenha sido<br />

escrito entre 1771 e 1776. 10 Trata-se <strong>da</strong> obra que reúne, essencialmente,<br />

suas observações e seus conhecimentos sobre<br />

<strong>História</strong> Natural, obtidos através do estudo <strong>de</strong> obras <strong>de</strong> autori<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

clássicas e contemporâneas suas. A obra conta com<br />

100 ilustrações feitas pelo próprio autor e divi<strong>de</strong>-se em quatro<br />

partes. A primeira possui 558 páginas e divi<strong>de</strong>-se em três livros:<br />

Diversi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> terras e corpos terrestres; Água e várias<br />

coisas a ela pertencentes; e Ar, ventos, estações do ano, clima<br />

<strong>de</strong>stes países e enfermi<strong>da</strong><strong>de</strong>s mais comuns. A segun<strong>da</strong> parte<br />

conta com 500 páginas e trata, especificamente, <strong>da</strong> botânica.<br />

A terceira se divi<strong>de</strong> nos seguintes livros: animais quadrúpe<strong>de</strong>s<br />

(166 páginas); as aves (127 páginas); e os peixes (128 páginas).<br />

A quarta e última parte <strong>da</strong> obra, que possui 373 páginas,<br />

conta com os livros: os animais anfíbios; os animais répteis; e<br />

os insetos. É sobre o último livro <strong>da</strong> última parte <strong>da</strong> obra que<br />

nos <strong>de</strong>teremos na continui<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

AS VIRTUDES TERAPÊUTICAS DOS INSETOS<br />

Segundo Sánchez Labrador, o clima <strong>da</strong> região do Chaco<br />

era muito quente e úmido e, portanto, bastante propício para<br />

a proliferação <strong>de</strong> insetos. Estes pequeños vivientes estariam,<br />

segundo ele, presentes na água, no ar e na terra, adornados<br />

Os padres do Vice-Reinado do Rio <strong>da</strong> Prata teriam sido os últimos a <strong>de</strong>ixarem as<br />

reduções pelas dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> se encontrarem substitutos, sendo retirados <strong>de</strong> suas<br />

residências entre junho e agosto <strong>de</strong> 1768. Os documentos encontrados com os<br />

jesuítas foram confiscados para que pu<strong>de</strong>ssem ser encontra<strong>da</strong>s evidências sobre<br />

suas ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s, razão pela qual foram autorizados a viajar somente com suas roupas<br />

e breviários. Foram levados, em precárias condições, para Córsega, <strong>de</strong> on<strong>de</strong><br />

foram enviados, em sua maioria, para as ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> Faenza, Ravena, Brisighella e<br />

Ímola. Em uma carta <strong>da</strong>ta<strong>da</strong> <strong>de</strong> 21 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 1768, <strong>de</strong> Puntales (Cádiz), encontra-se<br />

uma lista <strong>de</strong> 150 jesuítas que partiram <strong>de</strong> Buenos Aires em uma fragata,<br />

chama<strong>da</strong> Esmeral<strong>da</strong>, que os levaria <strong>de</strong> volta para a Europa, sob responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

do coman<strong>da</strong>nte Mateo <strong>de</strong>l Collado Neto. Sánchez Labrador estava citado entre os<br />

missionários que vinham <strong>da</strong> Província do Paraguai (SAINZ OLLERO, 1989).<br />

10 A versão original <strong>de</strong>ste manuscrito se encontra no Arquivo Geral <strong>da</strong> Companhia <strong>de</strong><br />

Jesus (ARSI), em Roma.<br />

MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje 15


Para além <strong>da</strong> medicina <strong>da</strong> alma<br />

ou não com asas, possuindo sempre uma simetria em seu<br />

todo, razão pela qual suas partes <strong>de</strong>monstrariam a sabedoria<br />

do Auctor. Observa, ain<strong>da</strong>, que, para alguns autores, os<br />

insetos <strong>de</strong>veriam apresentar uma série <strong>de</strong> características que<br />

acabariam por excluir uma boa parte dos animalillos. Sánchez<br />

Labrador classifica os insetos por famílias, entre as quais estavam<br />

a dos que voavam, a dos que se arrastavam ou a dos que<br />

pareciam que se arrastavam. Entre essas famílias existiriam distinções<br />

quanto aos corpos dos insetos, que po<strong>de</strong>riam se constituir<br />

<strong>de</strong> anéis, nós, placas e outras divisões. Afirma, ain<strong>da</strong>,<br />

que os insetos, diferentemente <strong>de</strong> outros animais, não tinham<br />

reconheci<strong>da</strong>s suas virtu<strong>de</strong>s terapêuticas, porque os médicos os<br />

<strong>de</strong>preciavam por seu tamanho.<br />

No último capítulo do livro De los insectos, pertencente<br />

à quarta e última parte do Paraguay Natural Ilustrado,<br />

encontramos os 21 insetos cujas virtu<strong>de</strong>s terapêuticas são<br />

apresenta<strong>da</strong>s por Sánchez Labrador. São eles: as abelhas<br />

(abejas) 11 , as vespas (abispas) 12 , os escorpiões (alacranes), as<br />

aranhas (arañas), as cantári<strong>da</strong>s 13 (cantári<strong>de</strong>s), os percevejos<br />

(chinches) 14 , a centopeia (cientopies) 15 , a cigarra (cigarra) 16 ,<br />

11 De acordo com Labrador, as abelhas po<strong>de</strong>riam ser utiliza<strong>da</strong>s como um ótimo diurético,<br />

após serem reduzi<strong>da</strong>s a um pó, que <strong>de</strong>veria ser tomado to<strong>da</strong>s as manhãs<br />

em jejum, na medi<strong>da</strong> <strong>de</strong> meia dragma. Para que pu<strong>de</strong>sse ser ingerido, a ele <strong>de</strong>veria<br />

ser acrescentado extrato <strong>de</strong> zimbro (enebro) ou ser consumido <strong>de</strong>ntro do vinho.<br />

Este pó, também, quando colocado na cabeça, seria eficiente contra a calvície<br />

(Alopecia) e faria crescer os cabelos ain<strong>da</strong> mais grossos do que anteriormente. “Las<br />

sales <strong>de</strong> las Abejas son muy volatiles; <strong>de</strong> aqui es, que secas, y en polvo, y <strong>de</strong>spues<br />

toma<strong>da</strong>s por la boca, son diuréticas, y diaphoreticas (diaforética/sudorífera).” (SÁ-<br />

NCHEZ LABRADOR, 1771, p. 361.)<br />

12 As vespas teriam as mesmas proprie<strong>da</strong><strong>de</strong>s terapêuticas atribuí<strong>da</strong>s às baratas (cucarachas)<br />

e à cochonilha (cochinilla), pois podiam ser utiliza<strong>da</strong>s também na eliminação<br />

<strong>de</strong> cálculos renais. Labrador <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> que <strong>de</strong>veriam ser utiliza<strong>da</strong>s <strong>de</strong> forma similar<br />

ao tabaco, <strong>de</strong>vendo ser masca<strong>da</strong>s inteiras. De acordo com ele, alguns indivíduos<br />

acreditavam que pren<strong>de</strong>ndo algumas vespas na mão esquer<strong>da</strong> era possível se livrar<br />

<strong>da</strong> febre quartana (calentura quartana).<br />

13 “Inseto coleóptero heterômero <strong>de</strong> cor ver<strong>de</strong>-brilhante (Litta vesicatoria), comum<br />

no Sul <strong>da</strong> Europa. Preparação <strong>de</strong> cantári<strong>da</strong>s secas, aplica<strong>da</strong> externamente como<br />

rubefaciente e vesicante po<strong>de</strong>roso; esquentária. Toma<strong>da</strong> em doses mo<strong>de</strong>ra<strong>da</strong>s,<br />

é diurética e estimulante dos órgãos urinários e reprodutores, porém altamente<br />

venenosa em doses gran<strong>de</strong>s.” CANTÁRIDA. Dicionário Michaelis. Disponível em:<br />

<br />

Acesso em: 9 set. 2014.<br />

14 Sobre os percevejos, Sánchez Labrador afirma que “estos hediondos animalillos<br />

contienen mucha sal volátil, y óleo” (SÁNCHEZ LABRADOR, 1771, p. 362), po<strong>de</strong>ndo<br />

ser também utilizados para provocar a urina, isso porque se mantinham <strong>de</strong>ntro do<br />

canal por on<strong>de</strong> ela passava e, com a titilação, faziam com que o canal se ampliasse<br />

e relaxasse o esfíncter <strong>da</strong> bexiga, permitindo que a urina pu<strong>de</strong>sse fluir normalmente.<br />

Os percevejos também podiam ser tostados e ingeridos sob a forma <strong>de</strong> pó.<br />

15 As centopéias planas, quando secas, moí<strong>da</strong>s e diluí<strong>da</strong>s em água, podiam ser, segundo<br />

Labrador, eficazes contra as dores <strong>de</strong> moelas se aplica<strong>da</strong>s nas bochechas duas<br />

vezes ao dia. Já as centopeias redon<strong>da</strong>s podiam ser moí<strong>da</strong>s e coloca<strong>da</strong>s sobre a<br />

região atingi<strong>da</strong> por uma flecha ou por um espinho, pois aju<strong>da</strong>vam na sua eliminação.<br />

16 Este inseto seria rico em óleo e sal volátil, útil contra cólicas e problemas na bexiga:<br />

as cochonilhas (cochinillas) 17 , as baratas (cucarachas) 18 , os<br />

besouros (escarabajos) 19 , os carrapatos (garrapatas) 20 , os grilos<br />

(grillos), as formigas (hormigas) 21 , os gafanhotos (langosta),<br />

os vermes (lombrices) 22 , as moscas (moscas) 23 , os mos-<br />

“la ceniza <strong>de</strong> la Cigarra es diurética; administrase en dosis <strong>de</strong> seis hasta doce granos<br />

en masa, o en bebi<strong>da</strong> contra el mal <strong>de</strong> piedra” (SÁNCHEZ LABRADOR, 1771,<br />

p. 363). Para sua utilização medicinal era necessário tostá-las, reduzindo-as a pó.<br />

Em uma <strong>da</strong>s receitas, Labrador nos informa que era preciso tostar seis cigarras e<br />

adicionar a elas grãos <strong>de</strong> pimenta, formando uma pasta que <strong>de</strong>veria ser servi<strong>da</strong> ao<br />

paciente com pão. No caso <strong>de</strong> pacientes com problemas na bexiga, estes animais<br />

<strong>de</strong>veriam ser ingeridos fritos.<br />

17 “Nome comum aos insetos homópteros <strong>da</strong> família dos Coccí<strong>de</strong>os, também chamados<br />

piolhos-dos-vegetais. As fêmeas e as formas jovens são ápteras e vivem<br />

permanentemente sugando seiva vegetal <strong>de</strong> numerosas plantas, constituindose<br />

em ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iras pragas. Algumas espécies são úteis por serem produtoras <strong>de</strong><br />

substâncias que o homem aproveita em suas indústrias, como o corante chamado<br />

carmim e a goma-laca.” COCHINILHA. Dicionário Michaelis. Disponível<br />

em: <br />

Acesso em: 24 set. 2014. Segundo Labrador,<br />

podiam ser chama<strong>da</strong>s <strong>de</strong> Milpies e Puercas <strong>de</strong> S. Anton, possuindo uma gran<strong>de</strong><br />

quanti<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> sal e “espírito” voláteis, po<strong>de</strong>ndo ser utiliza<strong>da</strong>s contra a asma e<br />

contra os problemas nos olhos causados pela con<strong>de</strong>nsação <strong>da</strong> Lympha (Linfa?)<br />

bem como aproveita<strong>da</strong>s em situações <strong>de</strong> obstruções <strong>da</strong>s entranhas e em casos <strong>de</strong><br />

aci<strong>de</strong>ntes.<br />

18 De acordo com o jesuíta, “son muy utiles; porque ayu<strong>da</strong>n a la digestión; disuelven<br />

muy bien, y abren. Por estas buenas quali<strong>da</strong><strong>de</strong>s se administran para resolver las<br />

viscosi<strong>da</strong><strong>de</strong>s acres, y <strong>de</strong>sostruír los órganos. También en la Tiricia, yen el mal <strong>de</strong><br />

Piedra, retención <strong>de</strong> orina, y cólica” (SÁNCHEZ LABRADOR, 1771, p. 365).<br />

19 Os besouros, segundo Labrador, contam com virtu<strong>de</strong>s diuréticas, po<strong>de</strong>ndo ser<br />

administrados em doenças como a hidropisia, os reumatismos e a gota. Para serem<br />

utilizados como medicamento, eles <strong>de</strong>veriam ser reduzidos a um pó, que <strong>de</strong>veria<br />

ser <strong>da</strong>do ao doente em doses <strong>de</strong> dois até oito grãos em água <strong>de</strong> parietárias. Quando<br />

amassados e cozidos com alguma espécie <strong>de</strong> unguento, podiam ser aplicados<br />

em lesões do corpo, pois suavizavam as dores dos nervos e as convulsões. Concor<strong>da</strong>ndo<br />

com Johann Schrö<strong>de</strong>r [médico e farmacólogo alemão do século XVII],<br />

Labrador informa que o azeite feito com a infusão dos besouros servia também<br />

contra a dor <strong>de</strong> ouvido e a sur<strong>de</strong>z, <strong>de</strong>vendo ser posto na região que se encontrava<br />

dolori<strong>da</strong>. Ratificando as proposições <strong>de</strong> James e Schrö<strong>de</strong>r, o jesuíta afirma que as<br />

antenas dos besouros, em pó, podiam ser utiliza<strong>da</strong>s para contornar partos difíceis.<br />

20 De acordo com Labrador, estes insetos, se tostados até virarem pó e espalhados<br />

pela cabeça, podiam fazer cair o cabelo. Também podiam ser utilizados para curar<br />

a erisipela e a sarna. Já o sangue dos carrapatos podia ser utilizado para curar<br />

feri<strong>da</strong>s e úlceras invetera<strong>da</strong>s e que tinham fístula.<br />

21 Este inseto, seus ovos e, também, os formigueiros são, segundo Sánchez Labrador,<br />

ricos em “espírito” ácido, sal volátil e óleo, sendo, por isso, um remédio excelente<br />

para o restabelecimento <strong>da</strong>s forças. Este elemento <strong>da</strong>s formigas seria utilizado na<br />

fabricação <strong>de</strong> um medicamento chamado Aqua magnanimatis, que era utilizado<br />

para os males <strong>de</strong> cabeza, especialmente os relacionados com o cérebro, como a<br />

apoplexia serosa, vertigens, paralisia e muitos outros que, segundo o autor, provinham<br />

do excesso <strong>de</strong> fleuma, mais frequente nos idosos: “El óleo <strong>de</strong> Hormigas<br />

es excelentísimo remedio para aplicarse por fuera. Ponese las Hormigas en aceyte<br />

común, y son mejores las que tienen alas; el vaso se expone al sol por espacio <strong>de</strong><br />

[Aco. Drâs]. Tiene este aceyte virtud <strong>de</strong> vivificar los espíritus, <strong>de</strong> expeler los flatos,<br />

y cura ulceras malignas” (SÁNCHEZ LABRADOR, 1771, p. 367).<br />

22 Estes vermes, <strong>de</strong> acordo com Labrador, apresentariam uma gran<strong>de</strong> secreção <strong>de</strong> sal<br />

volátil e óleo, possuindo, portanto, virtu<strong>de</strong>s diuréticas, sudoríferas e <strong>de</strong> <strong>de</strong>sobstrução<br />

<strong>de</strong> canais. Recomen<strong>da</strong> que fossem utilizados com cautela <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> reduzidos<br />

a pó, pois podiam se tornar prejudiciais, já que do pó dos vermes armazenado por<br />

meses originavam-se novos vermes. Exteriormente o sal e o “espírito” dos vermes<br />

podiam ser utilizados para fazer um unguento contra o pasmo, o reumatismo e<br />

outros problemas causados pelos nervos. Mortos os vermes também podiam ser<br />

aplicados em <strong>de</strong>ntes cariados para diminuir dores.<br />

23 Segundo Labrador, as moscas comuns teriam proprie<strong>da</strong><strong>de</strong>s emolientes e abster-<br />

16<br />

MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje


Para além <strong>da</strong> medicina <strong>da</strong> alma<br />

quitos (zancudos) 24 , as lagartas (orugas) 25 , os piolhos (piojos)<br />

e as sanguessugas (sanguijuelas). 26<br />

Ao tratar sobre estes animais, em específico, Labrador<br />

também refere e atribui virtu<strong>de</strong>s a oito subprodutos <strong>de</strong>stes<br />

insetos: mel (abelha) 27 , cera (abelha) 28 , vespeiro (vespa), teia<br />

(aranha), escarlata 29 (cochonilha <strong>de</strong> grana), formigueiro (formiga),<br />

ovos (formiga) e goma-laca 30 (formiga). Além <strong>de</strong> citar<br />

as virtu<strong>de</strong>s e os elementos, Labrador também apresenta as<br />

enfermi<strong>da</strong><strong>de</strong>s para as quais seriam eficientes, as indicações e<br />

gentes. Se amassa<strong>da</strong>s e aplica<strong>da</strong>s sobre a parte calva, faziam crescer os cabelos.<br />

Já a água <strong>de</strong>stila<strong>da</strong> <strong>de</strong> moscas possuía virtu<strong>de</strong>s contra problemas nos olhos. Para<br />

curá-los, com esta água <strong>de</strong>veria ser mistura<strong>da</strong> uma gema <strong>de</strong> ovo, formando um<br />

emplastro, que, segundo Labrador, era também indicado e aprovado por Galeno.<br />

Já as moscas varejeiras possuíam uma natureza medicinal bastante pareci<strong>da</strong> com<br />

a <strong>da</strong>s cantári<strong>da</strong>s. Reduzi<strong>da</strong>s a pó provocariam a eliminação <strong>de</strong> urina, curariam a<br />

mordi<strong>da</strong> <strong>de</strong> cachorro raivoso e o reumatismo. Seriam também úteis na produção<br />

<strong>de</strong> emplastros que serviam para tratar os bulbos pestilentos e os carbúnculos. Estas<br />

moscas, segundo Labrador, estariam presentes na fabricação <strong>de</strong> antídotos. Ao serem<br />

infundi<strong>da</strong>s vivas em azeite comum, resultava um azeite que podia ser utilizado<br />

no lugar do obtido através dos escorpiões.<br />

24 Sánchez Labrador relata a experiência <strong>de</strong> uma pessoa que teria tentado utilizar<br />

todos os tipos <strong>de</strong> purgativos sem nenhum efeito, tendo evacuado normalmente<br />

após ingerir quatro ou cinco mosquitos. Seriam bons remédios também contra o<br />

que o autor chama <strong>de</strong> mal caduco. Já o azeite produzido com os mosquitos era<br />

bastante estimado, e quando misturados com certa quanti<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> moscas, podia<br />

ser untado em cabeça calva para fazer crescer o cabelo.<br />

25 As lagartas, quando tosta<strong>da</strong>s e reduzi<strong>da</strong>s a pó, podiam ser utiliza<strong>da</strong>s para sustar a<br />

hemorragia do nariz, <strong>de</strong>vendo ser consumi<strong>da</strong>s com cui<strong>da</strong>do, pois, ao serem reduzi<strong>da</strong>s<br />

a pó ou amassa<strong>da</strong>s e postas sobre a pele, podiam provocar bolhas, em um<br />

efeito parecido com o obtido com a utilização <strong>da</strong>s cantári<strong>da</strong>s.<br />

26 As sanguessugas <strong>de</strong>veriam ser aplica<strong>da</strong>s “en la frente para quitar las Xaquecas<br />

obstina<strong>da</strong>s; también en el orificio interno <strong>de</strong> la [incompreensível] para llamar<br />

los menstruos <strong>de</strong>tenidos, o disminuidos” (SÁNCHEZ LABRADOR, 1771, p. 369).<br />

O jesuíta recorre ao Diccionario <strong>de</strong> drogas simples, <strong>de</strong> Lemery, para alertar<br />

sobre os procedimentos que <strong>de</strong>veriam ser tomados quando o doente engolisse,<br />

por engano, um <strong>de</strong>stes animais ao tomar água. De acordo com Labrador,<br />

o doente <strong>de</strong>veria beber bastante água salga<strong>da</strong> e se purgar com calomelano<br />

(mercurio dulce), ou outra composição mercurial, para que este inseto não<br />

atormentasse o corpo.<br />

27 Para Labrador, o mel possuía virtu<strong>de</strong>s balsâmicas, po<strong>de</strong>ndo ser ingerido pela boca<br />

ou apenas aplicado exteriormente. Deveria ser utilizado para abrir e purificar o peito,<br />

promovendo o alívio <strong>da</strong> respiração oprimi<strong>da</strong> e a cura <strong>de</strong> problemas nos pulmões<br />

causados pela fleuma (catarro) bruta. Ele, contudo, adverte que os indivíduos coléricos<br />

não <strong>de</strong>veriam consumir mel para que não ocorresse nenhuma excitação que<br />

levasse à fermentação, segui<strong>da</strong> <strong>de</strong> inflamação. Também não <strong>de</strong>veria ser consumido<br />

em excesso, pois po<strong>de</strong>ria causar a embriaguez.<br />

28 A cera <strong>de</strong> abelhas, segundo Labrador, podia ser utiliza<strong>da</strong> como um emplastro, pois<br />

reduzia a dor, sobretudo nas articulações. Os benefícios <strong>de</strong> sua utilização podiam<br />

ser constatados nas “aberturas <strong>de</strong> peito” <strong>da</strong>s mulheres e nas cirurgias, juntamente<br />

com o própolis (Lybora), por sua virtu<strong>de</strong> digestiva e que contribuía para o amadurecimento<br />

dos abscessos e <strong>da</strong>s vísceras malignas. A cera, segundo ele, era uma<br />

substância resinosa, como a terebintina (trementina), endurecendo na água, mas,<br />

se mistura<strong>da</strong> com aceyte <strong>de</strong> ovo (huebo), agia contra queimaduras e lesões feitas<br />

pela água. Para maiores informações sobre a utilização terapêutica <strong>da</strong> cera <strong>de</strong><br />

abelhas, Labrador indica a obra Pharmacopea universal, <strong>de</strong> James.<br />

29 Cor mais clara, obti<strong>da</strong> pela grana <strong>da</strong>s cochonilhas, utiliza<strong>da</strong> para tingir tecidos.<br />

ESCARLATA. Diccionario <strong>de</strong> la lengua española <strong>de</strong> la Real Aca<strong>de</strong>mia Española. Disponível<br />

em: Acesso em: 8 set. 2014.<br />

30 Resina excreta<strong>da</strong> por certos insetos.<br />

o preparo <strong>de</strong>stes insetos para que fossem ingeridos como medicamentos.<br />

Tendo em vista a impossibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> tratarmos <strong>de</strong> todos<br />

os 21 insetos neste capítulo, selecionamos cinco <strong>de</strong>les, <strong>de</strong><br />

forma que possamos explorar suas aplicações pela medicina.<br />

Cabe ressaltar que as indicações feitas pelo jesuíta Sánchez<br />

Labrador, assim como as feitas por outros homens <strong>de</strong> ciência<br />

do período, tanto na Europa quanto na América, levam em<br />

consi<strong>de</strong>ração os pressupostos <strong>da</strong> Teoria Humoralista Hipocrático-Galênica<br />

31 , segundo a qual a saú<strong>de</strong> era assegura<strong>da</strong> pelo<br />

equilíbrio entre os humores que compunham o corpo humano.<br />

Sendo assim, existia a concepção <strong>de</strong> que as enfermi<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

eram causa<strong>da</strong>s justamente pelo excesso ou ausência <strong>de</strong> algum<br />

dos humores, o que levava a práticas que visavam à expulsão<br />

dos humores em excesso do corpo através do sangue, <strong>da</strong>s<br />

fezes, <strong>da</strong> urina, do vômito e <strong>de</strong> <strong>de</strong>mais formas <strong>de</strong> excreção. A<br />

adoção <strong>de</strong>sta teoria também fica evi<strong>de</strong>nte na proposição do<br />

emprego <strong>da</strong> medicina dos contrários, como se po<strong>de</strong> constatar<br />

na recomen<strong>da</strong>ção <strong>de</strong> contravenenos.<br />

Os escorpiões (Yapeuzu, em guarani) contavam com características<br />

únicas no grupo dos insetos tratados por Sánchez<br />

Labrador neste último livro <strong>da</strong> obra. De acordo com ele, o<br />

escorpião, amassado e colocado sobre a própria pica<strong>da</strong> <strong>de</strong><br />

seu ferrão, conseguiria <strong>de</strong>ter o progresso do veneno no corpo<br />

<strong>da</strong> vítima, levando à cura. Para comprovar tal afirmação,<br />

ele refere-se à opinião <strong>de</strong> outro jesuíta, o padre A. Kircher 32 ,<br />

que afirmava que os escorpiões atraíam o seu próprio veneno<br />

através <strong>de</strong> uma virtu<strong>de</strong> magnética. Ain<strong>da</strong> contra o veneno<br />

<strong>de</strong>stes insetos, seria bastante eficiente o emprego <strong>de</strong> Aceyte<br />

<strong>de</strong> Alacranes – ou azeite <strong>de</strong> escorpiões –, produzido através<br />

<strong>da</strong> infusão <strong>de</strong> escorpiões em azeite <strong>de</strong> amêndoas, que <strong>de</strong>veria<br />

ser aplicado sobre a área pica<strong>da</strong>. O autor diz que muitos indivíduos,<br />

quando picados por escorpiões, ingeriam estes animais<br />

amassados com vinho, enquanto outros preferiam colocar o<br />

azeite <strong>de</strong>ntro <strong>da</strong> feri<strong>da</strong>. A utilização <strong>de</strong>stes insetos como um<br />

31 De acordo com essa teoria, o corpo humano seria formado por diferentes líquidos<br />

ou humores que eram “quase sempre quatro (Sangue, Fleuma, Bílis Amarela e Bílis<br />

Negra). A saú<strong>de</strong> consistiria no equilíbrio <strong>de</strong>sses humores, assim como a enfermi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

consistiria no predomínio <strong>de</strong> algum <strong>de</strong>les sobre os <strong>de</strong>mais” (FREITAS REIS, 2009,<br />

p. 3).<br />

32 O padre jesuíta Athanasius Kircher (1601-1680) foi um eminente professor do<br />

Colégio <strong>de</strong> Roma, tendo atuado também como matemático, físico e astrônomo.<br />

MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje 17


Para além <strong>da</strong> medicina <strong>da</strong> alma<br />

contraveneno, isto é, um antídoto contra seu próprio veneno,<br />

constitui-se em evidência <strong>da</strong> aceitação e aplicação <strong>da</strong> medicina<br />

dos contrários por Sánchez Labrador. O escorpião possuiria<br />

também virtu<strong>de</strong>s diuréticas, auxiliando no tratamento <strong>de</strong> pedras<br />

nos rins e na bexiga, <strong>de</strong>vendo, nestes casos, ser queimado<br />

vivo e suas cinzas consumi<strong>da</strong>s posteriormente. Para este<br />

mesmo problema, seria útil novamente o azeite <strong>de</strong> escorpiões,<br />

untando-se a região <strong>da</strong> bexiga e dos rins, amenizando as dores<br />

e aju<strong>da</strong>ndo o enfermo a expelir as pedras. O azeite podia, ain<strong>da</strong>,<br />

aliviar dores <strong>de</strong> ouvido quando pingado nas orelhas.<br />

Chamou-nos a atenção o fato <strong>de</strong> que praticamente todos<br />

os insetos citados por Sánchez Labrador apresentam proprie<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

diuréticas, auxiliando, ain<strong>da</strong>, no tratamento <strong>de</strong> pedras<br />

nos rins e na bexiga. Esta constatação, que precisa ser estu<strong>da</strong><strong>da</strong><br />

mais <strong>de</strong>ti<strong>da</strong>mente, parece apontar para a alta incidência<br />

<strong>de</strong>stas enfermi<strong>da</strong><strong>de</strong>s entre os grupos indígenas contatados ou<br />

observados pelo missionário jesuíta, e que po<strong>de</strong>m estar relaciona<strong>da</strong>s<br />

com mu<strong>da</strong>nças nos hábitos alimentares, mais especificamente,<br />

<strong>da</strong>s resultantes do consumo <strong>de</strong> sal, após a intensificação<br />

do contato com os europeus.<br />

As aranhas (Ñandu, em guarani) e suas teias possuiriam<br />

abun<strong>da</strong>nte sal volátil e óleo. De acordo com Lister 33 , referido<br />

por Sánchez Labrador, estes animais possuíam muitas virtu<strong>de</strong>s<br />

medicinais; já o jesuíta acreditava que os corpos <strong>da</strong>s aranhas<br />

<strong>de</strong>veriam ser usados apenas externamente, para amenizar febres<br />

34 , principalmente, a quartana. Para tanto, <strong>de</strong>veriam ser<br />

amassa<strong>da</strong>s e pendura<strong>da</strong>s no pescoço ou ata<strong>da</strong>s aos pulsos ou<br />

às têmporas do indivíduo febril, logo no início do paroxismo. 35<br />

A teia produzi<strong>da</strong> pela aranha possuiria proprie<strong>da</strong><strong>de</strong>s adstringentes<br />

e, quando aplica<strong>da</strong> e oprimi<strong>da</strong> em feri<strong>da</strong>s recentes,<br />

aju<strong>da</strong>va a diminuir o sangramento, a cicatrizar o corte e a impedir<br />

a inflamação. Também podia ser utiliza<strong>da</strong> contra cólicas<br />

flatulentas, recomen<strong>da</strong>ndo-se que se cozinhasse uma porção<br />

<strong>de</strong> teia [com um ovo] em vinagre, <strong>de</strong>vendo-se aplicar o emplas-<br />

33 O inglês Martin Lister (1638-1712) foi naturalista e médico.<br />

34 “Doença, procedi<strong>da</strong> <strong>de</strong> calôr preternatural, ou intempérie cáli<strong>da</strong>, & secca do sangue,<br />

& dos humores, cuja effervesencia tem seu principio no coração, & <strong>de</strong>le se<br />

comunica a todo o corpo pela veas, & artérias, com movimento <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>nado, &<br />

outros symptomas, segundo a cali<strong>da</strong><strong>de</strong>, & diferença <strong>da</strong>s Febres [...]” (BLUTEAU,<br />

1728, p. 54).<br />

35 “Exacerbación <strong>de</strong> una enferme<strong>da</strong>d.” PAROXISMO. Dicionario <strong>de</strong> la Real Aca<strong>de</strong>mia<br />

Española. Disponível em: Acesso em:<br />

08 set. 2014.<br />

tro no umbigo para, assim, aliviar a dor e resolver o problema.<br />

Sánchez Labrador acrescenta que a teia podia ser bastante útil<br />

ain<strong>da</strong> contra as febres causa<strong>da</strong>s pelo frio, recomen<strong>da</strong>ndo que<br />

“[...] cayese en pequeña canti<strong>da</strong>d como <strong>de</strong> un garbanzo 36 ,<br />

ponese en un vaso <strong>de</strong> vino blanco, y se <strong>da</strong> a beber al enfermo<br />

quando le quere entrar el parossismo: con esto se excita sudor<br />

copioso, y alguna vez cessa la calentura” (SÁNCHEZ LABRA-<br />

DOR, 1771, p. 363). Ao <strong>de</strong>clarar que as teias <strong>da</strong>s aranhas possuiriam<br />

proprie<strong>da</strong><strong>de</strong>s diaforéticas 37 e que estas contribuiriam<br />

para amenizar a febre, o jesuíta missionário estava claramente<br />

adotando pressupostos <strong>da</strong> teoria <strong>de</strong> Hipocrátes e <strong>de</strong> Galeno,<br />

na medi<strong>da</strong> em que acreditava que, através do suor, seria expelido<br />

o humor em excesso, causa do <strong>de</strong>sequilíbrio.<br />

Ao tratar <strong>da</strong>s cantári<strong>da</strong>s, Sánchez Labrador apoia-se nos<br />

estudiosos Lemery 38 , James 39 e Bomare 40 . Afirmava que este<br />

inseto, quando tostado, apresentava gran<strong>de</strong> abundância <strong>de</strong><br />

sal volátil, áspero e cáustico, que se mesclava com um pouco<br />

<strong>de</strong> óleo, fleuma e terra, bastante semelhante às virtu<strong>de</strong>s<br />

<strong>da</strong> aranha. Dessa forma, as cantári<strong>da</strong>s teriam uma natureza<br />

bastante penetrante e corrosiva, pois, quando aplica<strong>da</strong>s ou<br />

esfrega<strong>da</strong>s sobre a pele, causavam o levantamento <strong>de</strong> bolhas<br />

que liberavam uma gran<strong>de</strong> quanti<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> secreção ou humor<br />

aguado. A excreção do humor, através <strong>de</strong> bolhas, aju<strong>da</strong>ria a<br />

aliviar as dores <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntes. Labrador indicará, ain<strong>da</strong>, uma receita<br />

<strong>de</strong> emplastro, que seria composto <strong>de</strong> cinco cantári<strong>da</strong>s,<br />

36 “Planta herbácea <strong>de</strong> la familia <strong>de</strong> las Papilionáceas, <strong>de</strong> cuatro o cinco <strong>de</strong>címetros<br />

<strong>de</strong> altura, tallo duro y ramoso, hojas compuestas <strong>de</strong> hojuelas elípticas y aserra<strong>da</strong>s<br />

por el margen, flores blancas, axilares y peduncula<strong>da</strong>s, y fruto en vaina infla<strong>da</strong>,<br />

pelosa, con una o dos semillas amarillentas, <strong>de</strong> un centímetro aproxima<strong>da</strong>mente<br />

<strong>de</strong> diámetro, gibosas y con un ápice encorvado.” GARBANZO. Diccionario <strong>de</strong> la<br />

Real Aca<strong>de</strong>mia Española. Disponível em: <br />

Acesso em: 24 set. 2014.<br />

37 “Que excita a transpiração; sudorífico.” DIAFORÉTICO. Dicionário Michaelis. Disponível<br />

em: <br />

Acesso em: 24 set. 2014<br />

38 O químico francês Nicolas Lemery (1645-1715) nasceu em Ruan e morreu em<br />

Paris. Era membro <strong>da</strong> Aca<strong>de</strong>mia <strong>de</strong> Ciências. Sua obra mais famosa foi Curso <strong>de</strong><br />

Química (1675). Sánchez Labrador, no entanto, refere outras obras suas, tais como<br />

Farmacopea universal (1697), Tratado universal <strong>da</strong>s drogas simples (1698), Tratado<br />

do Antimônio (1707) e Nova recopilação <strong>de</strong> segredos e curiosi<strong>da</strong><strong>de</strong>s mais raros<br />

(1709).<br />

39 O médico e físico Robert James nasceu em Kinverston, em 1703, e morreu em<br />

Londres, em 1773 ou 1776. Sua obra mais conheci<strong>da</strong> é Dicionário médico (1743).<br />

40 O farmacêutico e naturalista Jacques-Christophe Valmont <strong>de</strong> Bomare (1731-1807)<br />

nasceu em Rouen e morreu em Chantilly. Sabe-se que começou a publicar o Dicionário<br />

fun<strong>da</strong>mentado universal <strong>de</strong> história natural – citado por Sánchez Labrador<br />

– em 1765. Também escreveu a obra Mineralogia ou Nova exposição do reino<br />

mineral.<br />

18<br />

MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje


Para além <strong>da</strong> medicina <strong>da</strong> alma<br />

três <strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> alho e um pouco <strong>de</strong> triaca 41 . Após serem amassados,<br />

a mistura <strong>de</strong>veria ser coloca<strong>da</strong> em um pano fino <strong>de</strong><br />

linho e <strong>de</strong>posita<strong>da</strong> no local que se encontrava sangrando ou<br />

ao lado do local dolorido. O emplastro <strong>de</strong>veria ser mantido<br />

até que começassem a aparecer bolhas na pele e a dor começasse<br />

a diminuir. Vale lembrar que as cantári<strong>da</strong>s, por suas<br />

proprie<strong>da</strong><strong>de</strong>s afrodisíacas e diuréticas, eram utiliza<strong>da</strong>s como<br />

medicamento <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a Antigui<strong>da</strong><strong>de</strong> e que, na atuali<strong>da</strong><strong>de</strong>, um<br />

<strong>de</strong> seus compostos, a cantaridina 42 , está presente na fórmula<br />

<strong>de</strong> medicamentos indicados no tratamento do molusco contagioso<br />

43 . No entanto, a cantaridina é tóxica e venenosa, sendo,<br />

inclusive, proibi<strong>da</strong> em alguns países, mesmo que sua dosagem<br />

letal ain<strong>da</strong> não tenha sido <strong>de</strong>termina<strong>da</strong>. Destaca-se o fato <strong>de</strong><br />

Sánchez Labrador comparar constantemente os outros insetos<br />

às cantári<strong>da</strong>s, para afirmar que, diferentemente <strong>de</strong>las, os <strong>de</strong>mais<br />

insetos podiam ser usados sem precauções ou em quanti<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

não necessariamente controla<strong>da</strong>, o que revela que o<br />

jesuíta tinha conhecimento <strong>da</strong> toxici<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>ste inseto.<br />

Sobre os grilos, o autor ressalta que possuíam uma gran<strong>de</strong><br />

quanti<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> sal volátil e óleo, semelhantes, portanto, a<br />

outros insetos já citados, razão pela qual eram eficientes como<br />

diuréticos. Sánchez Labrador recomen<strong>da</strong>va que os grilos fossem<br />

colocados em um vaso <strong>de</strong> terra tapado, secados em fogo<br />

baixo, para que fossem reduzidos a pó, que <strong>de</strong>veria ser <strong>da</strong>do<br />

ao paciente – na quanti<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> [12] grãos ou mais –, acompanhado<br />

<strong>de</strong> água <strong>de</strong> salsa. Outra forma <strong>de</strong> preparar os grilos<br />

como medicamento, sem que fosse preciso tostá-los, seria selecionando<br />

dois ou três <strong>de</strong>sses insetos, removendo suas asas,<br />

pernas e cabeças e pondo-os em água <strong>de</strong> salsa ou alecrim. Os<br />

41 “Confecção farmacêutica usa<strong>da</strong> antigamente e composta por muitos ingredientes,<br />

mas principalmente <strong>de</strong> ópio. Bastante empregado em casos <strong>de</strong> mordi<strong>da</strong>s <strong>de</strong> animais<br />

venenosos.” TRIACA. Diccionario <strong>de</strong> la lengua española <strong>de</strong> la Real Aca<strong>de</strong>mia<br />

Española. Disponível em: Acesso em: 8 set.<br />

2014.<br />

42 Cantaridina (C10H12O4) é a lactose do ácido cantarídico e está presente nas cantári<strong>da</strong>s<br />

(Lytta vesicatoria) secas. É usa<strong>da</strong> como afrodisíaco e antigamente como anti-irritante<br />

em forma <strong>de</strong> pasta e, em pequena quanti<strong>da</strong><strong>de</strong>, em loções capilares, mas<br />

po<strong>de</strong> causar nefrite (doença dos rins provoca<strong>da</strong> por intoxicação). Este composto<br />

po<strong>de</strong> produzir inflamação severa na pele e é extremamente tóxico se ingerido oralmente.<br />

A cantaridina tem proprie<strong>da</strong><strong>de</strong>s tóxicas e venenosas em grau comparável<br />

ao dos venenos mais violentos conhecidos no século 19, como a estricnina. CAN-<br />

TARIDINA. Química Nova Interativa: Socie<strong>da</strong><strong>de</strong> Brasileira <strong>de</strong> Química. Disponível<br />

em Acesso em: 11 out. 2014.<br />

43 “O molusco contagioso é uma erupção comum e às vezes gravemente <strong>de</strong>sfigurante<br />

em pacientes com infecção pelo HIV.” (RABIF, 2012, s.p.)<br />

corpos <strong>de</strong>veriam ser <strong>de</strong>ixados em maceração 44 nessa água até<br />

que ela se tornasse um licor praticamente branco como leite,<br />

que <strong>de</strong>veria ser coado em um pano e <strong>da</strong>do <strong>de</strong> beber para o<br />

enfermo. Os grilos também teriam uso externo, já que, após<br />

serem amassados e aplicados nos olhos, aju<strong>da</strong>vam a clarear<br />

a visão, sendo também eficientes na cura <strong>de</strong> paróti<strong>de</strong>s 45 e <strong>de</strong><br />

outros tumores do mesmo gênero.<br />

Sánchez Labrador registrou duas formas <strong>de</strong> preparo <strong>de</strong><br />

grilos por indígenas. Uma <strong>de</strong>las consistia em cozinhar alguns<br />

grilos, retirar suas tripas e moer o restante <strong>de</strong> seus corpos<br />

até tornarem-se pó, ao qual era acrescentado um licor conveniente<br />

<strong>da</strong>do aos doentes que pa<strong>de</strong>ciam <strong>de</strong> problemas dos<br />

rins ou bexiga, com gran<strong>de</strong>s resultados. A outra recomen<strong>da</strong>va<br />

que, nos casos <strong>de</strong> urina conti<strong>da</strong>, o doente recebesse o preparado<br />

resultante <strong>da</strong> seguinte receita: dois grilos <strong>de</strong>veriam ser<br />

tostados em uma caçarola <strong>de</strong> barro, moídos e misturados em<br />

um pouco <strong>de</strong> vinho, água bem cozi<strong>da</strong> ou <strong>de</strong> chicha <strong>de</strong> milho.<br />

Quando o caso fosse o oposto, isto é, se a pessoa sofresse <strong>de</strong><br />

excesso <strong>de</strong> urina, ela <strong>de</strong>veria receber um só grilo, amassado e<br />

não tostado, misturado com um pouco <strong>de</strong> água morna. Eles<br />

po<strong>de</strong>riam ser também colocados em um palito e tostados no<br />

fogo, como nesta indicação: “y ya tostados muélelos en un<br />

poco <strong>de</strong> vino caliente: este vino mezclado con los Polvos <strong>de</strong><br />

[Luiyis], <strong>da</strong>rás ao Indio, o India, que pa<strong>de</strong>ciere la retención <strong>de</strong><br />

orina, y esta poco a poco fluirá [con<strong>de</strong>] [liz] suceso” (SÁN-<br />

CHEZ LABRADOR, 1771, p. 366).<br />

Os piolhos também continham sal volátil e óleo, sendo<br />

indicados nos casos <strong>de</strong> icterícia 46 , <strong>de</strong> pali<strong>de</strong>z do rosto e <strong>de</strong> febres,<br />

recomen<strong>da</strong>ndo-se que fossem engolidos <strong>de</strong> cinco a seis<br />

<strong>de</strong>les, no princípio do paroxismo. Concor<strong>da</strong>ndo com o proposto<br />

por Lemery, Labrador ressalta que o paciente que <strong>de</strong>monstrasse<br />

aversão e apresentasse náuseas ao engolir os piolhos<br />

44 “Operação que consiste em pôr uma substância sóli<strong>da</strong> em um líquido, a fim <strong>de</strong> que<br />

este fique impregnado <strong>de</strong> certos princípios solúveis <strong>da</strong>quela”. MACERAÇÃO. Dicionário<br />

Michaelis. Disponível em: Acesso em: 9<br />

set. 2014.<br />

45 Tumor inflamado nas paróti<strong>da</strong>s, que são “glândulas salivares situa<strong>da</strong>s abaixo e por<br />

diante <strong>da</strong>s orelhas”. PARÓTIDAS. Dicionário Michaelis. Disponível em:<br />

<br />

Acesso em: 9 set. 2014.<br />

46 “Sintoma que po<strong>de</strong> ter várias causas, caracterizado pela cor amarela <strong>da</strong> pele e<br />

conjuntivas oculares.” ICTERÍCIA. Dicionário Michaelis. Disponível em:<br />

<br />

Acesso em: 9 set. 2014.<br />

MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje 19


Para além <strong>da</strong> medicina <strong>da</strong> alma<br />

estaria, na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, expelindo a febre e não o remédio em si.<br />

Para curar a icterícia, as orientações eram as seguintes: alguns<br />

<strong>de</strong>stes insetos <strong>de</strong>veriam ser consumidos pela manhã – em jejum<br />

– em um ovo passado pela água, repetindo-se três vezes<br />

este procedimento por três dias consecutivos, interrompendose<br />

por alguns dias para, <strong>de</strong>pois, repetir o procedimento. O uso<br />

externo dos piolhos, segundo Sánchez Labrador, era frequente<br />

em crianças que sofriam <strong>de</strong> urina oprimi<strong>da</strong>, recomen<strong>da</strong>ndo-se<br />

que o inseto fosse colocado vivo sobre alguma parte do corpo<br />

do enfermo.<br />

Como se pô<strong>de</strong> constatar, praticamente todos os insetos<br />

eram tostados, moídos ou secados com o intuito <strong>de</strong> serem<br />

reduzidos a pó. Este pó podia, posteriormente, ser ingerido<br />

com alguma água ou licor conveniente, sendo misturado ou<br />

cozido com vinho ou chicha ou, até mesmo, infundido em<br />

algum azeite. O padre jesuíta relata alguns outros curiosos<br />

usos <strong>de</strong> insetos, tais como o <strong>da</strong>s abelhas, moscas e mosquitos<br />

contra a calvície, e o do carrapato para que o cabelo caísse.<br />

Há, ain<strong>da</strong>, o registro do uso <strong>da</strong>s antenas do besouro em partos<br />

difíceis, mas sem o <strong>de</strong>talhamento dos modos <strong>de</strong> preparo, e o<br />

emprego <strong>da</strong> cochonilha <strong>de</strong> grana por uma mulher que, muito<br />

adoenta<strong>da</strong> e querendo confessar-se, não mais conseguia falar.<br />

Neste caso, um pe<strong>da</strong>ço <strong>da</strong> grana foi diluído em vinho morno,<br />

colocado em uma colher e inserido na boca <strong>da</strong> enferma, com<br />

gran<strong>de</strong>s resultados.<br />

A comparação entre as virtu<strong>de</strong>s terapêuticas e as diferentes<br />

formas <strong>de</strong> preparo dos 21 insetos relata<strong>da</strong>s por Sánchez<br />

Labrador no último livro <strong>da</strong> quarta parte do Paraguay Natural<br />

Ilustrado permitiu a sistematização <strong>de</strong> alguns <strong>da</strong>dos. Cerca <strong>de</strong><br />

12 entre os 21 insetos contemplados pelo autor possuem sal<br />

volátil, enquanto 11 contêm óleo. De forma geral, quase todos<br />

os insetos que possuem sal volátil e óleo são diuréticos e/ou<br />

diaforéticos, sendo que as doenças mais frequentes se relacionam<br />

com urina oprimi<strong>da</strong> e pedras nos rins e/ou na bexiga.<br />

Percebe-se, claramente, que Sánchez Labrador fun<strong>da</strong>menta<br />

o emprego terapêutico <strong>de</strong>stes insetos a partir <strong>de</strong> pressupostos<br />

<strong>da</strong> teoria humoralista, na medi<strong>da</strong> em que levam o<br />

enfermo a expelir os excessos dos humores em <strong>de</strong>sequilíbrio.<br />

A apropriação <strong>da</strong> teoria hipocrático-galênica fica também evi<strong>de</strong>ncia<strong>da</strong><br />

em várias passagens, como na referência que o jesuíta<br />

faz à náusea provoca<strong>da</strong> pela ingestão <strong>de</strong> piolhos, que consistiria,<br />

segundo ele, justamente, em uma maneira <strong>de</strong> o corpo<br />

eliminar a febre. É importante lembrar que, ao longo <strong>da</strong>s mais<br />

<strong>de</strong> 370 páginas <strong>de</strong>ste livro, Sánchez Labrador recorre a vários<br />

autores europeus para legitimar suas afirmações e <strong>de</strong>scrições<br />

<strong>da</strong>s indicações terapêuticas e modos <strong>de</strong> preparo dos insetos,<br />

aspecto que abor<strong>da</strong>remos no último tópico <strong>de</strong>ste capítulo.<br />

EVIDÊNCIAS DE INTERTEXTUALIDADE E DA<br />

APROPRIAÇÃO DOS SABERES E PRÁTICAS<br />

INDÍGENAS<br />

Como já afirmamos, ao <strong>de</strong>screver a utilização terapêutica<br />

<strong>de</strong> insetos, Sánchez Labrador recorre a autori<strong>da</strong><strong>de</strong>s reconheci<strong>da</strong>s<br />

por seus estudos <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong>, Farmácia ou <strong>de</strong><br />

<strong>História</strong> Natural – tanto clássicas quanto contemporâneas a<br />

ele. Entre os referidos como médicos, químicos ou cientistas<br />

por Labrador, <strong>de</strong>stacam-se Robert James (1703-1773) 47 , Nicolás<br />

Lemery (1645-1715) 48 , Esteban Geoffroy (1672-1731) 49 ,<br />

Jacques-Cristophe <strong>de</strong> Bomare (1731-1807) 50 , Marcial (38/40<br />

d.C.-?) 51 , Dioscóri<strong>de</strong>s (40 d.C.-90 d.C.) 52 , Padre Athanasius Kircher<br />

(1601-1680), Martin Lister (1638-1712), Johann Schrö<strong>de</strong>r<br />

(1600-1664) 53 e Cláudio Galeno (129-199/217 d.C.) 54 .<br />

47 O médico e físico inglês Robert James (1703-1773/1776) nasceu em Kinverston<br />

e morreu em Londres. Sua obra mais conheci<strong>da</strong> é Dicionário médico (1743), mas<br />

Sánchez Labrador também refere outra obra sua, a Farmacopea universal.<br />

48 O químico francês Nicolas Lemery (1645-1715) nasceu em Ruan e morreu em<br />

Paris. Sua obra mais famosa foi Curso <strong>de</strong> Química (1675), mas Sánchez Labrador<br />

também cita bastante Farmacopea universal (1697), Tratado universal <strong>da</strong>s drogas<br />

simples (1698), Tratado do Antimônio (1707) e Nova recopilação <strong>de</strong> segredos e<br />

curiosi<strong>da</strong><strong>de</strong>s mais raros (1709). Era membro <strong>da</strong> Aca<strong>de</strong>mia <strong>de</strong> Ciências <strong>da</strong> França,<br />

através <strong>da</strong> qual publicou muitos artigos.<br />

49 O químico e médico Esteban Francisco Geoffroy (1672-1731) nasceu e morreu em<br />

Paris. Em Paraguay Natural Ilustrado, Sánchez Labrador cita com frequência sua<br />

obra Matéria médica.<br />

50 Jacques-Christophe Valmont <strong>de</strong> Bomare (1731-1807) foi um farmacêutico e naturalista<br />

francês que nasceu em Rouen e morreu em Chantilly. Em 1765, iniciou a<br />

publicação do Dicionário fun<strong>da</strong>mentado universal <strong>de</strong> história natural, citado por<br />

Sánchez Labrador. Também escreveu a obra Mineralogia ou Nova exposição do<br />

reino mineral.<br />

51 O epigrafista latino Marco Valério Marciel (38/40 d.C. - ?) nasceu e morreu em<br />

Bílbilis, na Espanha, tendo como sua principal obra Liber spectaculorum (80 d.C.).<br />

52 O escritor e médico greco-romano Pedânio Dioscóri<strong>de</strong>s (40 d.C.-90 d.C.) escreveu<br />

a obra De materia medica, consi<strong>de</strong>rado o manual <strong>de</strong> farmacopeia mais importante<br />

<strong>da</strong> Grécia e Roma antigas.<br />

53 O médico e farmacêutico alemão Johann Schrö<strong>de</strong>r (1600-1664) é consi<strong>de</strong>rado o<br />

primeiro a reconhecer o arsênio como um elemento.<br />

54 O médico, filósofo e cirurgião romano Cláudio Galeno (129-199/217 d.C.) nasceu<br />

em Pérgamo, na região <strong>da</strong> Mísia, na Ásia Menor, e foi uma <strong>da</strong>s figuras mais <strong>de</strong>sta-<br />

20<br />

MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje


Para além <strong>da</strong> medicina <strong>da</strong> alma<br />

De Certeau (1982, p. 82, grifo do autor) afirma que o<br />

autor erudito segue uma metodologia <strong>de</strong> sistemas <strong>de</strong> signos<br />

e que seu trabalho “implica a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> um comentário<br />

autorizado <strong>da</strong> parte <strong>de</strong> quem é suficientemente ‘sábio’ ou profundo<br />

para reconhecer este sentido”. Entretanto, o que chama<br />

a atenção neste livro <strong>da</strong> obra são, especificamente, os momentos<br />

em que ele não evoca os conhecimentos <strong>de</strong> médicos,<br />

químicos ou cientistas reconhecidos, <strong>de</strong>stacando também as<br />

contribuições <strong>de</strong> outros sujeitos, os indígenas, a quem <strong>de</strong>nomina<br />

inteligentes e sábios em algumas situações. Importante<br />

lembrar que muitos dos insetos e <strong>da</strong>s enfermi<strong>da</strong><strong>de</strong>s registra<strong>da</strong>s<br />

por Sánchez Labrador referem-se às observações que realizou<br />

durante seu período <strong>de</strong> atuação como missionário na Província<br />

Jesuítica do Paraguay. Esta especial condição – <strong>de</strong> religioso<br />

com a missão <strong>de</strong> evangelizar e civilizar os indígenas – se manifestará,<br />

sem dúvi<strong>da</strong>, nas apreciações que fará <strong>da</strong>s práticas<br />

curativas indígenas. Nesse sentido, vale lembrar o observado<br />

por Di Liscia (2002, p. 40):<br />

La separación que realizaba el jesuita entre indígenas<br />

“más racionales” y “menos racionales” se<br />

basaba en el uso <strong>de</strong> especies vegetales como medicamentos,<br />

porque para él la medi<strong>da</strong> <strong>de</strong> la lógica<br />

se <strong>da</strong>ba en relación con el acercamiento al mundo<br />

natural, utilizando y aprovechando sus ventajas, a<br />

la vez que se <strong>de</strong>spreciaba lo sobrenatural (el shamanismo,<br />

la magia en suma), prueba clara <strong>de</strong> irracionali<strong>da</strong>d.<br />

É necessário ressaltar que Sánchez Labrador estabelecerá<br />

contínuas relações e comparações entre as práticas curativas<br />

indígenas e as europeias, fun<strong>da</strong>mentando suas observações<br />

no conhecimento divulgado por autori<strong>da</strong><strong>de</strong>s em <strong>Medicina</strong>.<br />

Em algumas situações, contudo, ele contestará algumas <strong>da</strong>s<br />

concepções europeias, contrapondo-as às observações e às<br />

experiências que realizou durante o período <strong>de</strong> atuação como<br />

missionário. Em alguns momentos, no entanto, sua narrativa<br />

parece sobrepor as experiências que vivenciou na América<br />

ca<strong>da</strong>s <strong>da</strong> medicina romana. É conhecido por ter <strong>de</strong>fendido que a saú<strong>de</strong> do homem<br />

<strong>de</strong>pendia do equilíbrio dos quatro humores, assim como havia afirmado Hipócrates<br />

(460-377 a.C.).<br />

àquelas próprias <strong>de</strong> seu período <strong>de</strong> formação e às que viverá<br />

na Europa durante o exílio.<br />

Uma <strong>da</strong>s ocasiões em que fica claro que o relato se refere<br />

às experiências na América é quando ele menciona que<br />

presenciou dois inteligentes ou sábios indígenas preparando<br />

grilos, com o propósito <strong>de</strong> curar um índio que se encontrava<br />

enfermo, e confirma que o procedimento teve resultados positivos.<br />

Essa prática <strong>de</strong> nomeação ou adjetivação dos indígenas<br />

traz consigo um caráter <strong>de</strong> distinção, na medi<strong>da</strong> em que não<br />

são iguais aos cientistas europeus, mas se diferenciam dos <strong>de</strong>mais<br />

indígenas. François Hartog (1999, p. 259, grifo do autor)<br />

explica que a nomeação do outro faz parte do processo <strong>da</strong><br />

retórica <strong>da</strong> alteri<strong>da</strong><strong>de</strong> e envolve, principalmente, a classificação<br />

<strong>de</strong>ste outro, que seria essencial, pois, “classificando o outro,<br />

classifico-me a mim mesmo e tudo se passa como se a tradução<br />

se fizesse sempre na esfera <strong>da</strong> versão”.<br />

É bastante provável que, mesmo não <strong>de</strong>marcando claramente<br />

estas distinções com frequência, Sánchez Labrador<br />

estivesse registrando os saberes e as práticas indígenas que se<br />

valiam <strong>de</strong> plantas e <strong>de</strong> insetos a partir <strong>de</strong> seu conhecimento<br />

prévio, tanto através <strong>de</strong> leituras feitas ain<strong>da</strong> na Europa ou na<br />

biblioteca do Colégio <strong>de</strong> Córdoba quanto do diálogo que estabelecerá<br />

com médicos e cientistas – e com suas obras – durante<br />

o seu exílio em Ravena, período durante o qual se <strong>de</strong>dicou<br />

à sistematização <strong>da</strong>s informações levanta<strong>da</strong>s na América e à<br />

escrita <strong>de</strong> Paraguay católico e Paraguay natural.<br />

CONSIDERAÇÕES FINAIS<br />

A análise <strong>da</strong>s <strong>de</strong>scrições <strong>da</strong>s práticas curativas indígenas<br />

e a i<strong>de</strong>ntificação <strong>da</strong>s possíveis razões para as interpretações<br />

<strong>da</strong>s virtu<strong>de</strong>s terapêuticas dos insetos americanos, na obra Paraguay<br />

Natural Ilustrado, possibilitam um produtivo exercício<br />

<strong>de</strong> reflexão sobre os efeitos <strong>da</strong> experiência missionária e do<br />

contato com a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> americana sobre homens com sóli<strong>da</strong><br />

formação européia, como o padre jesuíta José Sánchez Labrador.<br />

A utilização <strong>de</strong> insetos pela medicina bem como suas indicações<br />

e modos <strong>de</strong> preparo po<strong>de</strong>m provocar certo estranhamento<br />

ao leitor <strong>da</strong> atuali<strong>da</strong><strong>de</strong> por se tratarem, evi<strong>de</strong>ntemente,<br />

MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje 21


Para além <strong>da</strong> medicina <strong>da</strong> alma<br />

<strong>de</strong> práticas terapêuticas bastante diferencia<strong>da</strong>s. To<strong>da</strong>via, Sánchez<br />

Labrador apresenta suas virtu<strong>de</strong>s e indicações, tencionando<br />

sua a<strong>de</strong>quação ao sistema europeu e à teoria humoralista<br />

hipocrático-galênica, em consonância com a sua condição <strong>de</strong><br />

europeu e religioso, não <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>rando os saberes próprios<br />

dos grupos indígenas com os quais conviveu.<br />

Nesse sentido, é importante ressaltar a posição privilegia<strong>da</strong><br />

ocupa<strong>da</strong> pelos jesuítas missionários na produção e divulgação<br />

do conhecimento científico e etnográfico americano.<br />

Como bem observado por alguns estudiosos, eles cumpriram<br />

“[…] una importante función en la búsque<strong>da</strong> <strong>de</strong> información,<br />

pois se encontravam fisicamente na América, conviviendo con<br />

los indígenas y en un medio ambiente lleno <strong>de</strong> objetos naturales<br />

‘novedosos’ y por lo tanto esperando su catalogación<br />

[…]” (VALLE, 2009, p. 52).<br />

Assim como muitos outros padres e irmãos jesuítas que<br />

o prece<strong>de</strong>ram nas terras <strong>de</strong> missão americanas, Sánchez Labrador<br />

<strong>de</strong>dicou-se também à <strong>de</strong>scrição e à interpretação <strong>da</strong>s<br />

práticas indígenas e <strong>da</strong> natureza americana. A <strong>de</strong>speito <strong>de</strong> seu<br />

inequívoco eurocentrismo, a obra Paraguay Natural Ilustrado<br />

– como procuramos <strong>de</strong>monstrar neste capítulo – constitui-se<br />

em valiosa contribuição para o entendimento dos efeitos <strong>da</strong><br />

reali<strong>da</strong><strong>de</strong> americana sobre as concepções dos missionários e<br />

para a reconstituição dos saberes e práticas dos grupos indígenas<br />

americanos.<br />

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MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje


Para além <strong>da</strong> medicina <strong>da</strong> alma<br />

HARTOG, François. Fronteira e alteri<strong>da</strong><strong>de</strong>. Uma retórica <strong>da</strong> alteri<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

In: HARTOG, François. O espelho <strong>de</strong> Heródoto: ensaio sobre a<br />

representação do outro. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999, p. 97-<br />

141; 229-271.<br />

HUFFINE, Kristin. Raising Paraguay from <strong>de</strong>cline: memory, ethnography,<br />

and natural history in the eighteenth-century accounts of<br />

the Jesuit fathers. In: FIGUEROA, Luis Millones; LEDEZMA, Domingo<br />

(eds.). El saber <strong>de</strong> los jesuitas, historias naturales y el Nuevo Mundo.<br />

Madrid: Iberoamericana, 2005, p. 279-302.<br />

LABORATÓRIO <strong>de</strong> Tecnologia Educacional, Departamento <strong>de</strong> Bioquímica,<br />

Instituto <strong>de</strong> Biologia. Química Nova Interativa: Socie<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

Brasileira <strong>de</strong> Química. Disponível em: Acesso em: 11 out. 2014.<br />

LABRADOR, José Sánchez. Paraguay natural ilustrado. Noticias <strong>de</strong>l<br />

pais, con la explicación <strong>de</strong> phenomenos physicos generales y particulares:<br />

usos útiles, que <strong>de</strong> sus producciones pue<strong>de</strong>n hacer varias<br />

artes. Parte Quarta, contiene los libros siguientes. I. De los Animales<br />

Amphybios. II. De los Animales Reptiles. III. De los Insectos. (Manuscrito<br />

inédito), Ravenna, 1771, 373 p.<br />

LONGARICA, Alfredo Kohn. La historiografia medica: 1958-1988.<br />

In: Historiografia Argentina 1958-1988: una evaluación crítica <strong>de</strong> la<br />

producción histórica nacional. Buenos Aires: Comité Internacional<br />

<strong>de</strong> Ciencias Históricas (Comité Argentino), 1988.<br />

MORENO, Aníbal Ruiz. La medicina en “el Paraguay natural” (1771-<br />

1776) <strong>de</strong>l P. Jose Sánchez Labrador S. J.: exposición comenta<strong>da</strong> <strong>de</strong>l<br />

texto original. Tucuman: Universi<strong>da</strong>d Nacional <strong>de</strong> Tucuman, 1948.<br />

SAINZ OLLERO, Héctor; SAINZ OLLERO, Helios; CARDONA, Francisco<br />

Suárez; ONTAÑÓN, Miguel Vázquez <strong>de</strong> Castro. José Sánchez Labrador<br />

y los naturalistas jesuitas <strong>de</strong>l Río <strong>de</strong> la Plata. Madrid: Mopu,<br />

1989.<br />

VALLE, Ivonne <strong>de</strong>l. Escribiendo <strong>de</strong>s<strong>de</strong> los márgenes: colonialismo y<br />

jesuítas em el siglo XVIII. México: Siglo XXI, 2009.<br />

MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje 23


A medicina missioneira entre a ciência europeia e os saberes nativos<br />

A MEDICINA MISSIONEIRA<br />

ENTRE A CIÊNCIA EUROPEIA<br />

E OS SABERES NATIVOS<br />

ROBERTO POLETTO<br />

Mestre em <strong>História</strong>. Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS<br />

24<br />

MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje


I<br />

NTRODUÇÃO<br />

A medicina missioneira entre a ciência europeia e os saberes nativos<br />

Um observador curioso, ao pensar na medicina atual, ro<strong>de</strong>a<strong>da</strong><br />

<strong>de</strong> aparatos tecnológicos e em avanço constante, po<strong>de</strong><br />

não ter claras as dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s que cercaram a área historicamente.<br />

A evolução dos conhecimentos foi permea<strong>da</strong> <strong>de</strong> erros<br />

e acertos, progressos e retrocessos, muitas vezes acompanhados<br />

do cerceamento <strong>da</strong>s possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> estudo e, consequentemente,<br />

do ritmo com que o ser humano se apropriou<br />

<strong>da</strong>s potenciali<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>da</strong> natureza e <strong>de</strong> um aparato científico<br />

que nos permitisse chegar ao estágio atual.<br />

Entre os séculos XVII e XVIII, os saberes ligados à área<br />

médica, principalmente em se tratando <strong>da</strong> Península Ibérica<br />

e suas colônias ultramarinas, ain<strong>da</strong> estavam amplamente<br />

conectados aos conhecimentos clássicos que remontam à<br />

Grécia e Roma, tendo como expoentes máximos os autores<br />

Hipócrates 1 e Galeno 2 . Porém, isso não impedia que muitos<br />

dos escritores <strong>de</strong> medicina do período estivessem abertos às<br />

1 Sobre Hipócrates, “sabe-se que nasceu na ilha <strong>de</strong> Cós, <strong>de</strong> uma família <strong>de</strong> antigas<br />

tradições médicas, filho <strong>de</strong> um médico que foi o seu primeiro mestre. Os autores<br />

concor<strong>da</strong>m em fixar a <strong>da</strong>ta do seu nascimento cerca do ano 460 a.C. Testemunho<br />

<strong>da</strong> sua existência, que alguns chegaram a pôr em dúvi<strong>da</strong>, é a citação que <strong>de</strong>le faz<br />

Platão, seu contemporâneo embora mais novo, em alguns dos Diálogos” (TAVARES<br />

DE SOUZA, 1996, p. 51).<br />

2 “Nasceu em Pérgamo, ci<strong>da</strong><strong>de</strong> grega <strong>da</strong> Ásia Menor, cerca do ano 130 <strong>da</strong> era<br />

cristã.” (TAVARES DE SOUSA, 1996, p. 110.) “Faleceu cerca do ano 200, [...] escrevera,<br />

além <strong>da</strong>s obras <strong>de</strong> medicina, 125 livros sobre filosofia, matemática, direito<br />

e gramática. Calcula-se em cerca <strong>de</strong> quatrocentas o número <strong>da</strong>s suas obras, uma<br />

gran<strong>de</strong> parte <strong>da</strong>s quais se per<strong>de</strong>u sem que <strong>de</strong>las existissem cópias.” (TAVARES DE<br />

SOUSA, 1996, p. 113.)<br />

MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje 25


A medicina missioneira entre a ciência europeia e os saberes nativos<br />

novas opções que surgiam na área, como, por exemplo, os<br />

conhecimentos ligados à química e aplicados aos saberes médicos.<br />

A América, mas principalmente sua região meridional,<br />

foco principal <strong>de</strong>ste trabalho, encontrava-se nesse período em<br />

gran<strong>de</strong> dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>. Organizados como colônias <strong>de</strong> exploração<br />

3 , esses espaços e, consequentemente, suas populações recebiam<br />

o mínimo necessário para a continui<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> produção<br />

que abastecia a metrópole. A área medicinal não encontrou<br />

reali<strong>da</strong><strong>de</strong> diversa, sendo que poucos eram os médicos que circulavam<br />

pela região no período, o que abriu espaço para a<br />

atuação caritativa dos membros <strong>da</strong> Companhia <strong>de</strong> Jesus na<br />

área medicinal.<br />

O objetivo <strong>de</strong>ste trabalho é, através <strong>da</strong> documentação<br />

cria<strong>da</strong> pelos jesuítas, entre as quais se <strong>de</strong>stacam cartas pessoais,<br />

as Cartas Ânuas 4 e manuais <strong>de</strong> medicina, como, por<br />

exemplo, a Materia medica misionera 5 , apresentar como se<br />

construiu o conhecimento medicinal <strong>da</strong> região, seus intercâmbios<br />

com a Europa e as relações entre seus mais diversos<br />

agentes, on<strong>de</strong> estão incluídos também nativos, criollos<br />

e outros sujeitos que circularam pela América Meridional.<br />

Documentos gerados após a expulsão dos membros <strong>da</strong> Or<strong>de</strong>m<br />

6 , tais como os inventários <strong>da</strong>s boticas dos Colégios <strong>de</strong><br />

Córdoba e do Rio <strong>de</strong> Janeiro, assim como <strong>de</strong> alguns pueblos<br />

<strong>da</strong> área hispânica, também foram <strong>de</strong> suma importância para<br />

analisarmos o alcance e distribuição <strong>de</strong> obras e medicamentos<br />

na região.<br />

3 “[...] As colônias <strong>de</strong> exploração povoam-se para explorar (isto é, produzir para o<br />

mercado metropolitano), as <strong>de</strong> povoamento exploram os recursos do ambiente no<br />

fun<strong>da</strong>mental para prover o seu próprio mercado (isto é, exploração para o povoamento)<br />

[...].” Ver: <br />

4 As Cartas Ânuas são relatos produzidos pelos jesuítas em missão, retratando suas<br />

experiências na América Meridional, em especial na Província do Paraguai. As<br />

Ânuas dos séculos XVII e XVIII que analisamos se encontram no Acervo do Arquivo<br />

do Instituto Anchietano <strong>de</strong> Pesquisa, que funciona junto à Antiga Se<strong>de</strong> <strong>da</strong> Unisinos;<br />

já os seus originais, escritos em espanhol arcaico, se encontram no Colégio<br />

Del Salvador, em Buenos Aires, Argentina. Alguns trechos não foram transcritos<br />

<strong>de</strong>vido às condições em que se encontravam os originais, o que impe<strong>de</strong>, em alguns<br />

momentos, a continui<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> leitura e a compreensão; além disso, existem hiatos<br />

<strong>de</strong> tempo entre as cartas disponíveis para consulta.<br />

5 Obra escrita pelo irmão jesuíta Pedro Montenegro, finaliza<strong>da</strong> no ano <strong>de</strong> 1710.<br />

6 Os jesuítas foram expulsos <strong>da</strong> América portuguesa durante o governo <strong>de</strong> Pombal,<br />

no ano <strong>de</strong> 1759. Da Espanha e suas possessões, os jesuítas seriam expulsos alguns<br />

anos <strong>de</strong>pois, em 1767.<br />

DESENVOLVIMENTO<br />

Como já pontuamos rapi<strong>da</strong>mente na introdução, a região<br />

contempla<strong>da</strong> em nosso trabalho era pouquíssimo atendi<strong>da</strong><br />

no que se refere ao campo medicinal. Pedro Montenegro,<br />

escrevendo no início do século XVIII, já pontuava a reali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

que encontrou na América, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que aqui havia chegado,<br />

em 1691:<br />

[…] En 21 años que há que entré en ella, solo un<br />

Medico y Cirujano he visto, todos los <strong>de</strong>mas Medicos<br />

Curan<strong>de</strong>ros y Curan<strong>de</strong>ras; mas les cuadra el<br />

nombre <strong>de</strong> matasano, que el <strong>de</strong> Cirujano, y el <strong>de</strong><br />

carnicero que el <strong>de</strong> medico, ó curan<strong>de</strong>ro, y son tantos<br />

y tantas los <strong>da</strong>dos á esta secta <strong>de</strong> locos, que<br />

entre tal ganado poco ó na<strong>da</strong> hay que escojer, y<br />

cierto es, que á ellos les fuera mejor arar para sustentarse,<br />

y á ellas hilar la rueca, que ciegos y cargados<br />

<strong>de</strong> ignorancia, sin advertir el peligro <strong>de</strong> sus<br />

conciencias […] (MONTENEGRO, [1710], 1945, p.<br />

6-7).<br />

Um dos motivos citados pelo irmão jesuíta para escrever<br />

seu receituário era justamente a falta <strong>de</strong> materiais e textos<br />

a<strong>de</strong>quados para a consulta <strong>da</strong> população local e <strong>de</strong>le próprio,<br />

assim a obra serviria como uma sistematização <strong>de</strong> conhecimentos<br />

sobre as plantas locais. Pelo que se percebe, a reali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

não havia se alterado muito após a expulsão dos jesuítas,<br />

fato que se <strong>de</strong>preen<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma ata do Cabildo <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

Córdoba, citando a expulsão do responsável pela botica do<br />

Colégio, o padre Tomás Falkner: “[...] ha que<strong>da</strong>do la ciu<strong>da</strong>d<br />

sin medico que asista las continuas enferme<strong>da</strong><strong>de</strong>s que diariamente<br />

se experimentan por haber caminado el Padre Thomas<br />

D. Falcone (sic) <strong>de</strong> dicha Compañía que asistía a los enfermos<br />

que en ésta había” (FURLONG, 1947, p. 17).<br />

É importante <strong>de</strong>stacarmos que a atuação dos membros<br />

<strong>da</strong> Or<strong>de</strong>m junto às artes <strong>de</strong> curar não era algo realizado sem<br />

restrições. Des<strong>de</strong> o ano <strong>de</strong> 1163, os religiosos foram proibidos<br />

<strong>de</strong> atuar em tais ofícios pelo Papa Alexandre III. Um trecho do<br />

direito canônico <strong>de</strong>staca que: “los clérigos han <strong>de</strong> evitar, no<br />

26<br />

MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje


A medicina missioneira entre a ciência europeia e os saberes nativos<br />

sólo lo que es in<strong>de</strong>coroso, sino también lo que es ajeno a su<br />

estado. Sin indulto apostólico no <strong>de</strong>ben ejercer la medicina ni<br />

la cirugía [...]” (LEONHARDT, 1937, p. 101). Contudo, <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />

o ano <strong>de</strong> 1576, uma Bula Papal – <strong>de</strong> Gregório XIII – <strong>da</strong>va permissão<br />

aos jesuítas para exercerem ofícios ligados à cura. Essa<br />

prática, porém, não po<strong>de</strong>ria se <strong>da</strong>r <strong>de</strong> maneira indiscrimina<strong>da</strong>.<br />

Somente membros “entendidos en medicina” po<strong>de</strong>riam atuar<br />

e apenas “en el caso <strong>de</strong> que no pue<strong>da</strong> como<strong>da</strong>mente acudir a<br />

los médicos seglares” (LEONHARDT, 1937, p. 103-104).<br />

Assim, a falta <strong>de</strong> profissionais a<strong>de</strong>quados soma<strong>da</strong> à necessi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> atendimento e à prática <strong>da</strong> cari<strong>da</strong><strong>de</strong> cristã, prerrogativa<br />

básica na atuação <strong>da</strong> Companhia <strong>de</strong> Jesus, levaram<br />

muitos dos membros a funções liga<strong>da</strong>s às artes <strong>de</strong> curar. Muitos<br />

<strong>de</strong>les tinham sabi<strong>da</strong> formação para atuarem nesses ofícios,<br />

caso do já citado Tomás Falkner, formado em <strong>Medicina</strong><br />

na Inglaterra, dos médicos Segismundo Asperger e Heinrich<br />

Peschke, do enfermeiro/boticário Pedro Montenegro, entre<br />

tantos outros.<br />

A escassez <strong>de</strong> profissionais, no entanto, <strong>de</strong>terminava que<br />

esses sujeitos muitas vezes tivessem que se <strong>de</strong>sdobrar em mais<br />

<strong>de</strong> uma função, pois, ain<strong>da</strong> que os limites entre a atuação <strong>de</strong><br />

uma e outra profissão já estivessem bem <strong>de</strong>termina<strong>da</strong>s pelo<br />

Protomedicato espanhol 7 , a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> os obrigava a transitar<br />

entre os diversos ofícios. A narrativa apresenta<strong>da</strong> para tais<br />

situações procura exprimir um sentimento <strong>de</strong> resignação, típico<br />

<strong>da</strong> escrita jesuítica: “El boticario tiene aquí que <strong>de</strong>sempeñar<br />

el oficio <strong>de</strong> médico. [...] a veces en medio <strong>de</strong> tempesta<strong>de</strong>s,<br />

otras con calor sofocante” (PESCHKE apud FURLONG, 1947,<br />

p. 94).<br />

A carta supracita<strong>da</strong>, no entanto, foi envia<strong>da</strong> por Peschke<br />

aos seus pais e, nesse tipo <strong>de</strong> documento não oficial, era comum<br />

que alguns membros <strong>da</strong> Or<strong>de</strong>m acabassem não utilizando<br />

uma escrita formal, permitindo-se pequenos <strong>de</strong>svios do discurso<br />

esperado. Talvez para saciar a curiosi<strong>da</strong><strong>de</strong> dos parentes<br />

que estavam na Europa ou mesmo para se consolar sobre a<br />

situação <strong>de</strong> dificul<strong>da</strong><strong>de</strong> em que viviam, esses trechos evi<strong>de</strong>n-<br />

ciam o esgotamento físico e psicológico aos quais estavam<br />

submetidos estes homens em terras tão longevas, com poucos<br />

companheiros e recursos para auxiliar na conversão e no combate<br />

às doenças, como segue em outro fragmento <strong>da</strong> carta:<br />

Me han entregado la Botica [<strong>de</strong>l Colegio y Universi<strong>da</strong>d]<br />

para que la establezca en regla, pues antes<br />

<strong>de</strong> mi llega<strong>da</strong>, no se sabía aquí na<strong>da</strong> acerca <strong>de</strong> un<br />

facultativo <strong>de</strong> esta clase, aún sólo <strong>de</strong> barberos; medicinas<br />

útiles encontré muy pocas, pero en tanto<br />

mayor abun<strong>da</strong>ncia los más ridículos remedios <strong>de</strong><br />

curan<strong>de</strong>ros. (PESCHKE apud FURLONG, 1947, p.<br />

94).<br />

Outro fator originado pela falta <strong>de</strong> pessoal era a permissão<br />

<strong>de</strong> que pessoas sem conhecimento técnico auxiliassem no<br />

enfrentamento <strong>de</strong> doenças, tanto que, em diversos momentos,<br />

foram os indígenas, por vezes <strong>de</strong>sacreditados como “supersticiosos”,<br />

que apresentaram alternativas para a cura <strong>de</strong><br />

diversas moléstias, indicando plantas, procedimentos, formas<br />

e quanti<strong>da</strong><strong>de</strong>s que <strong>de</strong>veriam ser utiliza<strong>da</strong>s. 8<br />

No entanto, a confirmação <strong>da</strong> eficácia <strong>de</strong>sses conhecimentos<br />

seria necessária através <strong>da</strong> experiência, e os informantes<br />

<strong>de</strong>veriam possuir quali<strong>da</strong><strong>de</strong>s que os distinguissem dos<br />

<strong>de</strong>mais membros do grupo; fatores que po<strong>de</strong>m ter sido <strong>de</strong>stacados<br />

na narrativa como forma <strong>de</strong> <strong>de</strong>monstrar não apenas<br />

a eficácia do tratamento apresentado, mas também <strong>da</strong> catequização,<br />

objetivo maior dos jesuítas. Montenegro citou em<br />

alguns trechos <strong>de</strong> sua Materia medica misionera ter recebido<br />

indicações sobre plantas medicinais <strong>de</strong> certo indígena, “bom<br />

cristão”, chamado Clemente. Sobre o dito nativo, o jesuíta fez<br />

o seguinte comentário: “El tal Indio es cierto, es el único que<br />

hallo en to<strong>da</strong>s las Doctrinas, que tenga conocimiento <strong>de</strong> yerbas,<br />

y sepa usar <strong>de</strong> ellas con pru<strong>de</strong>ncia y acierto, <strong>de</strong>l cual me<br />

aseguré <strong>de</strong>l nombre ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ro <strong>de</strong> muchas yerbas y palos […]”<br />

(MONTENEGRO, [1710], 1945, p. 314).<br />

7 A legislação do período sobre a organização <strong>da</strong>s funções liga<strong>da</strong>s à medicina na<br />

Espanha e suas colônias po<strong>de</strong> ser encontra<strong>da</strong> na Recompilação <strong>da</strong>s Leis do Protomedicato:<br />

MUÑOZ, Miguel Eugenio (org.). Recopilacion <strong>de</strong> las leyes, pragmáticas<br />

reales, <strong>de</strong>cretos, y acuerdos <strong>de</strong>l Real Proto-Medicato. Valência: En la Imprenta <strong>de</strong><br />

la Viu<strong>da</strong> <strong>de</strong> Antonio Bor<strong>da</strong>zar, 1751.<br />

8 Sobre o tema, ver: FLECK, Eliane Cristina Deckmann; POLETTO, Roberto. Esto es lo<br />

que yo buscaba [...] el conocimiento <strong>de</strong> las yerbas y su aplicación. Anos 90, UFRGS,<br />

v. 19, p. 411-436, 2012. PERUSSET, Macarena. La ocupación indígena <strong>de</strong>l territorio<br />

rioplatense: intercambios culturales durante el período colonial (siglos XVI- XVII).<br />

Revista Complutense, v. 38, p. 9-32, 2012.<br />

MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje 27


A medicina missioneira entre a ciência europeia e os saberes nativos<br />

Outra motivação que po<strong>de</strong> ter levado o jesuíta a citar a<br />

aprendizagem junto a um indígena e vincular seus conhecimentos<br />

ao fato <strong>de</strong> este ser cristão é a busca por legitimação<br />

frente aos seus leitores. Para um jesuíta europeu, ain<strong>da</strong> que<br />

convivendo com grupos nativos e buscando orientá-los no caminho<br />

<strong>da</strong> fé, não seria <strong>de</strong> bom tom citar livremente um indígena.<br />

9 Fato é que as entrelinhas <strong>de</strong>sses textos nos permitem ver,<br />

na atuali<strong>da</strong><strong>de</strong>, como os intercâmbios entre jesuítas (europeus)<br />

e indígenas (nativos) se constituíam e sua importância para o<br />

avanço do conhecimento sobre as proprie<strong>da</strong><strong>de</strong>s curativas presentes<br />

na América.<br />

Importante lembrarmos também que o universo encontrado<br />

por esse autor na transição do XVII para o XVIII já contemplava<br />

outros grupos, que não apenas os nativos, como<br />

parte integrante <strong>de</strong>sse universo americano, o que também<br />

transparece em sua narrativa. Ao citar as diversas quali<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

do tabaco, faz a seguinte referência: “pondré aquí algunas<br />

muy eficaces, que yo he hallado entre los Españoles, y Indios,<br />

muy necesarias á la pobreza <strong>de</strong> estas tierras tan faltas <strong>de</strong> médicos<br />

y medicinas, y mayormente <strong>de</strong> Cirujanos péritos” (MON-<br />

TENEGRO, [1710], 1945, p. 348). Por espanhóis, é provável<br />

que o autor se referisse aos grupos <strong>de</strong> criollos estabelecidos<br />

na região, por tal razão já integrados ao território americano<br />

e aptos a contribuir para a formação e organização <strong>de</strong>sse conhecimento<br />

sobre a região.<br />

A construção <strong>de</strong>sse arsenal <strong>de</strong> informações, no entanto,<br />

enfrentou diversos obstáculos para além do <strong>de</strong>sconhecimento<br />

<strong>da</strong> região por parte dos europeus que aqui chegavam. O número<br />

limitado <strong>de</strong> obras que pu<strong>de</strong>ssem servir <strong>de</strong> referenciais, as<br />

gran<strong>de</strong>s distâncias a percorrer até se chegar às missões, assim<br />

como os interesses <strong>de</strong> particulares foram entraves <strong>de</strong>terminantes<br />

para o avanço <strong>da</strong> ciência missioneira.<br />

Com relação aos manuais <strong>de</strong> medicina, é preciso pontuar<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início as dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s encontra<strong>da</strong>s para uma análise<br />

plena <strong>da</strong>s obras disponíveis, assim como dos conhecimentos<br />

9 Sobre o protagonismo europeu na relação <strong>de</strong> construção <strong>de</strong>sse conhecimento,<br />

<strong>de</strong>stacamos um trecho <strong>de</strong> nossa dissertação <strong>de</strong> mestrado: “[...] apesar <strong>da</strong> contribuição<br />

dos povos nativos ter sido inegável na construção <strong>de</strong>ste conhecimento, percebe-se<br />

o interesse <strong>de</strong> Montenegro em <strong>de</strong>monstrar que os principais agentes <strong>de</strong>sse<br />

conhecimento eram os europeus. Os nativos po<strong>de</strong>riam <strong>de</strong>ter os saberes sobre flora<br />

e fauna, mas cabia aos europeus organizá-los e, por que não dizer, domesticá-los”<br />

(POLETTO, 2014, p. 122).<br />

neles contidos. O melhor caminho para o levantamento <strong>de</strong>ssa<br />

documentação é a análise dos inventários realizados após a<br />

expulsão <strong>da</strong> Companhia <strong>de</strong> Jesus. Porém, mesmo aí, as limitações<br />

são imensas. Diversos são os estilos literários encontrados<br />

entre as obras arrola<strong>da</strong>s, <strong>de</strong>stacando-se: “vi<strong>da</strong>s <strong>de</strong> padres<br />

e santos”, “obras filosóficas”, “obras morais”, “obras sobre o<br />

trabalho e normas <strong>da</strong> Companhia <strong>de</strong> Jesus”, “obras para o<br />

bem morrer” e “Teologia”. Em menor número, são encontrados<br />

livros sobre cozinha, arquitetura, direito, medicina, entre<br />

outros. 10<br />

Quando arrolados no inventário, os livros pertencentes à<br />

Biblioteca do Colégio <strong>de</strong> Córdoba foram organizados trazendo<br />

apenas o sobrenome do autor, sem citar qual a obra, ou citando<br />

a obra sem mencionar o autor. Seguem alguns exemplos:<br />

“Matta Sermoen’z, quarto, hum tomo; Porres Sermoen’z,<br />

quarto, tomos trez.; Fascet <strong>de</strong> Mirra, outavo, hum tomo; Carlhusianus<br />

<strong>de</strong> quatuos novisimis, o outavo hum tomo” (AHUNC,<br />

1772, caja 10, legajo 2). 11 No inventário do Rio <strong>de</strong> Janeiro, a<br />

sistemática utiliza<strong>da</strong> foi a mesma.<br />

Qual o porquê <strong>da</strong> opção pela referência somente ao sobrenome<br />

do autor ou ao nome <strong>da</strong> obra? Uma hipótese é a<br />

<strong>da</strong> pratici<strong>da</strong><strong>de</strong>, sendo que o inventariante escreveria apenas o<br />

início <strong>da</strong> porta<strong>da</strong> <strong>da</strong> obra, conforme ela aparecesse, po<strong>de</strong>ndo<br />

assim iniciar por sobrenome ou título. Outra conjectura possível<br />

seria <strong>de</strong> que a obra ou o autor fosse plenamente conhecido<br />

no período, sendo <strong>de</strong>snecessária uma explicação maior. Essa<br />

explicação po<strong>de</strong>ria se sustentar se consi<strong>de</strong>rássemos exclusivamente<br />

a botica, on<strong>de</strong> os livros ten<strong>de</strong>riam a estar concentrados<br />

no mesmo tema; ao pensarmos o universo <strong>da</strong> biblioteca do<br />

Colégio, contendo obras <strong>de</strong> todos os estilos, fica claro que seria<br />

impossível ao inventariante ter domínio sobre os livros <strong>da</strong>s<br />

mais diversas áreas.<br />

Em Córdoba, um bom número <strong>de</strong> obras liga<strong>da</strong>s às artes<br />

<strong>de</strong> curar foi inventariado tanto no Colégio quanto na livraria<br />

<strong>da</strong> botica, on<strong>de</strong> obviamente era esperado que fossem encontrados<br />

mais livros ligados à área. No Colégio, localizamos 80<br />

10 As nomenclaturas dos estilos literários foram livremente atribuí<strong>da</strong>s por nós como<br />

forma <strong>de</strong> organização dos documentos.<br />

11 Além <strong>de</strong> dificultar o reconhecimento <strong>da</strong> obra e seu estilo literário, essa forma <strong>de</strong><br />

organização torna praticamente impossível a busca pela internet, principal porta <strong>de</strong><br />

acesso a estes documentos.<br />

28<br />

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A medicina missioneira entre a ciência europeia e os saberes nativos<br />

obras relaciona<strong>da</strong>s a medicina e assim as categorizamos, consi<strong>de</strong>rando<br />

apenas o título, já que não tivemos acesso à maioria<br />

dos livros: <strong>Medicina</strong>, 31; Farmácia/ Botânica, 18; Moral, 13;<br />

Cirurgia, 8; Astrologia/ Astronomia, 5; Química, 4; Enfermaria,<br />

1. Na botica, os manuais médicos foram inventariados,<br />

consi<strong>de</strong>rando seu estilo, mas sem fazer referência ao nome do<br />

autor ou ao título <strong>da</strong> obra. São 75 livros, assim organizados:<br />

Prim. a m. te 14 libros <strong>de</strong> folio, y uno enquarto ma. or<br />

<strong>de</strong> var. s farmacospeas que tasaron a ocho pesos<br />

ca<strong>da</strong> uno… D120 Yt; 15 libros en folio medicinales<br />

<strong>de</strong> varios autores que tasaron a 8 p.s ca<strong>da</strong> uno…<br />

D120 Yt; 15 libro <strong>de</strong> quarto ma.or <strong>de</strong> cirujia, y <strong>Medicina</strong><br />

<strong>de</strong> distintos autores q.e tasaron à tres pesos….<br />

D045. Yt.; 30 libros <strong>de</strong> aquarto ma.r y mas<br />

chicos en lengua Alemana <strong>de</strong> varios autores, que<br />

no se entien<strong>de</strong>n los que no se tasaron, por falta <strong>de</strong><br />

Ynteligencia…. D Fólio 4599r. Suma ant. r ...; Yt. un<br />

libro manuscrito <strong>de</strong> quentas particulares q.e llevava<br />

el P.e (padre) Boticario con algunas foxas escritas<br />

[…] (AHUNC, 1772, caja 10, legajo 2).<br />

Po<strong>de</strong>mos observar três categorias bem evi<strong>de</strong>ncia<strong>da</strong>s:<br />

<strong>Medicina</strong>, Farmácia/ Botânica e Cirurgia. Chama a atenção o<br />

gran<strong>de</strong> número <strong>de</strong> obras em língua alemã, o que se explica<br />

também pela gran<strong>de</strong> presença <strong>de</strong> jesuítas <strong>da</strong> Europa Centro-Oriental<br />

nas missões <strong>da</strong> América Meridional durante esse período,<br />

sendo que os já citados Peschke e Asperger se enquadram<br />

nesse grupo <strong>de</strong> missionários.<br />

Comparativamente, o Colégio do Rio <strong>de</strong> Janeiro possui<br />

um número inexpressivo <strong>de</strong> obras, sendo que apenas dois autores<br />

sabi<strong>da</strong>mente ligados aos ofícios médicos foram relacionados:<br />

o espanhol Rybeira e o português Curvo Semmedo,<br />

um dos mais conhecidos médicos portugueses do século XVII,<br />

autor <strong>da</strong> Polianthea medicinal. O reconhecimento a estes autores<br />

po<strong>de</strong> ser mensurado pelo fato <strong>de</strong> ambos também terem<br />

tido seus tratados arrolados na biblioteca <strong>de</strong> Córdoba. Outras<br />

obras utilizam o termo medicina, porém liga<strong>da</strong>s a questões<br />

morais. A título <strong>de</strong> exemplo, <strong>de</strong>stacamos aqui a Polianthea<br />

eucaristica, o Proptuario moral e a <strong>Medicina</strong> <strong>de</strong>l alma.<br />

Na botica do Colégio do Rio <strong>de</strong> Janeiro, consi<strong>de</strong>ramos<br />

apenas os livros que faziam referência ao título ou tema, pois<br />

muitos, como em Córdoba, contavam apenas com o sobrenome<br />

do autor. Pu<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>stacar 40 livros, organizados em quatro<br />

categorias, como seguem: Farmácia/Botica, 22; <strong>Medicina</strong>,<br />

9; Química, 5; Cirurgia, 4. Percebe-se aqui uma nova categoria<br />

<strong>de</strong> obras liga<strong>da</strong>s à química, sobre o que falaremos na sequência<br />

do trabalho. Também foram i<strong>de</strong>ntificados textos sobre a<br />

vi<strong>da</strong> <strong>de</strong> santos, preparação para a eterni<strong>da</strong><strong>de</strong>, agricultura etc.<br />

A diferença <strong>de</strong> proporção entre os Colégios <strong>de</strong> Córdoba<br />

e do Rio <strong>de</strong> Janeiro é difícil <strong>de</strong> ser explica<strong>da</strong>. Po<strong>de</strong>-se inferir<br />

uma diferença na forma <strong>de</strong> organização entre os jesuítas <strong>de</strong><br />

um e outro local ou mesmo pensar que, durante a realização<br />

do inventário, as obras medicinais do Colégio do Rio <strong>de</strong> Janeiro<br />

tenham sido transferi<strong>da</strong>s para a botica, já que este espaço<br />

geralmente ficava anexo ao prédio do Colégio e <strong>da</strong> residência<br />

dos jesuítas. 12<br />

Porém, a situação mu<strong>da</strong> completamente quando analisamos<br />

os inventários realizados nos pueblos. Ao contrário <strong>de</strong><br />

Córdoba e do Rio <strong>de</strong> Janeiro, que apesar <strong>da</strong>s dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s concernentes<br />

ao período já eram dois gran<strong>de</strong>s centros, as missões<br />

estavam localiza<strong>da</strong>s em regiões muitas vezes afasta<strong>da</strong>s e <strong>de</strong><br />

difícil acesso. No ano <strong>de</strong> 1767, a missão <strong>de</strong> Apóstoles contava<br />

com pouco mais <strong>de</strong> 150 livros em sua biblioteca, porém,<br />

apenas uma obra está diretamente relaciona<strong>da</strong> à medicina:<br />

Obras médico-quirúrgicas <strong>de</strong> Ma<strong>da</strong>me Fouquet. Na missão <strong>de</strong><br />

Mártires, foram relaciona<strong>da</strong>s 149 obras, sendo quatro liga<strong>da</strong>s<br />

à área <strong>da</strong> medicina: Florilegio medicinal, Oto verius medicus,<br />

Chirurgica guidones e Jaquet, Remédios em francês.<br />

A <strong>de</strong>sproporção já era espera<strong>da</strong>, mas o que se observa<br />

é que não havia nenhum manual básico que pu<strong>de</strong>sse guiar os<br />

jesuítas e quaisquer outros agentes ligados à área que necessitassem<br />

<strong>de</strong> um auxílio teórico, para além <strong>da</strong> prática. O já citado<br />

Pedro Montenegro tem atribuí<strong>da</strong> a si a possível autoria ou<br />

12 A indistinção entre um e outro espaço po<strong>de</strong> ser observa<strong>da</strong> quando as Cartas Ânuas<br />

faziam alguma referência aos períodos <strong>de</strong> “peste”: “Vamos hablar ahora <strong>de</strong>l año<br />

<strong>de</strong> 1718, el cual ha sido por su mitad muy triste para los habitantes <strong>de</strong> la ciu<strong>da</strong>d y<br />

<strong>de</strong> sus alre<strong>de</strong>dores, por los estragos <strong>de</strong> la peste. En este tiempo critico acudieron<br />

los nuestros a los afligidos en todo que podían […] y en to<strong>da</strong>s partes, a<strong>de</strong>ntro y<br />

fuera <strong>de</strong> la ciu<strong>da</strong>d, no haciendo distinción entre españoles, indios y morenos. El<br />

colegio proporcionó a los contagiados generosamente to<strong>da</strong> clase <strong>de</strong> medicamentos”<br />

(C.A. 1714-20, [1928], p. 11).<br />

MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje 29


A medicina missioneira entre a ciência europeia e os saberes nativos<br />

mesmo a compilação <strong>de</strong> uma obra chama<strong>da</strong> Libro <strong>de</strong> cirugia. 13<br />

Não se conhece o para<strong>de</strong>iro <strong>da</strong> obra, sendo que restaram somente<br />

alguns fragmentos <strong>de</strong> seu prólogo. 14<br />

Nestes trechos, no entanto, Montenegro, aceitando que<br />

tenha sido ele o compilador, <strong>de</strong>staca seu objetivo principal ao<br />

escrevê-la: “el <strong>de</strong>seo <strong>de</strong> reunir en un Cuerpo, lo que no he<br />

podido hallar en libro alguno, cuanto es preciso teniendo que<br />

caminar continuamente y por diversas partes; no pudiendo<br />

llevar muchos libros que me hallaba falto” (MONTENEGRO,<br />

apud CREMADES, 1999, p. 19).<br />

Assim, a compilação respeitaria às necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>da</strong>quele<br />

que a organizou, consi<strong>de</strong>rando as <strong>de</strong>man<strong>da</strong>s que a socie<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

por ele atendi<strong>da</strong> apresentassem. 15 Além disso, a atitu<strong>de</strong> estava<br />

liga<strong>da</strong> a uma questão prática, pois, mesmo que o autor<br />

possuísse obras relevantes, seria impossível transportá-las pelas<br />

diversas regiões por on<strong>de</strong> teria que an<strong>da</strong>r para aten<strong>de</strong>r aos<br />

enfermos. Em meio a isso, é fun<strong>da</strong>mental que consi<strong>de</strong>remos<br />

também as concepções científicas do jesuíta, assim como suas<br />

ambições em tornar-se, ele também, um autor <strong>de</strong> obra médica.<br />

16<br />

Para aprofun<strong>da</strong>rmos as diferenças entre espaços centrais,<br />

como Córdoba e o Rio <strong>de</strong> Janeiro, com relação às regiões<br />

dos pueblos <strong>de</strong> índios, <strong>de</strong>stacaremos agora outro tipo <strong>de</strong><br />

medicamento que ganhou espaço nas boticas ao longo do<br />

século XVII: os fármacos químicos. A química mo<strong>de</strong>rna aparece<br />

por volta <strong>de</strong> 1600 e, durante o século XVIII, foi diretamente<br />

influencia<strong>da</strong> pela iatroquímica 17 através <strong>de</strong> autores como Bo-<br />

13 O principal <strong>de</strong>fensor <strong>de</strong>ssa i<strong>de</strong>ia foi Guillermo Furlong (1947, p. 74), que assim se<br />

posiciona sobre o tema: “Montenegro es el indiscutido autor <strong>de</strong> la tan zaran<strong>de</strong>a<strong>da</strong><br />

Materia Medica Misionera pero, a nuestro parecer, es el igualmente el autor <strong>de</strong>l<br />

Libro <strong>de</strong> Cirugia que, em 1916, dio a conocer el doctor Félix Garzón Mace<strong>da</strong> en<br />

magna y eruditísima historia <strong>de</strong> la ‘<strong>Medicina</strong> en Córdoba’ ”. Ain<strong>da</strong> que se posicione<br />

favorável à i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que seria Montenegro o autor, Furlong menciona que havia<br />

uma polêmica entre os pesquisadores do tema <strong>de</strong> que o autor pu<strong>de</strong>sse ser um<br />

franciscano conhecido como Pacheco.<br />

14 Os fragmentos do prólogo <strong>da</strong> obra po<strong>de</strong>m ser encontrados em: GARZÓN MACE-<br />

DA, F. La <strong>Medicina</strong> en Córdoba. Apuntes para su Historia. Tomos I-II-III. Buenos<br />

Aires: Talleres Gráficos Rodrígues Giles, 1916 (Edição parcial do Libro <strong>de</strong> Cirugia).<br />

15 Falando sobre a questão dos compêndios, Chartier (apud FAULHABER; LOPES,<br />

2012, p. 60) alerta que “a uni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>pendia <strong>da</strong> vonta<strong>de</strong> do leitor que <strong>de</strong>sejasse<br />

reunir diversas obras em um único livro, ou do copista que <strong>de</strong>cidisse copiar e associar<br />

uma série <strong>de</strong> textos heterogêneos. Essa concepção <strong>de</strong> livro ain<strong>da</strong> estava presente<br />

nos séculos XVI e XVII, no âmbito <strong>de</strong> uma cultura manuscrita que sobreviveu<br />

à invenção <strong>da</strong> imprensa”.<br />

16 Sobre o tema ver o capítulo 4 <strong>de</strong> nossa dissertação, intitulado “O autor <strong>de</strong> botica”.<br />

17 Sobre a Iatroquímica, Nogueira <strong>de</strong>staca que: “po<strong>de</strong> ser compreendi<strong>da</strong> como um<br />

conjunto <strong>de</strong> idéias que explicava o funcionamento do corpo humano e as doenças<br />

segundo processos químicos. Neste contexto, a principal inovação <strong>de</strong>sta escola foi<br />

erhaave e Friedrich Hoffmann. Foi nesta centúria que a química<br />

se consolidou como disciplina científica, distanciando-se <strong>de</strong><br />

ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s como a dos alquimistas e tornando-se ca<strong>da</strong> vez mais<br />

uma ciência específica.<br />

O avanço dos conhecimentos químicos e seu afastamento<br />

<strong>de</strong> outras áreas geraram “um inevitável afastamento<br />

do campo com relação às práticas medicinais”, promovendo<br />

“certa estagnação nos estudos e <strong>de</strong>scobertas <strong>de</strong> fármacos”<br />

(NOGUEIRA, 2009, p. 231). Assim, ao mesmo tempo em que<br />

os medicamentos químicos afirmavam-se, os estudos sobre<br />

eles não conheceram gran<strong>de</strong>s avanços durante aquela centúria.<br />

Po<strong>de</strong>-se supor que os medicamentos <strong>de</strong> origem química,<br />

assim como os tratados sobre o tema, disponíveis no período<br />

analisado, não se alteraram <strong>de</strong> maneira significativa até a expulsão<br />

dos jesuítas.<br />

Como já <strong>de</strong>stacamos ao abor<strong>da</strong>rmos as obras disponíveis<br />

nos inventários, os tratados sobre a medicina química já se<br />

faziam presentes nessa documentação, ain<strong>da</strong> que em número<br />

muito inferior àquelas que eram as ramificações clássicas sobre<br />

as artes <strong>de</strong> curar. Eram cinco obras no Rio <strong>de</strong> Janeiro e quatro<br />

em Córdoba. Aqui cabe ressaltarmos que muitos tratados,<br />

apesar <strong>de</strong> não tratarem o tema <strong>de</strong> maneira específica, já faziam<br />

referências aos usos dos medicamentos químicos, como<br />

fica claro na obra do espanhol Felipe <strong>de</strong> Borbon: “No soy <strong>de</strong> la<br />

opinion <strong>de</strong> aquellos, que con tenaz pasion son enemigos <strong>de</strong> la<br />

Chimica, y practica suya, con<strong>de</strong>nando to<strong>da</strong>s las operaciones<br />

<strong>de</strong> esta Arte; ni <strong>de</strong> los que son tan idolatras, que reprehen<strong>de</strong>n<br />

todos los remedios Galenistas […]” (BORBON, 1705, p. 9).<br />

No Inventário <strong>da</strong> Botica <strong>de</strong> Córdoba, que analisamos <strong>de</strong><br />

maneira mais aprofun<strong>da</strong><strong>da</strong>, os medicamentos químicos abun<strong>da</strong>m.<br />

Entre os diversos fármacos arrolados, <strong>de</strong>stacamos o enxofre<br />

terebintinado e o espírito <strong>de</strong> vinho, nome <strong>da</strong>do à época<br />

para o álcool. O mercúrio arrolado no inventário era encontrado<br />

em seu estado puro, mas também contava com diversas<br />

variações, tais como: mercúrio doce, pílulas mercuriais, precipitado<br />

branco, marmellon, cinábrio nativo e azougue.<br />

Apesar <strong>da</strong>s dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s para o manuseio <strong>de</strong>sses elementos,<br />

po<strong>de</strong>-se supor que eles tenham sido trazidos em estado<br />

a introdução <strong>de</strong> medicamentos específicos no tratamento <strong>de</strong> doenças, em contraposição<br />

à idéia dos galenistas <strong>de</strong> que apenas forças ocultas, alia<strong>da</strong>s às ervas medicinais,<br />

surtiriam efeito na cura dos males do corpo.” (NOGUEIRA, 2009, p.231)<br />

30<br />

MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje


A medicina missioneira entre a ciência europeia e os saberes nativos<br />

puro <strong>da</strong> Europa e manipulados na América, já que entre os<br />

objetos que foram arrolados estavam: “Yt. dos forneles viexos<br />

con sus pies <strong>de</strong> hierro quebrados […]; Yt. dos pequeñitos <strong>de</strong><br />

cobre el uno con un pie menos, que tasaron en dos pesos:<br />

se advierte que el <strong>de</strong>l Pie menos es <strong>de</strong> hierro” (AHUNC, caja<br />

10, legajo , n. 27, Fólio 4577). Segundo o inventariante, os<br />

instrumentos estariam em um estado <strong>de</strong> conservação muito<br />

precário, porém, isso não anula sua utilização ao longo dos<br />

séculos XVII e XVIII.<br />

Ao realizarmos o comparativo entre a presença <strong>de</strong> fármacos<br />

químicos em Córdoba e nos pueblos missioneiros, fica<br />

claro que havia nestas regiões uma imensa dispari<strong>da</strong><strong>de</strong> no que<br />

se refere ao acesso a tais produtos. Os inventários dos pueblos<br />

<strong>de</strong> Mártires e Apóstoles não fazem qualquer referência<br />

a fármacos químicos, assim como as Cartas Ânuas. O único<br />

indicativo que emerge <strong>da</strong> documentação se encontra na Materia<br />

medica misionera, porém, as parcas referências apenas<br />

reforçam a diferença entre as regiões observa<strong>da</strong>s.<br />

Na obra do irmão Montenegro são quatro as citações feitas<br />

a produtos químicos, mas somente uma <strong>de</strong>las se encontra<br />

no corpo <strong>da</strong> obra. Em um tratamento para pedras dos rins e<br />

bexiga, a receita recomen<strong>da</strong><strong>da</strong> incluía “un pollo algo gran<strong>de</strong>,<br />

añadiendole unas raices <strong>de</strong> peregil, <strong>de</strong> borraja, achicoria, <strong>de</strong><br />

esparragos, y inojo” (MONTENEGRO, [1710], 1945, p. 407).<br />

O elemento químico utilizado, que seria o cremor tártaro 18 ,<br />

servia como substitutivo do sal no dito composto.<br />

As outras três referências aparecem em uma seção que<br />

se encontra ao final do tratado, sob o título: “Otras Curiosi<strong>da</strong><strong>de</strong>s.<br />

Recetas Sueltas”. Conforme indicamos em nossa dissertação,<br />

po<strong>de</strong>mos aventar que tais receitas não fossem parte dos<br />

conhecimentos adquiridos e testados por Montenegro, mas<br />

antes curiosi<strong>da</strong><strong>de</strong>s complementares à obra, medicamentos<br />

que provavelmente não teriam sido a<strong>de</strong>qua<strong>da</strong>mente testados.<br />

As receitas sugeri<strong>da</strong>s são um remédio para a calvície que incluía<br />

a pedra infernal 19 , um vomitivo à base <strong>de</strong> prata e o chamado<br />

árbol <strong>de</strong> diana 20 .<br />

18 Creme <strong>de</strong> tártaro; bitartarato <strong>de</strong> potássio KC4H5O6.<br />

19 Pedra infernal era o nome pelo qual era conhecido o nitrato <strong>de</strong> prata; AgNO3.<br />

20 A receita do dito árbol inclui uma série <strong>de</strong> produtos químicos, como segue: “Se<br />

forma <strong>de</strong> este modo: – Se disuelve una onza <strong>de</strong> plata con 2 ó 8 onzas <strong>de</strong> espiritu<br />

<strong>de</strong> nitro: avaporase esta disolucion á fuego <strong>de</strong> arena hasta consumirse cerca <strong>de</strong><br />

la mitad, lo que resta se mezcla en bazo proporcionado con 20 onzas <strong>de</strong> agua<br />

A circulação <strong>de</strong> produtos, obras e saberes entre América<br />

e Europa <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o <strong>de</strong>scobrimento <strong>da</strong> América já é lugar comum<br />

na historiografia atual, com diversos trabalhos relevantes.<br />

21 Para avançarmos com os estudos sobre o tema, nos parece<br />

importante verificar como se <strong>de</strong>u aquilo que chamamos<br />

<strong>de</strong> “níveis <strong>de</strong> circulação”, ou seja, como e em que extensão<br />

se <strong>de</strong>u a distribuição dos fármacos que chegavam <strong>de</strong> outros<br />

continentes, assim como as trocas que se realizavam <strong>de</strong>ntro<br />

do próprio continente americano. Quando melhor compreen<strong>de</strong>rmos<br />

como esses recursos circularam pelo continente, se<br />

tornará mais fácil também enten<strong>de</strong>r a forma <strong>de</strong> atuação dos<br />

diversos sujeitos que foram parte <strong>de</strong>sse universo, assim como<br />

o avanço <strong>da</strong> ciência durante aquele período:<br />

A diversi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> ambientes e condições <strong>de</strong>ntro<br />

do mesmo continente acabava por gerar espaços<br />

completamente diferentes <strong>de</strong> atuação. As limitações<br />

encontra<strong>da</strong>s pelos pueblos missioneiros para a<br />

aquisição <strong>de</strong> medicamentos vindos <strong>da</strong> Europa po<strong>de</strong><br />

ter sido um dos motivadores <strong>da</strong> obra <strong>de</strong> Montenegro.<br />

Tal constatação não apenas confirma que os<br />

jesuítas se valeram dos conhecimentos indígenas,<br />

como revela a aplicação <strong>de</strong> concepções médicas<br />

<strong>de</strong> vanguar<strong>da</strong> provenientes <strong>da</strong> Europa (POLETTO,<br />

2014, p. 129).<br />

A principal similitu<strong>de</strong> entre os inventários do território<br />

português e espanhol foram as referências constantes aos chamados<br />

autores clássicos. Os principais referenciais <strong>da</strong> <strong>História</strong><br />

<strong>da</strong> <strong>Medicina</strong>, a saber, Hipócrates, Galeno e Dioscóri<strong>de</strong>s (botânica),<br />

foram citados em Córdoba e no Rio <strong>de</strong> Janeiro. Alguns<br />

autores, apesar <strong>de</strong> estarem mais próximos cronologicamente<br />

comun muy clara, y dos onzas <strong>de</strong> azogue, <strong>de</strong>jando <strong>de</strong>spues esta mistura en reposo<br />

por 40 dias, en este espacio <strong>de</strong> tiempo se bá formando un arbol <strong>de</strong> plata con<br />

bastante analogia á los naturales” (MONTENEGRO, [1710], 1945, p. 413).<br />

21 Destacamos aqui: KURY, L. B. Homens <strong>de</strong> ciência no Brasil: impérios coloniais e circulação<br />

<strong>de</strong> informações (1780-1810). <strong>História</strong>, Ciências, Saú<strong>de</strong> – Manguinhos, Rio<br />

<strong>de</strong> Janeiro, v. 1, n. 1, p. 109-129, 2004; ANAGNOSTOU, Sabine. The international<br />

transfer of medicinal drugs by Society of Jesus (sixteenth to eighteenth centuries)<br />

and connections with the work of Carolus Clusius. Royal Netherlands Aca<strong>de</strong>my<br />

of Arts and Sciences, 2007, p. 293-312; EDLER, F. C. Plantas nativas do Brasil nas<br />

farmacopeias portuguesas e europeias séculos XVII - XVIII. In: KURY, Lorelai (org.).<br />

Usos e circulação <strong>de</strong> plantas no Brasil (séculos XVI - XIX). Rio <strong>de</strong> Janeiro: Andrea<br />

Jakobsson Editora, p. 94-137, 2013.<br />

MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje 31


A medicina missioneira entre a ciência europeia e os saberes nativos<br />

do período analisado, também já se fizeram constantemente<br />

presentes, o que <strong>de</strong>monstra sua relevância para o tema; entre<br />

eles po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>stacar Monar<strong>de</strong>s, Curvo Semmedo e Ribeyra.<br />

Na obra <strong>de</strong> Montenegro, a referência aos clássicos continuou<br />

sendo uma constante, pois somente essas obras teriam<br />

peso suficiente para receber tais <strong>de</strong>ferências. 22 Montenegro arrola<br />

um total <strong>de</strong> 35 autores em seu manual, porém, fica clara a<br />

distinção feita entre uns e outros. Apenas oito <strong>de</strong>sses autores<br />

foram citados cinco ou mais vezes na Materia Medica, o que<br />

<strong>de</strong>ixa claro sua importância para a composição narrativa do jesuíta.<br />

Os nomes reforçam a importância dos autores clássicos<br />

gregos e romanos, mas revelam também o papel crescente <strong>de</strong><br />

novos escritores, tais como Laguna, com 22 menções, e Mathiolo,<br />

com 19. Guillermo Pisón e Jacobo Bonti, que escreveram<br />

suas obras no Brasil, vêm em segui<strong>da</strong> com 14 e 8 citações<br />

respectivamente.<br />

O número <strong>de</strong> autores que foram mencionados apenas uma<br />

vez na obra é bastante expressivo: 21. 23 Esse gran<strong>de</strong> percentual<br />

<strong>de</strong>ixa pistas sobre as motivações do autor. Uma <strong>da</strong>s hipóteses<br />

é <strong>de</strong> que Montenegro tenha visto uma relevância pontual nos<br />

trabalhos <strong>de</strong>sses autores. A importância <strong>da</strong>s cópias manuscritas<br />

também <strong>de</strong>ve ser menciona<strong>da</strong> nesse quesito. 24 Muitas receitas<br />

soltas e trechos manuscritos circulavam por esses ambientes;<br />

po<strong>de</strong>-se aventar que alguns dos autores foram citados somente<br />

uma vez pelo irmão jesuíta pelo fato <strong>de</strong> não possuir a obra menciona<strong>da</strong><br />

na íntegra ou ter simplesmente recebido um relato oral<br />

sobre os benefícios <strong>da</strong> planta e resolvido mencioná-la como for-<br />

22 No período, a associação entre uma obra e um nome ain<strong>da</strong> era privilégio dos<br />

clássicos. E, embora a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> autoria que existe hoje ain<strong>da</strong> não existisse, nestes<br />

poucos casos já era possível observar uma função-autor: “A ‘função-autor’ é o<br />

resultado <strong>de</strong> procedimentos precisos e complexos, que posicionam a uni<strong>da</strong><strong>de</strong> e<br />

a coerência <strong>de</strong> uma obra (ou conjunto <strong>de</strong> obras) em relação à i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> um<br />

‘sujeito construído’” (FAULHABER; LOPES, 2012, p. 38).<br />

23 Os nomes apresentados são os seguintes: Sirena, Leon, Andres Alcazar, Francisco<br />

Morato Portuguez, Democrates, Lerroy, Ma<strong>da</strong>me Fuchote, Herrera, Farfan, Cratevas,<br />

Isidro Ortiz, Theofrato, Avicena, Cristoval <strong>de</strong> Acosta, Pablo Zaichia, D. Antonio,<br />

um médico <strong>de</strong>scrito como um italiano que curou em Salta, um cirurgião <strong>de</strong>scrito<br />

como afirmado dos tempos <strong>de</strong> Madri, um outro cirurgião dos tempos <strong>de</strong> Madri<br />

(que po<strong>de</strong>riam ser a mesma pessoa), além dos padres Montoya e Baltazar Telles.<br />

24 A pratici<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> sua transmissão garantiu a manutenção <strong>de</strong> seu uso, mesmo<br />

<strong>de</strong>pois <strong>da</strong> invenção <strong>da</strong> imprensa: “Po<strong>de</strong>mos recor<strong>da</strong>r, así, como el manuscrito en<br />

circulación permitía la rápi<strong>da</strong> transmisión <strong>de</strong> noticias recién produci<strong>da</strong>s; la posibili<strong>da</strong>d<br />

<strong>de</strong> sacar todo el partido <strong>de</strong> su propia rareza frente a los impresos ofreciéndolo<br />

como regalo; su capaci<strong>da</strong>d para rescribirse continuamente a<strong>da</strong>ptándose, por<br />

ejemplo, a las últimas nove<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> la corte; el control <strong>de</strong>l número <strong>de</strong> copias y <strong>de</strong><br />

presumibles lectores <strong>de</strong> éstas, tan necesario para practicar con cautela la heterodoxia<br />

religiosa o la crítica política” (BOUZA, 2001, p. 74).<br />

ma <strong>de</strong> garantir que um futuro leitor pu<strong>de</strong>sse <strong>de</strong>senvolver essa<br />

lacuna <strong>de</strong>ixa<strong>da</strong> em seu trabalho.<br />

Ao <strong>de</strong>screver as virtu<strong>de</strong>s <strong>da</strong> Quirocilla, planta encontra<strong>da</strong><br />

nas regiões <strong>de</strong> Salta (atual Argentina) e Tarija (Bolívia), ressaltou<br />

ter se guiado “por apuntamientos <strong>de</strong> un practico, y muy<br />

acertado medico, que curó en Salta algunos años, (<strong>de</strong> nacion<br />

Italiano,) hallo que curó con dicha Quirocilla muy acerta<strong>da</strong>mente<br />

en to<strong>da</strong>s las pasiones <strong>de</strong> calor y seque<strong>da</strong>d” (MONTE-<br />

NEGRO, [1710], 1945, p. 91). Em um contexto em que muitas<br />

vezes o <strong>de</strong>sconhecimento era total, a confiança no informante<br />

também se mostrava fun<strong>da</strong>mental, ain<strong>da</strong> que o jesuíta tenha<br />

sempre preferido referenciar plantas <strong>de</strong> que tivesse feito uso e<br />

que houvesse experimentado <strong>de</strong> maneira a<strong>de</strong>qua<strong>da</strong>.<br />

Na <strong>de</strong>scrição <strong>da</strong> copayba, o total <strong>de</strong>sconhecimento do<br />

autor sobre a planta in natura fica claro ao ressaltar que: “Me<br />

he informado <strong>de</strong> los Portugueses, y Tupis, que en el Brasil lo<br />

han sacado, y dicen, que hay arbolea muy gruesos, y en tierra<br />

pingüe, que en quince dias llenan dos calabazos, como dos<br />

frascos, y mas, <strong>de</strong> los” (MONTENEGRO, [1710], 1945, p. 232).<br />

Para finalizar, <strong>de</strong>stacaremos o papel dos Procuradores<br />

<strong>da</strong> Companhia <strong>de</strong> Jesus, que, segundo as Constituições <strong>da</strong><br />

Or<strong>de</strong>m, eram “los que hacen las cosas <strong>de</strong> los Colegios fuera<br />

<strong>de</strong>llos, se entien<strong>de</strong>n principalmente los Procuradores que en la<br />

curia <strong>de</strong>l Summo Pontífice o <strong>de</strong> otros príncipes tratan las cosas<br />

<strong>de</strong> la Compañía” (LOYOLA, 1558, p. 35). Esses sujeitos eram<br />

os responsáveis por ir à Europa e do velho continente trazer<br />

não apenas os bens materiais necessários para a continui<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>da</strong> expansão <strong>da</strong> fé, como também novos braços dispostos ao<br />

árduo trabalho <strong>de</strong> catequese.<br />

Tal exemplo é exposto na Carta Ânua <strong>de</strong> 1720-30, em<br />

que o relator se referiu ao procurador Antônio Machoni, dizendo<br />

esperar seu retorno “acompañados con una copiosa<br />

expedición <strong>de</strong> nuevos operarios, muy necesarios para promover<br />

la gloria <strong>de</strong> Dios y la salvación <strong>de</strong> las almas!” (C.A. 1720-30<br />

apud PAGE, 2004, p. 297). Em outro conjunto <strong>de</strong> documentos<br />

jesuíticos <strong>de</strong> menor extensão, foram localiza<strong>da</strong>s 88 cartas que<br />

citam no título a figura do Procurador somente na primeira<br />

meta<strong>de</strong> do século XVIII 25 , sempre <strong>de</strong>stacando pedidos feitos<br />

25 A documentação faz parte do “Fondo Jesuítas Digital do Archivo General <strong>de</strong> la<br />

Nación Argentina”. São mais <strong>de</strong> 2.100 documentos somente sobre o século XVIII.<br />

32<br />

MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje


A medicina missioneira entre a ciência europeia e os saberes nativos<br />

pelos missionários dos pueblos no momento <strong>da</strong>s viagens à Europa.<br />

Poucos são os pedidos claros para a compra <strong>de</strong> instrumentos,<br />

livros e receitas médicas. Os principais gêneros arrolados<br />

são erva mate, gado, vinho, entre outras coisas produzi<strong>da</strong>s<br />

nas missões. Ain<strong>da</strong> assim, foram encontrados alguns exemplos<br />

que evi<strong>de</strong>nciam o intercâmbio, ain<strong>da</strong> que tímido <strong>de</strong>sses produtos:<br />

Carta Del Padre Manuel De Campos Al Padre Juan<br />

Joseph Rico Sobre Despacho De Letras De Cambio<br />

Y Acerca De Compra De Relojes Y Telescopios.<br />

(Legajo 412 6-9-7- 589-1744); Carta Del Padre Manuel<br />

De Campos Al Padre Juan Joseph Rico Sobre<br />

Despacho De Dinero Y Compra De Relojes Y Telescopios.<br />

(Legajo 412 6-9-7- 609-1744); Carta Del<br />

Padre Manuel De Campos Al Padre Juan Joseph<br />

Rico Sobre Despacho De Dinero Y Envío De Relojes<br />

Y Telescopios. (Legajo 412 6-9-7- 632-1744).<br />

Um fator que fica ca<strong>da</strong> vez mais claro é o constante intercâmbio<br />

<strong>de</strong> saberes entre os membros <strong>da</strong> Or<strong>de</strong>m e europeus<br />

em geral com os povos nativos. Sem maior conhecimento <strong>da</strong><br />

região e expostos aos mais diversos riscos, esses homens, ain<strong>da</strong><br />

que pontuassem suas narrativas com restrições sobre os<br />

indígenas procurando colocá-los em posição inferior, necessitavam<br />

constantemente recorrer a eles. Ain<strong>da</strong> que as riquezas e a<br />

exuberância <strong>da</strong> América fossem atribuí<strong>da</strong>s a Deus, a conquista<br />

e o domínio sobre suas potenciali<strong>da</strong><strong>de</strong>s só foi possível no contato<br />

e na troca <strong>de</strong> conhecimentos com os nativos.<br />

Para que avancemos ain<strong>da</strong> mais, é necessário que aprofun<strong>de</strong>mos<br />

a discussão sobre como efetivamente fármacos, receitas<br />

e manuais <strong>de</strong> medicina circulavam entre os continentes<br />

e, mais importante, <strong>de</strong>ntro do território americano. Desven<strong>da</strong>ndo<br />

os “níveis <strong>de</strong> circulação” existentes no continente, po<strong>de</strong>remos<br />

compreen<strong>de</strong>r quais os recursos disponíveis em ca<strong>da</strong><br />

uma <strong>da</strong>s áreas e observar como os novos conhecimentos foram<br />

aos poucos tornando-se lugar comum através <strong>da</strong> experimentação.<br />

Relógios, telescópios e livros foram mencionados. Porém,<br />

pedidos <strong>de</strong> instrumentos utilizados para o tratamento médico<br />

não foram localizados. Uma <strong>da</strong>s hipóteses para isso seria a<br />

simplici<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>stes no período. Com a medicina ain<strong>da</strong> extremamente<br />

liga<strong>da</strong> à teoria hipocrático-galênica, as lancetas para<br />

sangria, tesouras e serras para cortes ain<strong>da</strong> eram os principais<br />

instrumentos utilizados, ain<strong>da</strong> que ao longo do XVIII o campo<br />

cirúrgico tenha iniciado um avanço que se mostraria irreversível.<br />

CONCLUSÃO<br />

Os documentos analisados permitem que criemos uma<br />

imagem mais clara sobre a atuação jesuítica junto às artes <strong>de</strong><br />

curar. As diversas lacunas e ausência <strong>de</strong> <strong>da</strong>dos po<strong>de</strong>m ser explica<strong>da</strong>s<br />

pelo fato <strong>de</strong> que essa não <strong>de</strong>veria ser a função principal<br />

dos membros <strong>da</strong> Or<strong>de</strong>m. Talvez por isso, muitas vezes<br />

esses sujeitos tenham evitado mencionar suas ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s ou<br />

procurado ressaltar que, se o faziam, era em nome <strong>da</strong> cari<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />

obrigatória aos membros <strong>da</strong> Companhia <strong>de</strong> Jesus.<br />

REFERÊNCIAS<br />

ANAGNOSTOU, Sabine. The international transfer of medicinal<br />

drugs by Society of Jesus (sixteenth to eighteenth centuries) and<br />

connections with the work of Carolus Clusius. Royal Netherlands<br />

Aca<strong>de</strong>my of Arts and Sciences, 2007, p. 293-312.<br />

AHUNC. Documentos <strong>de</strong> la Junta <strong>de</strong> las Temporali<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> Córdoba,<br />

caja 10, legajo 2, n. 27. Inventario formado por Lorenzo Infante<br />

Boticario en la ciu<strong>da</strong>d <strong>de</strong> Córdoba <strong>de</strong> los bienes medicinales (folios<br />

4533r -4628r, jul. 1772, cópia).<br />

BORBON, Felipe. <strong>Medicina</strong> y Cirugia Domestica Necessaria a los<br />

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algunos remedios <strong>de</strong> otros autores. Valencia: Jayme <strong>de</strong> Bor<strong>da</strong>zar y<br />

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<strong>de</strong> Oro. Madri: Marcial Pons Ediciones <strong>de</strong> Historia, 2001.<br />

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Anchietano <strong>de</strong> Pesquisa (IAP/UNISINOS), Transcrição <strong>de</strong> Carlos<br />

Leonhardt, S. J. [1928], 1994. (mimeo) (1714- 1720); (1720- 30);<br />

(1730-1735).<br />

MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje 33


A medicina missioneira entre a ciência europeia e os saberes nativos<br />

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cultural <strong>da</strong> ciência. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Beco do Azougue, 2012.<br />

FLECK, Eliane Cristina Deckmann; POLETTO, Roberto. Esto es lo que<br />

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1916 (Edição parcial do Libro <strong>de</strong> Cirugia).<br />

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MONTENEGRO, Pedro. Materia Medica Misionera. Buenos Aires:<br />

Edición <strong>de</strong> la Biblioteca Nacional <strong>de</strong> Buenos Aires, 1710, [1945].<br />

MUÑOZ, Miguel Eugenio (org.). Recopilacion <strong>de</strong> las Leyes, Pragmáticas<br />

Reales, Decretos, y Acuerdos <strong>de</strong>l Real Proto-Medicato. Valencia:<br />

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chemistry: from Hippocrates and Galeno to Paracelsus and the<br />

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Historia <strong>de</strong> la Compañía <strong>de</strong> Jesús en Córdoba. Tomo I. Córdoba:<br />

2004.<br />

PERUSSET, Macarena. La ocupación indígena <strong>de</strong>l territorio rioplatense:<br />

intercambios culturales durante el período colonial (siglos XVI-<br />

XVII). Revista Complutense, v. 38, p. 9- 32, 2012.<br />

POLETTO, R. Uma trajetória por escrito: Pedro Montenegro SJ e sua<br />

Materia Medica Misionera. 2014. 219 f. Dissertação (Mestrado em<br />

<strong>História</strong>) – Programa <strong>de</strong> Pós-graduação em <strong>História</strong>. Universi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

do Vale do Rio dos Sinos. São Leopoldo, 2014.<br />

TAVARES <strong>de</strong> SOUZA, A. Curso <strong>de</strong> <strong>História</strong> <strong>da</strong> <strong>Medicina</strong>. Das origens<br />

aos fins do século XVI. Lisboa: Fun<strong>da</strong>ção Calouste Gulbenkian,<br />

1996.<br />

34<br />

MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje


Ventosas <strong>de</strong> bomba<br />

Acervo: Dr. Armando Torres <strong>de</strong> Vasconcellos<br />

Doador: Dr. Luis Sérgio <strong>de</strong> Moura Fragomeni<br />

Obra: Formulário e<br />

Guia Médico<br />

Autor: Chernoviz, P. L. Napoleão<br />

Publicação: 1908<br />

Editora: A. Roger &<br />

F. Chernoviz<br />

Ci<strong>da</strong><strong>de</strong>: Paris


Obra: Diccionario <strong>de</strong> medicina popular<br />

Autor: Chernoviz, P. L. Napoleão<br />

Publicação: 1890 Volume: 2<br />

Editora: A. Roger & F. Chernoviz Ci<strong>da</strong><strong>de</strong>: Paris<br />

Acervo: Dr. Pascoal Adrio Manoel Brasil Crocco<br />

Doador: Ana Lucia Crocco<br />

Ventosas <strong>de</strong> bomba<br />

Acervo: Dr. Armando Torres <strong>de</strong> Vasconcellos<br />

Doador: Dr. Luis Sérgio <strong>de</strong> Moura Fragomeni


Obra: O novo methodo <strong>de</strong> curar: manual <strong>de</strong> hygiene<br />

Autor: Platen, M.<br />

Publicação: 1903 - Volume: 1 e 2<br />

Editora: Laemmert & Comp.<br />

Ci<strong>da</strong><strong>de</strong>: São Paulo/ Rio <strong>de</strong> Janeiro


Ventosas a fogo<br />

Acervo: Ryfka Djament Rubman<br />

Doador: Clary Dulcy Rubman


Obra: Formulário e Guia Médico<br />

Autor: Chernoviz, P. L. Napoleão<br />

Publicação: 1908<br />

Editora: A. Roger & F. Chernoviz<br />

Ci<strong>da</strong><strong>de</strong>: Paris<br />

Obra: Diccionario<br />

<strong>de</strong> medicina popular<br />

Autor: Chernoviz, P. L. Napoleão<br />

Publicação: 1890 Volume: 2<br />

Editora: A. Roger<br />

& F. Chernoviz Ci<strong>da</strong><strong>de</strong>: Paris<br />

Acervo: Dr. Pascoal Adrio Manoel Brasil Crocco<br />

Doador: Ana Lucia Crocco


MEDICINA E CARIDADE:<br />

a construção dos serviços <strong>de</strong><br />

assistência à saú<strong>de</strong> <strong>da</strong> população<br />

NIKELEN ACOSTA WITTER<br />

Centro Universitário Franciscano - UNIFRA<br />

40<br />

MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje


Ai<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que o acesso aos serviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> constitui um<br />

direito humano fun<strong>da</strong>mental é bastante recente em termos<br />

históricos. De fato, ca<strong>da</strong> um dos termos que forma a frase<br />

acima é impressionantemente hodierno.<br />

O conceito <strong>de</strong> serviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> como cui<strong>da</strong>dos médicos<br />

tem menos <strong>de</strong> dois séculos e não se constituiu <strong>de</strong> um<br />

momento para o outro. O longo processo <strong>de</strong> construção do<br />

que hoje compreen<strong>de</strong>mos por <strong>Medicina</strong> – <strong>de</strong>senvolvi<strong>da</strong> a partir<br />

<strong>da</strong> noção <strong>de</strong> uma mediação externa ao sujeito entre sua<br />

saú<strong>de</strong> e sua doença (GOUBERT, 1998) – levou milênios para<br />

constituí-la como um conjunto coeso <strong>de</strong> práticas. A <strong>Medicina</strong>,<br />

em seus alvores, se diferenciava dos cui<strong>da</strong>dos primários, não<br />

se confundia com a assistência à pobreza, mesclava-se com<br />

conhecimentos hoje consi<strong>de</strong>rados místicos, atuava como paliativo<br />

<strong>de</strong> boa parte dos males e entregava a cura à divin<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

(única consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong> capaz <strong>de</strong> tanto).<br />

Os doentes, igualmente, possuem uma história em suas<br />

dores. Diferenciavam-se assistidos <strong>de</strong> <strong>de</strong>sassistidos, validos <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>svalidos, os pobres <strong>da</strong>queles que podiam se municiar <strong>de</strong> cui<strong>da</strong>dos,<br />

<strong>de</strong> médicos, <strong>de</strong> curan<strong>de</strong>iros, <strong>de</strong> viagens para a melhoria<br />

<strong>da</strong> saú<strong>de</strong>. Nenhum <strong>de</strong>les, porém, se conformava com a mo<strong>de</strong>rna<br />

figura do paciente: esse que espera o diagnóstico, que se<br />

<strong>de</strong>ixa furar e cutucar em <strong>de</strong>zenas <strong>de</strong> exames laboratoriais diferentes,<br />

que ingere fármacos sem compreen<strong>de</strong>r exatamente<br />

sua ação no interior do corpo, que confia na palavra do médico.<br />

Ao contrário, os doentes <strong>de</strong> épocas passa<strong>da</strong>s – anteriores<br />

MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje 41


<strong>Medicina</strong> e cari<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

à conformação <strong>da</strong> mo<strong>de</strong>rna <strong>Medicina</strong> clínico-científica – negociavam<br />

diretamente com suas doenças e com seus curadores,<br />

aceitavam e rejeitavam tratamentos, possuíam itinerários terapêuticos<br />

nos quais nem sempre o tratamento médico estava<br />

incluso, tinham seu próprio sistema <strong>de</strong> compreensão do corpo<br />

e classificação <strong>da</strong>s doenças (WITTER, 2007).<br />

Por outro lado, estes doentes não se viam como iguais,<br />

portanto, noções como “ter direito a alguma coisa” ain<strong>da</strong> estavam<br />

sendo construí<strong>da</strong>s. Da mesma forma, ain<strong>da</strong> não era<br />

completa a compreensão <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as pessoas como parte <strong>de</strong><br />

uma única humani<strong>da</strong><strong>de</strong>, passível <strong>de</strong> ser eleva<strong>da</strong> a um patamar<br />

em que todos são vistos com igual<strong>da</strong><strong>de</strong> e tratados <strong>da</strong> mesma<br />

maneira. Logo, na maior parte do Oci<strong>de</strong>nte, nos séculos que<br />

antece<strong>de</strong>m ao XX, saú<strong>de</strong> era uma preocupação diária. Já a<br />

doença era, para os abastados, um momento <strong>de</strong> dor conjunta,<br />

familiar, <strong>de</strong>sdobra<strong>da</strong> em viagens, cartas, cui<strong>da</strong>dos trazidos <strong>de</strong><br />

longe, todos no seio <strong>da</strong> casa. Para os pobres, os sem família,<br />

os <strong>de</strong>svalidos, a doença era alvo <strong>da</strong> cari<strong>da</strong><strong>de</strong> alheia, dispensa<strong>da</strong><br />

<strong>de</strong> cima para baixo, como <strong>de</strong>veria ser numa socie<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>sigual e mo<strong>de</strong>la<strong>da</strong> numa estreita hierarquia, on<strong>de</strong> os bens<br />

se confundiam com a moral e a proximi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s esferas <strong>de</strong><br />

po<strong>de</strong>r com a proximi<strong>da</strong><strong>de</strong> com Deus.<br />

Numa tal socie<strong>da</strong><strong>de</strong>, a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> corporificar a atenção à<br />

saú<strong>de</strong> por meio <strong>de</strong> serviços oferecidos à população também<br />

era estranha. Para se ter um serviço, era necessário um po<strong>de</strong>r<br />

centralizado que ditasse leis e <strong>de</strong>terminasse o que <strong>de</strong>veria ser<br />

feito, recolhendo e alocando recursos <strong>de</strong> forma a aten<strong>de</strong>r um<br />

<strong>de</strong>terminado território e as pessoas que ali habitavam. Sem<br />

esse po<strong>de</strong>r, o melhor que se po<strong>de</strong>ria fazer era reunir aqueles<br />

que, por <strong>de</strong>ver religioso e moral, <strong>de</strong>viam prestar cari<strong>da</strong><strong>de</strong> aos<br />

<strong>de</strong>safortunados e organizar as aju<strong>da</strong>s que po<strong>de</strong>riam ser presta<strong>da</strong>s<br />

(JONES, 2001).<br />

Ao fim do período medieval, inúmeras <strong>de</strong>ssas organizações<br />

se espalharam pela Europa. E, na medi<strong>da</strong> em que os Estados<br />

entraram em sua fase <strong>de</strong> construção e centralização,<br />

muitas <strong>de</strong>ssas instituições – antes apenas anima<strong>da</strong>s pela religiosi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

e pelo <strong>de</strong>ver <strong>de</strong> “<strong>da</strong>r” que pesa sobre os mais aquinhoados<br />

– ligaram-se lentamente a essas novas estruturas <strong>de</strong><br />

po<strong>de</strong>r. O movimento não po<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>rado esdrúxulo, afinal,<br />

po<strong>de</strong>r e religião não estavam separados, bem como eram<br />

uni<strong>da</strong>s as ações pessoais e as políticas. A realeza favorecia aos<br />

hospitais (Misericórdias, Hôtels-Dieu, Asilos) por <strong>de</strong>ver <strong>de</strong> posição,<br />

tanto quanto pela salvação <strong>de</strong> suas almas (ABREU, 2000).<br />

A expansão europeia, como se po<strong>de</strong> concluir, trouxe tal<br />

mo<strong>de</strong>lo para o Novo Mundo, on<strong>de</strong> a complexa equação <strong>de</strong><br />

saú<strong>de</strong>/doença, <strong>Medicina</strong>/cui<strong>da</strong>do, cari<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> elite/atenção<br />

do Estado segue uma temporali<strong>da</strong><strong>de</strong> própria <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento<br />

(WEBER, 1999; WITTER, 2007; CHAVES, 2008). Não<br />

bastará o fortalecimento do Estado enquanto instituição, será<br />

preciso que o mesmo ocorra com to<strong>da</strong>s as i<strong>de</strong>ias e conceitos<br />

<strong>de</strong>scritos acima para que se constitua a noção <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> Pública.<br />

Da mesma forma, será necessário o avanço <strong>da</strong> <strong>Medicina</strong><br />

clínico-científica e um árduo trabalho sócio-político <strong>de</strong> seus representantes<br />

para colocá-la na posição central do atendimento<br />

e mediação entre doença e saú<strong>de</strong> (VIEIRA, 2009; OLIVEIRA,<br />

2012; DEVINCENZI, 2012).<br />

Antes disso, porém, a igual<strong>da</strong><strong>de</strong> foi inicialmente categoriza<strong>da</strong><br />

via <strong>de</strong>voção, profissão e/ou etnia através <strong>da</strong>s socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

<strong>de</strong> mútua aju<strong>da</strong> e assistência, bem como <strong>da</strong>s irman<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

religiosas e leigas. Estas últimas, ligando-se aos hospitais,<br />

prolongaram os sentidos <strong>da</strong> cari<strong>da</strong><strong>de</strong> ao mesmo tempo em<br />

que foram fun<strong>da</strong>mentais para o processo <strong>de</strong> institucionalização<br />

dos atendimentos e <strong>da</strong> cobertura <strong>de</strong> necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>s. Tais<br />

grupos ocuparam uma posição importante e mesmo central<br />

na atenção à população – indo do clientelismo ao associativismo<br />

– <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o século XVII, mas especialmente ao longo do<br />

século XIX, quando, no caso do Brasil, o fenômeno <strong>da</strong> urbanização<br />

torna sua necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> mais evi<strong>de</strong>nte (SILVA JR., 2004;<br />

TOMASCHEWSKI, 2007; 2014).<br />

O Estado se apercebe <strong>da</strong> importância do que veio a ser<br />

chamado <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> Pública na medi<strong>da</strong> em que toma consciência<br />

que seu po<strong>de</strong>rio militar e político <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>de</strong>la. Por outro<br />

lado, também é possível dizer que a Saú<strong>de</strong> Pública evoluiu a<br />

partir <strong>da</strong>s noções <strong>de</strong> cari<strong>da</strong><strong>de</strong> e filantropia, às quais os Estados<br />

elitistas consi<strong>de</strong>ravam inicialmente valor cristão e, posteriormente,<br />

um valor moral.<br />

Logo, o estudo do Estado como um sujeito histórico nas<br />

análises em história <strong>da</strong> saú<strong>de</strong> se confun<strong>de</strong>, <strong>de</strong> fato, com a<br />

própria concepção <strong>de</strong> uma <strong>História</strong> <strong>da</strong> Saú<strong>de</strong> Pública. É, em<br />

geral, consensual apontar este tipo <strong>de</strong> investigação na tradi-<br />

42<br />

MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje


<strong>Medicina</strong> e cari<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

ção acadêmica como tendo origem na segun<strong>da</strong> meta<strong>de</strong> do<br />

século XX. Foi nesta época que alguns intelectuais médicos,<br />

como H. E. Sigerist (1952) e George Rosen (1958/1994), ancorados<br />

na tradição que via a medicina como instrumento <strong>de</strong><br />

reforma social (ROSEN, 1979), uniram suas influências socialistas<br />

e o otimismo econômico social do pós-guerra e começaram<br />

a escrever sobre que o reconheceram como o processo<br />

<strong>de</strong> coletivização <strong>da</strong> saú<strong>de</strong>. 1 Suas i<strong>de</strong>ias tinham como ponto<br />

fun<strong>da</strong>mental um “otimismo sanitário”, que envolvia a crença<br />

no planejamento <strong>da</strong>s ações em saú<strong>de</strong> e no Welfare State (o<br />

Estado <strong>de</strong> Bem-Estar Social) (PICKSTONE, 2001; ALVES, 2015).<br />

Atualmente, as pesquisas realiza<strong>da</strong>s pelos historiadores<br />

<strong>da</strong> Saú<strong>de</strong> Pública têm apontado para a superação tanto <strong>da</strong><br />

concepção que a vê como um processo constante rumo ao<br />

progresso (ROSEN, 1958) quanto como parte <strong>de</strong> uma marcha<br />

implacável em direção a uma socie<strong>da</strong><strong>de</strong> disciplina<strong>da</strong> por saberes<br />

e po<strong>de</strong>res (FOUCAULT, 1977). Em ambas as análises, a<br />

<strong>Medicina</strong> clínico-científica e seus representantes constituem os<br />

protagonistas, <strong>de</strong>ixando <strong>de</strong> lado os interesses <strong>da</strong> população,<br />

<strong>da</strong>s elites e, por vezes, <strong>da</strong> própria constituição estatal.<br />

A partir dos anos 1990, as pesquisas históricas em Saú<strong>de</strong><br />

Pública, sem querer excluir ou negar a importância <strong>de</strong> análises<br />

anteriores, buscaram alternativas, aplicando-as em tempos e<br />

lugares diferentes e <strong>da</strong>ndo maior espaço para as plurali<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

do processo histórico a fim <strong>de</strong> constituir um quadro mais complexo<br />

<strong>de</strong> ações (PORTER, 1994). O Estado e a <strong>Medicina</strong>, longe<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>saparecerem como sujeitos nessas análises, tornaram-se<br />

parte necessária <strong>da</strong> compreensão <strong>da</strong> passagem <strong>da</strong> cari<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

para a filantropia e, <strong>de</strong>sta, para a publicização laica dos atendimentos<br />

<strong>de</strong> saú<strong>de</strong> à população. Nesse sentido, para compreen<strong>de</strong>r<br />

o papel do Estado e <strong>da</strong> <strong>Medicina</strong> clínico-científica junto<br />

à Saú<strong>de</strong> Pública, os historiadores ten<strong>de</strong>m a abdicar dos esquemas<br />

pré-concebidos em troca do estudo <strong>de</strong> contextos locais,<br />

regionais ou nacionais múltiplos, além <strong>de</strong> incorporar variáveis<br />

diversas e mais amplas possíveis.<br />

Com base nesses pressupostos, analisaremos a cari<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

dispensa<strong>da</strong> pelas elites, conjuga<strong>da</strong>s ao Estado Imperial brasileiro,<br />

durante o período pós-farroupilha. Estu<strong>da</strong>remos o mercado<br />

<strong>da</strong> assistência e o papel <strong>da</strong> dádiva na regulação <strong>da</strong> saú<strong>de</strong> entre<br />

doentes, instituições <strong>de</strong> cari<strong>da</strong><strong>de</strong> e curadores. Compreen<strong>de</strong>remos<br />

o avanço <strong>da</strong> i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> filantropia como virtu<strong>de</strong> cívica e<br />

moral e sua incorporação pela classe médica que, sem abdicar<br />

<strong>da</strong> i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> cari<strong>da</strong><strong>de</strong>, envolve-se num árduo trabalho sócio-político<br />

<strong>de</strong> constituição <strong>de</strong> sua hegemonia junto à socie<strong>da</strong><strong>de</strong> e<br />

aos doentes, ca<strong>da</strong> vez mais igualados na dor e nos itinerários<br />

terapêuticos.<br />

Analisando a atuação do Império no sul do país, muitos<br />

dos elementos que diziam respeito às questões <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> pareciam<br />

ocupar uma zona intersticial nas responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong>s governamentais,<br />

on<strong>de</strong> as leis nem sempre resultavam em práticas, e<br />

as práticas nem sempre parecem ter sido efetiva<strong>da</strong>s por uma<br />

ação governamental direta. Por outro lado, o proverbial paternalismo<br />

<strong>da</strong> monarquia brasileira – sem romper com a tradição<br />

que concebia irman<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>da</strong>s Misericórdias como órgãos “semiburocráticos”<br />

(RUSSEL-WOOD, 1981) – não se intimidou em<br />

<strong>de</strong>legar incumbências em termos <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> Pública aos outros<br />

“pais” que “sustentavam a nação”. Ou seja, aos “homens <strong>de</strong><br />

bem”, senhores <strong>de</strong> terras e gentes, aos validos (e que tinham<br />

capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> valer a outros) que também <strong>de</strong>veriam – por<br />

“<strong>de</strong>ver <strong>de</strong> cari<strong>da</strong><strong>de</strong> cristã, filantropia e civilização” – socorrer<br />

aos infelizes que “mereciam sua proteção”. 2 O fato <strong>de</strong> burocratas<br />

e políticos se alternarem, ou mesmo se conjugarem,<br />

no comando <strong>de</strong> governos locais e <strong>de</strong>stas instituições apenas<br />

complexifica as possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong>sta análise (GRAHAN, 1997).<br />

Logo, os investimentos governamentais, neste sentido,<br />

eram bastante acanhados. Aliás, nem mesmo se utilizava a palavra<br />

“investimento”. Os gastos com saú<strong>de</strong> pública eram “<strong>de</strong>spesas”,<br />

que apenas alcançavam picos quando o país, ou uma<br />

província em especial, era atingido por uma gran<strong>de</strong> epi<strong>de</strong>mia.<br />

As <strong>de</strong>spesas aumentaram significativamente no período <strong>da</strong>s<br />

epi<strong>de</strong>mias <strong>de</strong> febre amarela e cólera, na déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1850, <strong>de</strong>crescendo<br />

até meados <strong>de</strong> 1865 e mantendo-se estável até um<br />

novo aumento na déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1880 (quando novas epi<strong>de</strong>mias<br />

assolaram especialmente a capital do país), mas sem jamais<br />

atingir novamente os níveis <strong>de</strong> 1855 (CARVALHO, 2003, p.<br />

179). No mesmo período, caíram os gastos com “assistência<br />

1 A qual remonta às obras dos germânicos Johann Peter Frank (1748-1821) e Rudolf<br />

Virchow (1821-1902) e aos inquéritos sobre as condições <strong>de</strong> vi<strong>da</strong> dos trabalhadores<br />

no século XIX, como os Public Health Reports do governo inglês.<br />

2 AHRS – Relatório dos Presi<strong>de</strong>ntes <strong>da</strong> Província do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul – Barão <strong>de</strong><br />

Caxias – A7.02. 1846.<br />

MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje 43


<strong>Medicina</strong> e cari<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

social e escravos”, provavelmente porque estes acabaram confundindo-se<br />

nas <strong>de</strong>spesas do governo com as epi<strong>de</strong>mias.<br />

Fora dos períodos epidêmicos, porém, o governo provincial<br />

atuou em três frentes no sentido <strong>de</strong> ter um maior controle<br />

sobre o conhecimento <strong>da</strong>s especifici<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>da</strong> região e,<br />

assim, centralizar suas opções administrativas em questões <strong>de</strong><br />

saú<strong>de</strong>. A primeira <strong>de</strong>stas frentes se ligou à <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> quais<br />

seriam os recursos em saú<strong>de</strong> <strong>da</strong> região sul do Império. Para<br />

isso, o governo provincial do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul se interessou<br />

em mapear elementos naturais e benéficos com a intenção <strong>de</strong><br />

incrementar a sua utilização. Assim, foram promovi<strong>da</strong>s investigações<br />

sobre a presença e o uso <strong>de</strong> ervas e águas medicinais<br />

na região. A segun<strong>da</strong> frente <strong>de</strong> atuação foi o registro que os<br />

médicos, cirurgiões, licenciados e boticários passaram a <strong>de</strong>ver<br />

fazer junto às Câmaras Municipais para po<strong>de</strong>rem exercer a<br />

profissão. 3 Por fim, a terceira frente realizou-se na forma <strong>de</strong><br />

incentivos, contratos e dotações para a atuação <strong>da</strong> Santa Casa<br />

<strong>de</strong> Misericórdia.<br />

Após as epi<strong>de</strong>mias <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1850, a atenção às<br />

questões <strong>da</strong> saú<strong>de</strong> no Império como um todo aumentou. Assim<br />

como na Europa e na América do Norte, recru<strong>de</strong>sceu no<br />

Brasil uma série <strong>de</strong> ações que se <strong>de</strong>sdobraram na criação <strong>da</strong><br />

Junta Central <strong>de</strong> Higiene, em 1850, e, nas províncias, nas Comissões<br />

<strong>de</strong> Higiene Pública, em 1854. Percebe-se, igualmente,<br />

um incremento nos Relatórios dos Presi<strong>de</strong>ntes <strong>da</strong> província <strong>da</strong>s<br />

<strong>de</strong>scrições dos recursos em saú<strong>de</strong> <strong>de</strong> que dispunha a população<br />

<strong>da</strong> região. Nestes, é possível notar uma tentativa <strong>de</strong> “cartografar”<br />

os auxílios <strong>de</strong> que se po<strong>de</strong>ria utilizar a população nos<br />

momentos <strong>de</strong> enfermi<strong>da</strong><strong>de</strong>, os chamados Socorros Públicos.<br />

As Santas Casas e outras iniciativas <strong>de</strong> beneficência figuravam<br />

aí como protagonistas. Estas foram <strong>de</strong>fini<strong>da</strong>s pelo Conselheiro<br />

José Antônio Pimenta Bueno (1850) como “instituições filhas<br />

<strong>da</strong> civilização, e alta morali<strong>da</strong><strong>de</strong>, que honram a Província <strong>de</strong><br />

São Pedro do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul”. 4<br />

Tais socorros, to<strong>da</strong>via, não po<strong>de</strong>m ser <strong>de</strong>scritos anacronicamente<br />

como se fossem mo<strong>de</strong>rnos serviços <strong>de</strong> atendimento<br />

médico à população. Estes eram compostos <strong>de</strong> um conjunto<br />

<strong>de</strong> instituições e representantes tão diferentes entre si que<br />

3 Ver, por exemplo, a lista compila<strong>da</strong> <strong>da</strong> Câmara Municipal pela Comissão <strong>de</strong> Higiene<br />

Pública no Anexo 2. AHRS – CG: M 25 (1854).<br />

4 AHRS – RPPRS: A7.03 – Conselheiro José Antônio Pimenta Bueno (1850).<br />

nem mesmo é possível compreendê-los como se partilhassem<br />

<strong>de</strong> uma mesma lógica <strong>de</strong> atenção às necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>.<br />

Ao contrário do que se verificou em outras províncias<br />

(BELTRÃO, 2004), a documentação relativa ao Rio Gran<strong>de</strong> do<br />

Sul não permite separar em linhas claras as diferenças entre<br />

Socorros Públicos e Saú<strong>de</strong> Pública. Os socorros eram os estabelecimentos<br />

e outras formas <strong>de</strong> assistência que alcançavam<br />

os <strong>de</strong>svalidos <strong>da</strong> província e, em sua maioria, eram realizados<br />

por intermédio <strong>de</strong> estabelecimentos <strong>de</strong>nominados beneficência,<br />

cari<strong>da</strong><strong>de</strong> ou pios. Durante as epi<strong>de</strong>mias, estes estabelecimentos<br />

ain<strong>da</strong> po<strong>de</strong>riam ser acrescidos por enfermarias civis<br />

<strong>de</strong>svincula<strong>da</strong>s <strong>de</strong> hospitais ou ain<strong>da</strong> ambulâncias monta<strong>da</strong>s<br />

pelo governo – que po<strong>de</strong>riam ser <strong>de</strong>scritas como espaços<br />

on<strong>de</strong> eram colocados leitos e on<strong>de</strong> ficavam um ou mais responsáveis<br />

pelo cui<strong>da</strong>do dos doentes.<br />

Um traço importante que se po<strong>de</strong> notar nesta época é<br />

a maior preocupação em aumentar os incentivos para que se<br />

ampliasse o número dos estabelecimentos <strong>de</strong> amparo aos enfermos<br />

pobres no interior <strong>da</strong> província. A esta intenção, que<br />

po<strong>de</strong> ser nota<strong>da</strong> na documentação <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o fim <strong>da</strong> Farroupilha,<br />

conjugavam-se pelo menos duas necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>s: o socorro<br />

facilitado <strong>da</strong>s populações interioranas em períodos <strong>de</strong> crise e<br />

o alívio <strong>da</strong> afluência <strong>de</strong> doentes (em especial, os “alienados”)<br />

vindos do interior e que, no processo <strong>de</strong> busca <strong>da</strong> saú<strong>de</strong>, acabavam<br />

indo para a Santa Casa <strong>de</strong> Misericórdia <strong>de</strong> Porto Alegre.<br />

Por outro lado, opunha-se a isto a dificul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> se conseguir<br />

doações suficientes para que fosse possível construir outros<br />

hospitais, sustentados pela cari<strong>da</strong><strong>de</strong> pública, em regiões com<br />

uma concentração populacional menor que as <strong>da</strong>s ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s do<br />

litoral. E, como vimos, havia uma clara resistência dos dirigentes<br />

em conceber estas instituições como tendo origem somente<br />

na Fazen<strong>da</strong> Pública. Dessa forma, em 1850, existiam na<br />

província <strong>de</strong> São Pedro somente três hospitais ligados a Casas<br />

<strong>de</strong> Cari<strong>da</strong><strong>de</strong>: o <strong>de</strong> Porto Alegre, a Santa Casa <strong>de</strong> Rio Gran<strong>de</strong> e<br />

a <strong>de</strong> Pelotas. Em Rio Pardo, nesta mesma época, estava<br />

[...] em construção (um hospital), mas tem contado<br />

com pouquíssimas esmolas, correndo a maior parte<br />

<strong>da</strong>s <strong>de</strong>spesas por conta dos cofres públicos e que<br />

uma penosa circunstância, que ain<strong>da</strong> acresce, é <strong>de</strong><br />

44<br />

MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje


<strong>Medicina</strong> e cari<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

não ter por hora este pio Estabelecimento ren<strong>da</strong><br />

alguma, <strong>de</strong> maneira ain<strong>da</strong> quando concluído o hospital<br />

não possuirá meios <strong>de</strong> tratar os enfermos, a<br />

quem por hora não presta socorros alguns. A ci<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> Rio Pardo, comparativamente com as outras<br />

que antes tenho mencionado, é pobre, e se não<br />

<strong>de</strong>senvolver muito o espírito <strong>de</strong> cari<strong>da</strong><strong>de</strong> encontrará<br />

as maiores dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> se levar a efeito o seu<br />

pensamento. 5<br />

Além do caráter <strong>de</strong> instituição <strong>de</strong> cari<strong>da</strong><strong>de</strong> religiosa, as<br />

Misericórdias possuíam antigas e profun<strong>da</strong>s as relações com o<br />

Estado luso-brasileiro (ABREU, 2001). Com a instituição, fun<strong>da</strong><strong>da</strong><br />

em 1803, em Porto Alegre não foi diferente. Sua história<br />

e existência estiveram estreitamente liga<strong>da</strong>s às conjunturas<br />

políticas e sociais <strong>da</strong> província ao longo do século XIX. “As<br />

irman<strong>da</strong><strong>de</strong>s caracterizam sempre o seu momento e o seu ambiente,<br />

<strong>da</strong>ndo origem à diversi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> formas, por um lado,<br />

e à flui<strong>de</strong>z e imprecisão <strong>de</strong> suas <strong>de</strong>nominações por outro.”<br />

(BOSCHI, 1986, p. 13.) Tanto que a própria irman<strong>da</strong><strong>de</strong> que<br />

a dirigia somente passou a existir pela necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> capital<br />

<strong>da</strong> província em contar com um estabelecimento que servisse<br />

como espaço para o recolhimento, cui<strong>da</strong>do e amparo às “classes<br />

<strong>de</strong>svali<strong>da</strong>s”. Por outro lado, a presença <strong>de</strong> uma irman<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

liga<strong>da</strong> a um estabelecimento <strong>de</strong> cari<strong>da</strong><strong>de</strong> vinha também ao<br />

encontro <strong>da</strong>s necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>s sociais dos habitantes <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

Porto Alegre na época, o que justifica sua prontíssima aceitação<br />

(WEBER, 1999).<br />

A Santa Casa <strong>de</strong> Misericórdia <strong>de</strong> Porto Alegre, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> seu<br />

início, <strong>de</strong>stinou-se ao compromisso <strong>de</strong> tratar “por cari<strong>da</strong><strong>de</strong> os<br />

enfermos pobres”, isto é, não se pretendia como uma instituição<br />

a serviço <strong>de</strong> todos. 6 Em 1814, lhe foi concedido o privilégio<br />

<strong>de</strong> utilizar o status <strong>de</strong> Misericórdia para po<strong>de</strong>r receber<br />

esmolas, legados e outros tipos <strong>de</strong> rendimentos e aplicar os<br />

recursos levantados na construção <strong>de</strong> um hospital. De acordo<br />

com a permissão concedi<strong>da</strong> pelo príncipe regente D. João, o<br />

estabelecimento seria sustentado com o produto <strong>de</strong> esmolas<br />

5 AHRS – Relatório dos Presi<strong>de</strong>ntes <strong>da</strong> Província do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul – A7.03 –<br />

Conselheiro José Antônio Pimenta Bueno (1850).<br />

6 Resolução <strong>da</strong> Irman<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> SCM. Ata <strong>de</strong> 24 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1814 e <strong>de</strong> 5 <strong>de</strong> janeiro<br />

<strong>de</strong> 1815. CEDOP / SCMPA.<br />

<strong>da</strong><strong>da</strong>s pelo povo, mas este também recomen<strong>da</strong>va que o governador<br />

<strong>da</strong> capitânia “animasse, protegesse e favorecesse os empreen<strong>de</strong>dores<br />

<strong>da</strong> futura obra pia” (FRANCO; STRIGGER, 2003,<br />

p. 18). Assim, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o princípio, a Santa Casa esteve inextricavelmente<br />

liga<strong>da</strong> ao Estado – como outras instituições semelhantes<br />

em países católicos, os Hôtels-Dieu franceses (GOU-<br />

BERT, 1972), por exemplo – e muito embora não constituísse<br />

um órgão <strong>de</strong>ste ou fosse geri<strong>da</strong> como um órgão público, sua<br />

construção esteve inicialmente a cargo <strong>da</strong> Câmara Municipal<br />

<strong>de</strong> Porto Alegre, que foi responsável, inclusive, pela eleição <strong>de</strong><br />

sua primeira Mesa Diretora (FRANCO; STRIGGER, 2003).<br />

Dentro <strong>da</strong> i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> “animar, proteger e favorecer”, os<br />

governadores <strong>da</strong> capitania e, mais tar<strong>de</strong>, os presi<strong>de</strong>ntes <strong>da</strong><br />

província fizeram inúmeros contratos com a Santa Casa. Esses<br />

contratos, no entanto, não somente foram uma constante<br />

fonte <strong>de</strong> tensão entre a Santa Casa e o governo, ao longo do<br />

século XIX, como revelam uma atuação bastante diversifica<strong>da</strong><br />

por parte dos diferentes provedores. Os contratos <strong>de</strong> serviços<br />

que a Santa Casa prestaria ao governo – cui<strong>da</strong>do dos presos<br />

pobres enfermos e dos menores do Arsenal <strong>de</strong> Guerra 7 , “hospe<strong>da</strong>gem”<br />

<strong>da</strong> enfermaria do hospital militar, fornecimento <strong>de</strong><br />

medicamentos para o Exército e para as ambulâncias <strong>de</strong>ste e<br />

criação dos expostos 8 – foram geralmente acor<strong>da</strong>dos por provedores<br />

que, ao mesmo tempo, eram também presi<strong>de</strong>ntes <strong>da</strong><br />

província.<br />

A existência <strong>de</strong> tais encargos, no entanto, foi pivô <strong>de</strong> contínuas<br />

negociações entre a Mesa Diretora do estabelecimento,<br />

a presidência e a Assembleia Provincial, que era continuamente<br />

solicita<strong>da</strong> a subscrever recursos ca<strong>da</strong> vez maiores para compensar<br />

os inúmeros encargos colocados “sobre os ombros <strong>da</strong> pia<br />

instituição”. 9 Nesse sentido, também as reações dos representantes<br />

do governo eram diferencia<strong>da</strong>s. Enquanto alguns acolhiam<br />

as reclamações <strong>da</strong> Santa Casa e <strong>de</strong>man<strong>da</strong>vam maiores<br />

auxílios por parte <strong>da</strong> Assembleia Provincial 10 , outros acreditavam<br />

7 Os menores do Arsenal <strong>de</strong> Guerra eram meninos que, expostos na Santa Casa, ao<br />

chegarem aos 7 anos eram recolhidos como aprendizes elo Exército.<br />

8 Esta era inicialmente uma obrigação <strong>da</strong> Câmara Municipal que, mais tar<strong>de</strong>, em<br />

1837, foi passa<strong>da</strong> à Santa Casa.<br />

9 AHRS – Relatórios dos Presi<strong>de</strong>ntes <strong>da</strong> Província do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul – A7.03 –<br />

Conselheiro José Antonio Pimenta Bueno (1850).<br />

10 AHRS – Relatórios dos Presi<strong>de</strong>ntes <strong>da</strong> Província do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul – A7.02 –<br />

Luiz Alves Leite <strong>de</strong> Oliveira Bello (1852) e também A7.03 – João Lins Vieira Cansansão<br />

<strong>de</strong> Sinimbú (1853).<br />

MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje 45


<strong>Medicina</strong> e cari<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

que, “em ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, Estabelecimentos tais não po<strong>de</strong>m ser quase<br />

que exclusivamente sustentados pelos cofres provinciais: em tal<br />

hipótese converter-se-iam em Repartições Públicas”. 11<br />

Deparamo-nos aqui com um <strong>de</strong>bate em aberto à época.<br />

Afinal, a quem cabia a responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong> financeira pela saú<strong>de</strong><br />

<strong>da</strong> população <strong>de</strong>sassisti<strong>da</strong>? No tocante às ações empreendi<strong>da</strong>s,<br />

a regra para <strong>de</strong>finir quais atos eram próprios do governo<br />

e quais pertenciam à pie<strong>da</strong><strong>de</strong> civil parece ter estado liga<strong>da</strong> à<br />

questão <strong>de</strong> a quem estas eram dirigi<strong>da</strong>s. À Santa Casa, como<br />

outras Misericórdias e estabelecimentos <strong>de</strong> cari<strong>da</strong><strong>de</strong>, cabia a<br />

responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> cui<strong>da</strong>r <strong>da</strong>queles que não possuíam recursos<br />

nem família. Sua obrigação se dirigia acima <strong>de</strong> tudo aos<br />

<strong>de</strong>svalidos, aos sujeitos merecedores <strong>de</strong> cari<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Nesse sentido, tem-se aqui um ponto <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> importância<br />

para que se compreen<strong>da</strong> a noção <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> pública <strong>de</strong>ste<br />

período. Ela se dirigia essencialmente aos que “não tinham<br />

quem os cui<strong>da</strong>sse em casa”. 12 Ou seja, o local fun<strong>da</strong>mental<br />

para o exercício dos cui<strong>da</strong>dos e terapias com vista ao restabelecimento<br />

e a cura dos enfermos é a casa, o espaço do lar e<br />

<strong>da</strong> família. Não se tratava <strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rar o hospital um lugar<br />

aon<strong>de</strong> se ia para morrer, ou <strong>de</strong> se <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>rar as práticas<br />

médicas ali realiza<strong>da</strong>s. O significado <strong>de</strong> ter <strong>de</strong> ir ao hospital<br />

estava ligado tanto à “sina <strong>da</strong> pobreza” quanto à <strong>da</strong> <strong>de</strong>svalia,<br />

ao fato <strong>de</strong> não ter ninguém por si. No caso dos escravos, podia<br />

até mesmo significar ter um mal senhor (WITTER, 2007).<br />

Essa compreensão <strong>da</strong> atuação <strong>da</strong> Santa Casa a configura<br />

como um espaço <strong>de</strong> cui<strong>da</strong>do e tratamento aberto àqueles<br />

que necessitavam <strong>de</strong>sta cari<strong>da</strong><strong>de</strong> e não como uma instituição<br />

pública a serviço <strong>de</strong> todos. Isso não quer dizer que aí não existissem<br />

enfermos com recursos financeiros (ou mesmo irmãos<br />

que, ao adoecerem, tinham direito <strong>de</strong> se tratarem na Santa<br />

Casa), conforme constam nos relatórios <strong>da</strong> instituição. 13 Porém,<br />

estes eram pagantes (com exceção dos irmãos) e, muitas<br />

vezes, usavam como critério <strong>de</strong> internação a ausência <strong>de</strong> uma<br />

estrutura domiciliar <strong>de</strong> cui<strong>da</strong>do e não os tipos <strong>de</strong> tratamento<br />

que, por ventura, pu<strong>de</strong>ssem ser ministrados no hospital (WIT-<br />

TER, 2007; WEBER, 1999).<br />

11 AHRS – Relatórios dos Presi<strong>de</strong>ntes <strong>da</strong> Província do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul – A7.03 –<br />

Conselheiro José Antonio Pimenta Bueno (1850).<br />

12 CEDOP / SCMPA: Relatório do Provedor Dr. João Rodrigues Fagun<strong>de</strong>s (1855).<br />

13 CEDOP / SCMPA e AHRS – Religião.<br />

Em relação ao funcionamento do hospital, nesse período,<br />

é possível perceber que a mortali<strong>da</strong><strong>de</strong> dos internos estava<br />

<strong>de</strong>ntro dos padrões aceitos na época. 14 Esse aspecto não somente<br />

é referenciado nos relatórios dos provedores e dos presi<strong>de</strong>ntes<br />

<strong>da</strong> província, como também estes explicitam haver,<br />

inclusive, um padrão a ser seguido.<br />

Em 1855, o presi<strong>de</strong>nte Barão <strong>de</strong> Muritiba avaliou a mortali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

do hospital <strong>da</strong> Santa Casa em torno <strong>de</strong> 10%, o que o<br />

equiparava ao Hôtel-Dieu, em França, e era digno <strong>de</strong> elogios.<br />

Já o hospital <strong>da</strong> Santa Casa <strong>de</strong> Misericórdia <strong>de</strong> Rio Gran<strong>de</strong><br />

foi advertido <strong>de</strong> que <strong>de</strong>veria baixar seu índice <strong>de</strong> mortali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

(em torno <strong>de</strong> 14%) até ficar pelo menos no mesmo padrão. 15<br />

Tal fato, no entanto, não permite que se superestimem os tipos<br />

<strong>de</strong> tratamentos oferecidos pela Santa Casa. Até o último<br />

quartel do século XIX, o hospital contou quase sempre com<br />

três facultativos, que variavam entre um ou dois médicos (que<br />

faziam visitas irregulares aos doentes) e um ou dois cirurgiões,<br />

e alguns poucos enfermeiros cujo papel era servir as dietas,<br />

ministrar os medicamentos prescritos, policiar os enfermos e,<br />

em alguns casos, cui<strong>da</strong>r do asseio dos doentes.<br />

Mais que com os médicos, os provedores, em especial<br />

na segun<strong>da</strong> meta<strong>de</strong> do século XIX, parecem ter <strong>da</strong>do maior<br />

atenção à limpeza e organização do hospital. No ano <strong>de</strong> 1855,<br />

por exemplo, foram toma<strong>da</strong>s novas medi<strong>da</strong>s com vistas a melhorar<br />

o que se consi<strong>de</strong>rava o aspecto higiênico do hospital.<br />

Além <strong>da</strong>s caiações anuais <strong>da</strong>s enfermarias, o provedor João<br />

Rodrigues Fagun<strong>de</strong>s instaurou uma coletoria, on<strong>de</strong> passaram<br />

a ser <strong>de</strong>positados os pertences dos enfermos homens, que<br />

antes se acumulavam ao lado dos leitos e que “apresentava[m]<br />

uma vista <strong>de</strong>sagradável”. 16 Apesar <strong>de</strong> constar uma reclamação<br />

formal do aspecto sanitário do hospital, <strong>da</strong>ta<strong>da</strong> do mesmo<br />

ano, por parte <strong>da</strong> Comissão <strong>de</strong> Higiene Pública, não temos<br />

provas <strong>de</strong> que ambos os fatos estivessem relacionados, embora<br />

seja possível que esta, bem como o medo <strong>da</strong> chega<strong>da</strong><br />

do cólera-morbo, tenha tido alguma influência no estabelecimento<br />

<strong>de</strong>stas “melhorias”. É importante, no entanto, que se<br />

14 CEDOP – SCMPA: Livros 1 e 2 <strong>de</strong> Matrícula Geral <strong>de</strong> Enfermos (1845-1855 e 1856-<br />

1865).<br />

15 AHRS – Relatórios dos Presi<strong>de</strong>ntes <strong>da</strong> Província do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul – A7.02 –<br />

Barão <strong>de</strong> Muritiba (1855).<br />

16 CEDOP / SCMPA: Relatório do Provedor Dr. João Rodrigues Fagun<strong>de</strong>s (1855).<br />

46<br />

MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje


<strong>Medicina</strong> e cari<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

tenha claro que, embora limpeza e higiene fossem palavras<br />

que guar<strong>da</strong>ssem sentidos próximos, estas não se confundiam<br />

na época nem se aproximavam <strong>da</strong> i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> higiene que passa<br />

a existir após a revolução bacteriológica.<br />

Durante todo o século XIX, as i<strong>de</strong>ias <strong>de</strong> limpeza e morali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

estiveram claramente uni<strong>da</strong>s, assim como a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> higiene<br />

se associava imediatamente às percepções sensoriais <strong>de</strong><br />

limpeza, isto é, a ausência <strong>de</strong> cheiros fortes e a não aparência<br />

<strong>de</strong> sujeira à visão. Era nesse sentido que os administradores<br />

do hospital <strong>da</strong> Santa Casa <strong>de</strong> Misericórdia <strong>de</strong> Porto Alegre<br />

buscavam pautar sua atuação em prol <strong>da</strong> limpeza do estabelecimento.<br />

O primeiro regulamento sanitário acerca dos procedimentos<br />

do hospital foi estabelecido em 1867, às vésperas <strong>da</strong><br />

eclosão <strong>da</strong> segun<strong>da</strong> epi<strong>de</strong>mia <strong>de</strong> cólera na capital pelas mãos<br />

do Marechal Luiz Manoel <strong>de</strong> Lima e Silva, então provedor do<br />

estabelecimento. Foi aí que se estabeleceram como regras que<br />

as roupas <strong>de</strong> cama <strong>de</strong>veriam ser troca<strong>da</strong>s to<strong>da</strong>s as semanas,<br />

bem como esta <strong>de</strong>veria ser a periodici<strong>da</strong><strong>de</strong> para que os enfermos<br />

tomassem um banho – excluindo os alienados, que,<br />

<strong>de</strong>vido ao seu estado e à “tendência a emporcalharem-se”, podiam<br />

ser lavados com mais frequência. 17 Também nesta época<br />

foi organizado um escoamento dos <strong>de</strong>jetos dos pacientes que<br />

se prestasse melhor às necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>da</strong> instituição. “Primor”<br />

<strong>da</strong> engenharia em seu tempo, estes “sanitários” foram alvo <strong>de</strong><br />

violentas queixas na vira<strong>da</strong> do século XIX para o XX. O <strong>de</strong>preciamento<br />

<strong>da</strong> obra produziu discursos que, inclusive, apagaram<br />

o fato <strong>de</strong> que o estado e a forma dos escoadouros já eram<br />

uma melhoria em relação a mo<strong>de</strong>los anteriores e que boa parte<br />

<strong>de</strong> sua <strong>de</strong>terioração se <strong>da</strong>va em função <strong>da</strong> má conservação<br />

<strong>da</strong>s obras realiza<strong>da</strong>s em 1866, e não por <strong>de</strong>ficiências <strong>da</strong> obra<br />

em si (WEBER, 1999).<br />

Outra parte do estabelecimento que possuía um papel<br />

importante neste período era a botica <strong>da</strong> Santa Casa, que teve<br />

inclusive, por muitos anos, uma divisão homeopática, cujo<br />

fechamento foi consequência e causa <strong>de</strong> divergências terapêuticas<br />

e político-partidárias entre os médicos <strong>da</strong> instituição<br />

(FRANCO; STRIGGER, 2003). A botica era responsável por for-<br />

17 AHRS – Fundo Religião, M3 (1867) – Regulamento Sanitário do Hospital <strong>da</strong> Santa<br />

Casa <strong>de</strong> Misericórdia <strong>de</strong> Porto Alegre.<br />

necer remédios para o hospital e para o exército. Durante as<br />

epi<strong>de</strong>mias, há indícios <strong>de</strong> que, por vezes, doentes pobres que<br />

eram tratados pelos médicos do estabelecimento, sem que ficassem<br />

internados, ali retiravam medicamentos gratuitamente.<br />

18 No entanto, a forma como estes eram subvencionados<br />

pela irman<strong>da</strong><strong>de</strong> ou pelo governo ain<strong>da</strong> não aparecem claramente<br />

nos documentos, embora seja possível que uma boa<br />

parte <strong>de</strong>stes fosse pago pelo governo provincial. 19<br />

Apesar <strong>de</strong> tudo isso, o hospital era visto ain<strong>da</strong> mais como<br />

um espaço <strong>de</strong> cui<strong>da</strong>do do que <strong>de</strong> cura, muito embora não<br />

se possa negar que muitos que ali entravam saíam realmente<br />

curados. O fato é que a Santa Casa <strong>de</strong> Misericórdia se situava<br />

numa zona intersticial no que diz respeito aos tratos com a<br />

saú<strong>de</strong>. Não era um órgão público, mas também não se gerenciava<br />

como um estabelecimento completamente privado.<br />

Por outro lado, estava igualmente ain<strong>da</strong> no meio do caminho<br />

entre cui<strong>da</strong>do e tratamento e, certamente, ain<strong>da</strong> estava longe<br />

do atendimento clínico que, neste momento, começava a<br />

ser assumidos por alguns hospitais, especialmente, na Europa<br />

(GRANDSHAW, 2001).<br />

O auxílio à Santa Casa <strong>de</strong> Misericórdia se revestia, <strong>de</strong>ssa<br />

forma, <strong>de</strong> um caráter político amplo e <strong>de</strong> suma importância<br />

para o prestígio e a populari<strong>da</strong><strong>de</strong> dos homens e <strong>da</strong>s famílias<br />

<strong>de</strong> po<strong>de</strong>r na província. A não restrição <strong>de</strong>ste fato a Porto Alegre<br />

é evi<strong>de</strong>nte na análise <strong>da</strong>s doações feitas à instituição, que<br />

vinham <strong>de</strong> todos os pontos do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul. 20 Um outro<br />

aspecto que corrobora este argumento é o fato <strong>de</strong> que os enfermos<br />

pobres, para serem recebidos na Santa Casa, <strong>de</strong>viam<br />

trazer um atestado <strong>de</strong> sua indigência (que po<strong>de</strong>ria, em alguns<br />

casos, ser passado por um inspetor <strong>de</strong> quarteirão) e/ou uma<br />

recomen<strong>da</strong>ção <strong>de</strong> um irmão que garantisse que a falta <strong>de</strong> condições<br />

<strong>de</strong> pagar pelo tratamento. 21 Ora, o espaço para re<strong>de</strong>s<br />

clientelares que se abre a partir <strong>da</strong> constatação <strong>de</strong>sta exigên-<br />

18 AHRS – Relatório do Presi<strong>de</strong>nte <strong>da</strong> Província do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul – A7.05 – Barão<br />

<strong>de</strong> Mutiriba (1856) e Jeronymo Francisco Coelho (1856). O indício mais claro sobre<br />

esta prática é relatado a respeito <strong>da</strong> SCM <strong>de</strong> Rio Gran<strong>de</strong>: “A botica forneceu grátis<br />

a pobres 3:117$080rs. em medicamentos constantes <strong>de</strong> 4025 receitas”. AHRS –<br />

Relatório do Presi<strong>de</strong>nte <strong>da</strong> Província do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul – A7.10 – Antonio <strong>da</strong><br />

Costa Pinto <strong>da</strong> Silva (1859).<br />

19 AHRS – Correspondência dos Governantes – M27, 1856 (Saú<strong>de</strong> Pública).<br />

20 CEDOP / SCMPA: Relatórios dos Provedores.<br />

21 AHRS – Fundo Religião: M3 – Correspondência entre o Provedor <strong>da</strong> SCM e<br />

o Presi<strong>de</strong>nte <strong>da</strong> Província do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul.<br />

MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje 47


<strong>Medicina</strong> e cari<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

cia tem fortes implicações sobre o papel não apenas social,<br />

mas também político-econômico <strong>da</strong> Santa Casa na capital <strong>da</strong><br />

província.<br />

Se o argumento <strong>da</strong> política é forte, não se po<strong>de</strong> também<br />

<strong>de</strong>sprezar a valorização dos i<strong>de</strong>ais filantrópicos por parte<br />

dos envolvidos com a Santa Casa. A orientação i<strong>de</strong>ológica do<br />

Império no sentido <strong>de</strong> construir uma imagem <strong>de</strong> civilização<br />

à mo<strong>da</strong> europeia esteve presente no horizonte <strong>da</strong>queles que<br />

“animavam” os feitos <strong>da</strong> Misericórdia <strong>de</strong> Porto Alegre. Não é à<br />

toa que já em 1850 o prédio <strong>da</strong> Santa Casa era um dos mais<br />

notáveis <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong> e significava, para os que o observavam, “a<br />

exata medi<strong>da</strong> <strong>de</strong> sua civilização”. 22 É na meta<strong>de</strong> do século XIX<br />

que a preocupação com esta imagem parece se esten<strong>de</strong>r além<br />

<strong>de</strong> corporificação física do que se consi<strong>de</strong>rava o “elevado grau<br />

<strong>de</strong> zelo, virtu<strong>de</strong> e benevolência” <strong>da</strong> população.<br />

Muitos estudos recentes têm procurado <strong>da</strong>r conta <strong>de</strong>sse<br />

período em que o termo cari<strong>da</strong><strong>de</strong> passa lentamente a ser substituído<br />

por filantropia. Primeiramente é preciso saber on<strong>de</strong> e<br />

como esses termos se confun<strong>de</strong>m e se separam. A cari<strong>da</strong><strong>de</strong> é<br />

o termo antigo para <strong>de</strong>signar a preocupação dos privilegiados<br />

com o <strong>de</strong>stino <strong>da</strong>queles <strong>de</strong>spossuídos <strong>de</strong> bens e <strong>de</strong>svalidos<br />

pela sorte (JONES, 2001). Já a filantropia é um termo mais<br />

recente, começa a ser usado no século XVIII, coincidindo com<br />

os alvores do Estado nacional (DUPRAT, 1993). Enquanto a cari<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

é, antes <strong>de</strong> tudo, uma virtu<strong>de</strong> cristã, a filantropia, sem<br />

<strong>de</strong>la se separar, vai lentamente ganhando o sentido <strong>de</strong> virtu<strong>de</strong><br />

cívica e moral. Não há um plano <strong>de</strong> ruptura ou dicotomia<br />

que separe completamente os termos em sua ação no mundo,<br />

contudo, na medi<strong>da</strong> em que se nota uma laicização dos discursos,<br />

a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> filantropia como uma virtu<strong>de</strong> perante os homens,<br />

e não apenas perante Deus, vai lentamente ganhando<br />

força (BYNUM, 2002) – uma virtu<strong>de</strong> que ganhava ain<strong>da</strong> mais<br />

relevo quando se estendia <strong>de</strong> alto a baixo nos extratos <strong>de</strong> uma<br />

<strong>de</strong>termina<strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

No caso do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul, a tese <strong>da</strong> historiadora<br />

Cláudia Tomaschewski (2014) aprofun<strong>da</strong> a análise sobre o papel<br />

<strong>da</strong>s Misericórdias e sua ligação tanto com o Estado quanto<br />

com o que ela caracteriza <strong>de</strong> um mercado <strong>da</strong> dádiva. A partir<br />

22 AHRS – Relatório do Presi<strong>de</strong>nte <strong>da</strong> Província do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul – A7.02<br />

– Antonio Manoel Galvão (1847).<br />

<strong>da</strong> perspectiva compara<strong>da</strong> <strong>da</strong>s irman<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>da</strong>s Santas Casas<br />

<strong>de</strong> Misericórdia <strong>de</strong> Pelotas e Porto Alegre, na segun<strong>da</strong> meta<strong>de</strong><br />

do século XIX, a autora revisita as nuanças <strong>da</strong> i<strong>de</strong>ologia <strong>de</strong><br />

assistência aos pobres. Organiza<strong>da</strong>s em nome <strong>da</strong> cari<strong>da</strong><strong>de</strong>, as<br />

instituições – ampara<strong>da</strong>s pelas irman<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> validos e pelo<br />

governo – arreca<strong>da</strong>vam em prestígio clientela e votos na mesma<br />

medi<strong>da</strong> em que distribuíam. Tal papel político foi <strong>de</strong> monta<br />

suficiente para jamais ser negligenciado enquanto as lógicas<br />

<strong>da</strong> cari<strong>da</strong><strong>de</strong> e, <strong>de</strong>pois, <strong>da</strong> filantropia foram vigentes.<br />

Larissa Chaves (2008) também já havia colocado em sua<br />

tese a questão que ligava a formação <strong>da</strong>s elites no Rio Gran<strong>de</strong><br />

do Sul e as instituições <strong>de</strong> cari<strong>da</strong><strong>de</strong> e beneficência. A historiadora<br />

fez um estudo comparativo <strong>da</strong>s Socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s Portuguesas <strong>de</strong><br />

Beneficência <strong>da</strong>s ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> Porto Alegre, Pelotas e Bagé. Nele,<br />

a autora enfoca as formas assumi<strong>da</strong>s pelo trabalho assistencial<br />

<strong>de</strong>ssas instituições, que se realizava a partir do estabelecimento<br />

<strong>de</strong> “soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong><strong>de</strong>s” (aspas <strong>da</strong> autora) e trocas <strong>de</strong> presentes com<br />

o intuito <strong>de</strong> favorecer a visibili<strong>da</strong><strong>de</strong> social. A cari<strong>da</strong><strong>de</strong> aparece aí<br />

<strong>de</strong> forma dualista: tanto como a <strong>de</strong>seja<strong>da</strong> virtu<strong>de</strong> cristã quanto<br />

como um mecanismo para a obtenção <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r, fazendo com<br />

que as instituições se configurassem como uma ferramenta<br />

para grupos que necessitavam <strong>de</strong> autoafirmação.<br />

Para além <strong>da</strong>s instituições, a construção <strong>da</strong> hegemonia<br />

médica não se fez apenas a partir <strong>de</strong> um po<strong>de</strong>r/saber curativo,<br />

à medi<strong>da</strong> que a <strong>Medicina</strong> clínico-científica vai assumindo o<br />

protagonismo <strong>de</strong>ntro <strong>da</strong>s partes hospitalares <strong>da</strong>s instituições.<br />

As conexões <strong>de</strong>sta com o Estado e as instituições caritativas<br />

foram fun<strong>da</strong>mentais para que esse “novo” conhecimento sobre<br />

o corpo – se compararmos, obviamente, com as raízes dos<br />

saberes populares (WITTER, 2001) – fosse aceito e integrado<br />

ao itinerário terapêutico e chegasse a dominá-lo. O já clássico<br />

trabalho <strong>de</strong> Beatriz Weber (1997) <strong>de</strong>monstra com clareza a<br />

multiplici<strong>da</strong><strong>de</strong> com que as artes <strong>de</strong> curar ain<strong>da</strong> vicejavam em<br />

princípio do século XX. A autora marca com acui<strong>da</strong><strong>de</strong> o fato<br />

<strong>de</strong> que o trabalho <strong>de</strong> construção hegemônica não po<strong>de</strong> prescindir<br />

<strong>de</strong> elementos simbólicos e religiosos, ao mesmo tempo<br />

em que se movia uma intensa luta por meio <strong>da</strong> legislação e do<br />

judiciário para garantir sua primazia nas escolhas populares.<br />

Curar efetivamente era, portanto, apenas um dos elementos<br />

<strong>de</strong> que a medicina <strong>de</strong> princípio do século XX se muni-<br />

48<br />

MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje


<strong>Medicina</strong> e cari<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

ciava para ampliar seu espectro <strong>de</strong> atuação. Para compreen<strong>de</strong>r<br />

isso, Daniel Oliveira (2012) aprofundou o estudo <strong>da</strong> ação terapêutica<br />

sobre as mulheres por parte dos médicos <strong>da</strong> Santa<br />

Casa <strong>de</strong> Misericórdia <strong>de</strong> Porto Alegre. Ain<strong>da</strong> um tabu na vira<strong>da</strong><br />

do século XIX para o século XX, a medicina <strong>da</strong> saú<strong>de</strong> feminina<br />

precisava ampliar-se como forma <strong>de</strong> <strong>de</strong>svincular esse grupo<br />

<strong>da</strong>s parteiras, curan<strong>de</strong>iras e comadres, consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong>s repositórios<br />

<strong>de</strong> superstições e ignorância. Os médicos trabalharam,<br />

assim, não só para <strong>de</strong>sconstruir a <strong>de</strong>sconfiança em relação<br />

ao seu saber sobre o corpo <strong>da</strong>s mulheres, como também na<br />

construção <strong>de</strong> suas figuras como homens virtuosos, bondosos,<br />

impelidos pela cari<strong>da</strong><strong>de</strong> e benemerência.<br />

Diego Devincenzi (2012) e Felipe Vieira (2008) também<br />

avançaram no sentido <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r a atuação sócio-política<br />

<strong>da</strong> classe médica. Os historiadores trabalham respectivamente<br />

com a formação <strong>de</strong>ntro <strong>da</strong> Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong><br />

e com a construção do Sindicato Médico. O intenso trabalho<br />

<strong>de</strong> construção <strong>da</strong> hegemonia terapêutica utilizou-se tanto <strong>da</strong><br />

ação pragmática <strong>de</strong>ntro <strong>da</strong> Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> e <strong>da</strong> Santa Casa <strong>de</strong> Misericórdia<br />

como do espalhamento <strong>de</strong> jovens médicos pelas outras<br />

instituições do Estado – inclusive criando novas, como é o<br />

caso do Hospital <strong>de</strong> Cari<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Santa Maria (WEBER, 2000;<br />

ROSSI, 2015). Da mesma forma, <strong>de</strong>monstram os autores, a<br />

ação simbólica <strong>da</strong>s lutas contra os “charlatães”, do comprometimento<br />

moral com a medicina, <strong>da</strong> elaboração <strong>de</strong> uma memória<br />

marca<strong>da</strong> pela cari<strong>da</strong><strong>de</strong>, pelo cristianismo e pela eleva<strong>da</strong><br />

ética civil e humana ajudou a consoli<strong>da</strong>r, para além <strong>da</strong> ciência,<br />

a figura exalta<strong>da</strong> do médico.<br />

A lógica <strong>da</strong> dádiva também se prestou a essa construção.<br />

Afinal, se compreen<strong>de</strong>rmos a saú<strong>de</strong> como dom, o ato<br />

<strong>de</strong> doar saú<strong>de</strong> e o cui<strong>da</strong>do para com a doença po<strong>de</strong>riam<br />

estabelecer relações duradouras <strong>de</strong> respeito e a<strong>de</strong>são entre a<br />

classe médica e os doentes, agora, ca<strong>da</strong> vez mais convertidos<br />

em pacientes. Mesmo <strong>de</strong>pois que a lógica <strong>da</strong>s instituições <strong>de</strong><br />

cari<strong>da</strong><strong>de</strong> já <strong>de</strong>ixara <strong>de</strong> funcionar, a crença na benemerência<br />

médica se manteve. Em função disso – e também por acreditarem<br />

que era preciso construir uma legislação pró-saú<strong>de</strong><br />

coletiva – diversos médicos ergueram proveitosas carreiras<br />

políticas. Mesmo os clientes mais <strong>de</strong>spossuídos, aqueles que<br />

acorriam a eles porque os anúncios <strong>de</strong> jornais prometiam<br />

não cobrar na<strong>da</strong> aos pobres (WITTER, 2001), lhes pagariam<br />

com bem mais que galinhas, porcos ou bolos; o pagamento<br />

viria na moe<strong>da</strong> imaterial <strong>da</strong> obrigação, um pagamento em<br />

longo prazo com efeitos bem mais duradouros que a simples<br />

restituição monetária.<br />

Ao longo <strong>da</strong> segun<strong>da</strong> meta<strong>de</strong> do século XIX e a primeira<br />

do XX, as concepções <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> foram lentamente se modificando,<br />

juntamente com a ampliação e centralização do Estado,<br />

bem como com o aumento do protagonismo médico nas<br />

questões <strong>de</strong> cura. A cari<strong>da</strong><strong>de</strong> esteve sempre junto nesse processo<br />

simbólico e pragmático <strong>de</strong> atenção à saú<strong>de</strong> <strong>da</strong> população,<br />

atuando num importante papel mesmo diante <strong>da</strong> ascensão<br />

<strong>da</strong> <strong>Medicina</strong> clínico-científica. A conjunção <strong>de</strong> todos estes<br />

elementos modificou tão substancialmente os quadros anteriores<br />

que atualmente chegamos ao ponto <strong>de</strong> sequer conseguirmos<br />

reconhecê-los. O que antes estava no seio <strong>da</strong> cari<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

cristã modificou-se para um filantropismo moral e civilizado,<br />

chegando à virtu<strong>de</strong> cívica e, por fim, ao direito fun<strong>da</strong>mental e<br />

inalienável ligado à ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia e, em última instância, à própria<br />

i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> humani<strong>da</strong><strong>de</strong>. O estudo histórico – sem heroicizar ou<br />

vilanizar os atores <strong>de</strong>sse processo – busca compreen<strong>de</strong>r como<br />

política e signos, ciência e crença trabalharam na construção<br />

não apenas do contexto em que vivemos, mas igualmente <strong>de</strong><br />

nossas <strong>de</strong>man<strong>da</strong>s e lutas.<br />

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50<br />

MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje


<strong>Medicina</strong> e cari<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

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MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje 51


Balança pediátrica<br />

Acervo: Socie<strong>da</strong><strong>de</strong> Portuguesa<br />

<strong>de</strong> Beneficência <strong>de</strong> Porto Alegre


Conjunto para café e ban<strong>de</strong>ja<br />

para servir refeições<br />

Acervo: Socie<strong>da</strong><strong>de</strong> Portuguesa<br />

<strong>de</strong> Beneficência <strong>de</strong> Porto Alegre


Frasco <strong>de</strong> medicamento<br />

Peitoral Soel<br />

Acervo: Sérgio Augusto Sempé<br />

Doador: Sérgio Augusto Sempé<br />

Frasco <strong>de</strong> Extrato moído<br />

<strong>de</strong> Salsaparrilha<br />

Acervo: Dr. Marcelo Melgares<br />

Doador: Dr. Marcelo Melgares<br />

Frasco <strong>de</strong> Potasio<br />

bromuro crist<br />

Acervo: Dr. Paulo Argolo Men<strong>de</strong>s<br />

Doador: Dr. Paulo Argolo Men<strong>de</strong>s<br />

Frasco <strong>de</strong> Solução<br />

<strong>de</strong> percalina<br />

Acervo: Dr. Paulo Argolo Men<strong>de</strong>s<br />

Doador: Dr. Paulo Argolo Men<strong>de</strong>s<br />

Frasco conta-gotas<br />

Acervo: Dr.Telmo Barros Mevedoski<br />

Doador: Felícia Telmo Barros<br />

Frasco <strong>de</strong> medicamento<br />

com rolha<br />

Acervo: Roberto Santos Chaves<br />

Doador: Farmacêutico Manoel<br />

José dos Santos Chaves


Livro <strong>de</strong> Matrícula<br />

<strong>de</strong> Sócios<br />

Acervo: Socie<strong>da</strong><strong>de</strong> Portuguesa <strong>de</strong><br />

Beneficência <strong>de</strong> Porto Alegre


MEDICINA MILITAR<br />

NO RIO GRANDE DO SUL<br />

BLAU FABRÍCIO DE SOUZA<br />

Instituto Histórico e Geográfico<br />

do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul - IHGRS<br />

56<br />

MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje


M<br />

ATRIZ PORTUGUESA<br />

A ausência <strong>de</strong> abrigos e os bancos <strong>de</strong> areia faziam do<br />

litoral gaúcho uma costa a ser evita<strong>da</strong> e que se consagraria<br />

como cemitério <strong>de</strong> navios. Estas circunstâncias, soma<strong>da</strong>s às<br />

incertezas quanto aos limites <strong>da</strong>s terras <strong>de</strong> Espanha e <strong>de</strong> Portugal<br />

pelo Tratado <strong>de</strong> Tor<strong>de</strong>silhas, retar<strong>da</strong>ram em dois séculos<br />

a efetiva instalação dos portugueses no Rio Gran<strong>de</strong> do Sul, ao<br />

contrário do que ocorrera em outras regiões do Brasil. E ela só<br />

aconteceu pela necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> estratégica <strong>de</strong> estabelecer fortes<br />

e povoações até o Rio <strong>da</strong> Prata, on<strong>de</strong> em 1680 fora instala<strong>da</strong><br />

pelos portugueses a Colônia do Santíssimo Sacramento, enclave<br />

luso <strong>de</strong> fronte a Buenos Aires. A partir <strong>da</strong>í, tornou-se um<br />

<strong>de</strong>safio assegurar apoio à distante e isola<strong>da</strong> fortaleza, bem<br />

como antepor barreiras a possíveis invasões dos espanhóis Brasil<br />

acima. Por isso é fácil <strong>de</strong> enten<strong>de</strong>r que os primeiros médicos<br />

no Continente <strong>de</strong> São Pedro tenham sido os cirurgiões que<br />

acompanhavam os navios e as forças militares portuguesas.<br />

Eram cirurgiões, não tinham a titulação <strong>de</strong> médicos ou físicos,<br />

segundo as Or<strong>de</strong>nações Filipinas aos corregedores <strong>de</strong> comarca.<br />

Não eram doutores.<br />

Antes do <strong>de</strong>sembarque para fun<strong>da</strong>r Rio Gran<strong>de</strong>, o briga<strong>de</strong>iro<br />

José <strong>da</strong> Silva Pais, a bordo <strong>da</strong> nau capitânia, nomeou<br />

como cirurgião para o novo fortim e povoação o português <strong>de</strong><br />

Santarém, Sebastião Gomes <strong>de</strong> Carvalho, que logo se a<strong>da</strong>ptou<br />

a terra. Casado com moça <strong>da</strong> Colônia do Sacramento, ele<br />

MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje 57


<strong>Medicina</strong> militar no rio gran<strong>de</strong> do sul<br />

registrou nove filhos em Rio Gran<strong>de</strong> e, por ocasião <strong>da</strong> invasão<br />

espanhola, passou a morar em Viamão e Rio Pardo. Sebastião<br />

permaneceu ativo por muitos anos no Continente e faleceu<br />

em 1783 na sua estância entre os rios dos Sinos e Caí, terra<br />

resultante <strong>da</strong> concessão <strong>de</strong> sesmaria. Foi ele o primeiro a exercer<br />

a medicina no Rio Gran<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Pedro. Sérgio <strong>da</strong> Costa<br />

Franco afirma sobre a época:<br />

O cirurgião, indispensável para reduzir fraturas, praticar<br />

amputações <strong>de</strong> membros e realizar curativos em<br />

ferimentos <strong>de</strong> combatentes, era figura obrigatória em<br />

to<strong>da</strong>s as uni<strong>da</strong><strong>de</strong>s dos exércitos e <strong>da</strong>s marinhas. E<br />

sendo o Rio Gran<strong>de</strong> do Sul, por longos anos, mera<br />

comandância militar, on<strong>de</strong> a ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> bélica ocupava<br />

o primeiro plano <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as funções estatais, po<strong>de</strong>-se<br />

facilmente concluir que a medicina militar teve<br />

absoluta primazia em relação às funções civis <strong>da</strong> arte<br />

médica.<br />

Durante todo o século XVIII, só houve cirurgiões exercendo<br />

a medicina no Rio Gran<strong>de</strong> do Sul sempre vinculados a<br />

uni<strong>da</strong><strong>de</strong>s militares e seus hospitais. Eles eram poucos e seu<br />

número só aumentava em função <strong>de</strong> acontecimentos militares<br />

extraordinários. Tal ocorreu quando Gomes Freire veio para<br />

estabelecer fronteiras em função do Tratado <strong>de</strong> Madrid (1750)<br />

e para guerrear com os índios <strong>da</strong>s Missões que não aceitavam<br />

o estabelecido pelas cortes, ou quando Portugal concentrou<br />

forças no Rio Gran<strong>de</strong> para expulsar os espanhóis em 1776.<br />

O certo é que em 1779 existiam três hospitais militares, do<br />

tipo enfermaria, localizados em Porto Alegre, Rio Pardo e Rio<br />

Gran<strong>de</strong>. Havia um cirurgião em ca<strong>da</strong> um <strong>de</strong>les e apenas o<br />

hospital <strong>de</strong> Porto Alegre contava com um aju<strong>da</strong>nte <strong>de</strong> cirurgia.<br />

Para bem conhecer <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong>sempenha<strong>da</strong>s por um cirurgião<br />

na época, transcrevo trecho do relatório <strong>de</strong> Francisco<br />

Ferreira <strong>de</strong> Souza, cirurgião-mor do Primeiro Regimento <strong>de</strong> Infantaria<br />

do Rio <strong>de</strong> Janeiro e que viera para integrar as forças<br />

encarrega<strong>da</strong>s <strong>da</strong> expulsão dos espanhóis, que ocupavam o Rio<br />

Gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1763. Francisco foi consi<strong>de</strong>rado por Guilhermino<br />

Cesar como um dos primeiros cronistas a escrever sobre o<br />

Rio Gran<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Pedro (CESAR, 1981). Testemunhou como<br />

poucos o surgimento do gaúcho e, no constante às ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

médicas, <strong>de</strong>ixou relatório em que analisa sua atuação, sempre<br />

usando a terceira pessoa:<br />

Dos espanhóis feridos, uns a espa<strong>da</strong> e outros a<br />

mosquete, se recolheram para o hospital vinte e<br />

sete (menos o capitão Dom José que no dia do ataque<br />

pereceu) os quais foram dirigidos ao cirurgiãomor<br />

Francisco Ferreira <strong>de</strong> Souza, a quem tocou (por<br />

or<strong>de</strong>m) a inspeção <strong>de</strong>stes enfermos, dos quais só<br />

faleceram (<strong>de</strong>ntro do hospital) dois. Do ataque do<br />

chefe Mc Doval (sic) se recolheram para o hospital<br />

vinte e nove enfermos (menos o capitão <strong>de</strong> mar e<br />

guerra Antônio José Pegado), dos quais só faleceram<br />

dois. O cirurgião-mor supra dito, a cujo cargo<br />

estava a assistência <strong>de</strong> tais enfermos amputou no<br />

dia 20 <strong>de</strong> abril quatro pernas, dois braços, e reduziu<br />

entre pernas e braços fraturados sete, e os mais<br />

feridos todos eram <strong>de</strong> muita circunspeção, o dito<br />

cirurgião-mor assistia num <strong>de</strong>svelo incessante em<br />

continua<strong>da</strong> visita, tanto a estes enfermos, como<br />

aos espanhóis, com muita cari<strong>da</strong><strong>de</strong>, amor e <strong>de</strong>svelo.<br />

Até como uma homenagem a Abeillard Barreto, pesquisador<br />

capaz <strong>de</strong> <strong>de</strong>scobrir crônicas <strong>de</strong>ste cirurgião militar na<br />

Biblioteca Pública <strong>de</strong> Évora e na Biblioteca <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> Coimbra, repito trechos <strong>de</strong>ssas crônicas, sem divulgar sua<br />

má vonta<strong>de</strong> para com as maltrata<strong>da</strong>s mulheres continentinas:<br />

“[...] usam <strong>de</strong> um pano aberto pelo meio, a que chamam poncho,<br />

pela abertura metem a cabeça, e também lhe serve <strong>de</strong><br />

cobertor ou chale”. Mais adiante, sobre a educação ou a falta<br />

<strong>de</strong>sta, escreveu: “Os meninos logo <strong>de</strong> tenra i<strong>da</strong><strong>de</strong> apren<strong>de</strong>m a<br />

laçar cachorros, quando maiores terneiros, e quando homens,<br />

potros, potrancas, éguas, cavalos, quer domésticos quer xucros<br />

[...]. A ler e escrever não se empregam, pois todo o <strong>de</strong>stino<br />

é laçar, é arrear e bolear”. Mesmo em tempos <strong>de</strong> paz, exerciam<br />

os cirurgiões seu trabalho nos quartéis e acampamentos,<br />

sempre envolvidos com a elite jovem <strong>da</strong> população que gravitava<br />

em torno <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s guerreiras. Construir fortins,<br />

58<br />

MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje


<strong>Medicina</strong> militar no rio gran<strong>de</strong> do sul<br />

conseguir faxina, cavar trincheiras ocupavam sol<strong>da</strong>dos que <strong>de</strong><br />

ordinário tinham alimentação e far<strong>da</strong>mentos insuficientes. Ou<br />

havia doenças, ou ocorriam aci<strong>de</strong>ntes que mantinham os cirurgiões<br />

ativos. O mesmo Francisco Ferreira <strong>de</strong> Souza, o cronista,<br />

falou <strong>de</strong> homens que faleceram por enfermi<strong>da</strong><strong>de</strong>s contraí<strong>da</strong>s<br />

ao cortar capim “no mais calamitoso inverno” para usar na<br />

cobertura <strong>de</strong> novo hospital. Muita documentação dos primeiros<br />

tempos <strong>de</strong> Rio Gran<strong>de</strong> foi <strong>de</strong>struí<strong>da</strong> pelos espanhóis, sem<br />

falar do muito que se extraviou quando, em 1763, o governador<br />

Elói Madureira e seus auxiliares empreen<strong>de</strong>ram a fuga<br />

para Viamão acossados pelos espanhóis <strong>de</strong> Cevallos. Mas há,<br />

por exemplo, em folhas <strong>de</strong> pagamento <strong>de</strong> oficiais e sol<strong>da</strong>dos<br />

do Regimento dos Dragões, quando Rafael Pinto Ban<strong>de</strong>ira era<br />

o coman<strong>da</strong>nte, referências a muitos homens que eram consi<strong>de</strong>rados<br />

imprestáveis para o serviço <strong>da</strong>s armas por estarem<br />

atacados do peito. Era a tuberculose a se manifestar entre<br />

homens submetidos aos rigores do clima e quase sempre mal<br />

abrigados, com vencimentos em atraso e com alimentação irregular.<br />

Outra referência interessante é sobre os sol<strong>da</strong>dos enviados<br />

<strong>de</strong> São Paulo para participar <strong>da</strong> expulsão dos espanhóis<br />

e que ficaram inativos por algum tempo ao serem atacados<br />

por surto <strong>de</strong> varíola.<br />

Tanto em Rio Gran<strong>de</strong> quanto em Viamão e nas outras<br />

incipientes povoações, os cirurgiões militares eram muito consi<strong>de</strong>rados<br />

pela população e costumavam, através dos pelouros,<br />

ser eleitos para a Câmara ou para exercer funções tais<br />

como a <strong>de</strong> almotacé, autori<strong>da</strong><strong>de</strong> responsável pela quali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

do pão, <strong>da</strong> carne e do leite fornecidos à população, bem como<br />

pela correção dos pesos e medi<strong>da</strong>s praticados no comércio. O<br />

velho Sebastião foi membro <strong>da</strong> Câmara tanto em Rio Gran<strong>de</strong><br />

quanto <strong>de</strong>pois em Viamão, mas outros cirurgiões recorreram<br />

a livranças, concedi<strong>da</strong>s pelo ouvidor <strong>de</strong> Santa Catarina e que<br />

os eximiam <strong>de</strong>sse encargo e <strong>de</strong> outros em função <strong>de</strong> se ocuparem<br />

com ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> médica. Fatos como esses indispunham<br />

a Câmara com alguns dos cirurgiões, que eram consi<strong>de</strong>rados<br />

homens prósperos na época, já que eram donos <strong>de</strong> sesmarias<br />

ou <strong>de</strong> casas nos povoados ou vilas. Tais indisposições aconteceram,<br />

sobretudo, quando o governador era José Marcelino,<br />

ele mesmo atritado com a Câmara, pois chegara a or<strong>de</strong>nar<br />

a prisão <strong>de</strong> seus membros enquanto não aceitassem morar<br />

em Porto Alegre, a nova capital, em vez <strong>de</strong> continuarem em<br />

Viamão, como <strong>de</strong>sejavam. Os cirurgiões André Machado Soares<br />

e Manoel Marques <strong>de</strong> Sampaio foram alguns dos que<br />

se beneficiaram com as tais livranças. Em 1781, <strong>de</strong>cisão do<br />

ouvidor e corregedor <strong>da</strong> Ilha <strong>de</strong> Santa Catarina, aten<strong>de</strong>ndo a<br />

reclamações <strong>da</strong> Câmara, dos nobres e do povo, fixou o valor<br />

máximo <strong>da</strong>s consultas, bem como dos acréscimos autorizados<br />

em função <strong>da</strong>s distâncias percorri<strong>da</strong>s para o atendimento <strong>de</strong><br />

pacientes em lugares afastados <strong>da</strong>s vilas. Foram estabeleci<strong>da</strong>s<br />

multa e prisão para os cirurgiões infratores. O certo é que todos<br />

eles estavam sujeitos a um cirurgião-mor, que, baseado em<br />

informes e verificação <strong>de</strong> conhecimentos, concedia provisões<br />

para que exercessem a profissão e vigiava o procedimento <strong>de</strong><br />

ca<strong>da</strong> um <strong>de</strong>les no Continente <strong>de</strong> São Pedro. Aten<strong>de</strong>r pacientes,<br />

estabelecer normas <strong>de</strong> higiene e salubri<strong>da</strong><strong>de</strong> bem como<br />

li<strong>da</strong>r com a fiscalização <strong>de</strong> alimentos e buscar melhores serviços<br />

para a população estimulavam os cirurgiões a participarem<br />

<strong>da</strong>s estratégias do Império Português, que era <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte do<br />

domínio dos mares. Alimentar bem os marinheiros era tão importante<br />

quanto plantar linho cânhamo para a fabricação <strong>da</strong>s<br />

amarras, velas e outros objetos indispensáveis à navegação <strong>da</strong><br />

época. E o Rio Gran<strong>de</strong> esteve presente com iniciativas em ambos<br />

os campos: foi plantado linho cânhamo e houve tentativas<br />

<strong>de</strong> obter extratos <strong>de</strong> carne. Assim, um dos nove filhos <strong>de</strong><br />

Sebastião Gomes <strong>de</strong> Carvalho, cirurgião militar em Rio Pardo,<br />

participou <strong>da</strong> busca <strong>de</strong> carne em conserva para facilitar a alimentação<br />

dos marinheiros nas longas e <strong>de</strong>mora<strong>da</strong>s viagens<br />

marítimas. Buscando solução para o problema, o cirurgião Vicente<br />

Venceslau Gomes <strong>de</strong> Carvalho <strong>de</strong>senvolveu as Tabelletas<br />

<strong>de</strong> Caldo, encaminha<strong>da</strong>s a Lisboa e que lhe ren<strong>de</strong>ram elogio<br />

e estímulos <strong>da</strong> corte. Déca<strong>da</strong>s <strong>de</strong>pois, outro médico, o doutor<br />

Manoel Pereira <strong>da</strong> Silva Ubatuba, que se tornou cavaleiro <strong>da</strong><br />

Or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> Cristo, estabeleceu indústria em Pedras Brancas em<br />

que fabricava o Extratum Carnis, produto premiado em exposições<br />

internacionais. Tais empreendimentos foram anteriores<br />

à produção do Fleischextrakt <strong>de</strong> Liebig, em Fray Bentos, na<br />

América Espanhola (XAVIER, 2004). Outro aspecto interessante<br />

era a frequência com que a ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> médica passava a ser<br />

exerci<strong>da</strong> pelos filhos dos cirurgiões. A familiari<strong>da</strong><strong>de</strong> com os<br />

procedimentos cirúrgicos e as dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s para formar novos<br />

MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje 59


<strong>Medicina</strong> militar no rio gran<strong>de</strong> do sul<br />

profissionais talvez expliquem esse fato. Assim, a exemplo do<br />

que ocorrera com Sebastião Gomes <strong>de</strong> Carvalho e seu filho<br />

Vicente Venceslau, o cirurgião Antônio Cabral <strong>de</strong> Melo, dono<br />

<strong>de</strong> sesmarias e <strong>de</strong> várias casas em Porto Alegre, também encaminhou<br />

seu filho para a medicina. Mas os tempos já eram outros,<br />

e Américo Cabral <strong>de</strong> Melo foi o primeiro porto-alegrense<br />

a doutorar-se em <strong>Medicina</strong>.<br />

Voltando à assistência médica no Rio Gran<strong>de</strong> do século<br />

XVIII, é importante reconhecer a importância que teve um edital<br />

do provedor contador <strong>da</strong> Fazen<strong>da</strong> Real em 1750 e que ve<strong>da</strong>va<br />

aos civis o atendimento nos hospitais militares. Em 1795<br />

houve em Porto Alegre a fun<strong>da</strong>ção <strong>da</strong> Enfermaria <strong>da</strong> Praia do<br />

Arsenal, no início <strong>da</strong> rua principal <strong>da</strong> povoação, e que, além<br />

do cirurgião e <strong>de</strong> seu aju<strong>da</strong>nte, contava com um enfermeiro,<br />

um comprador e dois serventes. Mas visto que atendia apenas<br />

aos sol<strong>da</strong>dos, o atendimento dos cirurgiões e dos sangradores<br />

à população civil ficava restrito aos lares <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> um. Como<br />

<strong>de</strong>corrência disso, surgiram primeiro os albergues e <strong>de</strong>pois as<br />

Santas Casas <strong>de</strong> Misericórdia, que <strong>de</strong>pendiam <strong>de</strong> iniciativas<br />

<strong>de</strong> particulares e <strong>da</strong>s esmolas dos habitantes <strong>da</strong>s povoações.<br />

Foi assim que surgiu em Porto Alegre, no Alto <strong>da</strong> Bronze, um<br />

albergue em prédio do comerciante português José Antonio<br />

<strong>da</strong> Silva, mais conhecido pela alcunha <strong>de</strong> Nabos a doze, e que<br />

também fornecia uma sopa aos presidiários, todos os domingos.<br />

A negra alforria<strong>da</strong> Ângela Reiúna, após o falecimento do<br />

Nabos a doze, seu vizinho <strong>de</strong> porta, suce<strong>de</strong>u-o na cari<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Ela recebia enfermos em sua própria casa, sobretudo marinheiros.<br />

Em 1795, mesmo ano do surgimento <strong>da</strong> Enfermaria<br />

do Arsenal, consta que Antônio José <strong>da</strong> Silva Flores, açoriano<br />

<strong>da</strong> Ilha <strong>da</strong>s Flores, com auxílio <strong>de</strong> um filho do Nabos a doze,<br />

teria instalado um mo<strong>de</strong>sto albergue para doentes próximo ao<br />

Largo <strong>da</strong> Forca, atual Praça <strong>da</strong> Harmonia. A chega<strong>da</strong> a Porto<br />

Alegre do irmão Joaquim Francisco do Livramento, <strong>da</strong> or<strong>de</strong>m<br />

Terceira <strong>de</strong> São Francisco, no início do século XIX, <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ou<br />

a luta pela construção <strong>da</strong> Santa Casa <strong>de</strong> Misericórdia em<br />

Porto Alegre, que, tendo ata <strong>de</strong> fun<strong>da</strong>ção <strong>de</strong> 1803, só veio a<br />

receber doentes a partir <strong>de</strong> primeiro <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1826.<br />

Só em 1804 <strong>de</strong>sembarcou no Rio Gran<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Pedro<br />

o primeiro físico ou médico. Era o doutor Manuel Ribeiro <strong>de</strong><br />

Miran<strong>da</strong>, que assumiu como físico-mor <strong>da</strong> Capitania, cargo<br />

criado em 1802 e que acumulava com o <strong>de</strong> juiz comissário<br />

do Protomedicato, organização instituí<strong>da</strong> por Dona Maria I<br />

em 1772. Também ele teve atritos com a Câmara, que chegou<br />

a cortar-lhe os vencimentos em 1806. A Câmara resistia<br />

à nomeação <strong>de</strong> um substituto para o cirurgião-mor Antônio<br />

Bento Gomes, recentemente falecido, e isso provocou enérgica<br />

reação do governador Paulo Gama, que não entendia tal<br />

posição quando em to<strong>da</strong> a Capitania só havia oito profissionais<br />

atuando como médicos. O físico-mor Manuel Ribeiro <strong>de</strong><br />

Miran<strong>da</strong>, por solicitação do governador, fez um importante<br />

levantamento <strong>da</strong> situação <strong>da</strong> assistência médica na Capitania<br />

em 1806. Havia três cirurgiões em Porto Alegre: Manuel Antônio<br />

Gomes, atuando como cirurgião-mor em substituição ao<br />

falecido, Antônio Cabral <strong>de</strong> Melo e José dos Santos Paiva. Nos<br />

subúrbios <strong>da</strong> vila atuava José <strong>da</strong> Fonseca Paranhos. Rio Pardo<br />

contava com Antônio <strong>de</strong> Freitas Santos, cirurgião-mor do Regimento<br />

dos Dragões, e seu auxiliar, Venceslau Gomes <strong>de</strong> Carvalho.<br />

Havia ain<strong>da</strong> na Freguesia <strong>de</strong> Cachoeira o cirurgião Daniel<br />

Francisco Marques. No documento, o físico-mor <strong>da</strong> capitania<br />

lamentava a falta <strong>de</strong> um cirurgião aprovado em Rio Gran<strong>de</strong>,<br />

ressaltando que as embarcações <strong>de</strong> pequeno calado, as únicas<br />

que lá aportavam com segurança, não contavam com tal profissional.<br />

CORTE NO BRASIL E A INDEPENDÊNCIA<br />

A chega<strong>da</strong> <strong>de</strong> D. João VI ao Brasil em 1806 foi importante<br />

para to<strong>da</strong>s as ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s e instituições <strong>da</strong> antiga colônia.<br />

A criação <strong>de</strong> cursos <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong> em Salvador e, logo <strong>de</strong>pois,<br />

no Rio <strong>de</strong> Janeiro teve gran<strong>de</strong> impacto ao formar médicos que<br />

passaram a atuar como civis ou como militares em todo o<br />

Brasil, mas ain<strong>da</strong> com predominância dos últimos nas regiões<br />

<strong>de</strong> fronteira e, sobretudo, nas do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul. Aliás, o<br />

ensino <strong>da</strong> <strong>Medicina</strong> nas duas escolas fun<strong>da</strong><strong>da</strong>s por Dom João<br />

VI iniciou nos hospitais militares. Isso não surpreendia, pois o<br />

hospital do Morro do Castelo, no Rio <strong>de</strong> Janeiro, organizava<br />

cursos para formar cirurgiões militares <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1768.<br />

O segundo doutor em <strong>Medicina</strong> a atuar no Rio Gran<strong>de</strong><br />

do Sul foi Júlio César Muzzi, que chegou em 1809 trazendo<br />

instruções para a “a inoculação <strong>da</strong> vacina nos habitantes bran-<br />

60<br />

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<strong>Medicina</strong> militar no rio gran<strong>de</strong> do sul<br />

cos e pretos <strong>da</strong> Capitania”. O atendimento hospitalar continuava<br />

sendo prestado apenas nos estabelecimentos militares;<br />

aos doentes civis só restava utilizar os precários albergues. O<br />

governador, Con<strong>de</strong> <strong>da</strong> Figueira, continuava com a intenção do<br />

seu antecessor, Marquês do Alegrete, <strong>de</strong> <strong>da</strong>r à Santa Casa,<br />

ain<strong>da</strong> em construção, um <strong>de</strong>stino predominantemente militar.<br />

Apesar <strong>da</strong>s conheci<strong>da</strong>s instruções, o Dr. Júlio Muzzi só teve<br />

oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> iniciar a vacinação antivariólica em 1820. O<br />

plano que ele traçou para vacinar a população <strong>da</strong> Capitania<br />

permite conhecer a situação <strong>da</strong> medicina no Rio Gran<strong>de</strong> do<br />

Sul um pouco antes <strong>da</strong> in<strong>de</strong>pendência do Brasil. Assim, para o<br />

encargo <strong>de</strong> vacinadores, o Dr. Muzzi indicou em Porto Alegre<br />

os três cirurgiões-mores do Hospital Militar: Manuel Antônio<br />

Dias, empregado no Hospital Militar por or<strong>de</strong>m do governador<br />

e suprindo a falta do falecido cirurgião-mor Antônio Bento<br />

Gomes; Antônio Cabral <strong>de</strong> Melo e José dos Santos Paiva. Nas<br />

vizinhanças <strong>da</strong> capital, contou com José <strong>da</strong> Fonseca Paranhos.<br />

Para Rio Gran<strong>de</strong>, <strong>de</strong>signou o cirurgião Antônio José Caetano<br />

<strong>da</strong> Silva e “outro dos que há por ali”. Na vila <strong>de</strong> Rio Pardo<br />

atuaria como primeiro vacinador o cirurgião-mor Vicente Venceslau<br />

Gomes <strong>de</strong> Carvalho e, como segundo, o “cirurgião-mor<br />

reformado <strong>de</strong> dragões” Joaquim José do Prado. Em Cachoeira<br />

funcionaria o cirurgião-mor José Francisco Ali Malveiro. “Nos<br />

Povos <strong>da</strong>s Missões, on<strong>de</strong> não há cirurgiões, se faz urgente nomear-se<br />

um ou dois cirurgiões, tanto para vacinar como para<br />

tratar dos enfermos militares.” Como não houvesse profissionais<br />

disponíveis para nomear, indicava para vacinador em São<br />

Borja o aju<strong>da</strong>nte <strong>de</strong> cirurgia Joaquim José <strong>da</strong> Silveira, que em<br />

nota anexa era <strong>da</strong>do como já <strong>de</strong>mitido e substituído por Tomaz<br />

Silveira <strong>de</strong> Souza, “também aju<strong>da</strong>nte militar <strong>de</strong> cirurgia”.<br />

Para os <strong>de</strong>mais Povos <strong>da</strong>s Missões seria indicado o cirurgião<br />

João <strong>de</strong> Lamego Palma, então resi<strong>de</strong>nte em Porto Alegre. Sérgio<br />

<strong>da</strong> Costa Franco registrou como mais ou menos alentadora<br />

a informação sobre a fronteira sul <strong>da</strong> Capitania. Ei-la: “Havendo<br />

nas diferentes povoações <strong>da</strong> fronteira do Rio Gran<strong>de</strong>,<br />

vários cirurgiões, <strong>de</strong>ntre esses po<strong>de</strong>-se nomear um em ca<strong>da</strong><br />

povoação”. Propunha para a vila <strong>de</strong> Santo Antônio o cirurgião<br />

Marcos Cristino Fioravanti e, para as povoações vizinhas à capital,<br />

“on<strong>de</strong> não há cirurgião algum legítimo”, recomen<strong>da</strong>va<br />

que fosse utilizado vacinador volante, sugerindo para tal o cirurgião<br />

Custódio José Inácio, “que pouca falta fará aqui e tem<br />

aptidão para preencher esse ministério”. Observava, ao final,<br />

que os moradores do contorno <strong>da</strong> capital <strong>de</strong>veriam “vir aqui a<br />

ser vacinados”. A segun<strong>da</strong> parte do ofício do Dr. Muzzi sugere<br />

remunerações aos vacinadores. Excluía qualquer pagamento<br />

extra aos cirurgiões-mores <strong>de</strong> Porto Alegre, Rio Gran<strong>de</strong> e Rio<br />

Pardo, por enten<strong>de</strong>r que lhes bastava o soldo que já venciam,<br />

“porque muito pouco oneroso lhes po<strong>de</strong> ser o trabalho <strong>de</strong> se<br />

entreterem <strong>de</strong> oito em oito dias, pelo espaço <strong>de</strong> uma hora,<br />

com esta simples operação [...]”. Para os que não fossem cirurgiões<br />

militares (o cirurgião <strong>de</strong> Cachoeira, o segundo vacinador<br />

<strong>de</strong> Rio Gran<strong>de</strong>, os vacinadores <strong>da</strong>s locali<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>da</strong> Fronteira <strong>de</strong><br />

Rio Gran<strong>de</strong>), o Dr. Muzzi propunha pagar o vencimento anual<br />

<strong>de</strong> 50 mil-réis; para o vacinador volante, o or<strong>de</strong>nado anual <strong>de</strong><br />

350 mil-réis; e para o cirurgião Marcos Fioravanti, 150 mil-réis<br />

anuais. Ao final, dizia que esta era a maneira <strong>de</strong> se arranjar<br />

na Capitania o estabelecimento <strong>da</strong> vacina, “vista a falta que<br />

se experimenta em to<strong>da</strong> a Capitania <strong>de</strong> legítimos facultativos<br />

<strong>de</strong> cirurgia, sendo aliás abun<strong>da</strong>ntes nela os curan<strong>de</strong>iros”. É<br />

interessante notar que a ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> inocular vacina antivariólica,<br />

já às vésperas <strong>da</strong> in<strong>de</strong>pendência do Brasil, oportunizou<br />

no Rio Gran<strong>de</strong> do Sul a primeira convocação <strong>de</strong> profissionais<br />

não militares para <strong>de</strong>sempenho <strong>de</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> pública.<br />

A construção <strong>da</strong> Santa Casa recebeu tratamento especial<br />

dos rio-gran<strong>de</strong>nses através <strong>de</strong> esmolas e teve entre seus<br />

provedores figuras proeminentes <strong>da</strong> província. Ain<strong>da</strong> longe <strong>de</strong><br />

ser inaugurado, o hospital enfrentou crise relaciona<strong>da</strong> à futura<br />

utilização como hospital militar. Isso ocorreu quando era<br />

governador o capitão general Luiz Telles <strong>da</strong> Silva Caminha <strong>de</strong><br />

Menezes, o marquês <strong>de</strong> Alegrete, que fora eleito provedor e<br />

preten<strong>de</strong>u trocar até o nome do hospital para melhor aten<strong>de</strong>r<br />

às necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>s futuras com fins militares. Isso atrapalhou a<br />

arreca<strong>da</strong>ção <strong>de</strong> fundos e só veio a ter solução satisfatória para<br />

a Irman<strong>da</strong><strong>de</strong>, no governo do também provedor José Feliciano<br />

Fernan<strong>de</strong>s Pinheiro, viscon<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Leopoldo, que se tornou<br />

um benemérito <strong>da</strong> Santa Casa e a inaugurou em 1826. Assim<br />

a questão se resolvera quando o Brasil já era um país in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte;<br />

e, ain<strong>da</strong> em 1826, Dom Pedro I visitou a Santa Casa e<br />

solicitou o empréstimo <strong>de</strong> uma <strong>da</strong>s enfermarias do hospital<br />

para tratar dos militares na Guerra <strong>da</strong> Cisplatina. Vejam que<br />

MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje 61


<strong>Medicina</strong> militar no rio gran<strong>de</strong> do sul<br />

o imperador solicitou, não or<strong>de</strong>nou. Des<strong>de</strong> então, foram cria<strong>da</strong>s<br />

Santas Casas em várias ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s do Rio Gran<strong>de</strong> e nelas<br />

passaram a trabalhar cirurgiões e doutores em hospitais administrados<br />

pelas Irman<strong>da</strong><strong>de</strong>s, sem vínculo militar. A proibição<br />

dos hospitais militares aten<strong>de</strong>rem civis foi um gran<strong>de</strong> impulso<br />

para a fun<strong>da</strong>ção <strong>da</strong>s Santas Casas e <strong>de</strong> outras enti<strong>da</strong><strong>de</strong>s hospitalares<br />

pelo Rio Gran<strong>de</strong>. Mas, como seria <strong>de</strong> esperar, foram<br />

os cirurgiões militares os primeiros médicos a trabalhar nestas<br />

enti<strong>da</strong><strong>de</strong>s. Assim, em Bagé, por exemplo, coube ao Dr. Albano<br />

<strong>de</strong> Souza, militar, e ao Dr. Francisco <strong>de</strong> Azevedo Penna, civil,<br />

iniciarem as ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>da</strong> Santa Casa local. Ambos exerceram<br />

a medicina <strong>de</strong> tal modo, que mereceram estátua-túmulo<br />

em praça histórica ou virar nome <strong>de</strong> logradouro público. Em<br />

to<strong>da</strong>s as Santas Casas pelo Rio Gran<strong>de</strong>, misturaram-se médicos<br />

militares e civis, todos irmanados em prestar serviços às<br />

populações crescentes. O certo é que, em diferentes épocas,<br />

hospitais nascidos dos esforços <strong>de</strong> comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>s portuguesa,<br />

alemã e italiana, com ou sem vinculação religiosa, continuaram<br />

a misturar médicos civis e militares no atendimento <strong>de</strong><br />

seus doentes.<br />

Em fevereiro <strong>de</strong> 1833, num Brasil in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte e às vésperas<br />

<strong>da</strong> Revolução Farroupilha, a Câmara Municipal <strong>de</strong> Porto<br />

Alegre exigiu que os profissionais <strong>da</strong> saú<strong>de</strong> que nela atuavam<br />

exibissem seus diplomas. Comprovou-se que apenas Marciano<br />

Pereira Ribeiro e Américo Cabral <strong>de</strong> Melo eram doutores<br />

em <strong>Medicina</strong>, pois o Dr. Júlio Muzzi falecera recentemente. Os<br />

cirurgiões foram classificados em quatro categorias: um com<br />

formação regular, Baltazar Pereira Gue<strong>de</strong>s; o cirurgião-mor<br />

Inácio Joaquim <strong>de</strong> Paiva, remanescente dos antigos cirurgiões<br />

militares; Antônio José Ramos, José Carlos Pinto, Manoel José<br />

Henrique Cruz, Veríssimo <strong>da</strong> Silva Rosa e Ambrósio Machado<br />

<strong>de</strong> Assumpção, apresentados como cirurgiões sem outros<br />

qualificativos; e como cirurgiões-aju<strong>da</strong>ntes constavam Manoel<br />

Vaz Ferreira e Manoel Antônio <strong>de</strong> Magalhães Calvet. A Câmara<br />

criou óbices às qualificações do Dr. Charles André Lonique,<br />

que teria feito formação em Marselha, do inglês Roberto<br />

Lan<strong>de</strong>ll e <strong>de</strong> Dionísio <strong>de</strong> Oliveira Silveiro, que cursara Coimbra<br />

até o quarto ano <strong>de</strong> formação. Após admitir como válido documento<br />

apresentado por Roberto Lan<strong>de</strong>ll, em setembro do<br />

mesmo ano, a Câmara admitiu mais cirurgiões, cirurgiões-aju<strong>da</strong>ntes<br />

e boticários, além do doutor em medicina, cirurgia e<br />

obstetrícia João Daniel Hillebrand, <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> importância para<br />

a colonização alemã em São Leopoldo. Sérgio <strong>da</strong> Costa Franco<br />

(2003) afirma:<br />

Começava a profissão médica a ganhar uma estrutura<br />

civil, fora dos quartéis e dos hospitais militares,<br />

on<strong>de</strong> inicialmente havia florescido. Continuariam,<br />

entretanto, curan<strong>de</strong>iros e charlatães a atuar, com<br />

plena <strong>de</strong>senvoltura, em todos os recantos do Rio<br />

Gran<strong>de</strong> do Sul, em razão <strong>da</strong> invencível escassez <strong>de</strong><br />

profissionais habilitados.<br />

Não foram poucas as guerras que envolveram Portugal<br />

e Espanha e que se esten<strong>de</strong>ram a suas colônias na América<br />

do Sul. Elas prosseguiram quando as colônias passaram a Reino<br />

Unido e Vice-Reinados e não acabaram quando as antigas<br />

possessões viraram países in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes. No Império Brasileiro<br />

não faltaram guerras externas e to<strong>da</strong>s elas envolviam diretamente<br />

o território que hoje correspon<strong>de</strong> ao Rio Gran<strong>de</strong><br />

do Sul. Não bastasse isso, houve revoluções, e também aí a<br />

mais duradoura foi a Farroupilha, que envolveu diretamente<br />

o sul do Brasil. Nenhum relato sobre a medicina militar no<br />

Rio Gran<strong>de</strong> do Sul será completo se não se <strong>de</strong>tiver no que<br />

era feito durante as revoluções, nas guerras entre irmãos, que<br />

<strong>de</strong>vastaram o estado em diferentes épocas e <strong>de</strong>rramaram o<br />

sangue <strong>de</strong> continentinos e gaúchos, sem contar a participação<br />

em revoluções e escaramuças que convulsionaram as pátrias<br />

uruguaia e argentina. As áreas <strong>de</strong> fronteira sempre funcionaram<br />

como fornecedoras <strong>de</strong> homens, <strong>de</strong> cavalos, <strong>de</strong> munição<br />

militar e <strong>de</strong> boca, bem como serviram <strong>de</strong> abrigo, <strong>de</strong> asilo e<br />

como hospital ou local para atendimento médico dos feridos<br />

e dos doentes <strong>da</strong>s forças revolucionárias. Tais serviços sempre<br />

foram prestados em ambos os lados <strong>de</strong> uma fronteira e pouco<br />

<strong>de</strong>pendiam <strong>da</strong>s instruções dos governos <strong>de</strong> qualquer uma<br />

<strong>da</strong>s pátrias envolvi<strong>da</strong>s. Ações <strong>de</strong> grupos guerreiros na fronteira<br />

anteciparam e continuaram a chama<strong>da</strong> Guerra <strong>da</strong> Cisplatina.<br />

Basta dizer que Bento Gonçalves foi militar e autori<strong>da</strong><strong>de</strong> civil<br />

no Uruguai brasileiro. Do mesmo modo, o uruguaio Gumercindo<br />

Saraiva foi <strong>de</strong>legado <strong>de</strong> polícia em Santa Vitória do Pal-<br />

62<br />

MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje


<strong>Medicina</strong> militar no rio gran<strong>de</strong> do sul<br />

mar antes <strong>de</strong> Noventa-e-Três, e seu famoso irmão Aparício,<br />

<strong>de</strong>rrotado e ferido em revolução uruguaia, veio a falecer em<br />

território brasileiro, na estância <strong>da</strong> mãe do não menos famoso<br />

João Francisco Pereira <strong>de</strong> Souza, on<strong>de</strong> recebeu atendimento<br />

médico brasileiro. Aliás, as participações <strong>da</strong> família Saraiva, ou<br />

Saravia, no Rio Gran<strong>de</strong> do Sul só se encerraram na Revolução<br />

<strong>de</strong> 1923, com a participação <strong>de</strong> Nepomuceno Saraiva, filho<br />

<strong>de</strong> Aparício e sobrinho <strong>de</strong> Gumercindo. Ele encerrou um ciclo<br />

familiar como participante <strong>da</strong>s forças governistas <strong>de</strong> Flores <strong>da</strong><br />

Cunha e morou por algum tempo na ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Bagé.<br />

Mas voltando às ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s guerreiras do século XIX, não<br />

era fácil viver no Rio Gran<strong>de</strong> quando o Brasil e as Províncias<br />

Uni<strong>da</strong>s do Prata se guerreavam, e isso não se modificou muito<br />

com o surgimento do Uruguai como país livre e tampão entre<br />

Brasil e Argentina. Não eram sofisticados nem satisfatórios os<br />

atendimentos médicos na época. Sem antibióticos, anestesia<br />

geral, transfusões <strong>de</strong> sangue, a medicina oferecia parcos recursos<br />

nas chama<strong>da</strong>s enfermarias e nos hospitais <strong>de</strong> sangue.<br />

Mas sobrava i<strong>de</strong>alismo, boa vonta<strong>de</strong> e perícia aos médicos,<br />

sobretudo aos cirurgiões que amputavam membros, retiravam<br />

projetis <strong>de</strong> arma <strong>de</strong> fogo e curavam ou aliviavam sofrimentos<br />

como podiam. E quando os feridos eram <strong>de</strong>slocados, o eram<br />

em carretas puxa<strong>da</strong>s a boi ou em carros tracionados por cavalos.<br />

Barcos <strong>de</strong> socorro <strong>de</strong>pendiam <strong>de</strong> portos e <strong>de</strong> rios navegáveis,<br />

como os trens <strong>de</strong>pendiam <strong>de</strong> vias férreas. Procuraremos<br />

ressaltar aspectos <strong>da</strong> assistência médica relacionados ao Rio<br />

Gran<strong>de</strong> do Sul, tanto nas guerras quanto nas revoluções. Na<br />

Guerra <strong>da</strong> Cisplatina houve a valorização <strong>da</strong>s chama<strong>da</strong>s enfermarias<br />

para assistir aos combatentes nas áreas <strong>de</strong> fronteira.<br />

Enfermarias e campos <strong>de</strong> batalha assistiram ao trabalho <strong>de</strong><br />

médicos, enfermeiros, padioleiros e <strong>de</strong> outros profissionais, e<br />

os hospitais embarcados <strong>da</strong> Marinha participaram, embora <strong>de</strong><br />

forma menos intensa que nas guerras posteriores.<br />

Pouco se sabe sobre as ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s médicas durante a Revolução<br />

Farroupilha, mas há a certeza <strong>de</strong> que tanto os legalistas<br />

quanto os revolucionários buscavam o melhor que podiam<br />

do ponto <strong>de</strong> vista <strong>da</strong> assistência médica aos seus combatentes<br />

e <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma linha em que gestos <strong>de</strong> humani<strong>da</strong><strong>de</strong> aconteciam<br />

com frequência. Era comum, ao final dos combates, que<br />

os feridos <strong>de</strong> ambas as forças fossem atendidos pelo serviço<br />

médico <strong>da</strong>s forças remanescentes nos locais dos confrontos.<br />

Entre os legalistas, havia em Porto Alegre e nas vilas principais<br />

as enfermarias dos hospitais militares e que muito funcionaram,<br />

até quando caíam em mãos dos revolucionários como<br />

aconteceu em Rio Pardo. A leal e valorosa Porto Alegre já contava<br />

com a Santa Casa <strong>de</strong> Misericórdia, construí<strong>da</strong> fora dos<br />

muros <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong>, mas que fora incluí<strong>da</strong> no sistema <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa<br />

pelo estabelecimento <strong>de</strong> uma linha com trincheiras, muralhas<br />

e nichos <strong>de</strong> artilharia. Em pleno estado <strong>de</strong> sítio, foi aceita a manutenção<br />

do portão nos fundos do hospital, bem na linha divisória.<br />

Por ele eram escoados materiais e também servia para<br />

acesso ao cemitério. Ao final <strong>da</strong> revolução era reclamado o<br />

concerto <strong>da</strong> ponte levadiça do tal portão. Isso significava uma<br />

área <strong>de</strong> comunicação, funcional e respeita<strong>da</strong>, entre sitiados e<br />

sitiantes, e ganha maior valor quando se sabe que os cercos<br />

<strong>de</strong> Porto Alegre pelas forças farroupilhas foram três e duraram<br />

mais <strong>de</strong> quatro anos (FRANCO, 2003). Entre os farrapos, com<br />

recursos que se a<strong>da</strong>ptavam à luta <strong>de</strong> guerrilhas, nunca <strong>de</strong>ixou<br />

<strong>de</strong> haver alguma assistência, e entre eles atuavam cirurgiões,<br />

reconhecidos como tal no levantamento realizado em 1834<br />

em Porto Alegre. Tal é o caso dos lí<strong>de</strong>res farrapos Manoel Vaz<br />

Ferreira e Manoel Antônio <strong>de</strong> Magalhães Calvet, sem falar <strong>de</strong><br />

Pedro José <strong>de</strong> Almei<strong>da</strong>, mais conhecido como Pedro Boticário,<br />

ou do próprio Gomes Jardim, que era conhecido por aplicar<br />

homeopatia. Vários episódios <strong>da</strong> Guerra dos Farrapos propiciaram<br />

informações sobre o atendimento médico tanto entre os<br />

legalistas quanto entre os farroupilhas.<br />

O final <strong>da</strong> Revolução Farroupilha está relacionado ao preparo<br />

<strong>da</strong> guerra contra Oribe e contra Rosas, que envolveram<br />

os habitantes do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul e mostraram a importância<br />

<strong>de</strong> assegurar serviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> nos campos <strong>de</strong> batalha, sem<br />

<strong>de</strong>scui<strong>da</strong>r <strong>de</strong> serviços <strong>de</strong> retaguar<strong>da</strong> qualificados. Crescia a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> contar com as enfermarias nas zonas <strong>de</strong> fronteira,<br />

bem como <strong>de</strong> coor<strong>de</strong>nar a utilização <strong>de</strong> recursos brasileiros<br />

e dos insurgentes do Uruguai e <strong>da</strong> Argentina.<br />

A Guerra do Paraguai, pelo <strong>de</strong>spreparo do Brasil no seu<br />

início e até pela sua longa duração, muito exigiu dos serviços<br />

médicos. Hospitais <strong>de</strong> Sangue como os <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Paysandu<br />

ou o <strong>da</strong> Rua Esmeral<strong>da</strong> em Buenos Aires ganharam tanta<br />

importância para a Tríplice Aliança quanto o Hospital <strong>da</strong><br />

MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje 63


<strong>Medicina</strong> militar no rio gran<strong>de</strong> do sul<br />

Marinha Brasileira em Corrientes ou sua Enfermaria no Chaco.<br />

O Dr. Carlos Xavier Azevedo legou importantes informações<br />

sobre os serviços embarcados <strong>da</strong> Marinha e sua relação<br />

com Enfermarias como a do Cerrito na fronteira <strong>de</strong> Jaguarão.<br />

Entretanto, se me fosse solicitado <strong>de</strong>stacar um fato heroico<br />

nesta guerra, eu <strong>de</strong>stacaria a Retira<strong>da</strong> <strong>de</strong> Laguna, que testou<br />

ao máximo a capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> resistência e a disciplina <strong>de</strong> uma<br />

força brasileira, sem apoio logístico, submeti<strong>da</strong> ao contínuo<br />

fogo inimigo e que tinha <strong>de</strong> lutar contra a cólera, a fome e<br />

os incêndios nos macegais provocados pelos paraguaios. O<br />

relato <strong>de</strong> Taunay tornou-o imortal, e lembro-me do impacto<br />

que tive na infância ao ler o livro. Lembro-me <strong>de</strong> meu pai, médico,<br />

reconhecendo que o gran<strong>de</strong> medicamento, ao final <strong>da</strong><br />

retira<strong>da</strong>, fora o laranjal do Guia Lopes, que hidratou e curou<br />

coléricos <strong>de</strong>sidratados e famintos. Na guerra, a participação<br />

do Rio Gran<strong>de</strong> foi fun<strong>da</strong>mental para a vitória, após início com<br />

dolorosa invasão paraguaia. A assistência médica tinha <strong>de</strong> se<br />

a<strong>da</strong>ptar às circunstâncias e evoluiu com as diferentes fases <strong>da</strong><br />

guerra. Das guerras do Império nasceram projetos e obras em<br />

território rio-gran<strong>de</strong>nse que nunca chegaram a ser totalmente<br />

concluídos: o Forte Dom Pedro II, em Caçapava, e um outro<br />

forte que ocuparia o Cerro <strong>da</strong> Pólvora, em Jaguarão. Este último<br />

iniciou pela construção <strong>de</strong> belo edifício (1880-1883) para<br />

sediar a Enfermaria, o único concluído, e cuja importância <strong>de</strong>corria<br />

<strong>da</strong> assistência presta<strong>da</strong> <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a antiga Guar<strong>da</strong> do Cerrito<br />

para as forças brasileiras e alia<strong>da</strong>s nas guerras do século<br />

XIX. Hoje, tanto o Forte <strong>de</strong> Caçapava quanto a Enfermaria <strong>de</strong><br />

Jaguarão, após aproveitamentos diversos pelas comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>s,<br />

estão reduzidos a ruínas, parcamente explora<strong>da</strong>s como atrações<br />

turísticas.<br />

Foto 1. Ruínas <strong>da</strong> Enfermaria Militar <strong>de</strong> Jaguarão<br />

Fonte: Acervo Audiovisual <strong>MUHM</strong><br />

REPÚBLICA<br />

O advento <strong>da</strong> República propiciou clima <strong>de</strong> agitação em<br />

todo o país, mas com gravi<strong>da</strong><strong>de</strong> maior no Rio Gran<strong>de</strong> do Sul.<br />

Júlio <strong>de</strong> Castilhos chegou ao po<strong>de</strong>r com uma constituição estadual<br />

que <strong>da</strong>va amplos po<strong>de</strong>res ao executivo, negava representação<br />

à minoria e permitia o livre exercício <strong>da</strong>s profissões, entre<br />

elas a medicina. Isso permitia a quem se intitulasse médico<br />

e pagasse uma taxa exercer a profissão sem a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

apresentar diploma ou fazer alguma prova. Embora tenham<br />

chegado muitos médicos com formação regular, houve muitos<br />

estrangeiros e brasileiros <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as regiões e profissões que<br />

resolveram ganhar a vi<strong>da</strong> como médicos no Rio Gran<strong>de</strong> do Sul<br />

(FRANCO, 1998). O comportamento autocrático do governo<br />

gaúcho levou à Revolução dita Fe<strong>de</strong>ralista em 1893, tristemente<br />

célebre pelo número <strong>de</strong> <strong>de</strong>golas, responsáveis por 10% <strong>da</strong>s<br />

<strong>de</strong>z mil mortes ocorri<strong>da</strong>s na revolução. Carlos Reverbel, Nicanor<br />

Letti, Caio Flávio Prates <strong>da</strong> Silveira bastante se ocuparam<br />

do tema (REVERBEL, 1985). Apesar <strong>da</strong>s <strong>de</strong>golas, a assistência<br />

médica aos combatentes era assegura<strong>da</strong> por médicos <strong>de</strong>dicados<br />

e que buscavam diminuir a barbárie e assegurar a integri<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

física dos combatentes. Contavam as forças governistas<br />

com recursos que faltavam aos revolucionários e os hospitais já<br />

existentes nas ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s e vilas se <strong>de</strong>sdobraram na prestação <strong>de</strong><br />

serviços médicos. Mas foram as forças revolucionárias as que<br />

inspiraram imorredouras <strong>de</strong>scrições <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s guerreiras e<br />

<strong>da</strong>s atroci<strong>da</strong><strong>de</strong>s cometi<strong>da</strong>s, através <strong>de</strong> dois médicos escritores.<br />

Tanto o Dr. Ângelo Dourado, com seu Voluntários do Martírio,<br />

quanto João Eickhoff, em O Médico Maragato, <strong>de</strong>ixaram<br />

testemunhos eloquentes sobre a violência <strong>da</strong> revolução e o<br />

trabalho insano que <strong>de</strong>senvolveram. Ain<strong>da</strong> que parciais nos<br />

seus <strong>de</strong>poimentos, seus livros estão cheios <strong>de</strong> um humanismo<br />

ofendido pela violência e que transparece a ca<strong>da</strong> ação. A<br />

impotência <strong>de</strong> Ângelo Dourado diante do amigo Gumercindo<br />

Saraiva ferido <strong>de</strong> morte é comovente. Valem por si dois pequenos<br />

textos <strong>de</strong> Ângelo Dourado:<br />

“Um médico nas guerras civis, on<strong>de</strong> não há repouso nem<br />

garantias convencionais, não é mais do que o altruísta sofredor<br />

que todos os dias arrisca a própria vi<strong>da</strong> para salvar a vi<strong>da</strong><br />

dos outros.” Mais adiante: “Aqui ser médico é apenas lavar<br />

64<br />

MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje


<strong>Medicina</strong> militar no rio gran<strong>de</strong> do sul<br />

uma feri<strong>da</strong> quando po<strong>de</strong> e lançar sobre ela um pouco <strong>de</strong> iodofórmio,<br />

se tiver [...]”. Graças à tradução <strong>de</strong> Hil<strong>da</strong> Hübner Flores,<br />

tornou-se conhecido o trabalho do imigrante alemão João<br />

Eickhoff, <strong>de</strong> formação médica irregular e associa<strong>da</strong> a período<br />

em que trabalhou como auxiliar <strong>de</strong> farmácia, mas que <strong>de</strong>ixou<br />

páginas <strong>de</strong> <strong>de</strong>dicação e amor aos seus pacientes que <strong>de</strong>safiaram<br />

até as balas e os rancores dos adversários. Em várias<br />

oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong>s, como algumas referi<strong>da</strong>s por Ângelo Dourado,<br />

feridos e doentes <strong>da</strong>s forças revolucionárias eram acolhidos<br />

nos hospitais militares <strong>da</strong>s uni<strong>da</strong><strong>de</strong>s do Exército Nacional, que<br />

procurava manter difícil neutrali<strong>da</strong><strong>de</strong> ante o governo autoritário<br />

<strong>de</strong> Júlio <strong>de</strong> Castilhos, que representava a legali<strong>da</strong><strong>de</strong> no<br />

estado, e os maragatos, que clamavam contra os governos<br />

estadual e fe<strong>de</strong>ral, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> terem tentado uma intervenção<br />

fe<strong>de</strong>ral no Rio Gran<strong>de</strong> do Sul.<br />

Quase ao final <strong>da</strong> Primeira Guerra Mundial (1914-<br />

1818), o Brasil teve qualifica<strong>da</strong> participação, pois mandou<br />

mais <strong>de</strong> uma centena <strong>de</strong> médicos e outros profissionais <strong>da</strong><br />

saú<strong>de</strong> para trabalhar em hospital criado pelo Brasil em Paris,<br />

além <strong>de</strong> aten<strong>de</strong>r em postos <strong>de</strong> atendimento <strong>de</strong> diversas ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

francesas. Vários gaúchos participaram <strong>de</strong>sta missão que<br />

era coman<strong>da</strong><strong>da</strong> pelo Dr. Nabuco <strong>de</strong> Gouvêa, professor <strong>de</strong><br />

cirurgia no Rio <strong>de</strong> Janeiro e que trabalhou em Bagé, on<strong>de</strong> organizou<br />

o bloco cirúrgico <strong>da</strong> Santa Casa. A viagem <strong>da</strong> missão<br />

foi aci<strong>de</strong>nta<strong>da</strong>, com para<strong>da</strong>s força<strong>da</strong>s em portos do norte <strong>da</strong><br />

África, duramente atingi<strong>da</strong> por um mal até então <strong>de</strong>sconhecido<br />

e <strong>de</strong>pois chamado <strong>de</strong> gripe espanhola, que atingiu a<br />

muitos e matou alguns. Apesar dos percalços, o <strong>de</strong>sempenho<br />

dos gaúchos, como <strong>de</strong> to<strong>da</strong> a missão brasileira, foi brilhante<br />

e propiciou aperfeiçoamento a médicos que se notabilizaram<br />

em suas especiali<strong>da</strong><strong>de</strong>s ao voltar para o Brasil. Lá ganharam<br />

experiência inestimável os gaúchos Mário Kroeff, José Bonifácio<br />

Paranhos <strong>da</strong> Costa, Mário Araújo (sextoanista <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong>)<br />

e Viriato Dutra. Sem ligação direta com a missão, estiveram<br />

na França os doutores Alfeu Bicca <strong>de</strong> Me<strong>de</strong>iros e Paulo<br />

Rio Branco, filho do Barão do Rio Branco e que trabalhou<br />

em Pelotas. Ain<strong>da</strong> durante a segun<strong>da</strong> guerra mundial, houve<br />

casos como o do gaúcho Amarílio Macedo, que estu<strong>da</strong>va<br />

<strong>Medicina</strong> em Berlim e teve <strong>de</strong> trabalhar em hospital alemão<br />

durante a guerra.<br />

Voltemos ao Estado. A morte prematura <strong>de</strong> Júlio <strong>de</strong><br />

Castilhos propiciou que Borges <strong>de</strong> Me<strong>de</strong>iros ocupasse o governo<br />

do Estado <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1898 até 1928, com interrupção no<br />

quinquênio do médico Carlos Barbosa (1908-1912). Como<br />

chefe do Partido Republicano Rio-Gran<strong>de</strong>nse, Borges <strong>de</strong> Me<strong>de</strong>iros<br />

foi absoluto até 1932. Em que pese o governo <strong>de</strong> um<br />

só partido, houve progresso, organização racional do Estado,<br />

zelo pelo dinheiro público e uma Briga<strong>da</strong> Militar po<strong>de</strong>rosa e<br />

que até era solicita<strong>da</strong> a agir em conflagrações não diretamente<br />

liga<strong>da</strong>s ao Rio Gran<strong>de</strong>, tais como a <strong>de</strong> Canudos ou a do<br />

Contestado. Em 1911 foi inaugurado mo<strong>de</strong>rno Hospital <strong>da</strong><br />

Briga<strong>da</strong> e que tinha algumas particulari<strong>da</strong><strong>de</strong>s: chegou a ser<br />

hospital <strong>de</strong> ensino para a Escola Médico-Cirúrgica, instituição<br />

que formava médicos, farmacêuticos e <strong>de</strong>ntistas em cursos<br />

com a duração <strong>de</strong> três anos; e em 1914 tinha uma enfermaria<br />

homeopática. A eleição <strong>de</strong> Borges para o quinto man<strong>da</strong>to<br />

e as <strong>de</strong>núncias <strong>de</strong> frau<strong>de</strong> eleitoral <strong>de</strong>flagraram a Revolução<br />

<strong>de</strong> 1923, bem menos violenta que a <strong>de</strong> 1893. Tanto as forças<br />

regulares quanto as dos corpos provisórios <strong>da</strong> Briga<strong>da</strong><br />

Militar contavam com serviços médicos e o mesmo acontecia<br />

entre os revolucionários. As comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>s assistiam as forças<br />

tanto borgistas quanto assisistas, através <strong>de</strong> voluntários i<strong>de</strong>ntificados<br />

com a Cruz Vermelha e que prestavam socorro aos<br />

doentes e feridos. Senhoras e moças <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong> gaúcha<br />

participavam <strong>de</strong>sses esforços. Um fato <strong>de</strong> Vinte-e-Três, ocorrido<br />

no Alegrete, logo após o Combate <strong>da</strong> Ponte do Ibirapuitã,<br />

serve como exemplo <strong>da</strong> atmosfera <strong>da</strong> época através <strong>de</strong> relatos<br />

dos próprios protagonistas. Vejamos: no Alegrete, após<br />

o Combate <strong>da</strong> Ponte do Ibirapuitã, o doutor Saint Pastous <strong>de</strong><br />

Freitas atendia a combatentes <strong>de</strong> ambas as facções. No seu<br />

gabinete <strong>de</strong> radiologia, i<strong>de</strong>ntificou estilhaços nos ossos <strong>da</strong><br />

bacia <strong>de</strong> Flores <strong>da</strong> Cunha, que só foi salvo por ter o projetil<br />

se <strong>de</strong>sfeito em pe<strong>da</strong>ços ao atingir seu revolver no coldre. No<br />

mesmo relato, Saint Pastous confirma ter encontrado alguns<br />

corpos <strong>de</strong>golados em 1923 (FREITAS, 1972). Passados alguns<br />

anos <strong>da</strong> perturbação pela morte do irmão mais moço no<br />

combate, Flores <strong>da</strong> Cunha escreveu sobre o atendimento e o<br />

raio X a que se submetera, constrangido por ser examinado<br />

após muitos dias sem tomar banho (CUNHA, 1979).<br />

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<strong>Medicina</strong> militar no rio gran<strong>de</strong> do sul<br />

Foto 2. Voluntários <strong>da</strong> Cruz Vermelha Republicana<br />

<strong>de</strong> Santana do Livramento em 1923<br />

Fonte: Aita (2013, p. 123)<br />

Foto 3. Feridos <strong>da</strong> Revolução <strong>de</strong> 1923 recebendo tratamento <strong>da</strong>s<br />

moças <strong>da</strong> Socie<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ralista<br />

Fonte: Aita (2013, p. 192)<br />

A paz <strong>de</strong> 1923 não foi duradoura, tanto que em 1924 iniciou-se<br />

pela zona missioneira a Coluna Prestes, em que faleceu<br />

o Dr. Júlio Bozano e que mereceu, entre outras versões sobre<br />

a Coluna Prestes, o livro Os senhores <strong>da</strong> guerra, <strong>de</strong> José Antônio<br />

Severo. Em 1926 os irmãos Etchegoyen iniciaram mais<br />

uma rebelião tenentista e houve importante combate na várzea<br />

do Seival, município <strong>de</strong> Caçapava, on<strong>de</strong> foi ferido Oswaldo<br />

Aranha. Sempre contaram os feridos com assistência médica,<br />

ain<strong>da</strong> que precária, e ficou bem conheci<strong>da</strong>, por exemplo, a<br />

opção por não amputar o pé <strong>de</strong> Oswaldo Aranha e o sucesso<br />

do tratamento conservador preconizado pelo Dr. Leopoldo Pires<br />

Porto. Sem falar <strong>de</strong> Batista Lusardo ou <strong>de</strong> Raul Pilla, vários<br />

médicos se envolveram nos embates revolucionários, não na<br />

prestação <strong>de</strong> serviços médicos, mas como lí<strong>de</strong>res políticos e<br />

revolucionários. Tal foi o caso do Dr. Carlos <strong>de</strong> Oliveira Gomes,<br />

inten<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> São Francisco <strong>de</strong> Assis que morreu em combate<br />

em 1923, e o do Dr. Balthazar <strong>de</strong> Bem, <strong>de</strong>putado estadual e<br />

que também morreu em combate, próximo <strong>de</strong> Cachoeira em<br />

1924. Meu pai, Crispim Souza, comandou piquete contra os<br />

insurgentes na Bacia do Camaquã e virou personagem <strong>de</strong> José<br />

Antônio Severo (SEVERO, 2000). Foi inten<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> Lavras,<br />

sem <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> ser médico, e recordo <strong>da</strong> infância uma pistola<br />

Parabellum com estojo <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira, que ele recebera do Cel.<br />

Claudino Nunes Pereira, como agra<strong>de</strong>cimento pelos serviços<br />

médicos prestados ao 5º Corpo Auxiliar <strong>da</strong> Briga<strong>da</strong> Militar.<br />

A Revolução <strong>de</strong> 1930 colocou Getúlio Vargas como presi<strong>de</strong>nte<br />

provisório <strong>da</strong> República, ele que suce<strong>de</strong>ra Borges <strong>de</strong><br />

Me<strong>de</strong>iros no governo do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul em 1928. A política<br />

café com leite <strong>da</strong>s elites paulista e mineira <strong>de</strong>rrotara Getúlio<br />

nas urnas, mas a alega<strong>da</strong> frau<strong>de</strong> eleitoral e o assassínio <strong>de</strong><br />

João Pessoa, candi<strong>da</strong>to a vice-presi<strong>de</strong>nte na chapa <strong>de</strong>rrota<strong>da</strong>,<br />

fizeram eclodir a revolução. Getúlio unira republicanos e libertadores<br />

do Rio Gran<strong>de</strong>, e a revolução, bem prepara<strong>da</strong>, foi vitoriosa<br />

em todo país. As tropas do Sul <strong>de</strong>slocaram-se para o Rio<br />

<strong>de</strong> Janeiro e lá chegaram sem dificul<strong>da</strong><strong>de</strong> após a <strong>de</strong>stituição<br />

<strong>de</strong> Washington Luiz e a instalação <strong>de</strong> junta militar provisória.<br />

A gran<strong>de</strong> batalha que seria trava<strong>da</strong> em Itararé não se consumou,<br />

mas to<strong>da</strong> a preparação para prestar assistência às forças<br />

revolucionárias acontecera. Assim, o professor Antônio Saint<br />

Pastous <strong>de</strong> Freitas, comissionado como tenente-coronel e chefe<br />

do Serviço Médico, instalara o principal hospital <strong>de</strong> sangue<br />

em Jaguarihyva, sob a chefia do major Dr. Eliseu Paglioli e a Facul<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> <strong>Medicina</strong> <strong>de</strong> Porto Alegre, e através <strong>de</strong> seus professores<br />

e alunos, participava ativamente <strong>da</strong> revolução (HASSEN;<br />

RIGATTO, 1998). Figuras como Antero Marques, Aureliano <strong>de</strong><br />

Figueiredo Pinto, Gabino <strong>da</strong> Fonseca e tantos outros participaram<br />

como médicos <strong>da</strong>s forças revolucionárias.<br />

Em 1932 houve a chama<strong>da</strong> Revolução Constitucionalista,<br />

primeiro movimento armado contra o governo já não<br />

tão provisório <strong>de</strong> Getúlio Vargas e que teve muitos <strong>de</strong>sdobra-<br />

66<br />

MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje


<strong>Medicina</strong> militar no rio gran<strong>de</strong> do sul<br />

mentos no Rio Gran<strong>de</strong> do Sul. Pela palavra empenha<strong>da</strong> a São<br />

Paulo, republicanos como Borges <strong>de</strong> Me<strong>de</strong>iros e João Neves<br />

<strong>da</strong> Fontoura juntaram-se a libertadores como Raul Pilla e Batista<br />

Lusardo e partiram para luta <strong>de</strong>sigual contra o governo<br />

central e contra Flores <strong>da</strong> Cunha, interventor no Estado e que<br />

optara pelo apoio ao governo provisório <strong>da</strong> República. Houve<br />

no Rio Gran<strong>de</strong> alguns levantes, poucos combates, mortes e<br />

prisões, sobretudo no combate final no Cerro Alegre. Não<br />

faltou assistência médica, e na reduzi<strong>da</strong> coluna Borges-Lusardo,<br />

por exemplo, os médicos <strong>da</strong> Briga<strong>da</strong> Militar coronel<br />

João Krusser e capitão Domingos Crossetti acompanhavam<br />

o antigo chefe e seus companheiros. A principal participação<br />

do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul foi fora <strong>de</strong> seus limites e ao lado <strong>da</strong>s<br />

forças governistas (SOUZA; CHAVES, 2012). Chama a atenção<br />

que entre os gaúchos mortos em São Paulo estava o<br />

capitão médico reformado do Exército Jerônimo Teixeira Braga,<br />

que coman<strong>da</strong>va o 17° Corpo Auxiliar <strong>da</strong> Briga<strong>da</strong> Militar,<br />

comissionado como tenente-coronel, e faleceu <strong>de</strong> espa<strong>da</strong> na<br />

mão à frente <strong>de</strong> seus homens às margens do Rio <strong>da</strong>s Almas,<br />

afluente do Paranapanema (SILVEIRA, 1989). Também como<br />

<strong>de</strong>corrência <strong>da</strong> Revolução <strong>de</strong> Trinta-e-Dois, foi morto em Sole<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

o senhor Kurt Spalding, lí<strong>de</strong>r político, dono <strong>de</strong> farmácia<br />

e que exercera a medicina em tempos <strong>de</strong> liber<strong>da</strong><strong>de</strong> profissional<br />

e fora médico <strong>da</strong>s forças revolucionárias no Combate do<br />

Fão e outros confrontos.<br />

Na Segun<strong>da</strong> Guerra Mundial, foi importante a participação<br />

dos gaúchos na Força Expedicionária Brasileira (FEB), bastando<br />

dizer que seu coman<strong>da</strong>nte era o general Mascarenhas<br />

<strong>de</strong> Moraes, nascido em São Gabriel, e que o coronel Cor<strong>de</strong>iro<br />

<strong>de</strong> Farias <strong>de</strong>ixou o governo do Estado para ir à guerra. Na FEB,<br />

mais <strong>de</strong> 25.000 brasileiros, incorporados ao V Exército Americano,<br />

lutaram assistidos por um Serviço <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> constituído<br />

por 1.359 homens e mulheres. O ponto mais alto ocupado por<br />

um brasileiro foi o comando do 32º Hospital <strong>de</strong> Campo. Nele,<br />

o professor Alípio Corrêa Neto comandou brasileiros e americanos<br />

no atendimento <strong>de</strong> politraumatizados e <strong>de</strong> feridos no<br />

crânio. Médicos, farmacêuticos, <strong>de</strong>ntistas, enfermeiros, padioleiros<br />

e outros auxiliares fizeram com que houvesse apenas 49<br />

óbitos <strong>de</strong> brasileiros nos hospitais, quando foram socorridos<br />

mais <strong>de</strong> 3.000 mil feridos em combates ou aci<strong>de</strong>ntes. Todos<br />

participavam com entusiasmo <strong>da</strong>s observações a respeito <strong>de</strong><br />

um novo remédio que surgia: a penicilina. Dos 443 brasileiros<br />

mortos, 364 morreram em ação <strong>de</strong> combate, sem chance para<br />

qualquer atendimento (GUIO, 2008).<br />

A partir <strong>de</strong> 1930, a profissionalização e o constante<br />

evoluir <strong>da</strong>s forças militares fe<strong>de</strong>rais, aliados a limitações impostas<br />

às forças estaduais, que só po<strong>de</strong>riam agir no policiamento<br />

e para garantir segurança à população, diminuíram<br />

em muito as oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> revolução num país continental.<br />

Após solução <strong>de</strong> gabinete para a crise <strong>da</strong> Legali<strong>da</strong><strong>de</strong> em<br />

1961, o Movimento Armado <strong>de</strong> 1964, com poucas baixas,<br />

instituiu um governo <strong>de</strong> exceção que durou até 1985. Nesses<br />

anos houve movimentos subversivos à or<strong>de</strong>m vigente e que<br />

produziram mortes e prisões. Entre os mortos, houve um médico<br />

gaúcho, o Dr. João Carlos Haas Sobrinho, que faleceu<br />

nas Guerrilhas do Araguaia em setembro <strong>de</strong> 1972. Sem consi<strong>de</strong>rar<br />

i<strong>de</strong>ologias e sua capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> gerar condutas mais<br />

ou menos absur<strong>da</strong>s, os amigos e colegas <strong>de</strong>le, <strong>da</strong> Facul<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> Sarmento Leite e <strong>da</strong> Santa Casa <strong>de</strong> Porto Alegre jamais o<br />

esquecerão.<br />

A medicina <strong>de</strong> apoio a ações militares pela sua própria<br />

natureza é móvel, ao menos no primeiro contato com feridos<br />

e doentes nos campos <strong>de</strong> batalha. Tal aspecto explica a simplici<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

dos primeiros hospitais e que eram chamados <strong>de</strong> enfermarias.<br />

E ca<strong>da</strong> uni<strong>da</strong><strong>de</strong> tinha a sua. As ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> Jaguarão<br />

e Bagé, por exemplo, surgiram em 1808 e 1811, respectivamente,<br />

como acampamentos <strong>da</strong>s forças que se reuniam para<br />

invadir o Uruguai. Nos acampamentos havia abrigos para as<br />

mulheres que acompanhavam os exércitos e que ali permaneceriam,<br />

armazém e local para atendimentos médicos, as enfermarias.<br />

Parece razoável que a <strong>de</strong> Jaguarão, então conheci<strong>da</strong><br />

por Cerrito, ganhasse maior importância em função <strong>de</strong> estar<br />

à margem <strong>de</strong> um rio navegável. Relatórios e livros ressaltam<br />

o significado <strong>da</strong> enfermaria <strong>da</strong> antiga Guar<strong>da</strong> do Cerrito para<br />

o atendimento <strong>de</strong> feridos e doentes e que permitia prever a<br />

construção <strong>de</strong> prédio mais a<strong>de</strong>quado para ela. Em livro escrito<br />

por oficial <strong>da</strong> Marinha, fica evi<strong>de</strong>nte a participação <strong>da</strong> enfermaria<br />

do Cerrito na conexão com naves e hospitais embarcados.<br />

Na Guerra do Paraguai, ela fez parte <strong>de</strong> um sistema que<br />

incluía as enfermarias <strong>de</strong> Paysandu e Buenos Aires (Rua Esme-<br />

MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje 67


<strong>Medicina</strong> militar no rio gran<strong>de</strong> do sul<br />

ral<strong>da</strong>) e os hospitais estabelecidos pela Marinha em Corrientes<br />

e no Chaco (AZEVEDO, 1870).<br />

A Enfermaria <strong>da</strong> Praia do Arsenal, surgi<strong>da</strong> em Porto<br />

Alegre no ano <strong>de</strong> 1795, sem pertencer a uma uni<strong>da</strong><strong>de</strong> militar<br />

específica, representava um centro <strong>de</strong> referência para o<br />

atendimento <strong>de</strong> integrantes <strong>da</strong>s forças arma<strong>da</strong>s. Em 1890 foi<br />

fun<strong>da</strong>do o Hospital Geral <strong>de</strong> Porto Alegre, que funcionou na<br />

se<strong>de</strong> <strong>da</strong> extinta Enfermaria 30 BI, localiza<strong>da</strong> na Praça Dom<br />

Feliciano, em área <strong>da</strong> Santa Casa <strong>de</strong> Misericórdia. Ali permaneceu<br />

o Hospital Geral até 1906, quando passou a funcionar<br />

na Casa <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> Bela Vista, que fora construí<strong>da</strong> pelo doutor<br />

João Adolfo Josetti, professor <strong>de</strong> cirurgia formado no Rio<br />

<strong>de</strong> Janeiro em 1884 e que se estabelecera em Porto Alegre,<br />

após estágios na França e na Alemanha. Neste ponto do bairro<br />

Moinhos <strong>de</strong> Vento, o hospital atendia à Guarnição <strong>de</strong> Porto<br />

Alegre. Em junho <strong>de</strong> 1938 foi lança<strong>da</strong> a pedra fun<strong>da</strong>mental<br />

do novo Hospital Divisionário (HMD), que foi inaugurado<br />

em junho <strong>de</strong> 1945 com a presença do presi<strong>de</strong>nte Getúlio<br />

Vargas e, quando era seu diretor, o tenente-coronel médico<br />

Tavares Mattel. O Hospital Geral <strong>de</strong> Porto Alegre, com mais<br />

<strong>de</strong> 120 leitos, possui ativo bloco cirúrgico, cujo nome homenageia<br />

ilustre cirurgião que muito fez pelo hospital, o Dr.<br />

Dirceu Ferlin. A Briga<strong>da</strong> Militar do Estado teve nos primeiros<br />

tempos duas enfermarias na Santa Casa <strong>de</strong> Misericórdia. Em<br />

1906 passou a contar com a Enfermaria do Cristal, que em<br />

1911 transformou-se no primeiro Hospital <strong>da</strong> Briga<strong>da</strong> Militar.<br />

Só em 1971 é que foi inaugurado o atual prédio localizado<br />

no bairro Vila Assunção. Tanto o Exército quanto a Briga<strong>da</strong><br />

mantêm efetiva assistência médica no interior do Estado. O<br />

Hospital <strong>da</strong> Briga<strong>da</strong> Militar <strong>de</strong> Santa Maria tem mais <strong>de</strong> 60<br />

anos <strong>de</strong> história e conta com mais <strong>de</strong> 60 leitos. O Hospital<br />

<strong>da</strong> Aeronáutica em Canoas é mo<strong>de</strong>rno, atualizado e já conta<br />

com 63 anos <strong>de</strong> funcionamento. Também a Base Aérea <strong>de</strong><br />

Santa Maria conta com efetiva assistência aos servidores <strong>da</strong><br />

força aérea. No tocante à Marinha, o principal hospital está<br />

localizado na ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Rio Gran<strong>de</strong>, no Parque <strong>da</strong> Marinha.<br />

O Ambulatório Naval <strong>de</strong> Rio Gran<strong>de</strong> é muito ativo e a assistência<br />

aos marinheiros acontece em Porto Alegre e outras<br />

ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s portuárias. Além disso, o Navio Hospital Tenente Maximiano<br />

está sempre apto a prestar assistência.<br />

Foto 4. Antigo Hospital <strong>da</strong> Briga<strong>da</strong> Militar<br />

Fonte: Weber; Serres (2008)<br />

Para encerrar este texto sobre medicina militar no Rio<br />

Gran<strong>de</strong> do Sul, falo <strong>da</strong> ressonância que ela tem em órgãos<br />

representativos <strong>da</strong> ciência e <strong>da</strong> arte <strong>de</strong> curar. Po<strong>de</strong>ria falar<br />

<strong>da</strong> representativi<strong>da</strong><strong>de</strong> dos gaúchos na Aca<strong>de</strong>mia Brasileira<br />

<strong>de</strong> <strong>Medicina</strong> Militar, instituição com mais <strong>de</strong> 70 anos <strong>de</strong><br />

existência e que congrega médicos, farmacêuticos e odontólogos<br />

do Exército, <strong>da</strong> Marinha e <strong>da</strong> Aeronáutica no Brasil.<br />

Prefiro, no entanto, ficar no Rio Gran<strong>de</strong> do Sul e examinar a<br />

representativi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> medicina militar <strong>de</strong>ntro <strong>da</strong> Aca<strong>de</strong>mia<br />

Sul-Rio-Gran<strong>de</strong>nse <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong>. Muitos dos patronos e dos<br />

membros titulares <strong>da</strong> Aca<strong>de</strong>mia foram militares; alguns até<br />

o final <strong>da</strong> carreira e outros por algum tempo. Comecemos<br />

pelos patronos e logo adicionemos membros titulares representativos<br />

<strong>de</strong> diferentes gerações <strong>de</strong> médicos. Alfeu Bicca<br />

<strong>de</strong> Me<strong>de</strong>iros, mestre <strong>de</strong> cirurgia na 10ª Enfermaria <strong>da</strong> Santa<br />

Casa, cirurgião na França durante e após a primeira guerra<br />

mundial, lí<strong>de</strong>r <strong>de</strong> movimentos médicos, foi militar no Alegrete<br />

e em Porto Alegre. Passou à reforma como coronel médico<br />

do Exército. Aurélio <strong>de</strong> Lima Py já era militar quando entrou<br />

para a facul<strong>da</strong><strong>de</strong>. Tornou-se professor <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong>, dirigiu<br />

hospital, foi político, exerceu cargos públicos <strong>de</strong> relevância,<br />

foi <strong>de</strong>sportista e só <strong>de</strong>ixou o Exército ao final <strong>da</strong> carreira como<br />

coronel médico. José Mariano <strong>da</strong> Rocha, o pai, formou-se na<br />

Bahia e, ain<strong>da</strong> como acadêmico <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong>, trabalhou em<br />

hospital <strong>de</strong> sangue na Campanha <strong>de</strong> Canudos. Celestino <strong>de</strong><br />

68<br />

MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje


<strong>Medicina</strong> militar no rio gran<strong>de</strong> do sul<br />

Moura Prunes, gran<strong>de</strong> vulto <strong>da</strong> psiquiatria e <strong>da</strong> medicina legal,<br />

foi capitão médico <strong>da</strong> reserva no Exército. Clóvis Bopp foi<br />

eleito para a Aca<strong>de</strong>mia Brasileira <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong> Militar. Mário<br />

do Amaral Araújo interrompeu os estudos na facul<strong>da</strong><strong>de</strong> no<br />

Rio <strong>de</strong> Janeiro para participar <strong>da</strong> Missão Médica Brasileira na<br />

Primeira Guerra Mundial, sob comando do professor Nabuco<br />

<strong>de</strong> Gouvêa. Os professores Guerra Blessmann e Moisés Menezes<br />

organizaram cursos <strong>de</strong> enfermagem <strong>da</strong> Cruz Vermelha<br />

durante a Segun<strong>da</strong> Guerra Mundial. João Gomes <strong>da</strong> Silveira<br />

foi sol<strong>da</strong>do na Revolução <strong>de</strong> 1930 e Ivo Schiavo Drago participou<br />

como pracinha <strong>da</strong> Segun<strong>da</strong> Guerra Mundial. Telmo<br />

Kruse e João Batista Fernan<strong>de</strong>s foram tenentes <strong>da</strong> reserva<br />

<strong>da</strong> Aeronáutica após terem trabalhado no Hospital <strong>da</strong> Base<br />

Aérea <strong>de</strong> Canoas. José Mariano <strong>da</strong> Rocha Filho, gran<strong>de</strong> vulto<br />

<strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Santa Maria, foi capitão médico <strong>da</strong><br />

Briga<strong>da</strong> Militar e chefiou o serviço <strong>de</strong> cirurgia no hospital <strong>da</strong><br />

corporação em Santa Maria. Francisco <strong>de</strong> Castilhos Marques<br />

Pereira incorporou-se à Briga<strong>da</strong> Militar durante a Revolução<br />

<strong>de</strong> 1932 e só a abandonou ao passar para a reserva como coronel<br />

médico. Ocupou várias chefias e foi diretor do Hospital.<br />

Sobrou-lhe tempo e vi<strong>da</strong> para ser professor e diretor <strong>da</strong> Facul<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> <strong>Medicina</strong> <strong>da</strong> UFRGS, bem como secretário estadual<br />

<strong>da</strong> saú<strong>de</strong>. Hugolino Leal <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>, radiologista e escritor<br />

<strong>de</strong> Santana do Livramento, também foi capitão médico <strong>da</strong><br />

Briga<strong>da</strong> Militar. Edmundo Berchon <strong>de</strong>s Essarts, que fora propagandista<br />

<strong>da</strong> República na juventu<strong>de</strong>, foi médico <strong>da</strong>s forças<br />

revolucionárias em 1923. Antônio Saint Pastous <strong>de</strong> Freitas,<br />

médico na Revolução <strong>de</strong> 1923, foi comissionado como tenente-coronel<br />

e chefe do Serviço Médico na Revolução <strong>de</strong> 1930.<br />

Contou com auxiliares nessa tarefa: Eliseu Paglioli, Aureliano<br />

<strong>de</strong> Figueiredo Pinto e Gabino <strong>da</strong> Fonseca, todos patronos <strong>da</strong><br />

Aca<strong>de</strong>mia. A medicina militar, que era to<strong>da</strong> a medicina no<br />

Continente do Rio Gran<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Pedro, nunca <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong><br />

ser importante no estado. Embora a paz seja uma aspiração<br />

<strong>de</strong> todos os gaúchos e <strong>de</strong> seus vizinhos platinos, é certo que<br />

sempre será o Rio Gran<strong>de</strong> do Sul o estado mais militarizado<br />

do Brasil. Isso continuará a exigir serviços médicos <strong>de</strong> excelência<br />

e servirá <strong>de</strong> inspiração para muitos jovens médicos<br />

prontos a lutar pela sani<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> nossas forças arma<strong>da</strong>s em<br />

tempos <strong>de</strong> guerra ou <strong>de</strong> paz.<br />

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MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje 69


<strong>Medicina</strong> militar no rio gran<strong>de</strong> do sul<br />

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70<br />

MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje


<strong>Medicina</strong> militar no rio gran<strong>de</strong> do sul<br />

Diploma do Dr. Segismundo Pollack, referente à<br />

nomeação <strong>de</strong> Major-Cirurgião <strong>da</strong> 53ª Briga<strong>da</strong> <strong>de</strong> Infantaria <strong>da</strong><br />

Guar<strong>da</strong> Nacional <strong>de</strong> São Luiz Gonzaga, 19 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 1910.<br />

Acervo: Dr. Segismundo Pollak<br />

Doador: Luiza Franco Godolphim<br />

MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje 71


O ENSINO MÉDICO NO<br />

RIO GRANDE DO SUL<br />

MARIA BEATRIZ M. TARGA<br />

Médica, especializa<strong>da</strong> em Infectologia e Saú<strong>de</strong> Pública<br />

Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul - UFRGS<br />

GERMANO MOSTARDEIRO BONOW<br />

<strong>Museu</strong> <strong>de</strong> <strong>História</strong> <strong>da</strong> <strong>Medicina</strong> do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul - <strong>MUHM</strong><br />

72<br />

MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje


I<br />

NTRODUÇÃO<br />

Logo após sua chega<strong>da</strong> ao Brasil, em Salvador, Bahia, o<br />

Príncipe Regente D. João cria a Escola <strong>de</strong> Cirurgia no Hospital<br />

Real Militar, em 18 <strong>de</strong> fevereiro <strong>de</strong> 1808. Já no Rio <strong>de</strong> Janeiro,<br />

ain<strong>da</strong> em 1808, cria a Aula <strong>de</strong> Anatomia Cirúrgica e Médica,<br />

também no Hospital Militar <strong>da</strong> Corte. Os médicos <strong>de</strong> então<br />

eram chamados e contratados para <strong>da</strong>r an<strong>da</strong>mento aos cursos;<br />

as aulas se faziam nos hospitais militares e, mais tar<strong>de</strong>,<br />

nas Misericórdias. A diplomação <strong>de</strong> médico formado era reserva<strong>da</strong><br />

aos graduados nas facul<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> medicina <strong>da</strong> Europa,<br />

principalmente em Coimbra, Portugal, e o título <strong>de</strong> doutor em<br />

medicina só recebia quem <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>sse tese.<br />

Em 28 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 1829, é cria<strong>da</strong> a Socie<strong>da</strong><strong>de</strong> Médica<br />

que dá origem à Aca<strong>de</strong>mia Nacional <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong>. É <strong>de</strong>sta Socie<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

Médica que surge um plano <strong>de</strong> organização <strong>da</strong>s escolas<br />

médico-cirúrgicas do Império. E em <strong>de</strong>creto promulgado<br />

pela Regência, em nome do Imperador D. Pedro II, em 3 <strong>de</strong><br />

outubro <strong>de</strong> 1832, transformam-se as escolas <strong>da</strong> Bahia e do<br />

Rio <strong>de</strong> Janeiro em Facul<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong>. Oficializam-se seis<br />

anos <strong>de</strong> curso e o currículo passou a contar com 14 ca<strong>de</strong>iras,<br />

leciona<strong>da</strong>s ca<strong>da</strong> uma por um professor doutor em medicina,<br />

seu proprietário, e seis substitutos, com direito à jubilação e<br />

honras iguais às concedi<strong>da</strong>s aos professores dos cursos jurídicos,<br />

que haviam sido criados em 1827. Física médica, botânica<br />

e zoologia, química médica, anatomia geral e <strong>de</strong>scritiva, fisiologia,<br />

patologia interna e externa, farmácia, terapêutica e a<br />

arte <strong>de</strong> formular, partos, moléstias <strong>de</strong> senhoras e <strong>de</strong> meninos<br />

MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje 73


O ENSINO MÉDICO NO RIO GRANDE DO SUL<br />

recém-nascidos, higiene e história <strong>da</strong> medicina e medicina legal<br />

eram algumas <strong>da</strong>s matérias lista<strong>da</strong>s. O juramento proferido<br />

pelos que se graduavam incluía “[...] fazer bem à humani<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

e contribuir para os progressos <strong>da</strong> medicina no Império, cuja<br />

constituição política juro, outrossim, <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r”. O nível do ensino<br />

médico se elevava e prova disso são os numerosos compêndios<br />

<strong>de</strong> autores nacionais que passam a ser publicados.<br />

É a partir <strong>de</strong> 1840 que, na Bahia, cresce o número <strong>de</strong> teses<br />

<strong>de</strong>fendi<strong>da</strong>s. Entre elas está a <strong>da</strong> Dra. Rita Lobato Velho Lopes,<br />

nasci<strong>da</strong> em Rio Gran<strong>de</strong>, Rio Gran<strong>de</strong> do Sul, que, em <strong>de</strong>zembro<br />

<strong>de</strong> 1887, se torna a primeira mulher médica forma<strong>da</strong> no Brasil,<br />

tendo <strong>de</strong>fendido a tese intitula<strong>da</strong> Paralelos entre os métodos<br />

preconizados na operação cesariana.<br />

Foto 1. Rita Lobato Velho Lopes<br />

Fonte: Acervo <strong>MUHM</strong><br />

Se as dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s para graduar-se eram gran<strong>de</strong>s, os médicos<br />

brasileiros não mediam esforços para alcançar suas metas<br />

e aten<strong>de</strong>r suas vocações. Muitos foram para a Europa enfrentando<br />

as dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s inerentes a esta busca; outros foram<br />

estu<strong>da</strong>r nas Facul<strong>da</strong><strong>de</strong>s do Rio e <strong>da</strong> Bahia. Até que chegou o<br />

momento <strong>de</strong> o Rio Gran<strong>de</strong> do Sul criar e <strong>de</strong>senvolver o seu<br />

próprio ensino médico.<br />

ENSINO MÉDICO NO RIO GRANDE DO SUL<br />

Em fins do século XIX, o Rio Gran<strong>de</strong> do Sul tinha pouco<br />

mais <strong>de</strong> um milhão <strong>de</strong> habitantes. Porto Alegre tinha em torno<br />

<strong>de</strong> 70 mil moradores, oito mil moradias, lampiões a gás e trem<br />

até Novo Hamburgo, passando por Canoas, Sapucaia e São<br />

Leopoldo. O transporte municipal era feito por bon<strong>de</strong>s puxados<br />

a burro, aproximando os bairros mais distantes. Contava<br />

com cerca <strong>de</strong> 40 médicos, formados nas facul<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>da</strong> Bahia<br />

e do Rio <strong>de</strong> Janeiro, ou na Europa.<br />

Já em 1853, há relato <strong>de</strong> ter ocorrido uma “discussão<br />

<strong>de</strong> caso” abor<strong>da</strong>ndo o quadro <strong>de</strong> um paciente com volumoso<br />

tumor sacral, com a presença <strong>de</strong> sete médicos e três cirurgiões-mores.<br />

Em 1886, foi fun<strong>da</strong><strong>da</strong> a Socie<strong>da</strong><strong>de</strong> Médico-Cirúrgica Rio-<br />

Gran<strong>de</strong>nse, o que mostra que os médicos <strong>de</strong> então já tinham<br />

compreensão <strong>de</strong> necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> se unirem para reforçar seu<br />

entendimento bem como a visão científica e política <strong>da</strong> sua<br />

condição <strong>de</strong> trabalho.<br />

A terceira facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> medicina do Brasil foi fun<strong>da</strong><strong>da</strong><br />

em Porto Alegre, iniciando aí a trajetória do ensino médico no<br />

Rio Gran<strong>de</strong> do Sul. A partir <strong>da</strong> união <strong>de</strong> dois cursos, em 1897,<br />

que nasceram na área <strong>da</strong> farmácia e na dos partos, surge a Facul<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

Livre <strong>de</strong> Farmácia e Química Industrial. Na sequência<br />

<strong>de</strong>ste entendimento e <strong>de</strong>sta união, em 25 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 1898,<br />

surge a Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong> e Farmácia.<br />

Já eram claras as posições dos médicos <strong>de</strong> então quanto<br />

ao <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> suas ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s: eram contra o positivismo<br />

comtista, que liberava o exercício profissional a qualquer<br />

um e em qualquer área <strong>de</strong> conhecimento mediante pagamento<br />

<strong>de</strong> taxa e inscrição nos órgãos governamentais, não sendo<br />

necessária comprovação <strong>de</strong> habili<strong>da</strong><strong>de</strong> e conhecimento. Este<br />

era um preceito expresso na Constituição Estadual <strong>de</strong> 1891,<br />

positivista, no governo <strong>de</strong> Júlio <strong>de</strong> Castilhos que, ain<strong>da</strong>, não<br />

admitia privilégios <strong>de</strong> diplomas escolásticos.<br />

74<br />

MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje


O ENSINO MÉDICO NO RIO GRANDE DO SUL<br />

O trabalho dos médicos era <strong>de</strong>senvolvido na Santa Casa<br />

<strong>de</strong> Porto Alegre, que já contava com 17 enfermarias e 17 médicos<br />

que aten<strong>de</strong>ram, em 1898, mais <strong>de</strong> 3 mil doentes. E também<br />

trabalhavam na Beneficência Portuguesa, que contava com dois<br />

médicos, que aten<strong>de</strong>ram 272 pacientes. E no Hospital Militar<br />

que, à época, ocupava quatro enfermarias na Santa Casa.<br />

Assim, na busca <strong>da</strong> organização do conhecimento que<br />

<strong>de</strong>tinham, na consoli<strong>da</strong>ção <strong>de</strong>ste conhecimento e na sua disseminação,<br />

os médicos e os farmacêuticos, cujo trabalho conjunto<br />

se configurava em consultórios junto às farmácias, <strong>de</strong>cidiram<br />

fazer <strong>da</strong> Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong> e Farmácia <strong>de</strong> Porto<br />

Alegre um espaço que consoli<strong>da</strong>sse seus i<strong>de</strong>ais.<br />

Des<strong>de</strong> então, com as mu<strong>da</strong>nças correspon<strong>de</strong>ntes e compatíveis<br />

com ca<strong>da</strong> época, surgiram outras 14 instituições <strong>de</strong><br />

ensino médico em diferentes regiões do estado, por trabalho<br />

duro e justo <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> uma <strong>de</strong>las, resultando, <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s, o <strong>de</strong>senvolvimento<br />

<strong>da</strong> medicina rio-gran<strong>de</strong>nse.<br />

Ao se fazer o levantamento <strong>de</strong> <strong>da</strong>dos e características<br />

<strong>da</strong>s facul<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> medicina hoje presentes no estado, po<strong>de</strong>se<br />

observar que as histórias <strong>de</strong> seu surgimento são muito semelhantes:<br />

vonta<strong>de</strong> dos médicos, vonta<strong>de</strong> <strong>da</strong> população <strong>de</strong><br />

ca<strong>da</strong> região, interesse no <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong>stas regiões e<br />

vinculação estrita à política <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> e <strong>de</strong> educação vigentes<br />

em ca<strong>da</strong> etapa.<br />

1910 com 115 mil habitantes, formavam-se em torno <strong>de</strong> 12<br />

médicos por ano. A se<strong>de</strong> <strong>da</strong> escola ficava na Rua <strong>da</strong> Alegria,<br />

hoje Rua General Vitorino.<br />

1898 – FACULDADE DE MEDICINA E<br />

FARMÁCIA – FAMED/UFRGS<br />

A terceira facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong> do Brasil, que viria a ser<br />

o berço <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Porto Alegre e, mais tar<strong>de</strong>, <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul (URGS), que se transformaria na<br />

Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul (UFRGS), surgiu, em<br />

1898, no dia 25 <strong>de</strong> julho, pela união <strong>de</strong> médicos e farmacêuticos<br />

na busca do estabelecimento <strong>de</strong> aca<strong>de</strong>mia que permitisse<br />

consoli<strong>da</strong>r os conhecimentos <strong>de</strong> então e fazê-los avançar.<br />

Em 1904, formou a sua primeira turma, com 12 alunos,<br />

entre os quais a Dra. Alice Maeffer, que <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>u a tese intitula<strong>da</strong><br />

Hematologia <strong>da</strong> dysenteria na infância, como parte<br />

obrigatória à obtenção do título <strong>de</strong> doutor. Para a ci<strong>da</strong><strong>de</strong>, em<br />

Foto 2. Alice Maeffer<br />

Fonte: Acervo <strong>MUHM</strong><br />

Em meio a este período, é cria<strong>da</strong>, em Porto Alegre, em<br />

1915, a partir <strong>da</strong> Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong> Homeopática, a Escola<br />

Médico-Cirúrgica <strong>de</strong> Porto Alegre, que mantinha o princípio<br />

<strong>da</strong> liber<strong>da</strong><strong>de</strong> profissional, base <strong>da</strong> constituição estadual estabeleci<strong>da</strong><br />

com os preceitos positivistas. Contou, ao longo do<br />

seu período curto <strong>de</strong> existência, com algum apoio financeiro<br />

dos governos estadual e municipal, mas não conseguiu apoio<br />

dos médicos e, quando houve a regulamentação do ensino <strong>da</strong><br />

medicina, foi fecha<strong>da</strong> em 1932.<br />

MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje 75


Diploma <strong>de</strong> Wilson Teixeira Netto, referente à formatura<br />

em 1921 <strong>da</strong> Escola Médico-Cirúrgica, Porto Alegre, 05.05.1923.<br />

Acervo: Dr. Wilson Teixeira Netto<br />

Doador: Evly Teixeira Netto


Estatutos <strong>da</strong> Escola Médico-Cirúrgica<br />

<strong>de</strong> Porto Alegre – 1929<br />

Acervo: Dr. Wilson Teixeira Netto<br />

Doador: Evly Teixeira Netto


Fotografia doutorandos<br />

<strong>de</strong> 1921 <strong>da</strong> Escola Médico-Cirúrgica<br />

Acervo: Dr. Wilson Teixeira Netto<br />

Doador: Evly Teixeira Netto


Obra: A primeira médica do Brasil<br />

Autor: Silva, Alberto<br />

Publicação: 1955<br />

Editora: Pongetti<br />

Ci<strong>da</strong><strong>de</strong>: Rio <strong>de</strong> Janeiro<br />

Doador: Simers<br />

Obra: O conselheiro médico do lar<br />

Autor: Swartout, H.<br />

Publicação: 1942<br />

Editora: Casa Publicadora Brasileira<br />

Ci<strong>da</strong><strong>de</strong>: São Paulo<br />

Acervo: Dr. Jorge Eltz<br />

Doador: Dr. Jorge Eltz


O ENSINO MÉDICO NO RIO GRANDE DO SUL<br />

Em 1911, a Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong> faz a primeira alteração<br />

do seu programa curricular, mantendo o possível na<br />

época: os conhecimentos eram baseados no exame físico e<br />

na anamnese para serem a<strong>de</strong>quados ao que os compêndios<br />

diziam e, assim, repassados aos alunos. Em 31 <strong>de</strong> março <strong>de</strong><br />

1924, é inaugurado o prédio próprio <strong>da</strong> escola, na Av. João<br />

Pessoa, clássico mantido até hoje.<br />

Em 1931, passa a ser Instituto Fe<strong>de</strong>ral; em 1934, é cria<strong>da</strong><br />

a Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Porto Alegre (UPA), à qual a medicina<br />

se integra em 1936. E, em 4 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1950, a UPA se<br />

transforma em Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul, abrangendo<br />

as Facul<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> Farmácia <strong>de</strong> Santa Maria e as <strong>de</strong> Direito e<br />

<strong>de</strong> Odontologia <strong>de</strong> Pelotas.<br />

Além <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong>senvolvi<strong>da</strong>s na Santa Casa, ao longo<br />

do tempo são abertas três novas áreas <strong>de</strong> ensino-aprendizado<br />

para professores e alunos como campos <strong>de</strong> estágio: Hospital<br />

Psiquiátrico São Pedro, fun<strong>da</strong>do em 1884, passa a ter disciplina<br />

<strong>da</strong> clínica psiquiátrica já em 1908, oficializa<strong>da</strong> em 1932; o Hospital<br />

<strong>de</strong> Pronto Socorro <strong>de</strong> Porto Alegre, nascido também em<br />

1898, mesmo ano <strong>da</strong> Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong>, como Assistência<br />

Pública Municipal, passa a ter alunos na déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1950; e a<br />

Uni<strong>da</strong><strong>de</strong> Sanitária Murialdo, que a partir <strong>de</strong> 1964 agrega à Facul<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

o campo <strong>de</strong> estágio em medicina comunitária.<br />

Também na déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 60, com o surgimento do Conselho<br />

Nacional <strong>de</strong> Pesquisa (CNPq), cria-se a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> pósgraduação,<br />

com mestrados e doutorados, que logo são instituídos<br />

na Facul<strong>da</strong><strong>de</strong>. Surgem ain<strong>da</strong> as residências médicas para<br />

complementar conhecimentos, competências e habili<strong>da</strong><strong>de</strong>s. A<br />

partir <strong>de</strong> 1969, os professores passam a ter a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

optarem, em acordo com a Facul<strong>da</strong><strong>de</strong>, pelo horário integral no<br />

exercício <strong>de</strong> suas ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s.<br />

Em 1970, o Hospital <strong>de</strong> Clínicas inicia suas ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s,<br />

buscando a “transversali<strong>da</strong><strong>de</strong> do saber médico”. A partir <strong>de</strong>ste<br />

evento, os alunos <strong>de</strong>ixam a Santa Casa como seu hospital<br />

<strong>de</strong> ensino majoritário, lá permanecendo poucos serviços ain<strong>da</strong><br />

incluídos no currículo.<br />

O <strong>de</strong>senvolvimento <strong>da</strong> Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong> <strong>da</strong> UFRGS,<br />

com os passos <strong>da</strong>dos e sua história, suas diferentes etapas<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento, participando como agente e paciente<br />

<strong>da</strong> política <strong>de</strong> ensino do país, em todos os momentos e em<br />

todos os matizes, serviu <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>lo para muitas <strong>da</strong>s outras<br />

facul<strong>da</strong><strong>de</strong>s que surgiram no Rio Gran<strong>de</strong> do Sul – <strong>de</strong>s<strong>de</strong> seus<br />

currículos acadêmicos, sua forma <strong>de</strong> vínculo com professores,<br />

cargas horárias <strong>de</strong> trabalho, até a inclusão <strong>de</strong> serviços e campos<br />

<strong>de</strong> estágio vinculados às necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>da</strong>s comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>s e<br />

<strong>da</strong>s regiões em que se inseriram e pelas quais foram cria<strong>da</strong>s.<br />

Seus professores foram também mestres em várias <strong>de</strong>las, colaborando<br />

para a sua criação e seu <strong>de</strong>senvolvimento. A FAMED/<br />

UFRGS, em 2015, teve 140 vagas <strong>de</strong> ingresso.<br />

Foto 3. Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong> <strong>de</strong> Porto Alegre, hoje, um dos prédios<br />

históricos <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul<br />

Fonte: Acervo <strong>MUHM</strong><br />

1954 – A MEDICINA DE SANTA MARIA/UFSM<br />

Em 1954, o número <strong>de</strong> candi<strong>da</strong>tos ao curso <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong><br />

aprovados no vestibular excedia, em muito, ao número<br />

<strong>de</strong> vagas. Em Santa Maria, já estava estruturado e em pleno<br />

funcionamento o curso <strong>de</strong> Farmácia. Foi então busca<strong>da</strong> junto<br />

à URGS autorização para criar um curso <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong>, anexo a<br />

esta Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Farmácia, autorização esta concedi<strong>da</strong> pelo<br />

Conselho Universitário. Em 19 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 1954, é instalado<br />

o Curso <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong> <strong>de</strong> Santa Maria, que, em 1956, se torna<br />

Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong> e, em 4 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1960, forma sua<br />

primeira turma, com 48 novos doutores. Este número passou a<br />

100 a partir <strong>de</strong> 1967, número que se mantém até hoje.<br />

80<br />

MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje


O ENSINO MÉDICO NO RIO GRANDE DO SUL<br />

Em 20 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1960, é cria<strong>da</strong> a Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

Santa Maria, integra<strong>da</strong> ao Ministério <strong>de</strong> Educação e Cultura,<br />

que será constituí<strong>da</strong> dos estabelecimentos <strong>de</strong> ensino superior<br />

<strong>de</strong> <strong>Medicina</strong>, Farmácia, Odontologia e Instituto Politécnico e<br />

<strong>da</strong>s Facul<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> Direito, Filosofia, Ciências Políticas e Econômicas<br />

e Enfermagem.<br />

A Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong> <strong>de</strong> Santa Maria passa a contar<br />

com seu hospital-escola em 1981, o Hospital Universitário, tendo,<br />

até então, <strong>de</strong>senvolvido as ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> ensino no Hospital<br />

Astrogildo <strong>de</strong> Azevedo.<br />

1961, <strong>de</strong>creto presi<strong>de</strong>ncial consoli<strong>da</strong> esta autorização. Seu<br />

primeiro vestibular ocorre em 23 <strong>de</strong> fevereiro, e a primeira<br />

aula, em 22 <strong>de</strong> março também <strong>de</strong> 1961. Sua primeira turma<br />

<strong>de</strong> médicos forma-se em 12 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1966 e se compõe<br />

<strong>de</strong> 70 formandos. Em 1964 tem o seu reconhecimento<br />

estabelecido, que é renovado em 2008. Em agosto <strong>de</strong> 1969,<br />

é transforma<strong>da</strong> em fun<strong>da</strong>ção <strong>de</strong> direito privado e, em 15 <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1980, é fe<strong>de</strong>raliza<strong>da</strong> sob o nome <strong>de</strong> Fun<strong>da</strong>ção<br />

Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Ciências Médicas <strong>de</strong> Potro Alegre. Em<br />

2008, transforma-se na Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Ciências <strong>da</strong><br />

Saú<strong>de</strong> <strong>de</strong> Porto Alegre e passa a contar com mais 13 cursos <strong>de</strong><br />

graduação, todos eles específicos <strong>da</strong> área <strong>da</strong> saú<strong>de</strong>.<br />

Esta trajetória se diferencia por ter o curso <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong><br />

como carro chefe. E, neste curso, graduam-se, por ano, em<br />

média, 88 médicos, que se mantêm ligados à Santa Casa ao<br />

longo do seu aprendizado, além <strong>de</strong> contarem, no seu currículo,<br />

com ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s em outras instituições – Hospital São Pedro,<br />

Pronto Socorro, Hospital Presi<strong>de</strong>nte Vargas e uni<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />

saú<strong>de</strong> comunitária. Mantém hoje 48 programas <strong>de</strong> residência<br />

médica e tem 88 vagas para ingresso.<br />

Foto 4. Prédio que sediou o primeiro Hospital Universitário <strong>da</strong><br />

UFSM, inaugurado em 1970<br />

Fonte: Acesso em: 02 mar. 2015.<br />

1953 – A CATÓLICA DE PORTO ALEGRE/<br />

UFCSPA<br />

A Santa Casa <strong>de</strong> Misericórdia <strong>de</strong> Porto Alegre tomou a<br />

iniciativa <strong>de</strong> criar uma escola médica pressupondo que a URGS<br />

iria, muito em breve, para o seu hospital próprio, o Hospital <strong>de</strong><br />

Clínicas, o que <strong>de</strong> fato aconteceu a partir <strong>de</strong> 1970. Em 8 <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1953, é cria<strong>da</strong> a Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> Católica <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong><br />

<strong>de</strong> Porto Alegre, por <strong>de</strong>creto <strong>de</strong> D. Vicente Scherer, arcebispo<br />

<strong>de</strong> Porto Alegre.<br />

Em 20 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1960, tem sua autorização <strong>de</strong><br />

funcionamento <strong>de</strong>fini<strong>da</strong> pelo MEC e, em 28 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong><br />

Foto 5. Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> Católica <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong>, hoje Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral<br />

<strong>de</strong> Ciências <strong>da</strong> Saú<strong>de</strong> <strong>de</strong> Porto Alegre<br />

Fonte: Franco; Stigger (2003, p. 123)<br />

1969 – A MEDICINA DA PUC/RS<br />

A Pontifícia Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Católica do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul<br />

foi cria<strong>da</strong> em 1931, tendo seus primeiros cursos voltados à<br />

área <strong>da</strong> administração e finanças. Em 1934, foi reconheci<strong>da</strong> e,<br />

em 1948, foi equipara<strong>da</strong> à Universi<strong>da</strong><strong>de</strong>. Mantém ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje 81


Tese Inaugural <strong>de</strong> Ottorino Frasca,<br />

“Graus <strong>de</strong> Nutrição no Lactante”,<br />

Porto Alegre, 1936.<br />

Acervo: Dr. Ottorino Frasca<br />

Doador: Dr. Renato Frasca Rodrigues<br />

Tese <strong>de</strong> Doutoramento,<br />

<strong>de</strong> Ennio Barcellos Ferreira,<br />

“Pneumoperitôneo Diagnóstico-<br />

Oleoperitoneografia”.<br />

(aprova<strong>da</strong> com distinção),<br />

Porto Alegre, 1954.<br />

Dr. Ennio Barcelos Ferreira<br />

Tese <strong>de</strong> Doutoramento<br />

<strong>de</strong> Monik Fri<strong>da</strong>man,<br />

“O Emprêgo <strong>da</strong> Hy<strong>de</strong>rfine nas<br />

Molésticas Vasculares Periféricas”,<br />

Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong> <strong>de</strong><br />

Porto Alegre, 1956.<br />

Acervo: Dr. Paulo <strong>de</strong> Tarso Oliveira<br />

Doador: Dr. Paulo <strong>de</strong> Tarso Oliveira<br />

Tese para concurso <strong>de</strong> livre docente,<br />

<strong>de</strong> Léo Mario Mabil<strong>de</strong>, para ca<strong>de</strong>ira<br />

<strong>de</strong> clínica cirúrgica infantil e<br />

ortopédica <strong>da</strong> Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

<strong>Medicina</strong> <strong>de</strong> Porto Alegre, 1960.<br />

Acervo: Dr. Paulo <strong>de</strong> Tarso Oliveira<br />

Doador: Dr. Paulo <strong>de</strong> Tarso Oliveira


Quadro <strong>de</strong> formatura<br />

<strong>da</strong> Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong> <strong>da</strong><br />

Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul<br />

Acervo: Dra. Dorila Siciliane<br />

Doador: Dora Gervini


Diploma <strong>de</strong> Luciano Raul Panatieri,<br />

referente à formatura na Facul<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> <strong>Medicina</strong> <strong>de</strong> Porto Alegre, 19.12.1922<br />

Acervo: Dr. Luciano Raul Panatieri<br />

Doador: Espaço Cultural Panatiere <strong>de</strong> Rio Pardo


O ENSINO MÉDICO NO RIO GRANDE DO SUL<br />

em 18 ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul, em Brasília e na Região<br />

Amazônica, além <strong>de</strong> colégios <strong>de</strong> ensino médio e fun<strong>da</strong>mental<br />

e uni<strong>da</strong><strong>de</strong>s sociais.<br />

O gran<strong>de</strong> número <strong>de</strong> candi<strong>da</strong>tos aprovados em vestibulares<br />

<strong>de</strong> <strong>Medicina</strong> e sem vagas nos cursos que pu<strong>de</strong>ssem absorvê-los,<br />

tal como ocorreu em Santa Maria, levou a Pontifícia<br />

Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Católica do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul a autorizar, no seu<br />

Conselho Universitário, em 10 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 1969, o surgimento<br />

<strong>de</strong> curso <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong>. A autorização para o funcionamento<br />

do curso <strong>de</strong>u-se em maio <strong>de</strong> 1970 e a primeira turma <strong>de</strong><br />

médicos, com 61 alunos, formou-se em 5 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1975,<br />

antes mesmo do <strong>de</strong>creto <strong>de</strong> reconhecimento <strong>de</strong>finitivo <strong>de</strong> 12 <strong>de</strong><br />

fevereiro <strong>de</strong> 1976. Des<strong>de</strong> então, graduaram-se 2.342 médicos<br />

na FAMED/PUC/RS. As ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s dos alunos são <strong>de</strong>senvolvi<strong>da</strong>s<br />

no hospital <strong>da</strong> própria PUC (São Lucas) e em uni<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> saú<strong>de</strong><br />

comunitária. São 120 vagas para ingresso no curso.<br />

1962 – A CATÓLICA DE PELOTAS/UCPEL<br />

Já em 1937, a ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Pelotas contava com a Facul<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> Ciências Econômicas. Foi com os cursos <strong>de</strong> Filosofia,<br />

Ciências e Letras que a Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Católica <strong>de</strong> Pelotas foi<br />

cria<strong>da</strong> em 1960. Em seu crescimento, em 1967, adquiriu o<br />

Hospital São Francisco <strong>de</strong> Paula e, nos dias <strong>de</strong> hoje, conta com<br />

27 graduações, mestrados e doutorados. Em 15 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro<br />

<strong>de</strong> 1962, pelo seu Conselho Universitário, criou a Facul<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> <strong>Medicina</strong>, que teve parecer favorável do MEC em 17 <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>zembro do mesmo ano. Suas ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s iniciaram-se em 4<br />

<strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 1963, com a primeira aula inaugural. Em 29 <strong>de</strong><br />

janeiro <strong>de</strong> 1968, teve seu reconhecimento estabelecido pelo<br />

Conselho Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Educação (CFE). Atualmente, oferece 100<br />

vagas por ano, com entra<strong>da</strong>s em dois semestres, e seus alunos<br />

contam com campi em Santa Vitória do Palmar, Piratini e Canguçu,<br />

além <strong>de</strong> Pelotas.<br />

a população do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul era <strong>de</strong> 4.159.663 habitantes<br />

e o número <strong>de</strong> alunos nas duas universi<strong>da</strong><strong>de</strong>s existentes<br />

(URGS e PUC), ambas sedia<strong>da</strong>s em Porto Alegre, era <strong>de</strong> 3.853,<br />

ou seja, 0,09% <strong>da</strong> população. Destes, quase 70% estavam na<br />

URGS. Nesta época, Pelotas tinha 178 mil habitantes, dos quais<br />

72% residiam em áreas urbanas, e contava com 70 médicos.<br />

Em 1969, é cria<strong>da</strong> a Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Pelotas, oriun<strong>da</strong><br />

<strong>da</strong>quela primeira Escola <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong> Veterinária e Agricultura,<br />

anexando os cursos <strong>de</strong> Direito e <strong>de</strong> Odontologia, até então<br />

ligados à URGS. Atualmente, conta com 98 cursos <strong>de</strong> graduação,<br />

19 doutorados, 41 mestrados e, ligados à Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

<strong>Medicina</strong>, nove programas <strong>de</strong> residência médica.<br />

A Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong> surge por envolvimento <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

que, em 8 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 1954, havia criado a Instituição<br />

Pró-Ensino Superior do Sul do Estado. O objetivo maior,<br />

e talvez único, era criar uma escola <strong>de</strong> medicina. Na mesma<br />

época, há o movimento <strong>de</strong> criação <strong>da</strong> Católica <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong>, e<br />

talvez seja correto afirmar que a ci<strong>da</strong><strong>de</strong> se envolveu <strong>de</strong> forma<br />

abrangente, e <strong>de</strong>ste envolvimento resultaram as duas facul<strong>da</strong><strong>de</strong>s.<br />

Em 20 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 1959, é fun<strong>da</strong><strong>da</strong> a Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

<strong>Medicina</strong> <strong>de</strong> Pelotas. Em 11 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 1963, inicia suas ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

já com autorização do Conselho Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Educação,<br />

e tem seu reconhecimento em outubro <strong>de</strong> 1966. Conta, hoje,<br />

com 100 vagas <strong>de</strong> ingresso no curso.<br />

1959 – A LEIGA DE PELOTAS/UFPEL<br />

A Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Pelotas nasce <strong>da</strong> primeira escola<br />

superior cria<strong>da</strong> no estado, em 1883, a Imperial Escola <strong>de</strong><br />

<strong>Medicina</strong> Veterinária e Agricultura. No fim <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 40,<br />

Foto 6. Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> Leiga <strong>de</strong> Pelotas<br />

Fonte: <br />

Acesso em: 05 fev. 2015.<br />

MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje 85


O ENSINO MÉDICO NO RIO GRANDE DO SUL<br />

1967 – MEDICINA DE RIO GRANDE/FURG<br />

Em 1806, a ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Rio Gran<strong>de</strong> mobilizou-se e criou a<br />

Socie<strong>da</strong><strong>de</strong> Beneficente <strong>da</strong> Irman<strong>da</strong><strong>de</strong> do Espírito Santo e Cari<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />

tendo surgido, a partir <strong>de</strong>la, em 1835, a associação<br />

que <strong>de</strong>u origem à Santa Casa <strong>de</strong> Misericórdia <strong>de</strong> Rio Gran<strong>de</strong>.<br />

Em1859, surge a Socie<strong>da</strong><strong>de</strong> Portuguesa <strong>de</strong> Beneficência.<br />

Em 19 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 1934, é criado o Sindicato Médico <strong>de</strong><br />

Rio Gran<strong>de</strong>, que incentiva a abertura <strong>de</strong> um curso <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong>.<br />

Em 1950, nasce a Socie<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong> <strong>de</strong> Rio Gran<strong>de</strong><br />

(SOMERIG), ain<strong>da</strong> antes <strong>da</strong> Associação Médica do Rio Gran<strong>de</strong><br />

do Sul (AMRIGS). Em 1953, surge a Fun<strong>da</strong>ção Ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Rio<br />

Gran<strong>de</strong>, volta<strong>da</strong> à criação <strong>de</strong> um curso <strong>de</strong> Engenharia Industrial.<br />

Em 1963, a SOMERIG <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> fun<strong>da</strong>r uma escola <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong>.<br />

E nasce a Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong> em 1966, com parecer<br />

favorável do Conselho Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Educação em 1967. A partir<br />

<strong>de</strong> então, o <strong>de</strong>senvolvimento não para e, em 1969, é constituí<strong>da</strong>,<br />

por ato presi<strong>de</strong>ncial, a Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Rio Gran<strong>de</strong>. A<br />

Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong> é reconheci<strong>da</strong> em 1971 e, em 1976, a<br />

Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Rio Gran<strong>de</strong> é fe<strong>de</strong>raliza<strong>da</strong>. Hoje conta com 58<br />

cursos <strong>de</strong> graduação.<br />

A medicina cresce sob as regras a que to<strong>da</strong>s as escolas<br />

médicas estão sujeitas. Em 1978, tem seu primeiro programa<br />

<strong>de</strong> residência médica instalado – Clínica Médica – e, em 1980,<br />

abre o Programa <strong>de</strong> Residência Médica <strong>de</strong> Cirurgia Geral. Hoje<br />

recebe 70 alunos por ano, atua em três municípios além <strong>de</strong><br />

Rio Gran<strong>de</strong> (Santa Vitória do Palmar, São Lourenço do Sul e<br />

Santo Antônio <strong>da</strong> Patrulha), tem mestrado, doutorado e especialização<br />

e conta com 13 programas <strong>de</strong> residência médica.<br />

1967 – MEDICINA DE CAXIAS DO SUL/UCS<br />

Em 16 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 1966, é cria<strong>da</strong> a Associação Universitária<br />

<strong>de</strong> Caxias do Sul, que, em 1967, origina e se transforma<br />

em Fun<strong>da</strong>ção Universitária <strong>de</strong> Caxias do Sul. Associação priva<strong>da</strong><br />

e filantrópica, é, até os dias <strong>de</strong> hoje, a mantenedora <strong>de</strong><br />

diferentes ramos <strong>de</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> ensino e assistência. Como<br />

exemplo, é a mantenedora do Hospital Geral <strong>de</strong> Caxias do Sul<br />

e <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Caxias do Sul (UCS). Atualmente, a UCS<br />

conta com 85 cursos <strong>de</strong> graduação, além <strong>de</strong> mestrados, doutorados,<br />

especializações e outras ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s volta<strong>da</strong>s ao atendimento<br />

<strong>da</strong> comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

A Universi<strong>da</strong><strong>de</strong>, em novembro <strong>de</strong> 1967, cria o curso <strong>de</strong><br />

<strong>Medicina</strong> e, em 1968, já faz o seu primeiro vestibular com<br />

aproxima<strong>da</strong>mente 40 vagas <strong>de</strong> ingresso. Em <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong><br />

1973, forma sua primeira turma. Tem seu reconhecimento estabelecido<br />

pelo MEC em 8 <strong>de</strong> março <strong>de</strong> 1974 e renovação <strong>de</strong><br />

reconhecimento em <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2008. O curso compõe-se<br />

<strong>de</strong> 9.090 horas, ao longo <strong>de</strong> 12 semestres, e tem 100 vagas<br />

<strong>de</strong> ingresso no primeiro ano.<br />

1969 – MEDICINA DE PASSO FUNDO/UPF<br />

Como em outras ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s, também em Passo Fundo havia<br />

enorme interesse em ter uma facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong>, e assim<br />

a comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> se organizou. A Socie<strong>da</strong><strong>de</strong> Pró-Universi<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />

fun<strong>da</strong><strong>da</strong> em 1950, com sua Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Direito, uniu-se ao<br />

Consórcio Universitário Católico, que mantinha a Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

Filosofia, originando a Fun<strong>da</strong>ção Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Passo Fundo<br />

em 1967. Esta fun<strong>da</strong>ção mantém hoje vínculos próximos<br />

com a sua comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> por projetos e parcerias. Em junho <strong>de</strong><br />

1968, dá-se a criação <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Passo Fundo, já com<br />

reconhecimento do MEC. Atualmente, a UPF conta com 52<br />

graduações, entre licenciaturas, bacharelados e cursos superiores<br />

<strong>de</strong> tecnologia e atua em mais seis municípios além <strong>de</strong><br />

Passo Fundo – Carazinho, Casca, Lagoa Vermelha, Palmeira<br />

<strong>da</strong>s Missões, Sarandi e Sole<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

A Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong> <strong>da</strong> UPF tem seu funcionamento<br />

autorizado em abril <strong>de</strong> 1969, é instala<strong>da</strong> em 9 <strong>de</strong> março <strong>de</strong><br />

1970 e tem o seu reconhecimento pelo MEC em agosto <strong>de</strong><br />

1975. Também, em 1975, forma sua primeira turma, com 49<br />

novos médicos. Em 2015, contou com 100 vagas <strong>de</strong> ingresso.<br />

1996 – MEDICINA DA ULBRA/ULBRA<br />

A Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Luterana do Brasil (ULBRA) surge, em<br />

1988, a partir <strong>da</strong>s Facul<strong>da</strong><strong>de</strong>s Canoenses, cria<strong>da</strong>s em 1972.<br />

Reconheci<strong>da</strong> pelo Conselho Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Educação (CFE), em<br />

1989 ampliou sua área <strong>de</strong> atuação, a partir <strong>de</strong> Canoas, Rio<br />

Gran<strong>de</strong> do Sul, atingindo, em 2015, 85 municípios em 21 es-<br />

86<br />

MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje


O ENSINO MÉDICO NO RIO GRANDE DO SUL<br />

tados brasileiros. Entre estes municípios, 20 <strong>de</strong>les têm campus<br />

com ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s presenciais e 65 contam com polos <strong>de</strong> educação<br />

à distância. Possui 42 bacharelados entre os 87 cursos<br />

que disponibiliza. Os ingressos <strong>de</strong> alunos nestes cursos são<br />

feitos por semestres. Tem como mantenedora a Associação<br />

Educacional Luterana do Brasil. Seu curso <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong> recebe<br />

60 alunos a ca<strong>da</strong> semestre, que tem ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s no Hospital<br />

Universitário em Canoas e em uni<strong>da</strong><strong>de</strong>s vincula<strong>da</strong>s ao SUS. O<br />

curso compõe-se <strong>de</strong> seis anos e teve sua autorização pelo MEC<br />

em 1996 e reconhecimento em 2002, renovado em 2007. Ain<strong>da</strong>,<br />

conta com diversos programas <strong>de</strong> residência médica.<br />

2006 – MEDICINA DE SANTA CRUZ DO<br />

SUL/UNISC<br />

A Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Santa Cruz do Sul (UNISC) nasceu a<br />

partir <strong>de</strong> sua mantenedora (Associação Pró-Ensino <strong>de</strong> Santa<br />

Cruz) em 1962, <strong>de</strong>senvolvi<strong>da</strong> por empenho e pela criativi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>da</strong> comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>. Em 1964, estabeleceu o curso <strong>de</strong> Ciências<br />

Contábeis e foi crescendo com outros quatro cursos. Adquiriu<br />

se<strong>de</strong> própria e, em 1993, com parecer favorável do Conselho<br />

Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Educação (CFE), foi reconheci<strong>da</strong> e passou a compor<br />

o rol <strong>da</strong>s universi<strong>da</strong><strong>de</strong>s brasileiras. A partir <strong>de</strong> 2001, estabelece<br />

campi em outros quatro municípios do estado (Sobradinho,<br />

Capão <strong>da</strong> Canoa, Venâncio Aires e Montenegro). Em 2010, é<br />

recre<strong>de</strong>ncia<strong>da</strong> por mais <strong>de</strong>z anos. Conta atualmente com 50<br />

cursos <strong>de</strong> graduação, além <strong>de</strong> mestrados, doutorados e especializações.<br />

Em 2003, compra o Hospital Santa Cruz, que, a<br />

partir <strong>de</strong> 2012, passa a ter status <strong>de</strong> hospital <strong>de</strong> ensino.<br />

Em 2006, é cria<strong>da</strong> a Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong>, com 60 vagas<br />

na graduação, que passam a ser 70 em 2015, com reconhecimento<br />

em 2011. O curso recebe 30 novos alunos por<br />

semestre, sendo 13 pelo PROUNI. Seu curso tem 9.596 horas<br />

<strong>de</strong>senvolvi<strong>da</strong>s nas áreas <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> <strong>da</strong> mulher, <strong>da</strong> criança, do<br />

adulto, saú<strong>de</strong> coletiva, além <strong>de</strong> fun<strong>da</strong>mentos biológicos do ser<br />

humano. Há estruturados programas <strong>de</strong> residência médica em<br />

Clínica Médica, Cirurgia Geral, Pediatria, Gineco-obstetrícia e<br />

<strong>Medicina</strong> <strong>da</strong> Família e Comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>. Contou, em 2015, com<br />

70 vagas para ingresso.<br />

CONSIDERAÇÕES FINAIS<br />

O <strong>de</strong>senvolvimento do ensino médico no Rio Gran<strong>de</strong> do<br />

Sul tem como marco inicial a criação <strong>da</strong> Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong><br />

e Farmácia, que gerou a FAMED/UFRGS em 1896. De maneira<br />

geral, as formas como os diferentes cursos e facul<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

foram criados são em tudo semelhantes: um grupo <strong>de</strong> pessoas,<br />

influentes em suas comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>s, envolvi<strong>da</strong>s e interessa<strong>da</strong>s no<br />

seu crescimento e <strong>de</strong>senvolvimento, gran<strong>de</strong>s médicos que estavam<br />

à frente do seu tempo e tinham a capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> antever<br />

o futuro, uniam esforços e não <strong>de</strong>scansavam enquanto não sobrepassassem<br />

os obstáculos que, porventura, se antepusessem<br />

aos seus planos, projetos e i<strong>de</strong>ias. Os mo<strong>de</strong>los existiam, materializados<br />

em cursos que os antece<strong>de</strong>ram, e as formas <strong>de</strong> ultrapassar<br />

os obstáculos também – bastava perseverar na busca pelo<br />

reconhecimento <strong>da</strong> sua Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong>.<br />

Com o passar do tempo, ocorreram mu<strong>da</strong>nças nas formas<br />

<strong>de</strong> liberação, reconhecimento e instalação <strong>de</strong> cursos e atualizações<br />

<strong>de</strong> currículos. Assim como surgem enti<strong>da</strong><strong>de</strong>s que congregam<br />

os médicos, surgem as enti<strong>da</strong><strong>de</strong>s que congregam as escolas e os<br />

médicos professores, buscando compartilhar i<strong>de</strong>ias <strong>de</strong> ensino. Em<br />

1962, é fun<strong>da</strong><strong>da</strong> a Associação Brasileira <strong>de</strong> Escolas Médicas, que<br />

passou a ser chama<strong>da</strong> <strong>de</strong> Associação Brasileira <strong>de</strong> Educação Médica<br />

(ABEM). Em 1971, é constituí<strong>da</strong> a Comissão Interinstitucional<br />

Nacional <strong>de</strong> Avaliação do Ensino Médico (CINAEM). No início<br />

dos anos 2000, são oficializa<strong>da</strong>s diretrizes volta<strong>da</strong>s às diversas<br />

graduações acadêmicas – as Diretrizes Curriculares Nacionais do<br />

Curso <strong>de</strong> Graduação em <strong>Medicina</strong>, resolução do Conselho Nacional<br />

<strong>de</strong> Educação, são instituí<strong>da</strong>s em 7 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2001.<br />

Em 1896, graduaram-se 12 alunos e a população do estado<br />

beirava 1 milhão <strong>de</strong> pessoas. Em 2015, são 1.006 vagas<br />

distribuí<strong>da</strong>s entre as 11 facul<strong>da</strong><strong>de</strong>s em ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> no estado. Entre<br />

julho <strong>de</strong> 2013 e julho <strong>de</strong> 2014, há liberação <strong>de</strong> mais quatro<br />

escolas/cursos <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong> a serem instalados no Rio Gran<strong>de</strong><br />

do Sul, em Passo Fundo (2), Lajeado e Santa Maria, conforme<br />

o site Portal <strong>da</strong>s Universi<strong>da</strong><strong>de</strong>s (acessado em 13 <strong>de</strong> julho 2015).<br />

Esta nova reali<strong>da</strong><strong>de</strong> vai aumentar o número <strong>de</strong> escolas <strong>de</strong> 11<br />

para 15 e o <strong>de</strong> vagas <strong>de</strong> 1.006 para 1.240, o que facultará uma<br />

vaga em facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong> para ca<strong>da</strong> 8.331 habitantes.<br />

Hoje, temos, no Rio Gran<strong>de</strong> do Sul, 27.818 médicos em ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />

conforme o Conselho Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong>.<br />

MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje 87


O ENSINO MÉDICO NO RIO GRANDE DO SUL<br />

ALGUNS DADOS SOBRE AS FACULDADES DE MEDICINA NO RIO GRANDE DO SUL<br />

Instituição<br />

Criação <strong>da</strong> Facul<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

Nº <strong>de</strong> vagas<br />

Autorização Município<br />

<strong>de</strong> <strong>Medicina</strong><br />

2014/15<br />

UFRGS 1896 1896 Porto Alegre 140<br />

UFSM 1954 1954 Santa Maria 100<br />

UFCSPA 1953 1961 Porto Alegre 88<br />

UCPEL 1962 1962 Pelotas 100<br />

UFPEL 1959 1963 Pelotas 98<br />

FURG 1966 1967 Rio Gran<strong>de</strong> 70<br />

UCS 1967 1967 Caxias do Sul 100<br />

UPF 1968 1969 Passo Fundo 100<br />

PUC/RS 1969 1970 Porto Alegre 120<br />

ULBRA 1996 1996 Canoas 120<br />

UNISC 2006 2006 Santa Cruz 70<br />

UFFS 2014 Passo Fundo 62<br />

IMED 2014 Passo Fundo 42<br />

UNIVATES 2014 Lajeado 50<br />

UNIFRA 2014 Santa Maria 80<br />

REFERÊNCIAS<br />

ACADEMIA Nacional <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong>. Em comemoração do Centenário<br />

do Ensino Médico. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Tipografia do Jornal do Commercio,<br />

1908.<br />

ACHUTTI, Aluisio (org.). Cem anos <strong>de</strong> formação médica no Rio<br />

Gran<strong>de</strong> do Sul. Coleção Aca<strong>de</strong>mia Sul-Rio-Gran<strong>de</strong>nse <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong>.<br />

Porto Alegre: Tomo Editorial, 1998.<br />

BARROS, Fábio. O ensino médico no Rio Gran<strong>de</strong> do Sul. A Folha<br />

Médica, 01 maio 1920.<br />

BONAMIGO, T. P.; OLIVEIRA, M. C. (org.). Memórias <strong>da</strong> criação <strong>da</strong><br />

Fun<strong>da</strong>ção Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Ciências Médicas <strong>de</strong> Porto Alegre.<br />

Porto Alegre: [s.n.], 2007.<br />

BRAZ, E. P. A. Gênese <strong>da</strong> Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> (Leiga) <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong> <strong>de</strong> Pelotas.<br />

Publicação organiza<strong>da</strong> com o apoio do Grupo <strong>de</strong> pesquisa arqueológica<br />

<strong>da</strong> Unicamp: atual. 20 jul. 2010.<br />

CLEMENTE, E. Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong> – 30 anos. Porto Alegre: EDI-<br />

PUCRS, 2000.<br />

COSTA FRANCO, Sergio. A velha Porto Alegre: crônicas e ensaios.<br />

Porto Alegre: Canadá, 2008.<br />

EDLER, Flávio C. A medicina brasileira no século XIX: um balanço<br />

historiográfico. Asclepio, v. L-2, 1998.<br />

HASSEN, Maria. N. A. Fogos <strong>de</strong> bengala nos céus <strong>de</strong> Porto Alegre.<br />

A Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong> faz 100 anos. Porto Alegre: Tomo Editorial,<br />

1998.<br />

IRION, J. E. O. Panegírico: Prof. Dr. José Mariano <strong>da</strong> Rocha Filho.<br />

Separata do Livro em Prosa e Verso III. Santa Maria: Aca<strong>de</strong>mia Santa-Mariense<br />

<strong>de</strong> Letras, 2011.<br />

LAMPERT, J. B. (org.). 40 anos do Curso <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong> em Santa Maria<br />

(1954/1994). 2. ed. Santa Maria: UFSM, 1998.<br />

MADALOSSO, C. A; TASCA, I. A. <strong>Medicina</strong> <strong>da</strong> UPF: apontamentos<br />

sobre sua trajetória. Passo Fundo: Al<strong>de</strong>ia Sul Ed., 2006.<br />

MEIRELLES, Nevolan<strong>da</strong> S. V. et al. Teses Doutorais <strong>de</strong> Titulados pela<br />

Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong> <strong>da</strong> Bahia, <strong>de</strong> 1840 a 1928. Gazeta Médica<br />

<strong>da</strong> Bahia, ed. 74, n. 1, p. 9-101, jan./jun. 2004.<br />

SANTOS FILHO, L. <strong>História</strong> <strong>da</strong> <strong>Medicina</strong> no Brasil (do século XVI ao<br />

século XIX). São Paulo: Brasiliense, 1947.<br />

ZANCHI, M. T. Obstetrícia em Caxias do Sul. Caxias do Sul: Maneco<br />

Ed., 2010.<br />

88<br />

MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje


O ENSINO MÉDICO NO RIO GRANDE DO SUL<br />

SITES CONSULTADOS:<br />

<br />

<br />

<br />

SITES DAS 11 UNIVERSIDADES COM ESCOLAS MÉDICAS ATI-<br />

VAS:<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje 89


Microscópio caseiro<br />

Acervo: Dr. Hardy Grunewaldt<br />

Doador: Dr. Hardy Grunewaldt


Projetor <strong>de</strong> lâminas caseiro<br />

Acervo: Dr. Wilson Carvalho Córdova<br />

Doador: Dr. Wilson Carvalho Córdova


Obra: Ginecologia prática:<br />

para médicos não especializados<br />

Autor: Runge, Ernest<br />

Publicação: 1934<br />

Editora: Livraria do Globo<br />

Ci<strong>da</strong><strong>de</strong>: Porto Alegre<br />

Acervo: Dr. Tácito Diomar Kraemer<br />

Doador: Marco Antônio Kraemer e Carmem Lúcia Kraemer<br />

Fórceps<br />

Acervo: Dr. Farjalla Catan<br />

Doador: Dra. Lenita Catan


Caneta tinteiro<br />

Acervo: Dr. Antonio Peyrouton Louza<strong>da</strong><br />

Doador: Geraldo Zanini Louza<strong>da</strong><br />

Receituário médico<br />

Acervo: Dr. Orlando Dias Athay<strong>de</strong><br />

Doador: Dra. Maria Isabel Athay<strong>de</strong>


O SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE<br />

(SUS)<br />

GERMANO MOSTARDEIRO BONOW<br />

<strong>Museu</strong> <strong>de</strong> <strong>História</strong> <strong>da</strong> <strong>Medicina</strong> do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul - <strong>MUHM</strong><br />

94<br />

MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje


OSUS, tal como estabelecido nos dias atuais, é <strong>de</strong>corrente<br />

<strong>de</strong> uma história que se confun<strong>de</strong> com a<br />

nossa história.<br />

ANTES DO SUS<br />

Análise Institucional foi um estudo feito pelos sanitaristas<br />

<strong>da</strong> Secretaria <strong>da</strong> Saú<strong>de</strong> do Estado do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul em<br />

1972 para i<strong>de</strong>ntificar os problemas <strong>de</strong> maior significação no<br />

Setor Saú<strong>de</strong> e propor o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s para as<br />

soluções <strong>de</strong> suas necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>s.<br />

O estudo, antes <strong>de</strong> entrar nos meandros <strong>da</strong> saú<strong>de</strong> pública,<br />

sumariza as principais características <strong>da</strong> uni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> fe<strong>de</strong>ração<br />

situa<strong>da</strong> no extremo sul do Brasil, <strong>da</strong>s quais é importante<br />

salientar: a área geográfica <strong>de</strong> 282.184 km², on<strong>de</strong> em<br />

1970 viviam 6.664.891 habitantes. Possuía 232 municípios,<br />

cuja maioria <strong>da</strong> população, 53,60%, morava na zona urbana.<br />

Trinta anos antes, em 1940, este percentual era avaliado em<br />

31,15%, tendo ocorrido uma forte tendência à urbanização<br />

no estado.<br />

Sua economia estava basea<strong>da</strong> na produção agropecuária,<br />

sendo o maior produtor do país <strong>de</strong> trigo, fumo, soja, cebola,<br />

ceva<strong>da</strong> e uva. Era um dos maiores produtores <strong>de</strong> milho, feijão,<br />

batata inglesa e arroz. Li<strong>de</strong>rava na pecuária com o maior<br />

rebanho <strong>de</strong> ovinos e o segundo maior <strong>de</strong> bovinos.<br />

Os imigrantes europeus influenciavam sua indústria,<br />

on<strong>de</strong>, <strong>de</strong>vido à abundância <strong>de</strong> matérias-primas agrícolas, pon-<br />

MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje 95


O SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE (SUS)<br />

tificava a <strong>de</strong> produtos alimentares. O Rio Gran<strong>de</strong> do Sul, nos<br />

anos próximos a 1972, era o terceiro estado brasileiro quanto<br />

ao efetivo <strong>de</strong> pessoal ocupado na indústria. Uma peculiari<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

do estado em relação ao resto <strong>de</strong> país é o fato <strong>de</strong> possuir uma<br />

faixa <strong>de</strong> fronteira viva com intenso intercâmbio com o Uruguai<br />

e a Argentina.<br />

Os recenseamentos gerais registraram, para a população<br />

do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul, os seguintes totais:<br />

RIO GRANDE DO SUL, POPULAÇÃO E NÚMERO<br />

DE MUNICÍPIOS DE 1872 A 2010<br />

Recenseamento População Nº municípios<br />

1872 446.962 30<br />

1890 897.455 63<br />

1900 1.149.070 66<br />

1920 2.182.713 72<br />

1940 3.320.689 88<br />

1950 4.164.821 92<br />

1960 5.366.720 152<br />

1970 6.664.891 232<br />

1980 7.773.837 232<br />

1991 9.138.670 333<br />

2000 10.187.798 467<br />

2010 10.693.929 497<br />

Fonte: Fun<strong>da</strong>ção <strong>de</strong> Economia e Estatística – FEE – De Província <strong>de</strong> São Pedro a Estado<br />

do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul – Censos do RS – 1803-1950 – Porto Alegre, 1981; Fun<strong>da</strong>ção<br />

<strong>de</strong> Economia e Estatística – FEE – De Província <strong>de</strong> São Pedro a Estado do Rio Gran<strong>de</strong><br />

do Sul – Censos do RS – 1960-1980, Porto Alegre, 1984; A saú<strong>de</strong> <strong>da</strong> população do<br />

Estado do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul – Secretaria Estadual <strong>da</strong> Saú<strong>de</strong>, POA – CEVS – 2006;<br />

IBGE – Censo 2010.<br />

Em 1970, a população do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul menor <strong>de</strong><br />

um ano somava 193.441 pessoas, enquanto o grupo <strong>de</strong> habitantes<br />

maior <strong>de</strong> 60 anos, 360.200 pessoas. Os <strong>de</strong>z municípios<br />

mais populosos, incluindo Porto Alegre, capital do estado,<br />

concentravam 30% <strong>da</strong> população.<br />

A Análise Institucional foi elabora<strong>da</strong> por quase uma centena<br />

<strong>de</strong> funcionários <strong>da</strong> Secretaria Estadual <strong>da</strong> Saú<strong>de</strong>. Os funcionários<br />

que elaboraram a Análise eram <strong>da</strong>s mais varia<strong>da</strong>s<br />

profissões (médicos, enfermeiros, engenheiros, advogados,<br />

odontólogos, contadores, economistas, estatísticos, arquitetos,<br />

veterinários, farmacêuticos, bioquímicos, químicos, administradores<br />

etc.). Muitos também trabalhavam em outros serviços,<br />

públicos e privados, alguns liberais tinham consultórios<br />

ou escritórios próprios, outros lecionavam em universi<strong>da</strong><strong>de</strong>s.<br />

O trabalho contou com a assessoria do Ministério <strong>da</strong> Saú<strong>de</strong><br />

e <strong>da</strong> OPAS/OMS. O grupo dividiu as ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s em oito áreas<br />

programáticas. Ca<strong>da</strong> área foi conceitua<strong>da</strong>, e sua situação, os<br />

problemas, os pontos críticos e a programação para os anos<br />

seguintes foram <strong>de</strong>scritos.<br />

Os principais indicadores <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> mostravam o Rio<br />

Gran<strong>de</strong> do Sul em uma situação privilegia<strong>da</strong> em relação ao<br />

país, mas ain<strong>da</strong> muito distante dos países <strong>de</strong>senvolvidos. Na<br />

área <strong>de</strong> saneamento, por exemplo, dos 232 municípios existentes,<br />

110 não tinham abastecimento <strong>de</strong> água. A mortali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

infantil, a mortali<strong>da</strong><strong>de</strong> proporcional por causas e por i<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

e outros <strong>da</strong>dos mostravam que o caminho a ser percorrido era<br />

longo. Ain<strong>da</strong>, a Análise, em sua página 1 com o título Introdução,<br />

cita a Reforma Administrativa <strong>da</strong> União (Lei nº 200, 17<br />

fev. 1967) no relativo ao setor saú<strong>de</strong>:<br />

Capítulo II: Da Política Nacional <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong><br />

Art. 156 – A formulação e coor<strong>de</strong>nação <strong>da</strong> política<br />

nacional <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, em âmbito nacional e regional,<br />

caberá ao Ministério <strong>da</strong> Saú<strong>de</strong>.<br />

§ 1º - Com o objetivo <strong>de</strong> melhor aproveitar recursos<br />

e meios disponíveis e <strong>de</strong> obter maior produtivi<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />

visando a proporcionar efetiva assistência médico-social<br />

à comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>, promoverá o Ministério<br />

<strong>da</strong> Saú<strong>de</strong> a coor<strong>de</strong>nação, no âmbito regional, <strong>da</strong>s<br />

ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> assistência médico-social, <strong>de</strong> modo a<br />

entrosar as <strong>de</strong>sempenha<strong>da</strong>s por órgãos fe<strong>de</strong>rais,<br />

estaduais, municipais, do Distrito Fe<strong>de</strong>ral, dos Territórios<br />

e <strong>da</strong>s enti<strong>da</strong><strong>de</strong>s do setor privado.<br />

§ 2º - Na prestação <strong>da</strong> assistência médica <strong>da</strong>r-se-á<br />

preferência à celebração <strong>de</strong> convênios com enti<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

públicas e priva<strong>da</strong>s, existentes na comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

§ 3º - A assistência médica <strong>da</strong> Previdência Social,<br />

presta<strong>da</strong> sob a jurisdição do Ministério do Trabalho<br />

e Previdência Social, obe<strong>de</strong>cerá, no âmbito nacional<br />

e regional, à política nacional <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>.<br />

96<br />

MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje


O SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE (SUS)<br />

No território rio-gran<strong>de</strong>nse, as ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> assistência<br />

médica eram <strong>de</strong>senvolvi<strong>da</strong>s por ambulatórios. Dos 724 existentes,<br />

a maioria pertencia aos três níveis <strong>de</strong> governo: União,<br />

Estado e municípios. Os privados, 354, pertenciam às mais<br />

diferentes organizações, algumas <strong>de</strong> cari<strong>da</strong><strong>de</strong>, outras <strong>de</strong> empresas<br />

que atendiam apenas aos seus funcionários, outras <strong>de</strong><br />

beneficência, algumas cooperativas e muitas que visavam ao<br />

sustento <strong>de</strong> seus proprietários.<br />

Foto 2. Hospital Beneficência Portuguesa <strong>de</strong> Porto Alegre, 1940<br />

Fonte: FRANCO, A; SILVA, M.; SCHIDROWITZ, J. Porto Alegre. Biografia duma ci<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Porto Alegre: Tipografia do Centro, 1940, p. 329.<br />

Foto 1. Santa Casa <strong>de</strong> Misericórdia <strong>de</strong> Porto Alegre, déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1940<br />

Fonte: FRANCO, A; SILVA, M.; SCHIDROWITZ, J. Porto Alegre. Biografia duma ci<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Porto Alegre: Tipografia do Centro, 1940, p. 329.<br />

Os hospitais constituíam uma re<strong>de</strong> composta <strong>de</strong> 383<br />

estabelecimentos, excetuando-se os militares, dos quais 20<br />

eram públicos. Os hospitais privados (363), espalhados pelos<br />

municípios, pertenciam a enti<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> beneficência, cari<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />

organizações particulares e a outras instituições. Alguns dos<br />

hospitais possuíam ambulatórios, laboratórios e raios X.<br />

DISTRIBUIÇÃO DA REDE HOSPITALAR DO RIO GRANDE DO SUL – 1971<br />

Hospitais Especificação Nº hospitais Nº leitos Diárias leito<br />

Capaci<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

instala<strong>da</strong><br />

Grau utilização<br />

(%)<br />

Públicos 14 1157 253288 422305 60,00<br />

Gerais<br />

Privados 349 20256 3851502 7393440 52,09<br />

Públicos 6 4103 1961412 1497595 131,00<br />

Especializados<br />

Privados 14 2000 597256 730000 81,81<br />

Fonte: Análise Institucional<br />

MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje 97


Livro <strong>de</strong> Matrícula<br />

<strong>de</strong> Sócios<br />

Acervo: Socie<strong>da</strong><strong>de</strong> Portuguesa <strong>de</strong><br />

Beneficência <strong>de</strong> Porto Alegre


Diploma <strong>de</strong> Candido Dias <strong>de</strong> Borba, <strong>da</strong> Facul<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> <strong>Medicina</strong> do Rio <strong>de</strong> Janeiro, 26.11.1860<br />

Acervo: Dr. Candido Dias <strong>de</strong> Borba<br />

Doador: Roberto Santos Chaves


O SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE (SUS)<br />

Os serviços prestados por ambulatórios e hospitais privados<br />

eram remunerados pelo paciente ou pela enti<strong>da</strong><strong>de</strong> a que<br />

pertenciam, através <strong>de</strong> convênio, e os que não podiam pagar<br />

recorriam aos serviços públicos. Na parte hospitalar, os governos<br />

<strong>de</strong>stinavam auxílios financeiros<br />

para atendimento dos indigentes.<br />

Em síntese, quem podia pagava, e no<br />

caso dos que tinham cobertura <strong>de</strong> algum<br />

instituto <strong>de</strong> previdência social<br />

<strong>de</strong> sua categoria, os serviços seriam<br />

ressarcidos. Aos indigentes, restava a<br />

cari<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

No Rio Gran<strong>de</strong> do Sul, a tarefa<br />

do Ministério <strong>da</strong> Saú<strong>de</strong>, prevista pela<br />

reforma administrativa (Lei nº 200,<br />

17 fev. 1967), seria coor<strong>de</strong>nar as ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

<strong>de</strong>stas enti<strong>da</strong><strong>de</strong>s prestadoras<br />

<strong>de</strong> serviços (724 ambulatórios e 383<br />

hospitais) distribuídos em 232 municípios<br />

para aten<strong>de</strong>r uma população<br />

<strong>de</strong> quase 7 milhões <strong>de</strong> pessoas. Era<br />

um período em que as comunicações<br />

por meios <strong>de</strong> transportes, por rádio,<br />

televisão ou por telefone ain<strong>da</strong> <strong>de</strong>ixavam<br />

muito a <strong>de</strong>sejar e a internet<br />

nem existia.<br />

Outro ponto a consi<strong>de</strong>rar: a história<br />

dos hospitais; a maioria filantrópicos,<br />

construídos através do intenso<br />

trabalho <strong>da</strong>s comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>s, <strong>de</strong> distritos e municípios. O Ministério<br />

<strong>da</strong> Saú<strong>de</strong>, oficializado em 25 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 1953, <strong>de</strong>veria<br />

coor<strong>de</strong>nar, aqui no Rio Gran<strong>de</strong>, instituições que tinham mais<br />

<strong>de</strong> 100 anos (Santas Casas e Beneficências). Formavam uma<br />

re<strong>de</strong> essencialmente priva<strong>da</strong> que começava a conveniar com<br />

os institutos do Ministério do Trabalho e <strong>da</strong> Previdência Social.<br />

Os ambulatórios, centros <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> propostos por Freitas<br />

e Castro 1 , oficializados pelo Governador Getúlio Vargas em<br />

1 Fernando <strong>de</strong> Freitas e Castro, diretor <strong>da</strong> Diretoria <strong>de</strong> Higiene, nomeado por Getúlio<br />

Vargas –<br />

Dec. nº 4.244, <strong>de</strong> 4 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1929.<br />

1929 e aperfeiçoados por Bonifácio Paranhos <strong>da</strong> Costa 2 no<br />

fim dos anos 1930 e início <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> seguinte, mu<strong>da</strong>ram a<br />

“fácies” sanitária do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul.<br />

Foto 3. Mapa <strong>da</strong> Estrutura Sanitária do RS, déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1940<br />

Fonte: FRANCO, A; SILVA, M.; SCHIDROWITZ, J. Porto Alegre. Biografia duma ci<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Porto Alegre: Tipografia do Centro, 1940, p. 327.<br />

A estrutura sanitária com o nome <strong>de</strong> Diretoria <strong>de</strong> Higiene,<br />

<strong>da</strong> Secretaria do Interior, on<strong>de</strong> esteve <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os primeiros<br />

anos <strong>da</strong> República, priorizava suas ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s para enfrentar os<br />

surtos <strong>de</strong> doenças transmissíveis ou mesmo as epi<strong>de</strong>mias (gripe<br />

espanhola, 1918) e apoiava as ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s dos municípios.<br />

A proposta do governo Vargas (Mensagem à Assembleia dos<br />

2 Bonifácio Paranhos <strong>da</strong> Costa, médico sanitarista, diretor do Departamento<br />

Estadual <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>.<br />

100<br />

MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje


O SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE (SUS)<br />

Representantes do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul pelo Presi<strong>de</strong>nte Getúlio<br />

Vargas, em 20 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 1929) indicava um novo caminho:<br />

Saú<strong>de</strong> Pública – Este importante assunto mereceu<br />

largos <strong>de</strong>bates, sendo afinal aprova<strong>da</strong>s as seguintes<br />

conclusões:<br />

I – para o bom êxito dos serviços sanitários do Estado<br />

e dos municípios é indispensável a sua centralização;<br />

II – os serviços sanitários dos municípios, permanecendo<br />

controlados por estes, serão entregues à direção<br />

do Estado, mediante convênio, entretanto, ficarão<br />

afetos às municipali<strong>da</strong><strong>de</strong>s, mas fiscalizados pela<br />

Saú<strong>de</strong> Pública as ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> saneamento básico;<br />

III – o Estado ampliará o serviço <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> Pública,<br />

que atingirá todos os municípios do Rio Gran<strong>de</strong> do<br />

Sul, <strong>de</strong> acordo com o programa contido na tese<br />

apresenta<strong>da</strong> ao Congresso 3 pelo diretor <strong>de</strong> Higiene<br />

do Estado.<br />

Foto 4. Assistência médico-sanitária em Porto Alegre,<br />

déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1940<br />

Fonte: FRANCO, A; SILVA, M.; SCHIDROWITZ, J. Porto Alegre. Biografia duma ci<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Porto Alegre: Tipografia do Centro, 1940, p. 70.<br />

A Diretoria <strong>de</strong> Higiene possuía uma estrutura pequena,<br />

com poucos funcionários, e a proposta do governo Vargas,<br />

executa<strong>da</strong> nos anos seguintes, levaria a saú<strong>de</strong> pública, junto<br />

com a educação, a constituir a Secretaria <strong>de</strong> Educação e Saú<strong>de</strong><br />

Pública. O crescimento <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s relaciona<strong>da</strong>s à área<br />

<strong>da</strong> saú<strong>de</strong> <strong>de</strong>terminou que, em 1940, o Departamento Estadual<br />

<strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> (DES) fosse <strong>de</strong>sincorporado <strong>da</strong> Secretaria <strong>de</strong><br />

Estado dos Negócios <strong>da</strong> Educação e Saú<strong>de</strong> Pública (Dec. Lei nº<br />

31, 06 set. 1940) e ficasse ligado ao Interventor. As ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

<strong>de</strong> profilaxia <strong>da</strong>s doenças epidêmicas, do exercício profissional<br />

dos médicos e farmacêuticos e <strong>da</strong> higiene <strong>da</strong> alimentação foram<br />

aperfeiçoa<strong>da</strong>s e a elas acrescenta<strong>da</strong> a assistência médica<br />

através <strong>de</strong> centros <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>.<br />

Em janeiro <strong>de</strong> 1955, no XI Congresso Brasileiro <strong>de</strong> Higiene,<br />

em Belém, Pará, o DES, através do Dr. Enio Candiota Campos,<br />

apresentou o trabalho feito na Diretoria <strong>de</strong> Assistência<br />

Médico-Social sobre a Situação Atual <strong>da</strong> Assistência Médico-<br />

Sanitária no Estado do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul. Nesta publicação 4 ,<br />

é informado que foi estendi<strong>da</strong> a assistência sanitária à totali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

dos municípios através <strong>de</strong> 103 uni<strong>da</strong><strong>de</strong>s sanitárias. O<br />

número <strong>de</strong> municípios previsto anteriormente era <strong>de</strong> 92, no<br />

final <strong>de</strong> 1954. No ano seguinte, 1955, foram criados mais 26<br />

municípios.<br />

Esta re<strong>de</strong>, além <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> fiscalização sanitária<br />

e vacinação, também <strong>de</strong>senvolvia outras ações <strong>de</strong> consultas<br />

médicas para crianças, mães e adultos, consulta odontológica<br />

e carteira sanitária.<br />

O DES, na segun<strong>da</strong> meta<strong>de</strong> <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1950, <strong>de</strong>pois<br />

<strong>de</strong> avanços e recuos na área política do estado, foi transformado<br />

em Secretaria <strong>de</strong> Estado <strong>de</strong> Negócios <strong>da</strong> Saú<strong>de</strong> pela Lei<br />

nº 3.602, <strong>de</strong> 1º <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1958. Durante os anos 60, a<br />

Secretaria teve assessoria <strong>de</strong> técnicos do Ministério <strong>da</strong> Saú<strong>de</strong><br />

e <strong>da</strong> Organização Pan-Americana <strong>da</strong> Saú<strong>de</strong>. Foram firmados<br />

inúmeros convênios, que influenciaram os rumos <strong>da</strong> saú<strong>de</strong> pública<br />

nas déca<strong>da</strong>s seguintes.<br />

Simultaneamente, no mesmo período em que a enti<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

estadual se aperfeiçoava, no âmbito fe<strong>de</strong>ral um longo<br />

3 Congresso <strong>da</strong>s municipali<strong>da</strong><strong>de</strong>s, reunião para tratar assuntos comuns aos<br />

munícipes entre si e <strong>de</strong>stes para com o Estado.<br />

4 Separata do Boletim <strong>de</strong> Bio-Estatística do DES, ano XVI, n. 5, 6, 7, 8, Oficinas<br />

Gráficas <strong>da</strong> Impr. Oficial, 1955.<br />

MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje 101


O SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE (SUS)<br />

<strong>de</strong>bate legislativo culminou com aprovação <strong>da</strong> Lei Orgânica<br />

<strong>da</strong> Previdência em 1960. Anos mais tar<strong>de</strong> se efetivou a fusão<br />

do IAPB, IAPC, IAPETC, IAPFESP, IAPI e IAPM no INPS (1967).<br />

O INPS, criado pelo Decreto-Lei nº 72, <strong>de</strong> 21 <strong>de</strong> novembro<br />

<strong>de</strong> 1966, além dos institutos, incorporou também o Serviço<br />

<strong>de</strong> Assistência Médica Domiciliar <strong>de</strong> Urgência (SAMDU) e a<br />

Superintendência dos Serviços <strong>de</strong> Reabilitação <strong>da</strong> Previdência<br />

Social. Antes <strong>da</strong> fusão estes institutos tinham, somados, mais<br />

<strong>de</strong> 5 milhões <strong>de</strong> segurados no país. O INPS passou a ter uma<br />

significativa participação na assistência médica a seus segurados<br />

através <strong>de</strong> convênios para atendimento em hospitais,<br />

ambulatórios, além <strong>de</strong> em alguns municípios ter instalações<br />

próprias.<br />

A leitura <strong>da</strong> Análise Institucional, na primeira página,<br />

mostra a preocupação dos autores em relação à quanti<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> organizações que trabalham no setor saú<strong>de</strong>: “O Brasil possui<br />

um complexo sistema <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, criado através dos tempos<br />

por <strong>de</strong>cisões <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m política que resultaram um <strong>de</strong>senvolvimento,<br />

nem sempre articulado e equilibrado, <strong>da</strong>s diferentes<br />

partes <strong>de</strong>ste sistema.”<br />

Entre seus principais componentes estão:<br />

<strong>de</strong> áreas críticas, cita, entre outros problemas, a falta <strong>de</strong> maior<br />

entrosamento entre os diferentes órgãos do setor para uma<br />

ação pública.<br />

a) Enti<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> públicas, administra<strong>da</strong>s <strong>de</strong><br />

forma direta e indireta pelo governo fe<strong>de</strong>ral e os<br />

governos estaduais e municipais;<br />

b) Enti<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> priva<strong>da</strong>s, sem finali<strong>da</strong><strong>de</strong> lucrativa,<br />

a cargo <strong>de</strong> or<strong>de</strong>ns religiosas ou <strong>de</strong> órgãos<br />

classistas;<br />

c) Enti<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> do setor privado organizado<br />

e não organizado, com finali<strong>da</strong><strong>de</strong> lucrativa.<br />

No Rio Gran<strong>de</strong> do Sul, predominam estas instituições.<br />

O grupo <strong>da</strong> Análise, que estudou epi<strong>de</strong>miologia, refere<br />

que a Secretaria <strong>da</strong> Saú<strong>de</strong> tem atuado principalmente em<br />

conjunto com a Prefeitura Municipal <strong>de</strong> Porto Alegre em programas<br />

coor<strong>de</strong>nados <strong>de</strong> vacinação, contra poliomielite, varíola,<br />

difteria, coqueluche e tétano, e com o INPS, através <strong>da</strong><br />

notificação <strong>de</strong> poliomielite, varíola e difteria. Na <strong>de</strong>terminação<br />

Foto 5. Campanha <strong>de</strong> Vacinação<br />

Fonte: Periódico do Posto <strong>de</strong> Higiene <strong>de</strong> São Jerônimo, ano 1, n° 7, maio 1940. Arquivo<br />

Histórico do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul.<br />

A área programática <strong>de</strong> Assistência Médica acrescenta<br />

ao que foi referido nas páginas iniciais: “sendo que os maiores<br />

encargos <strong>da</strong> Assistência Médica, em geral, estão a cargo do<br />

INPS e do Fundo <strong>de</strong> Assistência ao Trabalhador Rural – FUN-<br />

RURAL”. Em relação à assistência médica presta<strong>da</strong> pelas uni-<br />

102<br />

MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje


O SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE (SUS)<br />

<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>da</strong> Secretaria e o hospital local, afirma que não existe<br />

obrigatoriamente entrosamento entre as duas instituições. Na<br />

<strong>de</strong>terminação <strong>de</strong> pontos críticos, refere como as instituições<br />

do setor atuam <strong>de</strong> forma <strong>de</strong>scoor<strong>de</strong>na<strong>da</strong> e o fato <strong>de</strong> um profissional<br />

prestar serviços a diversas instituições em diferentes<br />

locais num mesmo dia <strong>de</strong> trabalho.<br />

As diversas áreas programáticas listam entre seus pontos<br />

críticos a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> coor<strong>de</strong>nação interna e externa <strong>de</strong><br />

suas ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s. O grupo que estudou a tuberculose, apesar<br />

<strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rar os <strong>da</strong>dos <strong>de</strong> mortali<strong>da</strong><strong>de</strong>, morbi<strong>da</strong><strong>de</strong> e infecção<br />

precários, afirma que a tuberculose constitui-se em um<br />

dos principais problemas <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> pública do estado e cita,<br />

como crítica, a inexistência <strong>de</strong> entrosamento <strong>da</strong>s instituições<br />

que fazem a luta antituberculose, o que impe<strong>de</strong> a obtenção<br />

<strong>de</strong> um maior impacto sobre o problema. Refere também a<br />

inexistência <strong>de</strong> uma política <strong>de</strong> luta antituberculose comum<br />

aos sanatórios e ao órgão central, Núcleo <strong>de</strong> Tuberculose, <strong>da</strong><br />

Secretaria <strong>da</strong> Saú<strong>de</strong>.<br />

Em 1975, o governo do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul firmou um<br />

convênio com o INPS, que foi estendido também aos <strong>de</strong>mais<br />

órgãos públicos, o que possibilitou a aplicação <strong>da</strong>s Normas<br />

Técnicas e Operacionais do Programa <strong>de</strong> Controle <strong>da</strong> Tuberculose<br />

– RS. Em outras palavras, a prevenção através <strong>da</strong> vacina,<br />

o diagnóstico com preferência ao laboratorial e o tratamento<br />

ambulatorial ou hospitalar com esquemas terapêuticos <strong>de</strong><br />

comprova<strong>da</strong> eficácia ficavam sob a responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong> do Núcleo<br />

<strong>de</strong> Tuberculose <strong>da</strong> Secretaria Estadual. Os anos que se<br />

seguiram comprovaram o acerto <strong>da</strong> medi<strong>da</strong> pioneira no país.<br />

Uma instituição (SSMA) abor<strong>da</strong> em to<strong>da</strong> a sua extensão o<br />

<strong>da</strong>no <strong>da</strong> tuberculose, aten<strong>de</strong>ndo a to<strong>da</strong> a população. A fusão<br />

<strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s dos Ministérios <strong>da</strong> Saú<strong>de</strong>, <strong>da</strong> Previdência e do<br />

Núcleo <strong>de</strong> Tuberculose <strong>da</strong> Secretaria <strong>da</strong> Saú<strong>de</strong> do Governo do<br />

Estado foi oficializa<strong>da</strong> através do Decreto Legislativo nº 3.320,<br />

<strong>de</strong> 30 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 1975, <strong>da</strong> Assembleia Legislativa do Rio<br />

Gran<strong>de</strong> do Sul.<br />

Foto 6. Dados sobre a Tuberculose no Rio Gran<strong>de</strong> do Sul<br />

Fonte: Relatório do Departamento Estadual <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul, 1941, p.<br />

61. Acervo <strong>MUHM</strong>.<br />

No fim dos anos 1970, intensificaram-se as relações entre<br />

a Secretaria Estadual e os Ministérios <strong>da</strong> Saú<strong>de</strong> e <strong>da</strong> Previdência<br />

Social. A integração <strong>da</strong>s ações <strong>da</strong>ta dos anos 1960,<br />

ou seja, logo após a criação <strong>da</strong> Secretaria. Destaca-se, entre<br />

elas, o trabalho <strong>de</strong> erradicação <strong>da</strong> varíola; <strong>da</strong> vigilância epi<strong>de</strong>miológica;<br />

<strong>de</strong> fiscalização sanitária em postos <strong>de</strong> fronteira; no<br />

combate à lepra e à tuberculose; no <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> programas<br />

para aumentar a cobertura dos programas materno-<br />

MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje 103


O SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE (SUS)<br />

-infantil; com a Fun<strong>da</strong>ção Oswaldo Cruz para implantar cursos<br />

<strong>de</strong> saú<strong>de</strong> pública; com o INAN – Instituto Nacional <strong>de</strong> Alimentação<br />

e Nutrição; com a Fun<strong>da</strong>ção SESP; na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, era mais<br />

que do que a simples integração, era a <strong>de</strong>legação <strong>da</strong>s ações<br />

<strong>de</strong> saú<strong>de</strong> para o órgão estadual.<br />

O ministro <strong>da</strong> Previdência e o governador Amaral <strong>de</strong><br />

Souza assinaram um convênio (Diário Oficial <strong>da</strong> União, 14<br />

nov. 1979; Diário Oficial do Estado, 26 nov. 1979) pelo qual<br />

a Secretaria e o INAMPS uniram seus esforços e a partir <strong>da</strong>í<br />

trabalharam <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> programas conjuntos. Este ato, conhecido<br />

como convênio INAMPS, fez com que “as duas maiores<br />

instituições colocassem to<strong>da</strong> a sua estrutura à disposição <strong>da</strong><br />

população, buscando trabalhar integra<strong>da</strong>mente”. 5<br />

Os ministros Jair Soares, ex-secretário <strong>da</strong> Saú<strong>de</strong> do Rio<br />

Gran<strong>de</strong> do Sul, e Waldyr Arcover<strong>de</strong>, médico <strong>da</strong> Secretaria, conhecedores<br />

<strong>da</strong> necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> unificação <strong>de</strong> esforços, intensificaram<br />

o trabalho conjunto, que não só beneficiou o Rio<br />

Gran<strong>de</strong>, mas todo o país. Exemplo disso foi a criação dos dias<br />

nacionais <strong>de</strong> vacinação em que organizações públicas e priva<strong>da</strong>s<br />

aliavam-se para intensificar as ações <strong>de</strong> controle <strong>da</strong>s doenças<br />

transmissíveis.<br />

Em 1983, o Ministro <strong>da</strong> Saú<strong>de</strong> em palestra na Escola Superior<br />

<strong>de</strong> Guerra chamou a atenção para mais uma exigência<br />

imposta pela crise que o país atravessava: “o entendimento e a<br />

articulação <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as instituições que atuam no setor saú<strong>de</strong><br />

como alternativa para a melhor utilização dos recursos do Po<strong>de</strong>r<br />

Público”. Cita a relação com o Ministério <strong>da</strong> Previdência e Assistência<br />

Social (MPAS), on<strong>de</strong>, através <strong>da</strong> Comissão Interministerial<br />

<strong>de</strong> Planejamento e Coor<strong>de</strong>nação (CIPLAN), que tem como<br />

membros natos os secretários-gerais dos Ministérios <strong>da</strong> Previdência<br />

e Assistência Social, <strong>da</strong> Saú<strong>de</strong> e <strong>da</strong> Educação e mais o<br />

presi<strong>de</strong>nte do Conselho Nacional <strong>de</strong> Secretários <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>, vêm<br />

sendo <strong>de</strong>senvolvidos mecanismos <strong>de</strong> integração interinstitucional.<br />

Refere, ain<strong>da</strong>, como um dos resultados concretos <strong>de</strong>sse espaço<br />

comum, o sistema <strong>de</strong> cogestão dos hospitais públicos fe<strong>de</strong>rais,<br />

instaurado pelos Ministérios <strong>da</strong> Previdência e <strong>da</strong> Saú<strong>de</strong>.<br />

A Secretaria, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ampliar sua cobertura <strong>de</strong> uni<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

sanitárias a to<strong>da</strong>s as se<strong>de</strong>s municipais, passou a estendê-la<br />

aos distritos e bairros mais populosos <strong>da</strong>s gran<strong>de</strong>s ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s. As<br />

suas 848 uni<strong>da</strong><strong>de</strong>s sanitárias 6 , em 1986, estavam distribuí<strong>da</strong>s<br />

nas 16 Delegacias Regionais <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> e <strong>de</strong>senvolviam programas:<br />

<strong>de</strong> atenção médico-sanitária à mãe, à criança e ao adulto;<br />

<strong>de</strong> vigilância epi<strong>de</strong>miológica; <strong>de</strong> controle <strong>de</strong> doenças transmissíveis;<br />

e <strong>de</strong> prevenção <strong>de</strong> doenças e promoção <strong>da</strong> saú<strong>de</strong>. As<br />

suas ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s integravam-se, ca<strong>da</strong> vez mais, com o INAMPS,<br />

o maior prestador <strong>de</strong> serviços <strong>de</strong> assistência médica do país.<br />

Apesar do trabalho bem entrosado, a <strong>de</strong>scentralização com direção<br />

única em ca<strong>da</strong> esfera <strong>de</strong> governo ain<strong>da</strong> estava distante.<br />

A posse <strong>de</strong> João Figueiredo, em março <strong>de</strong> 1979, <strong>de</strong>u início<br />

à abertura <strong>de</strong>mocrática do país. Os governadores, eleitos<br />

pelo voto direto em 1982, iniciaram suas administrações em<br />

1983. Em outubro <strong>de</strong> 1984, em Belo Horizonte, os secretários<br />

<strong>de</strong> saú<strong>de</strong> <strong>de</strong> todo o país aprovaram por unanimi<strong>da</strong><strong>de</strong> um documento<br />

intitulado A questão <strong>da</strong> saú<strong>de</strong> no Brasil e diretrizes<br />

<strong>de</strong> um programa para um governo <strong>de</strong>mocrático. O texto aprovado<br />

pelos participantes <strong>da</strong> XIII Reunião do Conselho Nacional<br />

<strong>de</strong> Secretários <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> – CONASS é longo e preconiza um<br />

Sistema Unificado <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> com várias diretrizes, <strong>da</strong>s quais<br />

ressaltam:<br />

1. Eliminação <strong>da</strong> artificial dicotomia entre a saú<strong>de</strong><br />

<strong>da</strong>s pessoas e saú<strong>de</strong> coletiva, através <strong>da</strong> incorporação<br />

do INAMPS ao Ministério <strong>da</strong> Saú<strong>de</strong>, sendo o<br />

Sistema <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> coor<strong>de</strong>nado pelo Ministério <strong>da</strong><br />

Saú<strong>de</strong>.<br />

2. Universalização <strong>da</strong> cobertura dos serviços e<br />

equalização do acesso a todos os usuários, fazendo<br />

<strong>de</strong>saparecer a discriminação entre as clientelas.<br />

3. O financiamento do Sistema se <strong>da</strong>rá pela integração<br />

efetiva dos recursos públicos fe<strong>de</strong>rais, estaduais<br />

e municipais através <strong>de</strong> percentuais mínimos<br />

fixados nos respectivos orçamentos e <strong>de</strong> percentuais<br />

fixos <strong>da</strong>s arreca<strong>da</strong>ções dos sistemas Nacional,<br />

Estaduais e Municipais <strong>de</strong> Previdência Social, FIN-<br />

SOCIAL e FAS.<br />

5 Ações Integra<strong>da</strong>s no Rio Gran<strong>de</strong> do Sul. Boletim <strong>da</strong> Saú<strong>de</strong>, v. 13, n. 1, p.<br />

32-33, 1986.<br />

6 A Saú<strong>de</strong> no Rio Gran<strong>de</strong> do Sul. Secretaria <strong>da</strong> Saú<strong>de</strong> e Meio Ambiente –<br />

1970/1986. Editor Moacyr Scliar.<br />

104<br />

MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje


O SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE (SUS)<br />

4. Descentralização do Sistema, <strong>de</strong> tal modo que<br />

à União caiba uma ação normativa e <strong>de</strong> financiamento<br />

e aos Estados e Municípios a <strong>de</strong>finição e a<br />

operacionalização <strong>de</strong> sistemas regionais e locais <strong>de</strong><br />

saú<strong>de</strong>. Um dos objetivos <strong>da</strong> <strong>de</strong>scentralização será<br />

a municipalização, já não mais entendi<strong>da</strong> como a<br />

simples transferência <strong>de</strong> ônus às municipali<strong>da</strong><strong>de</strong>s.<br />

4.1 Consoli<strong>da</strong>ção <strong>de</strong> Sistemas Estaduais articulados<br />

com sistemas municipais <strong>de</strong> saú<strong>de</strong><br />

que aten<strong>da</strong>m peculiari<strong>da</strong><strong>de</strong>s regionais e locais<br />

<strong>de</strong> modo a fortalecer o regime Fe<strong>de</strong>rativo <strong>de</strong><br />

Saú<strong>de</strong>.<br />

5. Regionalização e hierarquização dos serviços,<br />

partindo do simples para o <strong>de</strong> maior complexi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

e a<strong>da</strong>ptável às peculiari<strong>da</strong><strong>de</strong>s regionais com priori<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

para a implantação e expansão <strong>de</strong> uma re<strong>de</strong><br />

básica <strong>de</strong> serviços públicos, a<strong>de</strong>qua<strong>da</strong> às necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

<strong>da</strong> população.<br />

A reunião do CONASS, feita em um período <strong>de</strong> ebulição<br />

<strong>da</strong> política nacional, mostrou a tendência <strong>da</strong>s correntes políticas,<br />

que governavam os estados na questão saú<strong>de</strong>.<br />

A emen<strong>da</strong> <strong>da</strong>s “Diretas Já” havia sido <strong>de</strong>rrota<strong>da</strong> em 25<br />

<strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 1984. As eleições do substituto <strong>de</strong> João Figueiredo<br />

seriam realiza<strong>da</strong>s em 15 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1985. O governador<br />

<strong>de</strong> Minas Gerais, Tancredo Neves, entrou na disputa e soube<br />

canalizar a seu favor a mobilização popular pela emen<strong>da</strong> <strong>de</strong><br />

Dante <strong>de</strong> Oliveira e “foi a força <strong>da</strong>s ruas que possibilitou que,<br />

num Colégio Eleitoral com maioria do partido do governo, o<br />

vencedor fosse o candi<strong>da</strong>to <strong>da</strong> oposição”. 7 No entanto, o Presi<strong>de</strong>nte<br />

eleito adoeceu na véspera <strong>da</strong> posse e faleceu em 21 <strong>de</strong><br />

abril <strong>de</strong> 1985. Tomou posse José Sarney (1985-1990), que durante<br />

o seu governo teve quatro ministros <strong>da</strong> Saú<strong>de</strong> e outros<br />

tantos <strong>da</strong> Previdência. As mu<strong>da</strong>nças ocorri<strong>da</strong>s na titulari<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

dos ministérios às vezes implicam em alterações nas chefias<br />

<strong>da</strong>s uni<strong>da</strong><strong>de</strong>s dos mesmos, situa<strong>da</strong>s nos estados, po<strong>de</strong>ndo retar<strong>da</strong>r<br />

a implantação <strong>da</strong>s <strong>de</strong>cisões políticas.<br />

A normali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>mocrática retornou às áreas on<strong>de</strong> o pre-<br />

feito era nomeado e novas forças políticas passaram a governar<br />

municípios em que, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1964, não havia eleições. Além<br />

disso, no que diz respeito à área <strong>da</strong> saú<strong>de</strong>, a imensa maioria<br />

dos municípios não executavam ações <strong>de</strong> assistência médica e<br />

a Assembleia Legislativa criaria na legislatura 1987/90 mais 89<br />

municípios.<br />

Em junho <strong>de</strong> 1986, meses antes <strong>da</strong> eleição dos parlamentares<br />

que elaboraram a Constituição <strong>de</strong> 1988, o secretário<br />

<strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> e Meio Ambiente do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul, traduzindo<br />

um sentimento comum aos profissionais <strong>da</strong> área, assinou o<br />

editorial do Boletim <strong>da</strong> Saú<strong>de</strong> sobre Ações Integra<strong>da</strong>s <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong><br />

com o seguinte teor: “Ações Integra<strong>da</strong>s <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> se constituem<br />

hoje em priori<strong>da</strong><strong>de</strong> máxima para todos aqueles que,<br />

neste Estado, consagram o melhor <strong>de</strong> seus esforços à causa<br />

<strong>da</strong> saú<strong>de</strong> pública [...]”. 8<br />

SUS<br />

As eleições parlamentares <strong>de</strong> 1986 elegeram os constituintes<br />

fe<strong>de</strong>rais <strong>de</strong> 1988 e os estaduais <strong>de</strong> 1989. O trabalho<br />

<strong>de</strong> elaboração <strong>da</strong> Constituição Fe<strong>de</strong>ral, realizado em Brasília,<br />

estabeleceu que a “as ações e serviços públicos <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> integram<br />

uma re<strong>de</strong> regionaliza<strong>da</strong> e hierarquiza<strong>da</strong> e constituem<br />

um sistema único (art. 198, CF).”<br />

O acesso será universal e igualitário às ações e serviços<br />

para a promoção, proteção e recuperação <strong>da</strong> saú<strong>de</strong> (art. 196).<br />

O texto constitucional estabelece, ain<strong>da</strong>, como diretrizes:<br />

I – <strong>de</strong>scentralização, com direção única em ca<strong>da</strong><br />

esfera <strong>de</strong> governo;<br />

II – atendimento integral, com priori<strong>da</strong><strong>de</strong> para as<br />

ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s preventivas, sem prejuízo dos serviços<br />

assistenciais;<br />

III – participação <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

E <strong>de</strong>talha a forma <strong>de</strong> financiamento do sistema através<br />

<strong>de</strong> recursos do orçamento <strong>da</strong> seguri<strong>da</strong><strong>de</strong> social, <strong>da</strong> União, dos<br />

Estados, do Distrito Fe<strong>de</strong>ral e dos Municípios.<br />

7 KOIFMAN, Fábio (org.). Presi<strong>de</strong>ntes do Brasil. São Paulo: Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Estácio<br />

<strong>de</strong> Sá; Cultura, 2002.<br />

8 Boletim <strong>da</strong> Saú<strong>de</strong>, Porto Alegre, v. 13, n. 1, p. 2-48, jun. 1986.<br />

MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje 105


O SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE (SUS)<br />

“A assistência à saú<strong>de</strong> é livre à iniciativa priva<strong>da</strong>” (art.<br />

199), que po<strong>de</strong>rá participar <strong>de</strong> forma complementar ao Sistema<br />

Único <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> segundo suas diretrizes.<br />

Ain<strong>da</strong> <strong>de</strong>ntro <strong>da</strong> “Seção II – Da Saú<strong>de</strong>” há outras competências<br />

do Sistema Único <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>, relaciona<strong>da</strong>s a cui<strong>da</strong>dos<br />

com: serviços, comércio e indústria <strong>de</strong> produtos <strong>de</strong> interesse<br />

para a saú<strong>de</strong>; as ações <strong>de</strong> vigilância sanitária, epi<strong>de</strong>miológica,<br />

<strong>de</strong> saú<strong>de</strong> do trabalhador; formação <strong>de</strong> recursos humanos; participação<br />

na formulação <strong>da</strong> política e na execução <strong>de</strong> saneamento<br />

básico; no incremento ao <strong>de</strong>senvolvimento tecnológico;<br />

no controle e fiscalização <strong>de</strong> substâncias psicoativas, tóxicas e<br />

radioativas; colaboração na proteção do meio ambiente.<br />

A proposta é a or<strong>de</strong>nação <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> exerci<strong>da</strong>s<br />

pelo po<strong>de</strong>r público sob a forma <strong>de</strong> sistema on<strong>de</strong> elas<br />

já eram exerci<strong>da</strong>s e estruturá-las on<strong>de</strong> não existiam. O cumprimento<br />

do texto constitucional fe<strong>de</strong>ral foi complementado<br />

pelas constituições estaduais e por leis fe<strong>de</strong>rais.<br />

As constituições estaduais foram elabora<strong>da</strong>s no ano seguinte,<br />

no mesmo ano <strong>de</strong> 1989 em que o país elegia, após<br />

mais <strong>de</strong> 20 anos, <strong>de</strong> forma indireta, o presi<strong>de</strong>nte <strong>da</strong> república,<br />

Fernando Collor.<br />

A Constituição do Estado do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul, ao mesmo<br />

tempo em que confirma o Sistema Único <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>, garante<br />

para seus servidores e <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes uma enti<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

assistência a saú<strong>de</strong>. Não é uma novi<strong>da</strong><strong>de</strong>, uma vez que os funcionários<br />

do Estado já possuíam uma autarquia responsável<br />

pelo atendimento a sua saú<strong>de</strong>. O financiamento se <strong>da</strong>rá parte<br />

com recursos dos servidores e outra pelo Estado.<br />

O presi<strong>de</strong>nte Collor tomou posse em março <strong>de</strong> 1990,<br />

e as eleições parlamentares <strong>de</strong> novembro estabelecem para<br />

o próximo período um novo perfil <strong>de</strong> <strong>de</strong>putados fe<strong>de</strong>rais e<br />

senadores. O mesmo acontece nas eleições estaduais, uma<br />

vez que as anteriores, em 1986, elegeram governadores <strong>de</strong><br />

um só partido, com exceção <strong>de</strong> uma uni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> fe<strong>de</strong>ração. O<br />

resultado <strong>da</strong>s urnas <strong>de</strong> 1990 mostrou o crescimento <strong>de</strong> vários<br />

partidos políticos. Ao fin<strong>da</strong>r o ano, são sanciona<strong>da</strong>s as leis nº<br />

8.080, <strong>de</strong> 19 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 1990 (Lei Orgânica <strong>da</strong> Saú<strong>de</strong>),<br />

e nº 8.142, <strong>de</strong> 28 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1990. Os municípios, após<br />

a promulgação dos textos constitucionais, elaboraram as suas<br />

leis orgânicas.<br />

Cabe ao novo governo do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul, para o período<br />

<strong>de</strong> 1991-94, iniciar a implantação do Sistema Único <strong>de</strong><br />

Saú<strong>de</strong>, o SUS, no estado <strong>de</strong> acordo com as normas fe<strong>de</strong>rais.<br />

Em janeiro <strong>de</strong> 1992, há uma troca <strong>de</strong> titulares do Ministério <strong>da</strong><br />

Saú<strong>de</strong>. Em outubro, Itamar Franco substitui Fernando Collor<br />

e as eleições municipais <strong>de</strong> 1992 <strong>de</strong>terminam a mu<strong>da</strong>nça <strong>de</strong><br />

todos os prefeitos do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul.<br />

O quadro <strong>de</strong> turbulência política no país acarreta equívocos<br />

na administração pública. O relatório <strong>da</strong> Assessoria<br />

Técnica e <strong>de</strong> Planejamento <strong>de</strong> fim <strong>de</strong> 1998 <strong>da</strong> Secretaria Estadual<br />

<strong>da</strong> Saú<strong>de</strong> do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul, no item “1.1.2 Descentralização<br />

<strong>da</strong>s ações e serviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> no Rio Gran<strong>de</strong><br />

do Sul”, afirma:<br />

O processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>scentralização <strong>da</strong>s ações e serviços<br />

<strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, para os municípios, operacionalizado através<br />

<strong>da</strong> municipalização, iniciou-se com o Sistema Unificado<br />

e Descentralizado <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> (SUDS) em 1987,<br />

tendo a partir <strong>da</strong>í vários “recomeços” sem que houvesse<br />

continui<strong>da</strong><strong>de</strong> no processo, <strong>de</strong>vido às mu<strong>da</strong>nças<br />

nas normatizações fe<strong>de</strong>rais (NOB/91, 92, 93 e 96).<br />

NOB significa Norma Operacional Básica, que estabelece os<br />

pré-requisitos para a municipalização <strong>da</strong>s ações <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>. O número<br />

i<strong>de</strong>ntifica o ano em que foi elabora<strong>da</strong>. A ca<strong>da</strong> NOB edita<strong>da</strong>,<br />

vinham novos pré-requisitos, modificações e/ou cancelamentos<br />

<strong>de</strong> itens nas normas anteriores, alterações estas que <strong>de</strong>terminavam<br />

novas discussões entre os gestores estaduais e municipais.<br />

A <strong>de</strong>scentralização exige certas condições: os estados e<br />

os municípios <strong>de</strong>vem contar com um fundo <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, conselhos<br />

<strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, plano <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, elaborar relatórios <strong>de</strong> gestão,<br />

prever recursos, estabelecer planos <strong>de</strong> carreira. 9<br />

A municipalização é consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong> estratégia básica para<br />

a reorganização do setor e para afirmar os princípios e diretrizes<br />

<strong>da</strong> nova política <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>: universali<strong>da</strong><strong>de</strong>, gratui<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />

acessibili<strong>da</strong><strong>de</strong>, igual<strong>da</strong><strong>de</strong>, integrali<strong>da</strong><strong>de</strong>, <strong>de</strong>scentralização, regularização,<br />

resolubili<strong>da</strong><strong>de</strong>, participação, ênfase na prevenção<br />

e racionali<strong>da</strong><strong>de</strong>. 10<br />

9 Situação <strong>da</strong> saú<strong>de</strong> no Rio Gran<strong>de</strong> do Sul. Secretaria <strong>da</strong> Saú<strong>de</strong> e do Meio<br />

Ambiente do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul. Editor Moacyr Scliar.<br />

10 Ibid.<br />

106<br />

MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje


O SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE (SUS)<br />

O Estado, que se habilitou à condição <strong>de</strong> gestão parcial<br />

(Diário Oficial <strong>da</strong> União <strong>de</strong> 4 jul. 1994), repassou até <strong>de</strong>zembro<br />

<strong>de</strong> 1998 suas uni<strong>da</strong><strong>de</strong>s sanitárias, móveis, equipamentos<br />

e recursos humanos para 405 municípios, cobrindo 95% <strong>da</strong><br />

população resi<strong>de</strong>nte.<br />

Ao fin<strong>da</strong>r o século XX, <strong>de</strong>z anos <strong>de</strong>pois <strong>da</strong> promulgação<br />

<strong>da</strong>s Constituições Fe<strong>de</strong>ral e Estadual, a <strong>de</strong>scentralização para<br />

os municípios foi concluí<strong>da</strong>, ficando com o Estado a responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>da</strong> coor<strong>de</strong>nação do SUS. Entre suas principais atribuições,<br />

o estabelecimento <strong>de</strong> sistemas <strong>de</strong> referência e contrarreferência,<br />

as diretrizes para os procedimentos <strong>de</strong> alto custo<br />

e alta complexi<strong>da</strong><strong>de</strong>, além <strong>da</strong>s ações <strong>de</strong> vigilância epi<strong>de</strong>miológica<br />

e sanitária. O gestor estadual tem um papel também<br />

integrador, promovendo a articulação interinstitucional, e <strong>de</strong>ve<br />

intermediar, ain<strong>da</strong>, as negociações entre os administradores<br />

municipais, estadual e fe<strong>de</strong>ral.<br />

No documento apresentado à 2ª Conferência Estadual<br />

<strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> em 1996, diversos fatores foram citados como entraves<br />

à <strong>de</strong>scentralização <strong>da</strong>s ações e serviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> no<br />

Estado. Entre estes constavam o receio dos municípios <strong>de</strong><br />

assumir a re<strong>de</strong> <strong>de</strong> serviços sem a garantia <strong>da</strong> contraparti<strong>da</strong><br />

<strong>de</strong> recursos do governo fe<strong>de</strong>ral e estadual e a ausência <strong>de</strong><br />

recursos <strong>de</strong> custeio no Orçamento do Estado para o incentivo<br />

à municipalização. A preocupação dos gestores municipais<br />

anos mais tar<strong>de</strong> se confirmou como uma reali<strong>da</strong><strong>de</strong>: tanto<br />

o Estado não honrou os compromissos financeiros previstos<br />

nas normas legais como a União vem diminuindo sua participação<br />

no custeio <strong>da</strong> saú<strong>de</strong>.<br />

No início do século XXI, os serviços públicos <strong>de</strong> saú<strong>de</strong><br />

estão <strong>de</strong>scentralizados e com direção única em ca<strong>da</strong> esfera<br />

<strong>de</strong> governo. As ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> promoção <strong>da</strong> saú<strong>de</strong> e prevenção<br />

<strong>de</strong> doenças contemplam a totali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> população brasileira<br />

e são exerci<strong>da</strong>s em todo o território nacional. Algumas conquistas<br />

na luta contra as doenças são manti<strong>da</strong>s e aperfeiçoa<strong>da</strong>s,<br />

por exemplo, o uso <strong>da</strong>s vacinas no combate a doenças<br />

transmissíveis, e outras, como a malária na região norte do<br />

país, têm avanços e recuos. Ain<strong>da</strong> algumas outras, como a<br />

tuberculose, que exigem ações sob forma <strong>de</strong> programas com<br />

metas claras e <strong>de</strong>fini<strong>da</strong>s e um serviço que integre a promoção<br />

<strong>da</strong> saú<strong>de</strong>, a prevenção <strong>da</strong> doença, o diagnóstico, o tratamento<br />

e a recuperação persistem em nosso meio, <strong>de</strong>bilitando trabalhadores<br />

e ceifando vi<strong>da</strong>s.<br />

Os conselhos foram estruturados nos três níveis <strong>de</strong> governo<br />

e representam a participação <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> na <strong>de</strong>finição<br />

<strong>da</strong>s políticas públicas <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>.<br />

O SUS não é só a assistência à saú<strong>de</strong> através <strong>de</strong> uni<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

ambulatoriais e hospitalares; também faz parte do SUS o<br />

Sistema Nacional <strong>de</strong> Vigilância em Saú<strong>de</strong> nos três níveis <strong>de</strong> governo,<br />

que participa <strong>da</strong> construção <strong>da</strong> integrali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> atenção<br />

<strong>da</strong> saú<strong>de</strong> no país. A saú<strong>de</strong> é <strong>de</strong>termina<strong>da</strong> e condiciona<strong>da</strong><br />

por fatores biológicos, ambientais, sociais, econômicos e culturais.<br />

Monitorando as doenças e os agravos, i<strong>de</strong>ntificando e<br />

controlando os riscos, adotando ou recomen<strong>da</strong>ndo formas e<br />

mecanismos <strong>de</strong> ações <strong>de</strong> controle ou estabelecendo diretrizes<br />

para otimizar a ação dos serviços assistenciais, as Vigilâncias<br />

Sanitária, Epi<strong>de</strong>miológica, Ambiental e <strong>da</strong> Saú<strong>de</strong> do Trabalhador<br />

interagem com a população.<br />

A iniciativa priva<strong>da</strong> age <strong>de</strong> forma complementar na assistência<br />

à saú<strong>de</strong> <strong>da</strong> população. No Rio Gran<strong>de</strong> do Sul, em 2015,<br />

on<strong>de</strong> existem, segundo o CNES, 329 hospitais, 306 possuem<br />

leitos que aten<strong>de</strong>m pelo SUS. A maior parte <strong>da</strong> re<strong>de</strong> hospitalar<br />

do estado é priva<strong>da</strong>. A União possui hospitais militares e<br />

<strong>de</strong> ensino. O Estado possui hospitais especializados em saú<strong>de</strong><br />

mental (H. P. São Pedro), em tuberculose (Sanatório Partenon)<br />

e em hanseníase (Hospital Colônia Itapoã). Entre os municípios<br />

que possuem hospitais está Porto Alegre, com o Hospital <strong>de</strong><br />

Pronto Socorro. A maior parte, além <strong>de</strong> aten<strong>de</strong>r ao SUS, também<br />

aten<strong>de</strong> aos segurados dos planos privados <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> e do<br />

IPE – Instituto <strong>de</strong> Previdência do Estado.<br />

Cabe, ain<strong>da</strong>, lembrar dois trechos do discurso <strong>de</strong> posse<br />

do Ministro <strong>da</strong> Saú<strong>de</strong>, José Gomes Temporão, em março <strong>de</strong><br />

2007, para que se ressaltem as dimensões do SUS no Brasil:<br />

“Afinal, a ca<strong>da</strong> ano, são 12 milhões <strong>de</strong> internações, 170 milhões<br />

<strong>de</strong> consultas médicas, 2 milhões <strong>de</strong> partos, 15 mil transplantes<br />

<strong>de</strong> órgãos”, números que expressam, “em termos econômicos,<br />

[que] a saú<strong>de</strong> representa 8% do PIB, constituindo<br />

um mercado anual <strong>de</strong> mais <strong>de</strong> 150 bilhões <strong>de</strong> reais. Emprega,<br />

com trabalhos qualificados, cerca <strong>de</strong> 10% <strong>da</strong> população brasileira<br />

e é a área em que os investimentos são os mais expressivos<br />

do país”.<br />

MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje 107


O SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE (SUS)<br />

RIO GRANDE DO SUL: INDICADORES DE<br />

SAÚDE<br />

A saú<strong>de</strong> <strong>da</strong> população resi<strong>de</strong>nte no Rio Gran<strong>de</strong> do Sul,<br />

vista sob a ótica dos indicadores mais usuais e aceitos internacionalmente,<br />

como a mortali<strong>da</strong><strong>de</strong> infantil proporcional por i<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

e por causa, e a expectativa <strong>de</strong> vi<strong>da</strong> mostram uma sensível<br />

melhora. A saú<strong>de</strong> <strong>da</strong>s crianças, por mais paradoxal que seja,<br />

é medi<strong>da</strong>, como os outros indicadores, tomando por base o<br />

obituário. No caso específico, o coeficiente <strong>de</strong> mortali<strong>da</strong><strong>de</strong> infantil<br />

(CMI) é expresso pelo número <strong>de</strong> óbitos <strong>de</strong> menores <strong>de</strong><br />

um ano por 1.000 nascidos vivos.<br />

MORTALIDADE INFANTIL NO RIO GRANDE DO SUL –<br />

1970-2010<br />

Especificação 1970 1990 2010<br />

CMI 48.4 21.5 11.2<br />

Total óbitos<br />

- <strong>de</strong> 1 ano<br />

8.038 3.809 1.486<br />

Fonte: Estatísticas <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>. Sistema <strong>de</strong> Informações sobre Mortali<strong>da</strong><strong>de</strong> (SIM), v. 35,<br />

2010. Núcleo Informação <strong>da</strong> Saú<strong>de</strong>. Secretaria <strong>da</strong> Saú<strong>de</strong>-RS.<br />

Se a análise fosse aprofun<strong>da</strong><strong>da</strong>, veríamos que a maioria<br />

dos óbitos <strong>de</strong> 2010 se fez às custas <strong>da</strong>queles que ocorreram<br />

antes <strong>de</strong> completar 28 dias <strong>de</strong> vi<strong>da</strong>. Isto sinaliza a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> melhorar o pré-natal e aperfeiçoar os recursos humanos e<br />

tecnológicos por ocasião do nascimento.<br />

Outro indicador clássico é a razão <strong>de</strong> mortali<strong>da</strong><strong>de</strong> proporcional<br />

(RMP), ou Swaroop e Uemura, expresso pelo percentual<br />

<strong>de</strong> óbitos <strong>de</strong> pessoas <strong>de</strong> 50 anos ou mais em relação ao<br />

total <strong>de</strong> óbitos.<br />

RAZÃO DE MORTALIDADE PROPORCIONAL NO<br />

RIO GRANDE DO SUL – 1970-2010<br />

Especificação 1970 1990 2010<br />

RMP 55% 71% 81.6%<br />

Total <strong>de</strong> óbitos 40.813 58.360 77.653<br />

Fonte: Estatísticas <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>. Sistema <strong>de</strong> Informações sobre Mortali<strong>da</strong><strong>de</strong> (SIM), v. 35,<br />

2010. Núcleo Informação <strong>da</strong> Saú<strong>de</strong>. Secretaria <strong>da</strong> Saú<strong>de</strong>-RS.<br />

A tendência a 100% do indicador reflete uma melhora<br />

nas condições <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> <strong>da</strong> população rio-gran<strong>de</strong>nse. O estado,<br />

no que tange à mortali<strong>da</strong><strong>de</strong> proporcional (Swaroop e<br />

Uemura) no período observado, aproxima-se <strong>da</strong>s regiões com<br />

melhores condições <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>.<br />

A mortali<strong>da</strong><strong>de</strong> por grupo <strong>de</strong> causas, usa<strong>da</strong> em substituição<br />

ao coeficiente <strong>de</strong> mortali<strong>da</strong><strong>de</strong> por doenças transmissíveis,<br />

por si só <strong>de</strong>monstra a per<strong>da</strong> <strong>da</strong> importância <strong>da</strong>s transmissíveis<br />

com a evolução <strong>da</strong> medicina na sua prevenção, em seu diagnóstico<br />

e tratamento.<br />

EVOLUÇÃO DA MORTALIDADE PROPORCIONAL<br />

NO RIO GRANDE DO SUL<br />

PRINCIPAIS CAPÍTULOS CID 10 – 1970-2010<br />

Causa 1970 1990 2000 2010<br />

IX Ap. circulatório 30.1 35.0 33.7 30.0<br />

II Neoplasias 11.7 16.3 19.3 21.3<br />

X Ap. respiratório 9.4 12.1 12.0 11.8<br />

XX Causas externas 6.8 10.8 9.5 9.2<br />

IV Endócrinas/Imunitárias 2.9 2.1 4.7 5.5<br />

XI Ap. digestivo 2.9 4.3 5.1 4.8<br />

I Infecto-parasitárias 9.3 2.8 3.7 4.2<br />

Fonte: Estatísticas <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>. Sistema <strong>de</strong> Informações sobre Mortali<strong>da</strong><strong>de</strong> (SIM), v. 35,<br />

2010. Núcleo Informação <strong>da</strong> Saú<strong>de</strong>. Secretaria <strong>da</strong> Saú<strong>de</strong>-RS.<br />

As doenças do aparelho circulatório e o câncer são responsáveis<br />

pela meta<strong>de</strong> dos óbitos, mas há um acentuado aumento<br />

<strong>da</strong> mortali<strong>da</strong><strong>de</strong> pelas neoplasias. As causas externas,<br />

como as mortes violentas (aci<strong>de</strong>ntes, homicídios e suicídios),<br />

continuam ceifando vi<strong>da</strong>s jovens. Entre as cinco principais causas<br />

<strong>de</strong> morte aparecem, pela primeira vez, as endócrino-imunitárias.<br />

Neste grupo está a diabete, provavelmente uma <strong>da</strong>s<br />

doenças que o SUS terá <strong>de</strong> priorizar nas suas ações para diminuir<br />

o sofrimento dos que <strong>de</strong>la pa<strong>de</strong>cem, pois é uma doença<br />

que se prolonga por anos.<br />

A expectativa <strong>de</strong> vi<strong>da</strong> me<strong>de</strong> o tempo médio esperado <strong>de</strong><br />

viver <strong>da</strong> pessoa nasci<strong>da</strong> naquele ano.<br />

108<br />

MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje


O SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE (SUS)<br />

EXPECTATIVA DE VIDA, POR SEXO,<br />

NO RIO GRANDE DO SUL – 1971-73; 1996-98; 2008-10<br />

Sexo<br />

Ano<br />

1971-73 1996-98 2008-10<br />

Masculino 63.61 67.61 71.87<br />

Feminino 69.99 75.67 79.92<br />

Ambos os sexos 66.65 71.54 75.87<br />

Fonte: Estatísticas <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>. Sistema <strong>de</strong> Informações sobre Mortali<strong>da</strong><strong>de</strong> (SIM), v. 35,<br />

2010. Núcleo Informação <strong>da</strong> Saú<strong>de</strong>. Secretaria <strong>da</strong> Saú<strong>de</strong>-RS.<br />

Esse é um indicador sensível ao impacto <strong>da</strong> mortali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

em to<strong>da</strong>s as faixas etárias, mas tem as limitações <strong>de</strong> todos os<br />

indicadores que fazem uso <strong>de</strong> <strong>da</strong>dos <strong>de</strong> mortali<strong>da</strong><strong>de</strong>. A análise<br />

<strong>de</strong> sua tendência corrobora a melhoria <strong>da</strong>s condições <strong>de</strong> vi<strong>da</strong><br />

aponta<strong>da</strong>s pelos <strong>de</strong>mais indicadores.<br />

A re<strong>de</strong> regionaliza<strong>da</strong> e hierarquiza<strong>da</strong> prevista no art. 198<br />

<strong>da</strong> Constituição está estrutura<strong>da</strong> nos 497 municípios do estado,<br />

com seus ambulatórios e hospitais. Os municípios não<br />

são iguais entre si, possuem população, área geográfica, localização,<br />

recursos materiais, humanos e financeiros diferentes;<br />

enfim, o estado não é formado por uni<strong>da</strong><strong>de</strong>s administrativas<br />

iguais. A meta<strong>de</strong> dos municípios não tem 6.000 habitantes e<br />

o somatório <strong>de</strong> suas populações é menor que a população <strong>de</strong><br />

Porto Alegre. A base <strong>de</strong> sua economia varia <strong>de</strong> região para<br />

região, e a distância em tempo ou em quilômetros do núcleo<br />

populacional aos recursos <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> também é muito díspar.<br />

Consequentemente, estas variáveis, alia<strong>da</strong>s a outras <strong>de</strong>correntes<br />

<strong>da</strong>s necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> do indivíduo, tornam a tarefa<br />

dos gestores municipais e estaduais bastante complexa. Isto<br />

tudo sem referir a escassez <strong>de</strong> recursos financeiros, que é uma<br />

constante na área <strong>da</strong> saú<strong>de</strong>.<br />

O SUS municipal, no que diz respeito às ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s ambulatoriais<br />

<strong>de</strong> prevenção e tratamento <strong>de</strong> uma doença, po<strong>de</strong><br />

ter uma alta performance na uni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>. Quando a doença<br />

exige procedimentos laboratoriais, <strong>de</strong> imagem, consulta<br />

com especialista ou internação, o paciente passa a ser uma<br />

peça <strong>de</strong> engrenagem que, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ndo <strong>da</strong> especiali<strong>da</strong><strong>de</strong> e do<br />

grau <strong>de</strong> hierarquização do sistema, po<strong>de</strong> levar um tempo a ser<br />

incorpora<strong>da</strong> ao sistema, tempo este que precisa ser abreviado,<br />

pois, senão, será tar<strong>de</strong> <strong>de</strong>mais.<br />

As palavras do ministro Temporão sobre os milhões <strong>de</strong><br />

procedimentos do SUS, em ca<strong>da</strong> ano no país, <strong>de</strong>vem servir<br />

para alertar que o Rio Gran<strong>de</strong> do Sul faz parte <strong>de</strong>ste país e<br />

contribui com milhares <strong>de</strong> internações hospitalares, consultas<br />

médicas com especialistas ou não, exames subsidiários, transplantes<br />

<strong>de</strong> órgãos, longos tratamentos com doenças crônicas<br />

e tratamentos recém-lançados no mercado a custos estratosféricos,<br />

que, no entanto, fazem renascer as esperanças <strong>da</strong>queles<br />

que foram <strong>de</strong>senganados.<br />

Ao mesmo tempo em que o SUS tem <strong>de</strong> aten<strong>de</strong>r às necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

senti<strong>da</strong>s pela população, tem <strong>de</strong> se aperfeiçoar<br />

diante <strong>da</strong>s novas tecnologias postas à disposição dos serviços<br />

<strong>de</strong> saú<strong>de</strong>. É necessário, ao mesmo tempo em que comemora<br />

a redução <strong>da</strong> mortali<strong>da</strong><strong>de</strong> infantil, observar que mais <strong>de</strong> um<br />

milhão <strong>de</strong> gaúchos ultrapassaram a faixa dos 60 anos e que<br />

boa parte <strong>de</strong>stas pessoas necessita <strong>de</strong> cui<strong>da</strong>dos médicos e medicamentos.<br />

O Alzheimer, que, em 2000, vitimou 187 pessoas,<br />

em 2010 foi responsável pela morte <strong>de</strong> 1.060. Os transtornos<br />

mentais e comportamentais também registraram um forte incremento.<br />

Outras doenças como a diabete precisam ser encara<strong>da</strong>s<br />

com programas que <strong>de</strong>senvolvam, além <strong>da</strong>s ações <strong>de</strong><br />

tratamento, também as <strong>de</strong> prevenção.<br />

CONCLUSÃO<br />

No texto <strong>de</strong> apresentação do relatório <strong>da</strong> 2ª Conferência<br />

Estadual <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul (1996) 11 , o relator<br />

fez afirmações que ain<strong>da</strong> são muito atuais, referindo-se<br />

ao SUS:<br />

Criado com o elevado objetivo <strong>de</strong> proporcionar<br />

boas condições <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> para to<strong>da</strong> a população<br />

brasileira, sem qualquer distinção <strong>de</strong> categoria social<br />

ou <strong>de</strong> estrato econômico, o SUS enfrenta hoje<br />

problemas <strong>de</strong> magnitu<strong>de</strong> proporcional a tarefas a<br />

que se propôs. E é claro que só po<strong>de</strong>rá vencer tais<br />

11 CONFERÊNCIA ESTADUAL DE SAÚDE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL, 2.,<br />

1996, Porto Alegre. Relatório. Porto Alegre: SSMA, 1996, p. 56.<br />

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O SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE (SUS)<br />

obstáculos mediante uma ação conjuga<strong>da</strong> e solidária<br />

<strong>da</strong> população organiza<strong>da</strong>.<br />

Em outras palavras, “o SUS não é uma reali<strong>da</strong><strong>de</strong> pronta,<br />

acaba<strong>da</strong>: precisa ser construído, um processo que se consoli<strong>da</strong><br />

com o <strong>de</strong>bate amplo e <strong>de</strong>mocrático”. E, ain<strong>da</strong>, “o SUS não é<br />

um simples aparato burocrático: ele é feito <strong>de</strong> seres humanos<br />

que sofrem, que lutam que sonham com um futuro melhor<br />

para o Rio Gran<strong>de</strong> e o Brasil”.<br />

Assina o coor<strong>de</strong>nador, Moacyr Scliar.<br />

REFERÊNCIAS<br />

CONFERÊNCIA ESTADUAL DE SAÚDE DO ESTADO DO RIO GRAN-<br />

DE DO SUL, 2., 1996, Porto Alegre. Relatório. Porto Alegre:<br />

SSMA, 1996.<br />

110<br />

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Fotografia do Curso <strong>de</strong> Aperfeiçoamento<br />

em Cirurgia do Dr. Bruno Marsiaj, 1949<br />

Acervo: Dr. Lauro Schuck<br />

Doador: June Schuck<br />

Fotografia <strong>de</strong> procedimento cirúrgico<br />

Cirurgião: Dr. Oddone Marsiaj;<br />

Auxiliar: Dr. Sérgio Marsiaj Rocha;<br />

Anestesista: Dr. Afonso Fortis;<br />

Instrumentadora: Drª Jussara;<br />

Observando: Dr. Carlos Brenner.<br />

Acervo: Dr. Sérgio Marsiaj Rocha


MÉDICOS ALEMÃES,<br />

HÚNGAROS E AUSTRÍACOS<br />

NO RIO GRANDE DO SUL<br />

CLAUS MICHAEL PREGER<br />

Médico<br />

112<br />

MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje


Apresença e a ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> profissional dos médicos estrangeiros,<br />

especialmente alemães, italianos, húngaros e austríacos,<br />

no Rio Gran<strong>de</strong> do Sul (RS), no século passado, representaram<br />

uma etapa importante no contexto <strong>da</strong> assistência médica<br />

presta<strong>da</strong> às populações colonizadoras do território interiorano<br />

gaúcho.<br />

Na colônia, os médicos <strong>de</strong> língua alemã eram <strong>de</strong>nominados<br />

“herr doktor” em contraposição ao tratamento <strong>de</strong><br />

doutor <strong>da</strong>do normalmente ao médico brasileiro. Chegaram<br />

ao RS com o propósito <strong>de</strong> aplicar seus conhecimentos profissionais<br />

obtidos nas imponentes facul<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong> europeias,<br />

com <strong>de</strong>staque às universi<strong>da</strong><strong>de</strong>s europeias <strong>de</strong> Berlim,<br />

Hamburgo, Goettingen, Berna, Viena e Bu<strong>da</strong>peste. Testemunharam<br />

importantes momentos históricos <strong>da</strong> Europa e do Brasil<br />

e acompanharam os intensos fluxos <strong>da</strong> imigração alemã.<br />

Muitos fatores foram responsáveis por impulsioná-los para fora<br />

<strong>de</strong> suas terras natais e outros por atraí-los aos estados sulinos<br />

do Brasil, especialmente ao Rio Gran<strong>de</strong> do Sul.<br />

A imigração alemã começou já com o início <strong>da</strong> nacionali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

brasileira, logo após a <strong>de</strong>claração <strong>da</strong> in<strong>de</strong>pendência do<br />

jugo português, proclama<strong>da</strong> por D. Pedro I em 1822. Sua esposa,<br />

a imperatriz Leopoldina, era filha <strong>de</strong> Francisco I, primeiro<br />

imperador <strong>da</strong> Áustria, e foi educa<strong>da</strong> na língua germânica clássica<br />

própria dos elementos <strong>da</strong> corte austríaca.<br />

O governo imperial necessitava urgentemente formar<br />

suas milícias para combater e expulsar as forças portuguesas<br />

MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje 113


MÉDICOS ALEMÃES, HÚNGAROS E AUSTRÍACOS NO RIO GRANDE DO SUL<br />

que ain<strong>da</strong> permaneciam em território brasileiro e fortalecer as<br />

fronteiras no sul do Brasil através <strong>da</strong> colonização. O imperador<br />

or<strong>de</strong>nou a busca <strong>de</strong> mercenários que se propusessem a<br />

guerrear nos estados do centro e norte do país e colonos que<br />

quisessem cultivar a terra, criar gado, formar suas famílias e<br />

procriar seus <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes nas terras <strong>de</strong>sabita<strong>da</strong>s do sul do<br />

país, e que também se dispusessem a colaborar na <strong>de</strong>fesa <strong>de</strong><br />

suas fronteiras.<br />

O encarregado <strong>da</strong> missão foi o major Jorge Antônio von<br />

Shaeffer, <strong>de</strong> origem alemã, familiarizado com o idioma, pois<br />

o alvo eram as ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s-estados <strong>da</strong> Alemanha – reinados, principados<br />

e ducados que falavam essencialmente a mesma língua<br />

– <strong>de</strong> on<strong>de</strong> seriam recrutados os colonos e os mercenários.<br />

O major – <strong>de</strong>signado “agente <strong>de</strong> afazeres políticos do Brasil”<br />

– publicou nos jornais <strong>da</strong>s ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s alemãs visita<strong>da</strong>s anúncios<br />

<strong>de</strong> recrutamento <strong>de</strong> colonos oferecendo viagem ao Brasil com<br />

passagens pagas, auxílio financeiro, terras, suprimentos, ferramentas,<br />

sementes, gado, isenção <strong>de</strong> impostos, estra<strong>da</strong>s <strong>de</strong><br />

acesso às glebas e liber<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> culto, promessas estas parcamente<br />

cumpri<strong>da</strong>s. Foi buscar os mercenários entre a sol<strong>da</strong><strong>de</strong>sca<br />

<strong>de</strong>semprega<strong>da</strong> com o fim <strong>da</strong>s Guerras Napoleônicas,<br />

especialmente nas prisões alemãs.<br />

Assim, a partir <strong>de</strong> 25 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 1824, <strong>da</strong>ta que marca o<br />

início <strong>da</strong> imigração alemã no Rio Gran<strong>de</strong> do Sul, chegaram os<br />

barcos com as primeiras levas <strong>de</strong> colonos alemães, mais precisamente<br />

às margens do Rio dos Sinos, junto à Imperial Feitoria<br />

do Linho-Cânhamo, já <strong>de</strong>sativa<strong>da</strong> à época, on<strong>de</strong> fun<strong>da</strong>ram<br />

o núcleo <strong>da</strong> Colônia Alemã <strong>de</strong> São Leopoldo. A travessia do<br />

Atlântico, em condições <strong>de</strong> alimentação e higiene precárias,<br />

era feita em veleiros <strong>de</strong> três mastros com pouco além <strong>de</strong> 30<br />

metros <strong>de</strong> comprimento e durava cerca <strong>de</strong> 100 dias. Do Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro a Porto Alegre vinham em barcos veleiros costeiros os<br />

bergantins e sumacas e, <strong>da</strong>í em diante, em minúsculos barcos<br />

<strong>de</strong> uma vela só (Figura 1).<br />

Figura 1. Quadro <strong>de</strong> Ernst Zeuner que retrata a chega<strong>da</strong> <strong>da</strong><br />

primeira leva <strong>de</strong> imigrantes alemães em 25 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 1824,<br />

às margens do Rio dos Sinos. Sobre o cavalo branco, José<br />

Feliciano F. Pinheiro, o Viscon<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Leopoldo, governador<br />

<strong>da</strong> Província <strong>de</strong> São Pedro.<br />

Acervo do <strong>Museu</strong> Histórico Viscon<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Leopoldo, o museu municipal <strong>da</strong><br />

imigração alemã, com se<strong>de</strong> na ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> São Leopoldo, RS<br />

Entre os colonos, vieram os primeiros médicos formados<br />

nas universi<strong>da</strong><strong>de</strong>s europeias, evi<strong>de</strong>nciando-se, entre eles, João<br />

Daniel Hillebrand (1795-1880), o pioneiro, nascido em Hamburgo,<br />

Alemanha, e formado pela Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Goettingen,<br />

em 1823. Além <strong>de</strong> sua atuação como médico, foi vice-inspetor<br />

e mais tar<strong>de</strong> diretor geral <strong>da</strong> Colônia <strong>de</strong> São Leopoldo,<br />

juiz municipal e <strong>de</strong> órfãos, coronel <strong>da</strong> Guar<strong>da</strong> Nacional coman<strong>da</strong><strong>da</strong><br />

pelo então Con<strong>de</strong> <strong>de</strong> Caxias – mais tar<strong>de</strong>, Duque<br />

<strong>de</strong> Caxias – e presi<strong>de</strong>nte <strong>da</strong> Câmara Municipal. Destacou-se<br />

no atendimento aos pacientes atacados pelo cólera-morbo em<br />

1855. Organizou as listas completas dos imigrantes que chegavam<br />

à Colônia, constituindo o primeiro censo <strong>de</strong>mográfico<br />

<strong>da</strong> região, a chama<strong>da</strong> “Lista <strong>de</strong> Hillebrand” (figuras 2 e 3).<br />

O monumento do centenário <strong>da</strong> imigração alemã em<br />

São Leopoldo <strong>de</strong>staca quatro personali<strong>da</strong><strong>de</strong>s esculpi<strong>da</strong>s em<br />

suas faces: o imperador D. Pedro I, a imperatriz Leopoldina, o<br />

viscon<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Leopoldo e João Daniel Hillebrand (Figura 4).<br />

A história dos primórdios <strong>de</strong> São Leopoldo se mescla com a<br />

biografia do pioneiro Doktor Hillebrand.<br />

114<br />

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MÉDICOS ALEMÃES, HÚNGAROS E AUSTRÍACOS NO RIO GRANDE DO SUL<br />

Figura 2. Doktor João Daniel Hillebrand<br />

Acervo do <strong>Museu</strong> Histórico Visc. <strong>de</strong> São Leopoldo<br />

Figura 3. Fragmento <strong>da</strong> “Lista <strong>de</strong> Hillebrand”<br />

Acervo do <strong>Museu</strong> Histórico Visc. <strong>de</strong> São Leopoldo<br />

Figuras 4a e 4b. Monumento em São Leopoldo do Centenário<br />

<strong>da</strong> Imigração Alemã no RS (1824-1924) com o <strong>de</strong>talhe <strong>da</strong> figura<br />

<strong>de</strong> Hillebrand em uma <strong>de</strong> suas quatro faces.<br />

MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje 115


MÉDICOS ALEMÃES, HÚNGAROS E AUSTRÍACOS NO RIO GRANDE DO SUL<br />

Três outras figuras médicas importantes vieram nesta<br />

fase <strong>da</strong> imigração alemã estimula<strong>da</strong> pelo governo brasileiro.<br />

Em 1880, chegou Herrmann Von Ihering (1850-1930),<br />

formado em Goettingen, também naturalista, paleontólogo<br />

e ornitólogo. Clinicou inicialmente em Taquara e <strong>de</strong>pois em<br />

Guaíba, Rio Gran<strong>de</strong> e São Lourenço do Sul, on<strong>de</strong> viveu durante<br />

sete anos numa ilha na foz do Rio Camaquã, chama<strong>da</strong><br />

<strong>de</strong> Doktorinsel, a Ilha do Doutor, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> seus pacientes o<br />

buscavam <strong>de</strong> barco para o atendimento médico. Foi fun<strong>da</strong>dor<br />

e diretor do <strong>Museu</strong> Paulista <strong>de</strong> <strong>História</strong> Natural. Descobriu e<br />

<strong>de</strong>screveu cinco gêneros e mais <strong>de</strong> 100 espécies e subespécies<br />

<strong>de</strong> animais e plantas do solo nacional. Redigiu em português<br />

várias obras <strong>de</strong> ciências naturais e, em parceria com seu filho<br />

Rodolpho, o Catálogo <strong>da</strong>s aves do Brasil e o Atlas <strong>da</strong> fauna<br />

do Brasil. A bibliografia <strong>de</strong> suas obras – textos, monografias<br />

e artigos – contém mais <strong>de</strong> 300 títulos. Seus trabalhos com<br />

moluscos sul-americanos têm 600 referências no Google brasileiro,<br />

e a pesquisa no site alemão pelo seu nome resulta em<br />

mais <strong>de</strong> 60 mil referências.<br />

Figura 6. O diploma <strong>de</strong> Doutor em <strong>Medicina</strong><br />

Figura 5. Dr. Herrmann Von Ihering com sua assinatura habitual<br />

Em 1895, aportou em São Leopoldo Karl Wilhelm<br />

Schinke (1859-1971), formado em 1886, na Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

Greifswald, Alemanha, fun<strong>da</strong><strong>da</strong> em 1457. Em 1905, foi médico<br />

<strong>da</strong> campanha militar alemã no Sudoeste Africano Alemão,<br />

hoje Namíbia. Seu diário, on<strong>de</strong> relata as incursões <strong>da</strong> tropa<br />

alemã contra os guerrilheiros hotentotes africanos, é conservado<br />

na íntegra por sua família e foi traduzido por seu neto,<br />

também médico, Dr. Werner Schinke.<br />

Em 1913, voltou ao Rio Gran<strong>de</strong> do Sul, passando a clinicar<br />

em Novo Hamburgo. Seu filho Günther, formado na Universi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> Kiel, veio trabalhar com ele. Assim, a partir <strong>de</strong><br />

1921, havia dois médicos Schinke em Novo Hamburgo.<br />

Sua biografia resumi<strong>da</strong> faz parte <strong>de</strong> um dos painéis <strong>da</strong><br />

exposição organiza<strong>da</strong> pelo Sindicato Médico do Rio Gran<strong>de</strong> do<br />

Sul (SIMERS), <strong>de</strong>nomina<strong>da</strong> <strong>História</strong> <strong>da</strong> <strong>Medicina</strong> no Rio Gran<strong>de</strong><br />

do Sul – Médicos estrangeiros do séc. XIX, e hoje presente<br />

no acervo do <strong>Museu</strong> <strong>de</strong> <strong>História</strong> <strong>da</strong> <strong>Medicina</strong> – <strong>MUHM</strong>.<br />

116<br />

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MÉDICOS ALEMÃES, HÚNGAROS E AUSTRÍACOS NO RIO GRANDE DO SUL<br />

Figura 9. Painel <strong>da</strong> exposição “Médicos estrangeiros”,<br />

patrocina<strong>da</strong> pelo SIMERS, com o resumo <strong>da</strong> biografia do Dr.<br />

Karl Schinke, sua família e fragmento do seu diário.<br />

Figura 7. Dr. Karl Wilhelm Schinke<br />

Figura 8. Dr. Karl na campanha do Sudoeste Africano Alemão<br />

Ernst Friedrich Otto Heinrich (Heinz) von Ortenberg<br />

(1879-1959) nasceu na Saxônia, Alemanha. Aos 19 anos, ingressou<br />

na Aca<strong>de</strong>mia Militar Keiser Guilherme e, em 1903,<br />

formou-se médico. Um ano após, foi promovido a Oberarzt<br />

(tenente-médico) do seu regimento e, em segui<strong>da</strong>, embarcou<br />

rumo ao Sudoeste Africano Alemão, ocupação germânica à<br />

época. Assim como seu colega Dr. Karl Schinke, escreveria um<br />

livro sobre suas trágicas experiências nos hospitais e na frente<br />

<strong>de</strong> batalha. Reformado como militar, veio a Santa Cruz do<br />

Sul e logo passou a trabalhar como médico-diretor no hospital<br />

<strong>da</strong>s Irmãs Franciscanas – posteriormente, Hospital Santa Cruz,<br />

sendo muito estimado pela população <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong>. Dr. Heinz<br />

von Ortenberg revalidou seu diploma <strong>de</strong> médico estrangeiro<br />

na Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Brasileira <strong>de</strong> São Paulo.<br />

Retornou à Alemanha em janeiro <strong>de</strong> 1915 para ser reincorporado<br />

ao Exército Imperial Alemão, tendo servido no front <strong>de</strong><br />

Verdun. Recebeu várias con<strong>de</strong>corações por mérito militar e, termina<strong>da</strong><br />

a Primeira Guerra Mundial com a <strong>de</strong>rrota <strong>da</strong> Alemanha e do<br />

Império Austro-Húngaro, retornou a Santa Cruz do Sul.<br />

Em 1939, preten<strong>de</strong>u incorporar-se à Wehrmacht, as forças<br />

arma<strong>da</strong>s <strong>da</strong> Alemanha durante o Terceiro Reich. Por mos-<br />

MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje 117


MÉDICOS ALEMÃES, HÚNGAROS E AUSTRÍACOS NO RIO GRANDE DO SUL<br />

trar aversão ao programa do Partido Nazista, embora alemão<br />

patriota, foi recusado no exército e aprisionado pela Gestapo,<br />

a polícia secreta do Estado Nazista. Só foi liberado graças aos<br />

esforços <strong>de</strong> sua esposa, Hanna, e amigos, em vias <strong>de</strong> ser enviado<br />

às prisões <strong>de</strong> Berlim ou ao campo <strong>de</strong> concentração.<br />

Em 1941 tornou-se médico pessoal do Kaiser Guilherme<br />

II até os últimos instantes <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> do imperador. Em 1947 retornou<br />

à sua clínica em Santa Cruz. Em 10 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong><br />

1959, morreu aos 80 anos <strong>de</strong> i<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Figura 11. Folha <strong>de</strong> rosto do “Diário <strong>de</strong> um médico”<br />

Figura 10. Dr. Heinrich von Ortenberg<br />

Todos os elementos já enunciados e os seguintes são relevantes<br />

na história do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul e especialmente <strong>de</strong><br />

sua <strong>Medicina</strong>.<br />

O fluxo migratório <strong>de</strong> colonizadores alemães que aportaram<br />

no Rio Gran<strong>de</strong> do Sul se prolongou por déca<strong>da</strong>s neste<br />

primeiro período. Até os primeiros anos <strong>de</strong> 1900, chegaram<br />

ao Brasil perto <strong>de</strong> 100 mil imigrantes alemães. Tal fluxo só foi<br />

interrompido com a eclosão <strong>da</strong> Primeira Guerra Mundial.<br />

Entre outras consequências funestas, essa guerra trouxe<br />

pobreza, fome, <strong>de</strong>semprego e convulsões sociais aos países<br />

per<strong>de</strong>dores: Alemanha e o Império Austro-Húngaro. O Império<br />

cindiu-se, per<strong>de</strong>u ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s, portos marítimos, seu vasto território,<br />

entrou em colapso; a Alemanha, pelo tratado <strong>de</strong> Versalhes,<br />

foi obriga<strong>da</strong> a pagar pesa<strong>da</strong> in<strong>de</strong>nização aos países<br />

vencedores, advindo <strong>de</strong>semprego e inflação monetária, que<br />

empobreceram sua população.<br />

118<br />

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MÉDICOS ALEMÃES, HÚNGAROS E AUSTRÍACOS NO RIO GRANDE DO SUL<br />

Novas levas <strong>de</strong> emigrantes alemães, húngaros e austríacos<br />

procuraram vi<strong>da</strong> mais confortável nos países <strong>da</strong> América,<br />

entre eles, o Brasil. Igualmente as vilas alemãs do sul serviram<br />

<strong>de</strong> atração para os novos imigrantes <strong>de</strong> língua germânica. Também<br />

os médicos e outros profissionais acompanharam esta<br />

preferência, sendo recebidos <strong>de</strong> braços abertos pelos colonos<br />

já anteriormente instalados e só parcialmente assimilados, pois<br />

o idioma alemão, embora dialético – o dialeto Riogran<strong>de</strong>nser<br />

Hunsrückish –, permanecia prepon<strong>de</strong>rante.<br />

Havia falta premente <strong>de</strong> médicos. A primeira facul<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> <strong>Medicina</strong> do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul só foi fun<strong>da</strong><strong>da</strong> em 1898 em<br />

Porto Alegre e as primeiras turmas médicas forma<strong>da</strong>s, longe<br />

<strong>de</strong> serem numerosas como na atuali<strong>da</strong><strong>de</strong>, distribuíram-se <strong>de</strong><br />

preferência pela capital e outros gran<strong>de</strong>s núcleos populacionais<br />

(Quadro l).<br />

Fatores importantes que facilitaram a vin<strong>da</strong> dos profissionais<br />

ao Rio Gran<strong>de</strong> do Sul foram os termos <strong>de</strong> sua Constituição<br />

Estadual, promulga<strong>da</strong> em 1891 no governo <strong>de</strong> Júlio <strong>de</strong> Castilhos.<br />

Estabelecia ser livre o exercício <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as profissões,<br />

<strong>de</strong>terminação que ficou conheci<strong>da</strong> como a Lei <strong>da</strong>s Liber<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

Profissionais (Quadro 2). Bastava o registro <strong>de</strong> seus diplomas<br />

na Diretoria <strong>de</strong> Higiene e Saú<strong>de</strong> Pública do Estado para que<br />

passassem a exercer a medicina (Figura 12).<br />

Quadro 2. A Constituição Estadual <strong>de</strong> 1891, chama<strong>da</strong> <strong>de</strong><br />

Constituição <strong>de</strong> Júlio <strong>de</strong> Castilhos<br />

Figura 12. Registro do diploma médico na Diretoria <strong>de</strong> Higiene e<br />

Saú<strong>de</strong> Pública do RS<br />

Quadro 1. Fatores que favoreceram a imigração <strong>de</strong> profissionais<br />

liberais alemães e italianos no RS<br />

De 1920 a 1930, no segundo período <strong>da</strong> imigração alemã,<br />

aqui chegaram outros 100 mil imigrantes e, com eles,<br />

<strong>de</strong>zenas <strong>de</strong> médicos alemães, húngaros e austríacos – os magiares<br />

falavam fluentemente o alemão que era ensinado como<br />

segun<strong>da</strong> língua em suas escolas. Em solo gaúcho, instalaram<br />

seus consultórios, praticaram a clínica, cirurgia, pediatria e<br />

ginecologia-obstetrícia, fun<strong>da</strong>ram hospitais, escolas <strong>de</strong> enfer-<br />

MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje 119


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magem, associações médicas (quadros 3 e 4), ain<strong>da</strong> tinham<br />

tempo para intensa vi<strong>da</strong> social, <strong>de</strong>sempenho <strong>de</strong> hobbies como<br />

artesanato, tecelagem, tapeçaria (Figura 15), criação <strong>de</strong> orquí<strong>de</strong>as<br />

(Figura 16), costumes e hábitos gaúchos (Figura 17),<br />

plantações – Dr. Erich F. Annerl plantava tungue do qual se<br />

extrai óleo –, natação, canoagem (Figura 18), manuseio <strong>de</strong><br />

instrumentos musicais – os Drs. Rodolfo Meyer e José Salanki<br />

tocavam violino com maestria (Figura 19) – e também compareciam<br />

a concertos musicais, reuniões culturais e à prática <strong>de</strong><br />

sua fé religiosa.<br />

Figura 13. Gabriel Schlastter com suas alunas <strong>da</strong> Escola<br />

<strong>de</strong> Parteiras<br />

Acervo do <strong>MUHM</strong><br />

Quadro 3. Participação dos médicos imigrantes alemães e<br />

húngaros na fun<strong>da</strong>ção <strong>de</strong> hospitais e instituições<br />

Figura 14. O “Phantom” <strong>de</strong> Gabriel Schlatter.<br />

Acervo do <strong>MUHM</strong><br />

Quadro 4. Participação dos médicos imigrantes na fun<strong>da</strong>ção <strong>da</strong><br />

Orquestra Sinfônica <strong>de</strong> Porto Alegre (OSPA)<br />

120<br />

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Figura 16. Aquarela do Dr. Carlos Nelz retratando uma<br />

subespécie <strong>de</strong> orquí<strong>de</strong>a <strong>de</strong> sua própria criação<br />

Figura 15a. Tapeçaria teci<strong>da</strong> pelo Dr. Erich Franz Annerln<br />

Figura 17. O casal Herlinger cavalgando no interior do RS<br />

Figura 15b. Cortinas, toalhas, mantas e móveis rústicos feitos<br />

pelo casal Dr. Américo e Helena Herlinger<br />

Figura 18. Dr. Estevão Batori com sua esposa, Noeli, remando<br />

no Rio dos Sinos, em São Leopoldo<br />

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Diploma <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong> <strong>de</strong> Segismundo Pollak,<br />

<strong>da</strong> Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong> <strong>de</strong> Viena,<br />

assinado pelo Imperador<br />

Francisco José I <strong>da</strong> Austria-Hungria,<br />

06.04.1892<br />

Acervo: Dr. Segismundo Pollak<br />

Doador: Luiza Franco Godolphim


Obra: Bilz, <strong>da</strong>s neue<br />

naturheilverfahren<br />

Volume: 2 Ci<strong>da</strong><strong>de</strong>: Leipzig


Obra: Bilz, <strong>da</strong>s neue<br />

naturheilverfahren<br />

Volume: 2 Ci<strong>da</strong><strong>de</strong>: Leipzig


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mais tar<strong>de</strong>, com o uso dos primeiros automóveis importados,<br />

estes frequentemente ultrapassados pelas montarias quando<br />

seus pneus rompiam ou atolavam (figuras 20, 21, 22 e 23).<br />

Figura 20. Transporte em maca entre a sala <strong>de</strong> cirurgia e o Hotel<br />

Dahlem – clínica do Dr. Roberto Fleischhut<br />

Figura 19. Programa <strong>de</strong> concerto <strong>da</strong> OSPA em que foi solista o<br />

Dr. Rodolfo Meyer<br />

No <strong>de</strong>sempenho <strong>de</strong> sua profissão, socorriam seus pacientes<br />

através dos mais variados meios <strong>de</strong> transporte: a pé, levando<br />

sua maleta <strong>de</strong> instrumentos e medicamentos <strong>de</strong> urgência, no<br />

lombo <strong>de</strong> cavalos e mulas – o mais frequente –, <strong>de</strong> barco ou a<br />

nado – como ocorreu com o Dr. Estevão Batori, que atravessou<br />

o Rio dos Sinos até a margem oposta por rompimento <strong>da</strong> ponte<br />

–, por cor<strong>da</strong>s (rapel) para socorrer vítimas no fundo <strong>de</strong> um<br />

precipício – como o fez Américo Herlinger – e finalmente, bem<br />

Figura 21. Os “táxis” puxados a cavalo à espera <strong>de</strong> clientes em<br />

frente à clínica do Dr. Roberto<br />

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MÉDICOS ALEMÃES, HÚNGAROS E AUSTRÍACOS NO RIO GRANDE DO SUL<br />

Figura 22. O transporte mais comum, seguro e confiável<br />

do Dr. Roberto<br />

Figura 25. Dr. Erich Albersheim (à direita, junto aos berços)<br />

durante seu estágio na Clínica Pediátrica do Prof. Schlossmann,<br />

em Düsseldorf, na Alemanha<br />

Exerciam seus procedimentos cirúrgicos <strong>de</strong>ntro dos mais<br />

mo<strong>de</strong>rnos conceitos – para a época – <strong>da</strong> técnica, assepsia e<br />

anestesia operatórias, auxiliados por membros <strong>da</strong> enfermagem<br />

do hospital (figuras 26 e 27) e, não raro, pelas esposas,<br />

que eram auxiliares em suas clínicas.<br />

Figura 23. Mais tar<strong>de</strong>, o transporte mais mo<strong>de</strong>rno, porém menos<br />

confiável<br />

Figura 24. Cabeçalhos dos receituários dos nossos médicos<br />

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MÉDICOS ALEMÃES, HÚNGAROS E AUSTRÍACOS NO RIO GRANDE DO SUL<br />

Descrevemos a seguir as biografias resumi<strong>da</strong>s <strong>de</strong> alguns<br />

dos médicos imigrantes que chegaram ao Rio Gran<strong>de</strong> do Sul<br />

durante o segundo período <strong>da</strong> imigração alemã:<br />

AMÉRICO HERLINGER (1901-1970) cursou <strong>Medicina</strong><br />

em Viena e concluiu os estudos em Pádua em 1927. Chegou<br />

ao porto <strong>de</strong> Santos em 1927. Trabalhou em Viadutos, Sarandi<br />

e por último em Alfredo Chaves, hoje Veranópolis. Foi diretor<br />

do Hospital Nossa Senhora <strong>de</strong> Lour<strong>de</strong>s e, por muitos anos, o<br />

único médico clínico, cirurgião, obstetra, patologista e radiologista<br />

(figuras 15b e 17).<br />

ANDRÉ BÁTOR (1903-1978) formou-se em Bu<strong>da</strong>pest,<br />

logo veio a Buenos Aires e pouco <strong>de</strong>pois para o Brasil. Passou<br />

por Venâncio Aires e Cerro Branco e instalou-se <strong>de</strong>finitivamente<br />

em Santa Cruz do Sul. Clínico geral, especializou-se na<br />

Alemanha e Suíça em pneumo-tisiologia. Foi amigo do colega<br />

Heinrich von Ortenberg, que clinicava na mesma ci<strong>da</strong><strong>de</strong>, e se<br />

correspon<strong>de</strong>u com ele enquanto este esteve encarcerado pela<br />

Gestapo na Alemanha. Poliglota, dominava pelo menos oito<br />

idiomas: latim e grego, húngaro, alemão, francês, italiano, inglês<br />

e português. Era conhecido como o “Anjo Branco” por<br />

<strong>de</strong>slocar-se o dia inteiro vestido integralmente <strong>de</strong> branco.<br />

Figuras 26 e 27. Nossos médicos na sala <strong>de</strong> cirurgia<br />

(Dr. Bouscher e Dr. Fleischhut respectivamente)<br />

Figura 28. Anúncio <strong>da</strong> clínica <strong>de</strong> Fre<strong>de</strong>rico Eggler em alemão gótico<br />

publicado em jornal <strong>de</strong> língua alemã <strong>de</strong> Santa Clara do Sul<br />

CARLOS NELZ (1898-1979) graduou-se médico pela Facul<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> <strong>Medicina</strong> <strong>de</strong> Würzburg, Alemanha, e emigrou em<br />

1927 para o Brasil. Passou por Sertão Santana, Barra do Ribeiro,<br />

Linha Imperial e finalmente estabeleceu-se em Gramado,<br />

na época com apenas 3 mil habitantes. Fun<strong>da</strong>dor do Hospital<br />

Arcanjo São Miguel, foi seu primeiro diretor-médico. Possuía<br />

vários hobbies: escultura, pintura e aquarela e cultivava orquí<strong>de</strong>as,<br />

chegando a criar novas espécies. Columbófilo, fez vir <strong>de</strong><br />

Porto Alegre com <strong>de</strong>stino a Linha Imperial, por meio <strong>de</strong> um <strong>de</strong><br />

seus pombos-correios, uma embalagem <strong>de</strong> sulfa para uma <strong>de</strong><br />

suas pacientes, acontecimento noticiado por jornais <strong>da</strong> Alemanha.<br />

Como ambientalista, introduziu em Gramado e arredores<br />

nas encostas dos morros a plantação <strong>de</strong> hortênsias, a fim <strong>de</strong><br />

evitar a erosão. Tem seu nome e sua <strong>de</strong>dicação aos pacientes<br />

in<strong>de</strong>levelmente ligados à população e ao progresso <strong>de</strong> Gramado,<br />

hoje um dos principais centros turísticos do RS e do Brasil.<br />

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MÉDICOS ALEMÃES, HÚNGAROS E AUSTRÍACOS NO RIO GRANDE DO SUL<br />

ERICH FRANZ ANNERL (1896-1968) formou-se em<br />

Viena. Veio ao Brasil em 1922, em função <strong>de</strong> um “hospital<br />

alemão” em fase <strong>de</strong> construção, em Porto Alegre. Clinicou<br />

em Porto Alegre, Agudo, Cerro Azul, São Sebastião do Caí,<br />

Santo Antônio <strong>da</strong> Patrulha, Dois Irmãos, Lajeado, Estrela e<br />

finalmente Encantado, on<strong>de</strong> permaneceu por 30 anos, pois<br />

consi<strong>de</strong>rava a região promissora, embora tivesse à época<br />

apenas 100 casas. Foi fun<strong>da</strong>dor do Hospital Santa Teresinha,<br />

em Encantado, e sócio fun<strong>da</strong>dor <strong>da</strong> Socie<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong><br />

do Alto Taquari (SMAT). Era cirurgião <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> habili<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Dedicava-se também à criação <strong>de</strong> orquí<strong>de</strong>as e plantação <strong>de</strong><br />

tungue e soja e fundou a primeira indústria <strong>de</strong> <strong>de</strong>sidratação<br />

<strong>de</strong> ovos no Brasil.<br />

ESTEVÃO BATORI (1895-1966) e NICOLAU BATORY<br />

(1897-1981). O Dr. Estevão migrou para o Brasil por volta <strong>de</strong><br />

1924. Inicialmente, trabalhou em Venâncio Aires e logo em<br />

São Leopoldo. Mandou chamar seu irmão, Dr. Nicolau, e outro<br />

amigo, o Dr. André Bator, que se estabeleceram em Santa<br />

Cruz. Dr. Estevão exercia a especiali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> cirurgia plástica e<br />

ginecologia e o Dr. Nicolau, clínica geral em Porto Alegre. Exímio<br />

remador e na<strong>da</strong>dor, na época <strong>da</strong>s enchentes no Rio dos Sinos,<br />

o Dr. Estevão visitou a nado seus clientes que moravam na<br />

margem oposta do rio. Trabalhou praticamente durante to<strong>da</strong><br />

sua vi<strong>da</strong> profissional no Hospital Centenário, on<strong>de</strong> recebeu várias<br />

homenagens (Figura 18).<br />

FRANCISCO KERTÉSZ (1903-1940) interessou-se inicialmente<br />

por filosofia e religião. Além do húngaro e alemão,<br />

apren<strong>de</strong>u hebraico, latim e grego, línguas que falava e escrevia<br />

fluentemente. Concluiu o curso <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong> na Universi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> Bu<strong>da</strong>peste e veio ao Brasil em 1928, diretamente para<br />

Santana do Livramento. Dedicou-se à cirurgia e clínica geral,<br />

passou por Panambi, Roca Sales, Santa Tereza e por fim instalou-se<br />

em Fre<strong>de</strong>rico Westphalen. Operava frequentemente e<br />

com sucesso, entretanto, tendo sido inditoso numa <strong>de</strong>las, foi<br />

con<strong>de</strong>nado por imperícia médica, o que lhe trouxe profun<strong>da</strong><br />

<strong>de</strong>pressão, abandono <strong>da</strong> carreira e o atentado contra a própria<br />

vi<strong>da</strong>. Seu filho, Jorge, procura reverter a sentença na Justiça.<br />

FREDERICO EGGLER (1903-1940) nasceu em Boennigen,<br />

na Suíça. Foi colaborador na Clínica Médica <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> Berna <strong>de</strong> 1905 a 1919, on<strong>de</strong> adquiriu seus conhecimentos<br />

<strong>de</strong> clínica e cirurgia. Emigrou em segui<strong>da</strong> ao Brasil e<br />

instalou-se inicialmente em Rio Tal, on<strong>de</strong> já clinicava seu irmão<br />

Pedro, e on<strong>de</strong> fun<strong>da</strong>ram o hospital local. A partir <strong>de</strong> 1920,<br />

clinicou em Forquetinha e, mais tar<strong>de</strong>, mudou-se para Santa<br />

Clara do Sul, no Vale do Taquari. Foi fun<strong>da</strong>dor também do<br />

Hospital Carlos Schnorr, em Santa Clara do Sul, e, mais tar<strong>de</strong>,<br />

do Hospital <strong>de</strong> Forquetinha.<br />

GABRIEL SCHLATTER (1865-1947), favorecido pelos<br />

termos <strong>da</strong> Constituição Estadual do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul, <strong>de</strong><br />

1891, o médico prático chegou em Lajeado em 1898 e, mais<br />

tar<strong>de</strong>, instalou-se em Feliz. Notabilizou-se pelos seus conhecimentos<br />

clínicos e obstétricos e experiência cirúrgica adquiridos<br />

por autodi<strong>da</strong>tismo nos compêndios <strong>de</strong> medicina no sótão e<br />

nos porões do Hospital St. Vinzenz, no vale do Rio Inn, em<br />

seu país <strong>de</strong> origem, a Áustria, seguido pelo estudo continuado<br />

em periódicos e livros <strong>de</strong> textos médicos. Fundou o Hospital<br />

Schlatter, em Feliz, em 1909 e a Escola <strong>de</strong> Parteiras em Estrela<br />

on<strong>de</strong> instruía as assistentes do parto com a aju<strong>da</strong> <strong>de</strong> um simulacro<br />

<strong>da</strong> pelve feminina – que chamou <strong>de</strong> Phantom – e <strong>de</strong> um<br />

esqueleto humano importado <strong>da</strong> França, peças pertencentes<br />

ao acervo do <strong>MUHM</strong> (figuras 13 e 14).<br />

HELENA ROSENSTOCK SEIFER (1903-1979) estudou<br />

nas Facul<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong> <strong>de</strong> Berlim, Goettigen e Leipzig.<br />

Veio para o Brasil em 1930 e sempre clinicou em Porto Alegre.<br />

Sua especiali<strong>da</strong><strong>de</strong> era o atendimento <strong>de</strong> doenças mentais e <strong>de</strong><br />

idosos. Criou fama à época por aplicar medicamentos <strong>de</strong> ação<br />

rejuvenescedora como tratamento proposto pela colega romena<br />

Dra. Ana Aslan, nas déca<strong>da</strong>s <strong>de</strong> 1950 a 1970.<br />

HUGO ROTTMANN (1895-1973) nasceu em Satoralja-<br />

-Ujhely, Hungria. Formou-se médico na Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> Karlos Ferdinando,<br />

<strong>de</strong> Praga e especializou-se em otorrinolaringologia<br />

em clínicas <strong>de</strong> Viena e <strong>da</strong> Romênia. Chegou a Porto Alegre<br />

em 1927 e voltou à Europa para especializar-se em cirurgia<br />

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plástica. Foi um dos primeiros cirurgiões a executar a plástica<br />

do nariz, a rinoplastia, no RS. Foi o cirurgião <strong>da</strong>s amí<strong>da</strong>las do<br />

presente autor.<br />

JACOB KOVÁCS (1899-1981) estudou <strong>Medicina</strong> em Debrecen,<br />

na Hungria e emigrou para o Brasil em 1928, vindo a estabelecer-se<br />

em Vale Real, próximo a Feliz. Mudou-se para Linha<br />

Olin<strong>da</strong> e logo para Dois Irmãos, on<strong>de</strong> fundou o hospital local.<br />

Exerceu a clínica e cirurgia, ginecologia e obstetrícia, pediatria e<br />

radiologia. Finalmente, mudou-se para Cachoeira do Sul, on<strong>de</strong><br />

permaneceu até seu falecimento. Em vários períodos <strong>de</strong> férias, na<br />

sua infância, este autor e sua família passaram na residência dos<br />

Kovács em Dois Irmãos, em companhia do filho Pedro, mais tar<strong>de</strong><br />

também médico, quando passou a trabalhar junto com o pai.<br />

JOSÉ ALOISIO BRUGGER (1897-1978) formou-se em<br />

Viena em 1922. Exerceu sua ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> em diversas ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s do<br />

interior do RS: Farroupilha, Sananduva, Veranópolis, Getúlio<br />

Vargas e finalmente estabeleceu-se em Caxias do Sul. Atuou<br />

em cirurgia, radiologia e radioterapia. Foi sócio fun<strong>da</strong>dor <strong>da</strong><br />

Associação <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong> <strong>de</strong> Caxias do Sul e seu presi<strong>de</strong>nte por<br />

<strong>de</strong>z anos. Em 1977, foi-lhe conferido o título <strong>de</strong> Professor Honoris<br />

Causa pela Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Caxias do Sul em reconhecimento<br />

aos seus valiosos trabalhos científicos.<br />

JOSÉ SALANKI (1904-1978) formou-se médico na Real<br />

Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Húngara Petro Pazmagny e especializou-se em<br />

cirurgia geral e obstetrícia. Estabeleceu-se em Quaraí, on<strong>de</strong><br />

ocupou a função <strong>de</strong> diretor-médico do Hospital <strong>de</strong> Cari<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Mais tar<strong>de</strong>, exerceu a profissão em Porto Alegre, on<strong>de</strong> ficou<br />

conhecido como competente médico urologista, trabalhando<br />

com <strong>de</strong>staque na Enfermaria <strong>de</strong> Urologia <strong>da</strong> Santa Casa <strong>de</strong><br />

Porto Alegre. Foi um dos sócios fun<strong>da</strong>dores <strong>da</strong> OSPA, em novembro<br />

<strong>de</strong> 1950. Manuseava o arco do violino com a mesma<br />

<strong>de</strong>streza com que usava o bisturi, tendo participado <strong>de</strong> vários<br />

grupos <strong>de</strong> músicos amadores.<br />

JÚLIO HEGEDÜS (1903-1955) fez <strong>Medicina</strong> na Universi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> Viena e a especiali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> cirurgia em Hamburgo.<br />

A convite do colega Dr. Jacob Kovács, emigrou em 1931 diretamente<br />

para Bom Princípio. Passou ain<strong>da</strong> por Conventos,<br />

Lajeado, on<strong>de</strong> foi diretor do Hospital São Roque. Foi também<br />

um dos sócios fun<strong>da</strong>dores <strong>da</strong> Socie<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong> do Alto<br />

Taquari (SMAT). Vinha seguido com a família a Porto Alegre<br />

para os concertos <strong>da</strong> OSPA, on<strong>de</strong> se encontrava com seus colegas<br />

húngaros para um bate-papo na sua língua <strong>de</strong> origem.<br />

LADISLAU RUTTKAY (1901-1991) colou grau pela Real<br />

Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Húngara Elisabetana em 1924 e especializou-se<br />

em cirurgia geral e ginecologia em Paris, tendo sido convi<strong>da</strong>do<br />

para ser Assistant Étranger. Foi assistente <strong>da</strong> ca<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> Ginecologia<br />

e Obsterícia em Bu<strong>da</strong>peste. Emigrou em 1930 e trabalhou<br />

em Santa Cruz do Sul, Cruzeiro do Sul, Taquara, Santo<br />

Ângelo e por final estabeleceu-se em Porto Alegre, no mesmo<br />

edifício em que o pai <strong>de</strong>ste autor, o Dr. Alexandre Preger, tinha<br />

seu consultório, o Vera Cruz, na Av. Borges <strong>de</strong> Me<strong>de</strong>iros,<br />

453. Trabalhou no recém-formado IAPTEC e no SAMDU, on<strong>de</strong><br />

ocupou por vários anos cargos diretivos, instalando postos <strong>de</strong><br />

atendimento no interior do RS e pelo norte e nor<strong>de</strong>ste do país.<br />

Foi fun<strong>da</strong>dor do Hospital São Manuel <strong>de</strong> Porto Alegre e seu<br />

diretor por <strong>de</strong>z anos. Entre as distinções a ele conferi<strong>da</strong>s, <strong>de</strong>stacam-se<br />

a homenagem presta<strong>da</strong> pela AMRIGS ao ensejo dos<br />

seus 50 anos <strong>de</strong> exercício profissional continuado, o Diploma<br />

<strong>de</strong> Ouro conferido em 1975 por sua Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Bu<strong>da</strong>peste<br />

e, igualmente por ela, o Diploma <strong>de</strong> Diamante por ocasião do<br />

sexagésimo ano <strong>de</strong> formatura.<br />

LUIZ KELEN (1985-1968) completou seus estudos <strong>de</strong><br />

<strong>Medicina</strong> na Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Bu<strong>da</strong>pest em 1919 e emigrou para<br />

o Brasil em 1926. Clinicou inicialmente em Porto Alegre à Rua<br />

Pinto Ban<strong>de</strong>ira, 574, esquina com a Av. In<strong>de</strong>pendência, vizinho<br />

do pai do autor, Dr. Preger, num prédio que ain<strong>da</strong> hoje existe.<br />

Mais tar<strong>de</strong>, mudou o consultório para Rua Vig. José Ignácio,<br />

Ed. Mercúrio, e a residência para a Rua Tira<strong>de</strong>ntes, 81. Foi<br />

um clínico renomado em Porto Alegre. Apreciador <strong>da</strong> música<br />

clássica, foi um dos sócios-fun<strong>da</strong>dores <strong>da</strong> OSPA e, durante<br />

muitos anos, seu vice-presi<strong>de</strong>nte e ain<strong>da</strong> promoveu a vin<strong>da</strong><br />

do maestro Pablo Komlós para reger a orquestra. Abrigou o<br />

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Phantom<br />

Acervo: Dr. Gabriel Schlatter<br />

Doador: Olga Ne<strong>de</strong>l Schlatter


Phantom<br />

Acervo <strong>MUHM</strong><br />

Acervo: Dr. Gabriel Schlatter<br />

Doador: Olga Ne<strong>de</strong>l Schlatter


Aparelho para Eletroconvulsoterapia<br />

Acervo: Dr. Hardy Grunewaldt<br />

Doador: Dr. Hardy Grunewaldt


MÉDICOS ALEMÃES, HÚNGAROS E AUSTRÍACOS NO RIO GRANDE DO SUL<br />

maestro em sua residência enquanto este não se instalasse<br />

<strong>de</strong>finitivamente na ci<strong>da</strong><strong>de</strong>. Era ain<strong>da</strong> aficionado do golfe e do<br />

carteado <strong>de</strong> bridge.<br />

MIGUEL KOZMA (1896-1974) teve seus estudos <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong><br />

completados na capital húngara. Exerceu as funções <strong>de</strong><br />

médico-militar do Exército Austro-Húngaro, no posto <strong>de</strong> 1º tenente<br />

médico, durante a Primeira Guerra Mundial. Emigrou<br />

inicialmente para a Argentina e chegou a Carazinho e Passo<br />

Fundo em 1921. “Maragato” politizado e parlamentarista convicto,<br />

engajou-se voluntariamente na Revolução Libertadora<br />

<strong>de</strong> 1922 e na Revolução <strong>de</strong> 1930. Em 1934, transferiu residência<br />

para o estado do Mato Grosso, ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Rio Pardo, retornando<br />

a Passo Fundo em 1938, já casado com Dona Pinta,<br />

que veio a tornar-se exímia doceira na ci<strong>da</strong><strong>de</strong>. Notabilizou-se<br />

na especiali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> radiologia e ain<strong>da</strong> hoje há em Passo Fundo<br />

uma clínica radiológica com seu nome.<br />

ROBERTO FLEISCHHUT (1891-1971) nasceu a 26 <strong>de</strong><br />

setembro <strong>de</strong> 1891, em Sonthofen, na região <strong>da</strong> Baviera, Alemanha.<br />

Ingressou na Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Munique e, <strong>de</strong>pois, em<br />

Würzburg, on<strong>de</strong> lecionavam mestres famosos, como Wilhelm<br />

Carl Roentgen (1845-1923), <strong>de</strong>scobridor dos raios-X, pai <strong>da</strong><br />

radiologia <strong>de</strong> diagnóstico, e Emil Kraepelin (1856-1926), pioneiro<br />

<strong>da</strong> mo<strong>de</strong>rna psiquiatria. Especializou-se em cirurgia geral<br />

no serviço do Prof. Ernst Ferdinand Sauerbruch (1875-1951),<br />

famoso cirurgião alemão e um dos pioneiros na criação e aplicação<br />

<strong>de</strong> próteses nos membros inferiores <strong>de</strong> mutilados. Montou<br />

seu consultório, um ambulatório, sala <strong>de</strong> cirurgia e sala <strong>de</strong><br />

recuperação em Lajeado, on<strong>de</strong> instalou aparelhagem e instrumental<br />

trazido <strong>da</strong> Alemanha. Quem necessitasse recuperação<br />

mais prolonga<strong>da</strong> e morasse fora <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong> ficava “baixado”<br />

no Hotel Dahlen, para on<strong>de</strong> era levado em maca ou no “táxi”<br />

puxado por uma parelha <strong>de</strong> cavalos ou mulas (figuras 20 e<br />

21). O Hospital São Roque foi inaugurado em 2 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong><br />

1933, sendo seus fun<strong>da</strong>dores, entre outros, o Dr. Roberto e o<br />

Dr. Alexandre Kovács. Foi o primeiro diretor-técnico do novo<br />

hospital, cargo que exerceu por 27 anos seguidos, e seu amigo<br />

Bruno Born foi o administrador por mais <strong>de</strong> 40 anos. Hoje,<br />

o hospital chama-se Hospital Bruno Born. Em agosto <strong>de</strong> 1949,<br />

recebeu homenagem pelos seus 25 anos <strong>de</strong> exercício médico<br />

em Lajeado, grava<strong>da</strong> em placa <strong>de</strong> bronze, fixa<strong>da</strong> no saguão<br />

<strong>de</strong> entra<strong>da</strong> do Hospital. O prefeito e a Câmara Municipal <strong>de</strong><br />

Lajeado conce<strong>de</strong>ram-lhe, em 21 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 1967, o primeiro<br />

título <strong>de</strong> Ci<strong>da</strong>dão Lajea<strong>de</strong>nse, ao reconhecer suas quatro déca<strong>da</strong>s<br />

<strong>de</strong> relevantes serviços.<br />

As consequências <strong>da</strong> Primeira Guerra prepararam o solo<br />

mundial para receber as sementes <strong>da</strong> hecatombe bélica que<br />

se seguiu. A partir <strong>de</strong> 1933, a emigração alemã foi força<strong>da</strong><br />

pelas circunstâncias opressoras arma<strong>da</strong>s pelo nacional socialismo<br />

alemão que assumiu o governo <strong>da</strong> Alemanha após janeiro<br />

<strong>da</strong>quele ano, quando Hitler foi nomeado chanceler alemão.<br />

Já em abril, o governo or<strong>de</strong>nou o boicote aos profissionais<br />

liberais, funcionários públicos, trabalhadores em geral e aos<br />

estabelecimentos ju<strong>da</strong>icos – Lei do Boicote. Em setembro <strong>de</strong><br />

1935, o Reichstag – o Parlamento alemão, dominado pelo<br />

partido nazista – aprovou as Leis <strong>de</strong> Nuremberg, <strong>de</strong> preservação<br />

<strong>da</strong> pureza <strong>da</strong> raça ariana. Essas leis consi<strong>de</strong>ravam alguém<br />

como ju<strong>de</strong>u não por sua fé religiosa, mas, sim, pelo percentual<br />

<strong>de</strong> sangue ju<strong>de</strong>u que percorresse suas veias e por isso chamado<br />

<strong>de</strong> “Mischling”, mestiço. Mesmo ci<strong>da</strong>dãos convertidos<br />

ou cujos pais ou avós ou antepassados mais longínquos já se<br />

haviam convertido ao cristianismo foram consi<strong>de</strong>rados <strong>de</strong> sangue<br />

impuro, não aptos ou não merecedores <strong>de</strong> viver entre<br />

os <strong>de</strong>mais alemães, portanto ci<strong>da</strong>dãos <strong>de</strong> segun<strong>da</strong> categoria,<br />

<strong>de</strong>sprovidos dos direitos civis.<br />

Tornou-se impossível a permanência <strong>de</strong>sses perseguidos<br />

no território alemão e austríaco – a Áustria fora anexa<strong>da</strong> ao<br />

território alemão em 1938 – e, mais tar<strong>de</strong>, em todos os territórios<br />

ocupados (Polônia, França, Hungria, Romênia, Bulgária,<br />

Escandinávia etc.). Os que não conseguiram evadir-se foram<br />

<strong>de</strong>portados aos malfa<strong>da</strong>dos campos <strong>de</strong> concentração. Ju<strong>de</strong>us,<br />

ciganos, <strong>de</strong>ficientes físicos ou mentais, opositores políticos,<br />

eslavos e também mais tar<strong>de</strong> os prisioneiros <strong>de</strong> guerra foram<br />

submetidos às mais <strong>de</strong>gra<strong>da</strong>ntes condições <strong>de</strong> vi<strong>da</strong>, serviram<br />

<strong>de</strong> cobaias a experiências pseudocientíficas escabrosamente<br />

planeja<strong>da</strong>s por nossos colegas médicos <strong>de</strong> mentes treslouca-<br />

MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje 133


MÉDICOS ALEMÃES, HÚNGAROS E AUSTRÍACOS NO RIO GRANDE DO SUL<br />

<strong>da</strong>s e finalmente enviados ao extermínio – uma página vergonhosa<br />

na história <strong>da</strong> humani<strong>da</strong><strong>de</strong> e também na história <strong>da</strong><br />

<strong>Medicina</strong>.<br />

Não importava que entre eles houvesse quem se consi<strong>de</strong>rasse<br />

ateu, comunista, protestante, católico, ou que a<br />

i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> ju<strong>da</strong>ica lhe fosse totalmente estranha e distante.<br />

Perplexos, tiveram que emigrar rapi<strong>da</strong>mente, enquanto possível.<br />

Muitos dos nossos alemães, austríacos e húngaros imigrantes,<br />

médicos ou não, se encontravam exatamente nessas<br />

condições. Quando aqui chegaram, permaneceram com suas<br />

opções anteriores <strong>de</strong> fé, cristã ou ju<strong>da</strong>ica, ou continuaram agnósticos<br />

ou se converteram <strong>de</strong>finitivamente à crença religiosa<br />

prepon<strong>de</strong>rante no Brasil, o cristianismo.<br />

Neste terceiro período <strong>de</strong> imigração alemã, chegaram ao<br />

Brasil perto <strong>de</strong> 25 mil imigrantes, entre eles os médicos alvos<br />

do nosso trabalho biográfico. Houve fortes restrições oficiais à<br />

entra<strong>da</strong> <strong>de</strong> populações semíticas consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong>s “in<strong>de</strong>sejáveis”<br />

pelo governo brasileiro. Vale aqui lembrar a ação humanitária<br />

<strong>de</strong> diplomatas brasileiros que, mesmo colocando em risco sua<br />

segurança e seus cargos, emitiram vistos <strong>de</strong> entra<strong>da</strong> a milhares<br />

<strong>de</strong> perseguidos: Luiz Martins <strong>de</strong> Souza Dantas na França e Aracy<br />

<strong>de</strong> Carvalho Guimarães Rosa em Hamburgo, na Alemanha.<br />

Vieram ao Rio Gran<strong>de</strong> do Sul nesta época imediatamente<br />

anterior à Segun<strong>da</strong> Guerra Mundial ou logo após sua <strong>de</strong>flagração<br />

entre outros:<br />

ALEXANDRE PREGER (1901-1992). O velho e bom pai<br />

<strong>de</strong>ste autor – Herr Doktor Preger. Nasceu no início do século<br />

20, mais precisamente em 20 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1901, na capital<br />

do Império Germânico do Kaiser Guilherme II, Berlim, centro<br />

cultural <strong>da</strong> Europa, com 1,5 milhão <strong>de</strong> habitantes naquela<br />

época. Estudou profun<strong>da</strong>mente o grego e o latim. Em 1923,<br />

ingressou na Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong> <strong>de</strong> Berlim. Defen<strong>de</strong>u tese<br />

<strong>de</strong> doutoramento que versou sobre o sistema ABO dos grupos<br />

sanguíneos do cientista austríaco Karl Landsteiner (Prêmio<br />

Nobel em 1921). Durante seu curso <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong>, foi aluno do<br />

professor <strong>de</strong> ginecologia e obstetrícia e bacteriologista Ernst<br />

Bumm; do cirurgião August Bier, que <strong>de</strong>senvolveu a anestesia<br />

raquidiana; <strong>de</strong> Wilhelm His, <strong>de</strong>scobridor do feixe <strong>de</strong> His,<br />

que conduz os estímulos elétricos no interior do músculo cardíaco;<br />

e <strong>de</strong> discípulos <strong>de</strong> Freud e Adler, pioneiros e baluartes<br />

<strong>da</strong> psiquiatria mo<strong>de</strong>rna. Assistiu a aulas práticas <strong>da</strong>s primeiras<br />

punções raquidianas efetua<strong>da</strong>s por His e Bier, um no outro,<br />

em sequência, e <strong>da</strong> primeira <strong>de</strong>monstração <strong>de</strong> cateterismo cardíaco<br />

coronariano, realiza<strong>da</strong> por Werner Forssmann (Prêmio<br />

Nobel em 1956) em si próprio. Formou-se em 1928 e logo<br />

começou a namorar minha mãe, Irma Klausner, morena <strong>de</strong><br />

olhos ver<strong>de</strong>s – uma rari<strong>da</strong><strong>de</strong> na Alemanha –, nos cafés <strong>da</strong> Kurfürsten<strong>da</strong>mm,<br />

galante aveni<strong>da</strong> <strong>de</strong> Berlim. Casaram-se em 13<br />

<strong>de</strong> março <strong>de</strong> 1931. Assim que foi excluído <strong>da</strong>s listas <strong>de</strong> médicos<br />

cre<strong>de</strong>nciados pelas Caixas <strong>de</strong> Assistência aos Doentes – as<br />

Krankenkassen, o equivalente ao nosso SUS – como resultado<br />

do boicote aos profissionais e estabelecimentos ju<strong>da</strong>icos em<br />

to<strong>da</strong> a Alemanha, ditado por lei <strong>de</strong> 1° <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 1933, emigrou<br />

com to<strong>da</strong> a família, <strong>de</strong>sembarcando no Rio <strong>de</strong> Janeiro já<br />

em fins <strong>da</strong>quele ano. Iniciou suas provas <strong>de</strong> revali<strong>da</strong>ção do diploma<br />

<strong>de</strong> médico na Bahia e, para seu sustento, empregou-se<br />

como “propagandista” <strong>de</strong> laboratório farmacêutico, visitando<br />

os consultórios <strong>de</strong> colegas que conheciam a língua alemã. De<br />

conversa em conversa, apren<strong>de</strong>u o português. Em 1936, recebeu<br />

licença do interventor fe<strong>de</strong>ral do Estado, Flores <strong>da</strong> Cunha,<br />

para exercer a <strong>Medicina</strong> no interior do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul, vindo<br />

a fixar-se na ci<strong>da</strong><strong>de</strong>zinha <strong>de</strong> Corvo, hoje Colinas. Praticava<br />

a medicina generalista, aten<strong>de</strong>ndo a clientela infantil, adulta e<br />

idosa, <strong>de</strong> ambos os sexos, fazendo clínica, pediatria, geriatria,<br />

partos e intervenções cirúrgicas. Nas cirurgias, era assistido<br />

por algum colega <strong>da</strong>s redon<strong>de</strong>zas, especialmente pelo Dr. Alexandre<br />

Kovács, médico também imigrante, <strong>de</strong> origem húngara<br />

e que trabalhava em Roca Sales. A anestesia era realiza<strong>da</strong> pela<br />

dona Irma, que, por vezes, também servia <strong>de</strong> instrumentadora<br />

– equipe completa, portanto, como nos dias atuais. Permaneceu<br />

em Corvo durante três anos, vindo a exercer seu trabalho<br />

na capital, Porto Alegre. Moramos – neste ínterim, eu já havia<br />

nascido – inicialmente na Rua Pinto Ban<strong>de</strong>ira, bem próximo à<br />

Santa Casa, e mais tar<strong>de</strong> nos mu<strong>da</strong>mos para o Centro, à Av.<br />

Borges <strong>de</strong> Me<strong>de</strong>iros, 453, no décimo an<strong>da</strong>r do Edifício Vera<br />

Cruz, recém-construído e on<strong>de</strong> meu pai também havia montado<br />

seu consultório, mais abaixo, no quinto an<strong>da</strong>r. Fumava<br />

134<br />

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MÉDICOS ALEMÃES, HÚNGAROS E AUSTRÍACOS NO RIO GRANDE DO SUL<br />

muito até o dia <strong>da</strong> toma<strong>da</strong> <strong>de</strong> Paris pelo exército alemão, em<br />

junho <strong>de</strong> 1940, quando chegou a fumar três maços <strong>de</strong> cigarros,<br />

sofrendo forte intoxicação. “Tudo está perdido!”, foi sua<br />

exclamação. Des<strong>de</strong> então, nunca mais botou sequer um único<br />

cigarro na boca. Se foi “promessa”, não se sabe. A ver<strong>da</strong><strong>de</strong> é<br />

que funcionou: tanto para o <strong>de</strong>sfecho <strong>da</strong> guerra quanto para<br />

a saú<strong>de</strong> dos seus pulmões.<br />

Possuía um pequeno aparelho <strong>de</strong> raio-X numa sala anexa<br />

ao consultório, com as pare<strong>de</strong>s <strong>de</strong>vi<strong>da</strong>mente protegi<strong>da</strong>s contra<br />

radiação. O aparelho era suficiente para radiografias ósseas<br />

e <strong>de</strong> tórax.<br />

Era apreciador <strong>da</strong> música clássica e não perdia apresentações<br />

musicais nem concertos. Tinha vasta discoteca e discutia<br />

suas últimas aquisições, adquiri<strong>da</strong>s na loja especializa<strong>da</strong><br />

“Studio Os Dois”, <strong>da</strong> Rua <strong>da</strong> Praia, com seu amicíssimo<br />

Herbert Caro – posteriormente, tradutor premiado <strong>da</strong> obra A<br />

montanha mágica, <strong>de</strong> Thomas Mann –, enquanto tomavam<br />

cafezinho, juntos com outros amigos, em todos os inícios <strong>de</strong><br />

tar<strong>de</strong>, na Rua Andra<strong>de</strong> Neves, esquina com a Travessa Acilino<br />

Carvalho.<br />

Revalidou seu diploma em 1948, adquirindo o direito <strong>de</strong><br />

exercer a <strong>Medicina</strong> em todo o território nacional. Fazia parte<br />

do grupo dos “médicos estrangeiros”, contemporâneos entre<br />

si, todos imigrantes com histórias <strong>de</strong> vi<strong>da</strong> semelhantes à<br />

sua e que clinicavam no Rio Gran<strong>de</strong> do Sul nas déca<strong>da</strong>s <strong>de</strong><br />

30 a 80 do século passado: os médicos <strong>de</strong> origem húngara<br />

Alexandre Kovács, médico-cirurgião e ginecologista; Ladislau<br />

Ruttkay, médico-cirurgião e ginecologista; Lothar Fertig, i<strong>de</strong>m;<br />

José Salanky, médico urologista; Jacob Kovács, médico-cirurgião;<br />

Luiz Kelen, médico clínico; Júlio Hegedüs, i<strong>de</strong>m; Hugo<br />

Rottmann, otorrino e cirurgião plástico; os irmãos cirurgiões<br />

Nicolau e Estevão Batori; e o clínico André Bator. Entre os médicos<br />

alemães, Otto Goldberg, médico generalista; Walter Silber,<br />

médico pediatra; Walter Bouscher, cirurgião e ginecologista;<br />

Rodolfo Behrendt, médico oftalmologista; Rodolfo Meyer,<br />

cirurgião e também músico violinista; Walter Jacob, médico-cirurgião<br />

e ginecologista; e Erich Albersheim, clínico e pediatra;<br />

a médica clínica, endocrinologista e geriatra Helena Seifer; e o<br />

médico austríaco generalista Siegfried Kronfeld; e muitos outros<br />

igualmente importantes para a medicina do Rio Gran<strong>de</strong><br />

do Sul e que já se encontravam aqui havia mais tempo: Karl<br />

Schinke, Carlos Nelz, Roberto Fleischhut, José Aloísio Brugger,<br />

Erich Annerl, todos clínicos e cirurgiões gerais. Tinha profundo<br />

respeito pelos médicos práticos Gabriel Schlatter e Fre<strong>de</strong>rico<br />

Eggler. Conhecia e nos relatava a história épica <strong>de</strong> Heinz Von<br />

Ortenberg e <strong>de</strong> Hermann Von Ihering no Rio Gran<strong>de</strong> do Sul.<br />

Quando minha mãe faleceu, em 8 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 1981,<br />

o pai nunca mais recuperou a alegria, embora atendido carinhosa<br />

e permanentemente pelos filhos, genro, nora e netos.<br />

Clinicou em seu consultório até a i<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> 85 anos. Faleceu<br />

em 27 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 1992, alguns meses após uma que<strong>da</strong><br />

<strong>da</strong> qual resultaram sequelas cerebrais graves.<br />

ALEXANDRE KOVÁCS (1889-1962) nasceu na Hungria e<br />

formou-se em Bu<strong>da</strong>peste. Emigrou em 1931. Exerceu a clínica<br />

e cirurgia geral em Lajeado, Arroio do Meio e Roca Sales, município<br />

<strong>de</strong> Estrela. Foi um dos fun<strong>da</strong>dores do Hospital São Roque<br />

<strong>de</strong> Lajeado junto com Dr. Fleischhut e Bruno Born. Trouxe <strong>da</strong><br />

Hungria todo seu material cirúrgico, inclusive material odontológico<br />

e broca movi<strong>da</strong> a pe<strong>da</strong>l. Operou frequentemente em dupla<br />

com seu xará, Dr. Alexandre Preger. Em Porto Alegre a partir <strong>de</strong><br />

1944, clinicou na Galeria Chaves, na antiga Rua <strong>da</strong> Praia, hoje<br />

Rua dos Andra<strong>da</strong>s, nos altos <strong>da</strong> Livraria do Globo.<br />

ERICH ALBERSHEIM (1897-1982), originário <strong>de</strong> Emmerich,<br />

Alemanha, formou-se médico na Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Köln<br />

(Colônia). Estagiou na Clínica Pediátrica do Prof. Schlossmann,<br />

em Düsseldorf, Alemanha (Figura 25). Emigrou em 1937 a<br />

convite do amigo <strong>de</strong> infância na ci<strong>da</strong><strong>de</strong> natal, Dr. Walter Jacob,<br />

que já clinicava no Rio Gran<strong>de</strong> do Sul. Atuou inicialmente em<br />

Santa Maria do Herval, auxiliado por sua esposa, D. Erna, enfermeira<br />

forma<strong>da</strong> na Alemanha e que mais tar<strong>de</strong> especializouse<br />

como operadora <strong>de</strong> radioterapia. Em Porto Alegre, exerceu<br />

a clínica geral e pediatria. Tinha excelente e bela caligrafia, em<br />

oposição a outros colegas, como o pai do autor, Dr. Alexandre<br />

Preger, <strong>de</strong> caligrafia in<strong>de</strong>cifrável aos olhos do homem comum.<br />

Deixou manuscrita, em alemão, sua autobiografia na qual relata<br />

sua <strong>de</strong>dicação ao bem-estar e à saú<strong>de</strong> <strong>de</strong> seus pacientes<br />

MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje 135


MÉDICOS ALEMÃES, HÚNGAROS E AUSTRÍACOS NO RIO GRANDE DO SUL<br />

e suas atribulações em continuar clinicando após a suspensão<br />

<strong>da</strong> licença provisória pelo governo do Estado Novo, reverti<strong>da</strong><br />

com a revali<strong>da</strong>ção do diploma em 1958 (Figura 29).<br />

LOTHAR FERTIG (1899-1991), cuja ci<strong>da</strong><strong>de</strong> natal foi Sarvas,<br />

na Hungria, formou-se médico pela Régia Universi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

Húngara e especializou-se em cirurgia geral. Sua primeira vin<strong>da</strong><br />

ao Brasil ocorreu em 1936 ao fixar-se em Sinimbu e mais<br />

tar<strong>de</strong> em Santa Cruz do Sul. Retornou logo à Hungria, mas o<br />

ambiente <strong>de</strong> guerra iminente na Europa e as cartas <strong>de</strong> clientes<br />

<strong>de</strong> Sinimbu a implorar seu retorno fizeram com que voltasse.<br />

Estava habituado a visitar seus pacientes montado numa mula<br />

<strong>de</strong> estimação em virtu<strong>de</strong> <strong>da</strong>s precárias condições <strong>da</strong>s estra<strong>da</strong>s<br />

na época. Seus principais passatempos eram tocar violino e<br />

ouvir música erudita. Fazia parte <strong>de</strong> um quarteto <strong>de</strong> cor<strong>da</strong>s<br />

amador com José Salanky, Paulo Gue<strong>de</strong>s e Francisco Montuori.<br />

Foi sempre muito amigo <strong>de</strong> André Bator, conterrâneo e<br />

também médico em Santa Cruz.<br />

OTTO GOLDBERG (1896-1973) nasceu em Elberfeld,<br />

Alemanha, e formou-se em Filosofia, Ciências Naturais e <strong>Medicina</strong>.<br />

Como combatente na Primeira Guerra Mundial, foi con<strong>de</strong>corado<br />

por bravura e heroísmo com a Cruz <strong>de</strong> Ferro, que<br />

lançou ao mar quando emigrou por sofrer forte perseguição<br />

racista. Em 1940, foi contratado pela ICA – Jewish Colonization<br />

Association – para trabalhar no hospital <strong>da</strong> colônia <strong>de</strong><br />

Quatro Irmãos, on<strong>de</strong> permaneceu por 12 anos. Veio a Porto<br />

Alegre por volta <strong>de</strong> 1950, sendo contratado pela empresa Zivi-Hércules<br />

para atuar com médico do trabalho. Muitas férias<br />

também passou este autor na ala resi<strong>de</strong>ncial do Hospital <strong>de</strong><br />

Quatro Irmãos, com seu outro amigo <strong>de</strong> infância, Pedro Goldberg,<br />

mais tar<strong>de</strong> também médico. Faleceu no Hospital Moinhos<br />

<strong>de</strong> Vento assistido por este autor e seu pai, como médicos,<br />

e com o carinho e <strong>de</strong>dicação <strong>da</strong> família.<br />

RODOLFO BEHRENDT (1904-1979) nasceu em Breslau,<br />

Alemanha, e formou-se pela Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Berlim. Chegou<br />

a Porto Alegre passando pelo Rio <strong>de</strong> Janeiro com a família e a<br />

Schwester Catarina, que serviu <strong>de</strong> enfermeira em seu consultório.<br />

Exerceu a oftalmologia clínica e cirúrgica, associado com<br />

o Dr. Atílio Capuano, otorrino. Trabalharam juntos no consultório<br />

na Rua <strong>da</strong> Praia, Edifício Krahe. Por ocasião <strong>da</strong> perseguição<br />

aos imigrantes alemães, foi <strong>de</strong>tido e teve seus livros e<br />

revistas científicas <strong>de</strong> idioma alemão, rádio <strong>de</strong> transmissão em<br />

on<strong>da</strong>s curtas e os aparelhos e instrumental <strong>de</strong> fabricação alemã<br />

confiscados, sendo só libertado após explicações <strong>de</strong> que<br />

não compactuava com as i<strong>de</strong>ias nazistas. Gostava <strong>de</strong> na<strong>da</strong>r e<br />

velejar pelo Guaíba, a partir do clube Veleiros do Sul, na zona<br />

sul <strong>de</strong> Porto Alegre. Quando revalidou seu diploma, foi colega<br />

<strong>de</strong> turma <strong>de</strong> seu filho Thomas na Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong> <strong>da</strong><br />

UFRGS. A família to<strong>da</strong> era “cachorreira” e criava uma <strong>de</strong>zena<br />

<strong>de</strong> cães <strong>da</strong> raça Dackel – os “salsichinhas” – e simultaneamente<br />

os enormes cães “Dinamarqueses”.<br />

RODOLFO MEYER (1909-1979) nasceu em Bruxelas,<br />

na Bélgica, porém viveu sua infância em Berlim e cursou a<br />

Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong> <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Friedrich-Wihelms, em<br />

1933. No ano seguinte emigrou e radicou-se em Porto Alegre.<br />

Como sabia tocar com maestria o violino, foi convi<strong>da</strong>do a integrar<br />

a orquestra do maestro Campanella, na Rádio Farroupilha.<br />

Como médico, trabalhou em Anta Gor<strong>da</strong> e Antônio Prado,<br />

on<strong>de</strong> foi <strong>de</strong>signado diretor do hospital. Passou por diversas<br />

amarguras com a proibição <strong>da</strong> atuação dos médicos alemães<br />

durante o Estado Novo, tendo sido <strong>de</strong>tido por vários meses.<br />

Na prisão, organizou a enfermaria, on<strong>de</strong> atendia os <strong>de</strong>tentos<br />

<strong>de</strong> casos clínicos como <strong>de</strong> pequenas cirurgias, <strong>de</strong>ixando sau<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

– no bom sentido – após sua liberação. Em 1950, ano<br />

<strong>de</strong> fun<strong>da</strong>ção <strong>da</strong> OSPA, foi convi<strong>da</strong>do pelo maestro Pablo Komlós<br />

para atuar como “spalla”, o primeiro violino <strong>da</strong> orquestra,<br />

nos concertos <strong>de</strong> fim <strong>de</strong> semana. Durante o restante <strong>da</strong> semana,<br />

ia a Vacaria para clinicar e operar como assistente do Dr.<br />

Thauphick Saadi, no Hospital N. S. <strong>da</strong>s Oliveiras. Retornou em<br />

<strong>de</strong>finitivo à Alemanha em 1958, on<strong>de</strong> trabalhou como médico-perito<br />

na Prefeitura <strong>de</strong> Berlim até seu falecimento, aos 70<br />

anos <strong>de</strong> i<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

SIEGFRIED KRONFELD (1911-1986), austríaco <strong>de</strong> Viena,<br />

estudou e colou grau em <strong>Medicina</strong> em sua ci<strong>da</strong><strong>de</strong> natal,<br />

136<br />

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1936. Um ano após, já era livre-docente, o mais jovem em sua<br />

Facul<strong>da</strong><strong>de</strong>. Emigrou em 1938 e instalou-se em Bagé por dois<br />

anos, quando se transferiu para a capital. Dedicou-se à clínica,<br />

cirurgia, radiologia e radioterapia, tendo atuado no Serviço<br />

<strong>de</strong> Radioterapia e Combate ao Câncer do Prof. Antônio Saint<br />

Pastous, na Santa Casa <strong>de</strong> Porto Alegre. Fez vários cursos <strong>de</strong><br />

especialização e pós-graduação nos Estados Unidos e na Áustria,<br />

on<strong>de</strong> adquiriu a formação psicanalítica, chegando a ser<br />

um dos fun<strong>da</strong>dores do Círculo Vienense <strong>de</strong> Psicologia Profun<strong>da</strong>,<br />

ligado ao Grupo Psicanalítico <strong>de</strong> Viena. Chefiou o Hospital<br />

Psiquiátrico Biswanger, em Kreuzlingen, Suíça. Por fim,<br />

retornou a Porto Alegre, on<strong>de</strong> se <strong>de</strong>dicou à psiquiatria em seu<br />

consultório à Rua Senhor dos Passos. Também era poliglota ao<br />

dominar pelo menos seis idiomas, e seus passatempos eram<br />

pintura, marcenaria, botânica, astronomia, astrologia e remo.<br />

WALTER JACOB (1896-1988) era originário <strong>de</strong> Emmerich,<br />

Alemanha. Após <strong>da</strong>r baixa do exército prussiano como<br />

enfermeiro, entrou para a Universi<strong>da</strong><strong>de</strong>. Cursou semestres em<br />

Berlim, Hamburgo, Bonn e Düsseldorf – variação comum na<br />

época entre os estu<strong>da</strong>ntes. Fez especialização em ginecologia/<br />

obstetrícia e em medicina tropical. Assim como vários <strong>de</strong> seus<br />

colegas, trouxe consigo o instrumental <strong>de</strong> cirurgia e um aparelho<br />

<strong>de</strong> raios-X. Em Giruá <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1935, além <strong>de</strong> construir o Hospital<br />

<strong>de</strong> Cari<strong>da</strong><strong>de</strong> local, ficou famoso por seu diagnóstico <strong>de</strong><br />

uma en<strong>de</strong>mia <strong>de</strong> febre amarela. Mudou-se para Porto Alegre<br />

em 1948 e operava no Hospital Moinhos <strong>de</strong> Vento.<br />

WALTER BOUSCHER (1902-1980) nasceu em Gevelsberg,<br />

na Alemanha, e formou-se na Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Köln (Colônia).<br />

Quando lhe cancelaram o trabalho na Krankenkasse, a<br />

Caixa <strong>de</strong> Assistência aos Doentes, emigrou para a Palestina,<br />

trabalhando alguns meses em Tel-Aviv, mas logo viajou para o<br />

Brasil, em 1936. Instalou-se em Estância Velha, tendo fun<strong>da</strong>do<br />

o Hospital Dom Pedro, que <strong>de</strong>u origem ao Hospital Municipal<br />

Getúlio Vargas (Figura 26). Há uma placa comemorativa em<br />

sua homenagem, afixa<strong>da</strong> à entra<strong>da</strong> do hospital. Em Porto Alegre,<br />

<strong>de</strong>dicou-se especialmente à ginecologia e obstetrícia no<br />

Edif. Cruzeiro do Sul, à Rua dos Andra<strong>da</strong>s.<br />

WALTER SILBER (1905-1965) nasceu em Essen-Ruhr, na<br />

Alemanha, e Hei<strong>de</strong>lberg foi a se<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua formação médica.<br />

Cedo, <strong>de</strong>dicou-se à pediatria, porém, antes <strong>de</strong> emigrar em<br />

1933, também teve formação em cirurgia geral. Fixou-se em<br />

Paraí, município <strong>de</strong> Nova Prata, on<strong>de</strong> ain<strong>da</strong> não havia hospital.<br />

Como era comum à época, as cirurgias eram realiza<strong>da</strong>s nas<br />

residências dos pacientes, até o Dr. Silber construir o primeiro<br />

hospital <strong>da</strong> locali<strong>da</strong><strong>de</strong>. Em 1944, mudou-se em <strong>de</strong>finitivo para<br />

Porto Alegre. Tocava piano e órgão nas igrejas do interior e era<br />

aficionado do xadrez. Tinha seu consultório no mesmo edifício<br />

e mesmo an<strong>da</strong>r que o Dr. Walter Bouscher, seu colega e amigo<br />

que se <strong>de</strong>dicava às mães enquanto ele, aos filhos.<br />

Entretanto, as condições <strong>de</strong> liber<strong>da</strong><strong>de</strong> profissional e do<br />

uso <strong>de</strong> idioma estrangeiro passaram a complicar-se gra<strong>da</strong>tivamente<br />

com a promulgação <strong>da</strong> Constituição do Estado Novo,<br />

<strong>de</strong> cunho nacionalista, em novembro <strong>de</strong> 1937, que em seu art.<br />

150 <strong>de</strong>terminava que só os brasileiros natos po<strong>de</strong>riam exercer<br />

as profissões liberais ou revali<strong>da</strong>r os diplomas profissionais expedidos<br />

no estrangeiro.<br />

A partir <strong>de</strong> 1938, foram promulgados os <strong>de</strong>cretos que<br />

reprimiam as ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s estrangeiras, como também proibiam<br />

o ensino em língua estrangeira, a circulação <strong>de</strong> jornais publicados<br />

no Brasil em língua estrangeira e a importação <strong>de</strong> livros<br />

didáticos em outros idiomas que não fosse o português (Quadro<br />

5).<br />

Também <strong>de</strong> 1938 é o Regulamento do Departamento<br />

Estadual <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>, que passou a restringir o exercício <strong>da</strong> medicina<br />

somente a quem se mostrasse habilitado por título conferido<br />

por escola oficial, fe<strong>de</strong>ral ou equipara<strong>da</strong>.<br />

Complicou-se a situação dos médicos estrangeiros no estado<br />

gaúcho. Alguns médicos foram ameaçados <strong>de</strong> suspensão<br />

<strong>de</strong> suas licenças, a maioria <strong>da</strong>s quais com a anotação <strong>de</strong> ressalva<br />

<strong>de</strong> “a título precário”, conforme consta registrado no verso<br />

<strong>de</strong> gran<strong>de</strong> número <strong>de</strong> diplomas (Figura 29).<br />

Esses profissionais passaram por um período <strong>de</strong> preocupações<br />

e <strong>de</strong> sobressaltos, pois também não lhes era permiti<strong>da</strong><br />

a revali<strong>da</strong>ção dos diplomas através <strong>de</strong> exames <strong>de</strong> suficiência.<br />

Tem-se conhecimento <strong>de</strong>, pelo menos, dois <strong>de</strong>les terem sido<br />

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MÉDICOS ALEMÃES, HÚNGAROS E AUSTRÍACOS NO RIO GRANDE DO SUL<br />

<strong>de</strong>nunciados e posteriormente encarcerados. Porém, as autori<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

em geral faziam vistas grossas em razão <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>da</strong>s populações do interior do Estado no que tange à assistência<br />

médica e do prestígio já alcançado por esses profissionais<br />

altamente competentes, após anos <strong>de</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> útil, <strong>de</strong>dica<strong>da</strong><br />

a seus pacientes.<br />

Muitos <strong>de</strong>les recorreram à Justiça e impetraram man<strong>da</strong>do<br />

<strong>de</strong> segurança, concedido em maio <strong>de</strong> 1938 pelo Tribunal<br />

<strong>de</strong> Justiça Estadual, com o objetivo <strong>de</strong> readquirir o direito a<br />

exercer sua profissão (Figura 30). Não cessaram aí as atribulações<br />

dos médicos alemães, austríacos e húngaros e <strong>de</strong> suas<br />

famílias. Com a <strong>de</strong>claração pelo Brasil <strong>de</strong> estado <strong>de</strong> guerra<br />

contra o Eixo, em agosto <strong>de</strong> 1942, em razão do afun<strong>da</strong>mento<br />

<strong>de</strong> vários navios mercantes pelos submarinos alemães, o uso<br />

<strong>da</strong> língua germânica foi <strong>de</strong>finitivamente proibido no território<br />

nacional. Não era mais permitido falar em alemão nas ruas e<br />

em locais públicos – o húngaro era confundido com a língua<br />

alemã –, possuir livros escritos neste idioma, ouvir estações <strong>de</strong><br />

rádio alemãs, <strong>de</strong>nominar pessoas ou instituições com vocábulos<br />

alemães. Inclusive o Hospital Alemão, em Porto Alegre,<br />

on<strong>de</strong> se falava corrente e habitualmente o alemão, em razão<br />

<strong>da</strong>s <strong>de</strong>terminações governamentais, mudou rapi<strong>da</strong>mente seu<br />

nome para Hospital Moinhos <strong>de</strong> Vento.<br />

Houve médicos alemães que tiveram invadi<strong>da</strong>s suas residências<br />

e confiscados livros, aparelhos, instrumentos e os rádios<br />

que possuíssem faixa <strong>de</strong> on<strong>da</strong>s curtas. Algumas pessoas<br />

que continuaram a falar o idioma alemão nas ruas também<br />

foram presas, mas posteriormente soltas por seus advogados<br />

com o argumento <strong>de</strong> que eram imigrantes que ain<strong>da</strong> não haviam<br />

aprendido satisfatoriamente a língua nacional e que eram<br />

inimigas do governo alemão e <strong>de</strong> sua i<strong>de</strong>ologia.<br />

Por outro lado, não há termo <strong>de</strong> comparação entre as<br />

vicissitu<strong>de</strong>s passa<strong>da</strong>s por tais imigrantes em nosso país e a perseguição<br />

sistemática, que culminou com a supressão <strong>da</strong> vi<strong>da</strong><br />

dos familiares remanescentes na Alemanha, Áustria e <strong>de</strong>mais<br />

países ocupados pelas forças nazistas e que não pu<strong>de</strong>ram<br />

emigrar. Também é necessário reconhecer que as imposições<br />

<strong>de</strong> cunho nacionalista interromperam o processo linguístico e<br />

cultural germânico que vinha se mantendo havia déca<strong>da</strong>s no<br />

interior do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul.<br />

Quadro 5. Decretos e fatos que complicaram o livre exercício<br />

profissional dos médicos <strong>de</strong> língua alemã<br />

Figura 29. Licença profissional a “título precário”<br />

138<br />

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Figura 30. Man<strong>da</strong>do <strong>de</strong> segurança impetrado pelos médicos<br />

CCom o término <strong>da</strong> guerra em maio <strong>de</strong> 1945, a que<strong>da</strong><br />

do Estado Novo e a <strong>de</strong>posição <strong>de</strong> Getúlio Vargas em outubro<br />

do mesmo ano, amainaram os dispositivos legais existentes<br />

contra os estrangeiros.<br />

O Decreto-Lei n° 7.955, <strong>de</strong> 13 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 1945,<br />

criou os Conselhos <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong> e, a partir <strong>de</strong> então, tornou-se<br />

obrigatório o registro dos médicos nestas enti<strong>da</strong><strong>de</strong>s.<br />

A partir <strong>de</strong> 1948, conforme autorização con<strong>de</strong>di<strong>da</strong> pelo<br />

Parecer 251/48, do Conselho Nacional <strong>de</strong> Educação, os médicos<br />

estrangeiros tiveram a oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> revali<strong>da</strong>r seus<br />

diplomas. Finalmente, assim, foi-lhes facultado o direito <strong>de</strong><br />

exercer legalmente a medicina em todo o território nacional.<br />

Foram suas vi<strong>da</strong>s proveitosas, suas vastas e incessantes<br />

realizações, o estudo permanente e a competência <strong>da</strong>í <strong>de</strong>corrente,<br />

a <strong>de</strong>dicação e o amor ao próximo e o <strong>de</strong>sprendimento<br />

dos valores materiais a razão mobilizadora do relato <strong>da</strong>s histórias<br />

<strong>de</strong> vi<strong>da</strong> <strong>de</strong>sses médicos que, <strong>de</strong> forma direta ou indireta,<br />

cruzaram com a trajetória <strong>de</strong>ste autor, que é filho <strong>de</strong> médico<br />

imigrante alemão.<br />

De qualquer maneira, não conheceram outro leitmotiv<br />

– motivo principal – que não fosse o bem – o bem-estar e o<br />

bem-querer – <strong>de</strong> seus semelhantes.<br />

Deixaram vasta <strong>de</strong>scendência <strong>de</strong> profissionais brasileiros<br />

natos que hoje distingue o comércio e a economia do país, enriquece<br />

a contribuição <strong>da</strong>s profissões liberais, aprimora a pesquisa<br />

científica, revoluciona os meios acadêmicos, amplia nossa<br />

cultura, lota os palcos e salões <strong>de</strong> apresentações artísticas e<br />

concertos musicais, confere quali<strong>da</strong><strong>de</strong> aos nossos exames vestibulares<br />

e ao provimento <strong>de</strong> cargos públicos, políticos e administrativos,<br />

enfim, que orgulha todos os segmentos que compõem<br />

a socie<strong>da</strong><strong>de</strong> gaúcha e a gran<strong>de</strong> comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> brasileira.<br />

Humanitários e sábios foram os diplomatas brasileiros<br />

que conce<strong>de</strong>ram vistos <strong>de</strong> entra<strong>da</strong> no território brasileiro aos<br />

discípulos <strong>de</strong> Hipócrates, Avicena e Vesalius, recém-formados,<br />

à procura <strong>de</strong> melhores oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong>s ou a fim <strong>de</strong> esgueirar-se<br />

por outras plagas, na tentativa <strong>de</strong> escapar <strong>de</strong> um fim trágico<br />

imposto pelas loucuras hedion<strong>da</strong>s <strong>da</strong>s guerras mundiais que<br />

assolaram seus países <strong>de</strong> origem.<br />

Equivocados, porém, estavam os funcionários <strong>de</strong> nossos<br />

consulados e embaixa<strong>da</strong>s ao anotarem em seus passaportes:<br />

“Bom para o Brasil”. Neste jogo insólito <strong>de</strong> exportação <strong>de</strong> cabeças<br />

e competências, ganhou o Brasil porque não foram simplesmente<br />

bons os que aqui chegaram, foram ótimos, e com distinção!<br />

REFERÊNCIAS<br />

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não publica<strong>da</strong>, Setembro/1980<br />

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MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje 139


MÉDICOS ALEMÃES, HÚNGAROS E AUSTRÍACOS NO RIO GRANDE DO SUL<br />

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140<br />

MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje


Esqueleto humano<br />

Acervo: Dr. Gabriel Schlatter<br />

Doador: Olga Ne<strong>de</strong>l Schlatter


Esqueleto humano<br />

Acervo: Dr. Gabriel Schlatter<br />

Doador: Olga Ne<strong>de</strong>l Schlatter<br />

Acervo <strong>MUHM</strong>


Acervo <strong>MUHM</strong><br />

Esqueleto humano<br />

Acervo: Dr. Gabriel Schlatter<br />

Doador: Olga Ne<strong>de</strong>l Schlatter


A CONTRIBUIÇÃO DOS<br />

MÉDICOS ITALIANOS PARA<br />

A MEDICINA DO<br />

RIO GRANDE DO SUL<br />

LEONOR CAROLINA BAPTISTA SCHWARTSMANN<br />

Fun<strong>da</strong>ção SOAD para Pesquisa do Câncer<br />

144<br />

MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje


No final do século XIX e nas déca<strong>da</strong>s iniciais do século passado,<br />

o Rio Gran<strong>de</strong> do Sul recebeu um gran<strong>de</strong> contingente imigratório<br />

proveniente <strong>da</strong> Itália. Deve-se consi<strong>de</strong>rar que os fluxos<br />

imigratórios incluem, em sua composição, trabalhadores altamente<br />

qualificados. Indivíduos possuidores <strong>de</strong> talentos especiais<br />

influenciam na circulação <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ias e conhecimentos e ocasionam<br />

repercussões diretas no país <strong>de</strong> acolhimento. Entre estes<br />

imigrantes havia um importante grupo <strong>de</strong> médicos. Mainardi<br />

(1996) computou 120 médicos formados na Itália. Não existem<br />

números oficiais, mas presume-se que o número <strong>de</strong> médicos<br />

seja bem maior, com sua entra<strong>da</strong> no sul do país ocorrendo principalmente<br />

na segun<strong>da</strong> déca<strong>da</strong> do século passado.<br />

A vin<strong>da</strong> <strong>de</strong> médicos, contudo, é bem mais precoce, <strong>da</strong>tando<br />

<strong>da</strong> época colonial do Brasil. Um dos primeiros doutores<br />

em medicina a atuar no Rio Gran<strong>de</strong> do Sul foi Júlio César Muzzi,<br />

que assumiu como físico-mor <strong>da</strong>s tropas <strong>da</strong> Capitania em<br />

1809. Muzzi foi encarregado <strong>da</strong> introdução <strong>da</strong> inoculação <strong>da</strong><br />

vacina antivariólica nos habitantes <strong>da</strong>quela capitania. Para o<br />

encargo <strong>de</strong> vacinador na Vila <strong>de</strong> Santo Antônio, foi proposto<br />

o cirurgião italiano Marcos Cristino Fioravanti (FRANCO, 2003,<br />

p. 160; PORTO ALEGRE, s.d.). Fioravanti participou do início <strong>da</strong><br />

Revolução Farroupilha (1835-1845), quando comandou uma<br />

força composta por ci<strong>da</strong>dãos armados oriundos <strong>de</strong> Nossa Senhora<br />

<strong>da</strong> Conceição do Arroio. Atuava como cirurgião militar<br />

até ser promovido pelo presi<strong>de</strong>nte <strong>da</strong> República Rio-Gran<strong>de</strong>nse,<br />

Bento Gonçalves <strong>da</strong> Silva, ao cargo <strong>de</strong> cirurgião-mor do<br />

MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje 145


A CONTRIBUIÇÃO DOS MÉDICOS ITALIANOS PARA A MEDICINA DO RIO GRANDE DO SUL<br />

Exército, o mais alto na hierarquia dos oficiais médicos (AR-<br />

QUIVO HISTÓRICO DO RIO GRANDE DO SUL, s.d.). Na déca<strong>da</strong><br />

<strong>de</strong> 1840, foram batiza<strong>da</strong>s duas crianças filhas do médico<br />

milanês Francisco Friziani. O assentamento foi feito no livro<br />

<strong>de</strong> batismos <strong>da</strong> Paróquia Nossa Senhora <strong>da</strong> Mãe <strong>de</strong> Deus <strong>de</strong><br />

Porto Alegre (CONSTANTINO, 1991).<br />

Uma <strong>da</strong>s características marcantes do grupo foi a intensa<br />

mobili<strong>da</strong><strong>de</strong> geográfica que incluiu países <strong>da</strong> África e <strong>da</strong> América<br />

do Sul, especialmente aqueles <strong>da</strong> região do Prata e <strong>de</strong> outros<br />

estados brasileiros. Foi marcante a passagem pelos hospitais italianos<br />

<strong>de</strong> Buenos Aires, Montevidéu e São Paulo. O Rio Gran<strong>de</strong><br />

do Sul se beneficiou <strong>da</strong> sua posição na geografia do continente<br />

para recebê-los, com o porto <strong>de</strong> Rio Gran<strong>de</strong> se constituindo<br />

na principal entra<strong>da</strong>. To<strong>da</strong>via, a fronteira facilmente permeável<br />

com Uruguai e Argentina também observou gran<strong>de</strong> trânsito. Os<br />

médicos se espalharam pelas diferentes regiões, procuraram novas<br />

fronteiras que estavam sendo <strong>de</strong>sbrava<strong>da</strong>s e aten<strong>de</strong>ram às<br />

necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>s prementes <strong>da</strong> presença <strong>de</strong> médicos. Muitos <strong>de</strong>les<br />

sofreram os constrangimentos <strong>da</strong> dificul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> a<strong>da</strong>ptação e os<br />

efeitos do corporativismo local. A dificul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> inserção po<strong>de</strong><br />

ser <strong>de</strong>preendi<strong>da</strong> pela frequente mobili<strong>da</strong><strong>de</strong> geográfica em busca<br />

<strong>de</strong> oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong>s que, por outro lado, também era apanágio<br />

dos brasileiros. A integração ocorreu progressivamente. Com o<br />

tempo, foram aceitos e reconhecidos pelos seus pares nacionais<br />

e pela clientela conquista<strong>da</strong>.<br />

Médicos escreveram relatos <strong>de</strong> viagem, relatórios oficiais<br />

e memórias que informaram sobre as suas experiências no Brasil.<br />

Cita-se o livro <strong>de</strong> memórias intitulado Argentina, Paraguay,<br />

Brasile: ricordi e impressioni e consigli (1906), escrito por Ricardo<br />

D’Elia sobre a vivência <strong>de</strong> 18 anos nestes países e que teve<br />

como objetivo propagan<strong>de</strong>ar as condições para o estabelecimento<br />

no Novo Mundo. Luigi Car<strong>de</strong>lli redigiu ao Ministério do<br />

Exterior italiano o relatório “Fra gli emigrati nel Brasile: tre ani<br />

di esperienza medica (1907-1910)”, informando sobre as condições<br />

<strong>de</strong> saú<strong>de</strong> <strong>da</strong> população e suas ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s em colônias<br />

<strong>de</strong> imigrantes situa<strong>da</strong>s em São Paulo e no Rio Gran<strong>de</strong> do Sul.<br />

Giovanni Palombini ficou conhecido pelas palestras que proferiu<br />

no Brasil e na Itália, que procuraram estimular a imigração<br />

para o país. Escreveu um relato <strong>de</strong> viagem sobre sua itinerância<br />

no sul do país, colecionou materiais que foram expostos<br />

em exposições internacionais na Bélgica e na Itália, representando<br />

o Brasil, e se correspon<strong>de</strong>u com o Touring Club Italiano.<br />

As informações circulavam rapi<strong>da</strong>mente. Os médicos partiram<br />

<strong>da</strong> Itália e/ou <strong>de</strong> países vizinhos <strong>de</strong> posse do conhecimento<br />

prévio sobre as possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> trabalho que po<strong>de</strong>riam encontrar<br />

no sul do país. Uma parcela significativa era composta por<br />

jovens, com poucos anos <strong>de</strong> formados ou recém-saídos <strong>da</strong>s facul<strong>da</strong><strong>de</strong>s.<br />

Muitos vieram acompanhados pela família nuclear. Há<br />

indícios <strong>de</strong> que investimentos foram direcionados à preparação<br />

<strong>de</strong> uma futura emigração e que esta fazia parte <strong>de</strong> um plano<br />

pessoal ou familiar. Além <strong>de</strong>stes aspectos, uma característica na<br />

composição familiar foi a formação farmacêutica dos irmãos mais<br />

jovens. Ricardo D’Elia, Michele <strong>de</strong> Patta, Giovanni Palombini e Biaggio<br />

Rocco tinham irmãos farmacêuticos. Aliás, era comum os<br />

médicos aten<strong>de</strong>rem em consultórios situados em farmácias.<br />

Mas as características <strong>da</strong> legislação vigente para o exercício<br />

<strong>da</strong> medicina, incluindo a não necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> revali<strong>da</strong>ção do<br />

diploma médico, foi <strong>de</strong>terminante para o estabelecimento dos<br />

médicos estrangeiros no estado (SCHWARTSMANN, 2008).<br />

A Constituição Estadual <strong>de</strong> 1891 permitia que os médicos se<br />

radicassem no estado sem a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> revali<strong>da</strong>ção do<br />

diploma perante uma facul<strong>da</strong><strong>de</strong> nacional. Esta requeria tempo<br />

e era custosa. Ain<strong>da</strong> que houvesse obrigatorie<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> registro<br />

na Diretoria <strong>de</strong> Higiene e Saú<strong>de</strong> para o exercício <strong>da</strong> profissão,<br />

este compromisso nem sempre era concretizado. Muitos fizeram<br />

o registro tardiamente, no início <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1930, o<br />

que revelou não haver um controle rígido.<br />

Na ocasião, em torno <strong>de</strong> 50 médicos se registraram,<br />

sendo que vários possuíam mais <strong>de</strong> 10 anos <strong>de</strong> exercício. Da<br />

mesma forma, a maioria não revalidou seu diploma perante<br />

a Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong> <strong>de</strong> Porto Alegre. Consi<strong>de</strong>ra-se que<br />

no período entre os anos <strong>de</strong> 1900 e 1939, 66 médicos estrangeiros<br />

revali<strong>da</strong>ram seus diplomas, sendo que 24 eram italianos.<br />

Esta conduta significava o reconhecimento formal <strong>da</strong><br />

competência e habilitação, a diferenciação dos outros médicos<br />

estrangeiros que não proce<strong>de</strong>ram à equivalência, além <strong>de</strong> ser<br />

um fator <strong>de</strong> acolhimento pela comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> científica local.<br />

Porto Alegre foi local <strong>de</strong> irradiação dos médicos italianos,<br />

por ser a capital do estado e o centro <strong>de</strong> difusão <strong>de</strong> informações.<br />

Porém, uma parcela logrou estabelecer-se e adquirir clientela,<br />

146<br />

MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje


A CONTRIBUIÇÃO DOS MÉDICOS ITALIANOS PARA A MEDICINA DO RIO GRANDE DO SUL<br />

representando uma percentagem significativa, mais <strong>de</strong> 10% do<br />

total, no período que compreen<strong>de</strong>u as duas déca<strong>da</strong>s inicias do<br />

século passado (SCHWARTSMANN, 2012). Na capital, os médicos<br />

atendiam no Hospital Beneficência Portuguesa. Cita-se Giovanni<br />

Campelli, um dos médicos com maior número <strong>de</strong> pacientes<br />

no início <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1920, além <strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>rado benfeitor<br />

e propulsor do aumento do número <strong>da</strong>s salas cirúrgicas. Arrigo<br />

Cini foi um dos introdutores <strong>da</strong> oftalmologia neste hospital, enquanto<br />

o prof. Victor <strong>de</strong> Brito, colega <strong>de</strong> especiali<strong>da</strong><strong>de</strong>, atuava na<br />

Santa Casa <strong>de</strong> Misericórdia. Poucos italianos tiveram ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

reconheci<strong>da</strong>s nesta última instituição, local <strong>de</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s práticas<br />

<strong>da</strong> Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong> <strong>de</strong> Porto Alegre. O corpo clínico era<br />

composto por professores e, neste período, não houve nenhum<br />

italiano diplomado na Itália entre os docentes. 1<br />

Os italianos auxiliaram na difusão do tratamento <strong>da</strong> tuberculose.<br />

A Santa Casa <strong>de</strong> Misericórdia <strong>de</strong> Porto Alegre foi<br />

palco <strong>da</strong> primeira <strong>de</strong>monstração pública no estado <strong>da</strong> utilização<br />

do pneumotórax artificial para o tratamento dos doentes.<br />

Em 1911, Serafim Grazinni <strong>de</strong>monstrou a técnica do Professor<br />

Forlanini em dois pacientes (CORREIO DO POVO, 1911, p. 4).<br />

Este método logo se difundiu no meio médico. Pietro Bertoni<br />

residia em Rio Gran<strong>de</strong> e o praticava. Ain<strong>da</strong> na Itália, ao ser<br />

diagnosticado com a doença, foi indica<strong>da</strong> uma viagem para<br />

os países tropicais na busca <strong>de</strong> uma possível cura. Radicou-se<br />

em Rio Gran<strong>de</strong>. Trabalhava na Santa Casa como tisiologista, o<br />

que era frequente acontecer com médicos tísicos. Nesta instituição,<br />

criou o pavilhão para tuberculosos.<br />

A peste bubônica foi endêmica no sul do país nas três<br />

primeiras déca<strong>da</strong>s do século passado. O início, em Porto Alegre,<br />

ocorreu em <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1901. Lourenço Cichero, Biaggio<br />

Rocco e Carmello Longo foram os primeiros médicos a<br />

diagnosticarem e notificarem a doença, <strong>de</strong>safiando o governo<br />

estadual que negava oficialmente a sua existência (SCHWART-<br />

SMANN, 2012). Em Santa Maria, Silva Júnior, em estudo sobre<br />

a peste bubônica, ouviu o “Dr. Astrogildo <strong>de</strong> Azevedo,<br />

1 Na segun<strong>da</strong> meta<strong>de</strong> do século passado, dois médicos formados na Itália farão<br />

parte do corpo docente <strong>de</strong> facul<strong>da</strong><strong>de</strong>s médicas do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul: Paolo Contu,<br />

professor <strong>de</strong> Anatomia <strong>da</strong> Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong> <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Rio<br />

Gran<strong>de</strong> do Sul (UFRGS), e Giovanni Baruffa, professor e um dos fun<strong>da</strong>dores <strong>da</strong><br />

Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong> <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Católica <strong>de</strong> Pelotas (UCPEL) e <strong>da</strong> Fun<strong>da</strong>ção<br />

Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Rio Gran<strong>de</strong> (FURG), tendo <strong>de</strong>senvolvido pesquisas sobre a doença<br />

<strong>de</strong> Chagas no Brasil e na África.<br />

que exerceu por muito tempo as funções [...] <strong>de</strong> Delegado<br />

<strong>de</strong> Higiene e diretor do hospital local, e o Dr. Nicola Turi, velho<br />

clínico na locali<strong>da</strong><strong>de</strong>”. Ambos confirmaram o registro <strong>da</strong>s<br />

incursões <strong>da</strong> peste, acentuando a violência do surto <strong>de</strong> 1912<br />

(SILVA JÚNIOR, 1942).<br />

A participação dos médicos italianos é vista nas pesquisas<br />

relaciona<strong>da</strong>s à prevenção e cura <strong>da</strong> febre amarela. Os estudos<br />

<strong>de</strong>senvolvidos pelos médicos bacteriologistas Felipe Cal<strong>da</strong>s<br />

e Angelo Bellinzaghi se realizaram na ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Rio Gran<strong>de</strong>.<br />

Bellinzaghi havia estu<strong>da</strong>do com Louis Pasteur em Paris. Mudouse<br />

para Montevidéu em 1892, quando foi professor no Instituto<br />

<strong>de</strong> Bacteriologia. Em 1895, associou-se a Felipe Cal<strong>da</strong>s.<br />

Juntos, <strong>de</strong>senvolveram pesquisas que levaram à produção do<br />

serum antiamarílico (OSWEGO DAILY TIMES, 1900, p. 8). Este<br />

foi testado no Rio <strong>de</strong> Janeiro, com posterior <strong>de</strong>monstração no<br />

México. Em Havana, contudo, não obteve o sucesso esperado<br />

perante a comissão médica Havana Yellow Fever Board, que<br />

recomendou que fossem interrompidos os experimentos com<br />

a vacina e com o serum curativo (HAVARD, 2012). A contribuição<br />

dos pesquisadores é reconheci<strong>da</strong> no <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong><br />

formas <strong>de</strong> diagnóstico e prevenção <strong>da</strong> doença.<br />

Por sua atuação na Primeira Guerra Mundial, habilitaramse<br />

a realizar intervenções <strong>de</strong> maior complexi<strong>da</strong><strong>de</strong> em <strong>de</strong>corrência<br />

do aperfeiçoamento <strong>de</strong> técnicas operatórias <strong>de</strong>senvolvi<strong>da</strong>s<br />

especialmente para li<strong>da</strong>r com a carnificina. A escala do<br />

conflito, as condições dos campos <strong>de</strong> batalha, o número e a<br />

severi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s lesões se apresentaram como novos <strong>de</strong>safios.<br />

Esta experiência criou oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong>s para apren<strong>de</strong>rem novas<br />

técnicas. Riego Sparvoli, Cesar Merlo, Con<strong>de</strong> Pietro Polcenigo,<br />

Bartolomeu Tacchini, Pietro Bertoni e Atilio Giuriollo, entre outros<br />

resi<strong>de</strong>ntes no Brasil, foram convocados ou se candi<strong>da</strong>taram<br />

voluntariamente para lutar na Europa.<br />

A presença dos médicos se dá em um período em que<br />

ocorre o reconhecimento <strong>da</strong> profissão no estado. Assim como<br />

os colegas nacionais, lutam contra o charlatanismo dos sem<br />

diplomas. Os cui<strong>da</strong>dos que eles ofereciam foram i<strong>de</strong>alizados,<br />

centrados na cari<strong>da</strong><strong>de</strong>, que, aliás, era a or<strong>de</strong>m do dia, sendo<br />

que frequentemente atuaram <strong>de</strong> modo filantrópico. Foram<br />

médicos <strong>de</strong> instituições públicas, <strong>da</strong> Diretoria <strong>de</strong> Higiene e <strong>da</strong><br />

Briga<strong>da</strong> Militar, e foram membros <strong>de</strong> associações <strong>de</strong> classe.<br />

MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje 147


A CONTRIBUIÇÃO DOS MÉDICOS ITALIANOS PARA A MEDICINA DO RIO GRANDE DO SUL<br />

No entanto, nem sempre a recepção foi fácil. Michele <strong>de</strong><br />

Patta participou no conflito bélico como capitão antes <strong>de</strong> imigrar<br />

para o Brasil em 1920 (PILLAR, 2004). Praticava cirurgias<br />

recentemente <strong>de</strong>senvolvi<strong>da</strong>s, que não eram aceitas pela população<br />

<strong>de</strong> Anta Gor<strong>da</strong>, antiga colônia pertencente ao município<br />

<strong>de</strong> Encantado. Era frequente intervir em casos <strong>de</strong> pacientes com<br />

complicações relaciona<strong>da</strong>s ao parto. Realizava curetagens, cesáreas<br />

e embriotomias. Incompatibilizou-se com o clero local <strong>de</strong><br />

origem italiana, que não admitia condutas médicas e pessoais<br />

consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong>s mo<strong>de</strong>rnas. Havia ain<strong>da</strong>, questões <strong>de</strong> competição<br />

profissional, a presença <strong>de</strong> charlatães e disputas políticas com o<br />

inten<strong>de</strong>nte local, situações que tiveram como pano <strong>de</strong> fundo a<br />

Revolução <strong>de</strong> 1923. O Hospital São Carlos, que ajudou a construir,<br />

foi cercado e incendiado pelos capangas do inten<strong>de</strong>nte,<br />

sendo que Michele, a mulher, o irmão e a emprega<strong>da</strong> estavam<br />

<strong>de</strong>ntro do mesmo. Conseguiram se salvar após gran<strong>de</strong> fuzilaria<br />

e o fogo ter sido <strong>de</strong>belado (DE PATTA, 1923).<br />

Viveu em uma série <strong>de</strong> vilas e ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s on<strong>de</strong> construiu<br />

e/ou ajudou a construir clínicas, farmácia, casas <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> e<br />

hospitais situados no Rio Gran<strong>de</strong> do Sul (Anta Gor<strong>da</strong>, Porto<br />

Alegre, Restinga Seca, Santa Maria, Cachoeira e Viadutos) e<br />

<strong>de</strong> Santa Catarina (Herval, Criciúma e Orleans). As mu<strong>da</strong>nças<br />

foram ocasiona<strong>da</strong>s pela incompatibilização com a presença <strong>de</strong><br />

médicos sem diploma oficial, disputas políticas, falta <strong>de</strong> doentes,<br />

dificul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> manutenção <strong>de</strong> equipamentos ou por ter<br />

sido preterido por médicos nacionais pelo fato <strong>de</strong> não ter se<br />

naturalizado. Tornou-se especialista em radiologia, título facilitado<br />

pelas características <strong>da</strong> habilitação dos médicos na Itália,<br />

que incluía, além <strong>da</strong> diplomação como médico, a autorização<br />

para o exercício <strong>da</strong> odontologia, radiologia e farmácia.<br />

No início <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1940, havia pelo menos 35 médicos<br />

diplomados na Itália <strong>de</strong>ntro do universo <strong>de</strong> aproxima<strong>da</strong>mente<br />

1.200 médicos que exerciam no Rio Gran<strong>de</strong> do Sul<br />

(Quadro 1). Entre os participantes do grupo, Bornancini chefiava<br />

serviço <strong>de</strong> oftalmologia do Hospital Nossa Senhora <strong>da</strong> Pompéia,<br />

em Caxias; em Bento Gonçalves, Walter Galassi assumiu<br />

a direção do Hospital Dr. Bartolomeu Tachini, enquanto Beniamino<br />

Giorgi, o hospital <strong>de</strong> mesmo nome; e Alessandro Pacini<br />

dirigia um estabelecimento em Farroupilha (FRANCO; RAMOS,<br />

1943). Percebeu-se que praticamente cessaram as entra<strong>da</strong>s <strong>de</strong><br />

novos representantes.<br />

Quadro 1. Características dos médicos italianos no início<br />

<strong>da</strong> déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1940<br />

Fonte: Elaborado pela autora<br />

Nome<br />

Ano <strong>de</strong><br />

nascimento<br />

Ano<br />

<strong>de</strong><br />

formatura<br />

Ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

formatura<br />

Município <strong>de</strong><br />

atuação<br />

1. Bertone, Piero 1900 Mo<strong>de</strong>na Rio Gran<strong>de</strong><br />

2. Biasotti, Daniel 1888 1923 Gênova Guaporé<br />

3. Bornancini, Vicenzo 1905 Pádua Caxias<br />

4. Canessa, José 1885 Gênova Getúlio Vargas<br />

5. Carbone, Romulo 1879 1903 Mo<strong>de</strong>na Caxias<br />

6. Carotenuto, José 1900 1923 Nápoles Santo Ângelo<br />

7. Cataldi, Gino 1924 Pisa Santa Maria<br />

8. Cosulich, Ricardo 1900 1924 Gênova Santa Rosa<br />

9. D’Agostini, Paschoal 1870 1900 Nápoles São Sepé<br />

10. Del Mese, Renato 1899 1924 Roma Caxias<br />

11. Fausto, Agostinho 1893 1919 Nápoles Porto Alegre<br />

12. Ferrari, Cesari 1880 1910 Pavia Uruguaiana<br />

13. Finochio, Marcos 1894 1920 Messina José Bonifácio<br />

14. Fracasso, Henrique 1905 Pádua Caxias<br />

15. Galassi, Walter 1904 1928 Mo<strong>de</strong>na Bento Gonçalves<br />

16. Gallichio, Luis 1905 1931 Nápoles Lagoa Vermelha<br />

17. Giorgi, Beniamino 1896 Gênova Bento Gonçalves<br />

18. Giuriollo, Atílio 1870 Pádua Caxias<br />

19. Mac Donald, Salvatore<br />

Caruso<br />

1871 Nápoles e<br />

Palermo<br />

José Bonifácio<br />

20. Maffei, Giovanni 1905 1938 Nápoles Guaporé<br />

21. Martino, Angelo 1905 Pinheiro Machado<br />

22. Me<strong>da</strong>glia, Orestes 1900 1924 Nápoles Passo Fundo<br />

23. Motti, Júlio 1882 1906 Parma e Bolonha<br />

Garibaldi<br />

24. Pacini, Alessandro 1902 1926 Bolonha Farroupilha<br />

25. Pandolfi, Lucio 1935 Roma Porto Alegre<br />

26. Rosa, Renzo 1897 1923 Pádua Porto Alegre<br />

27. Rosito, Paulo 1906 1932 Roma Getúlio Vargas<br />

28. Salaroli, Enzo 1920 Bolonha José Bonifácio<br />

29. Scopel, Sílvio 1901 Pádua Cachoeira<br />

30. Simone, Andrea 1924 Pavia Santo Ângelo<br />

31. Sparvoli, Riego 1882 1907 Roma Rio Gran<strong>de</strong><br />

32. Stanzione, Almerico 1879 1906 Nápoles Porto Alegre<br />

33. Turi, Nicola 1873 1899 Nápoles Santa Maria<br />

34. Turi, Pedro 1878 1906 Nápoles Cruz Alta<br />

35. Vassali, João 1877 1902 Nápoles Livramento<br />

148<br />

MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje


A CONTRIBUIÇÃO DOS MÉDICOS ITALIANOS PARA A MEDICINA DO RIO GRANDE DO SUL<br />

Sobressaía entre os médicos atuando no Rio Gran<strong>de</strong> do<br />

Sul a inclusão <strong>de</strong> imigrantes e/ou <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> primeira<br />

geração, formados no Brasil. Citam-se José Ricaldone, Vicente<br />

Caruso, Antonio Cantisani, Hil<strong>de</strong>brando Varnieri, Danilo Pedro<br />

Vitola, os irmãos Carlos e Mário Cini, Nicolino Rocco e Elyseu<br />

Paglioli. Ricaldone nasceu na Itália, on<strong>de</strong> iniciou seus estudos<br />

universitários em Roma. Imigrou para o Brasil em 1901. Formou-se<br />

na Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong> e Farmácia <strong>de</strong> Porto Alegre,<br />

em 1909, e logo se tornou professor <strong>da</strong> instituição. Chefiava<br />

uma <strong>da</strong>s enfermarias <strong>da</strong> Santa Casa <strong>de</strong> Misericórdia e integrou<br />

o corpo médico do Sanatório Belém recentemente construído.<br />

Era personagem frequente nos eventos cívicos <strong>de</strong> Porto Alegre.<br />

A região on<strong>de</strong> se situava sua residência em Porto Alegre<br />

ficou conheci<strong>da</strong> como Morro Ricaldone. Paglioli, filho <strong>de</strong> imigrantes,<br />

veio a ser um dos médicos mais ilustres do Rio Gran<strong>de</strong><br />

do Sul, renomado neurocirurgião, foi reitor <strong>da</strong> hoje chama<strong>da</strong><br />

Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul, inten<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> Porto<br />

Alegre e ministro <strong>da</strong> Saú<strong>de</strong>.<br />

Vários aspectos mostram que os médicos italianos atingiram<br />

o reconhecimento na socie<strong>da</strong><strong>de</strong> rio-gran<strong>de</strong>nse. Participaram<br />

em associações étnicas, foram <strong>de</strong>signados como<br />

agentes consulares nas ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s em que viveram, serviram <strong>de</strong><br />

intermediários entre seu grupo étnico e as autori<strong>da</strong><strong>de</strong>s governamentais.<br />

A integração po<strong>de</strong> ser vista na constituição<br />

dos casamentos com nacionais. Na vi<strong>da</strong> priva<strong>da</strong>, as características<br />

<strong>da</strong>s suas moradias, muitas vezes situa<strong>da</strong>s no corpo<br />

dos pequenos hospitais, criaram uma relação <strong>de</strong> respeito e<br />

intimi<strong>da</strong><strong>de</strong> com os familiares dos pacientes. Foi <strong>de</strong>staca<strong>da</strong> a<br />

presença <strong>da</strong>s mulheres, auxiliando os maridos nos consultórios<br />

e nas casas <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>.<br />

A contribuição foi reconheci<strong>da</strong> na literatura. Erico Verissimo<br />

criou o personagem Dr. Carlo Carbone para representar<br />

a influência marcante <strong>da</strong> medicina italiana no sul do Brasil.<br />

Na obra O Arquipélago, Carbone aten<strong>de</strong> aos feridos nos combates<br />

<strong>da</strong> Revolução <strong>de</strong> 1923. Como os médicos citados anteriormente,<br />

participou na mobilização <strong>da</strong> guerra pela Itália. Era<br />

exímio cirurgião e, no seu retorno ao Brasil, ajudou a criar uma<br />

casa <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> juntamente com o clínico Rodrigo Cambará, em<br />

Santa Fé.<br />

CONSTRUÇÃO DE HOSPITAIS, CASAS DE<br />

SAÚDE E ENFERMARIAS<br />

Fato marcante foi a participação dos médicos, com recursos<br />

próprios ou junto <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>, na construção <strong>de</strong> casas<br />

<strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, hospitais e enfermarias na capital e pelo interior do<br />

estado, que, <strong>de</strong> alguma maneira, preservaram os seus nomes.<br />

Uma série <strong>de</strong>sses estabelecimentos se originou principalmente<br />

nas déca<strong>da</strong>s <strong>de</strong> 1910 e 1920.<br />

Zanini (2006) consi<strong>de</strong>ra que os imigrantes italianos, tanto<br />

os do meio rural como os do urbano, procuraram se reunir em<br />

torno <strong>de</strong> capelas, igrejas ou <strong>de</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> mútuo socorro.<br />

Po<strong>de</strong>-se inferir que os imigrantes participaram <strong>da</strong> construção<br />

<strong>de</strong> casas <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> e <strong>de</strong> hospitais sob a organização <strong>de</strong> médicos<br />

e que este fator possuiu um valor <strong>de</strong>stacado <strong>de</strong>ntro do universo<br />

simbólico dos membros <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> étnica italiana.<br />

Contudo, muitos hospitais e casas <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> foram construídos<br />

fora <strong>de</strong> região <strong>de</strong> colonização italiana.<br />

No início <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1920, as vantagens aporta<strong>da</strong>s<br />

por estas instituições para as comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>s do interior do estado<br />

eram consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong>s óbvias, uma vez que o problema <strong>de</strong><br />

falta <strong>de</strong> assistência médica havia sido sempre consi<strong>de</strong>rado um<br />

pesa<strong>de</strong>lo econômico e moral. Ora, tal preocupação era evi<strong>de</strong>nte<br />

nas enormes distâncias que os moradores precisavam<br />

percorrer para receberem os cui<strong>da</strong>dos necessários. Estimavase<br />

que estes se localizavam entre 50 e 100 quilômetros <strong>de</strong><br />

distância <strong>da</strong>s moradias, sem consi<strong>de</strong>rar que as estra<strong>da</strong>s eram<br />

péssimas. Os hospitais foram construídos com verbas angaria<strong>da</strong>s<br />

entre os moradores <strong>da</strong>s locali<strong>da</strong><strong>de</strong>s, mas, na maioria <strong>da</strong>s<br />

vezes, às custas dos médicos. O editorial do livro comemorativo<br />

ao Cinquentenário <strong>da</strong> Imigração Italiana (1925) registrou a<br />

necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> criação <strong>de</strong> hospital:<br />

A ausência <strong>de</strong> instituições hospitalares impôs a<br />

necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> criar sanatórios nos centros mais<br />

populosos e mais remotos, alguns com os meios<br />

oferecidos pelos colonos e comerciantes, como no<br />

Hospital São Carlos <strong>de</strong> Anta Gor<strong>da</strong> e o Sanatório<br />

<strong>de</strong> Alfredo Chaves; outros – e muito mais – fun<strong>da</strong>dos<br />

pela iniciativa particular dos médicos italianos,<br />

MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje 149


Ca<strong>de</strong>rneta do estu<strong>da</strong>nte<br />

Pascoal Adrio Manoel Brasil Crocco,<br />

Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong><br />

<strong>de</strong> Porto Alegre, 1936<br />

Acervo: Dr. Pascoal Adrio Manoel Brasil Crocco<br />

Doador: Ana Lucia Crocco


A CONTRIBUIÇÃO DOS MÉDICOS ITALIANOS PARA A MEDICINA DO RIO GRANDE DO SUL<br />

como aqueles <strong>de</strong> Caxias, fun<strong>da</strong>do pelo Dr. Enrico<br />

Fracasso; <strong>de</strong> Jaguari, pelo senhor Lena e Dr. Merlo,<br />

assumido após pelos doutores Car<strong>de</strong>lli e Caruso;<br />

em Encantado e Estrela pelo Dr. Campelli; em<br />

Bento Gonçalves pelo Dr. Bartolomeu Tacchini; em<br />

São Luiz pelo Dr. Emilio Candia; em Passo Fundo<br />

pelos doutores Caneva e Recco; em Guaporé, pelo<br />

Dr. Donatelli, substituído pelos colegas Guaragna<br />

e Rosica; em Rio Gran<strong>de</strong>, pelo Dr. Annella, enfim<br />

aquele <strong>de</strong> Santo Angelo, fun<strong>da</strong>do pelo Dr. Enzo<br />

Salaroli, e ou aquele recentíssimo do Dr. Carbone<br />

<strong>de</strong> Caxias. Para citar os principais (CINQUANTENA-<br />

RIO..., 1925, p. 411).<br />

Enzo Salaroli foi responsável pela criação <strong>de</strong> duas casas<br />

<strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, localiza<strong>da</strong>s em Santo Ângelo <strong>da</strong>s Missões e São Luiz<br />

Gonzaga. Sua vin<strong>da</strong> para o Brasil e a criação <strong>de</strong>stes hospitais<br />

ocorreram poucos anos após sua formatura em Bolonha, em<br />

1920. Estes fatores são indícios <strong>de</strong> que a <strong>de</strong>cisão <strong>de</strong> emigrar<br />

estava associa<strong>da</strong> à posse do capital necessário para os futuros<br />

empreendimentos. A divulgação <strong>da</strong> inauguração do pequeno<br />

hospital <strong>de</strong> São Luiz Gonzaga (1926) informava as cre<strong>de</strong>nciais<br />

formais do corpo clínico formado por compatriotas. Seus auxiliares<br />

eram o professor Dr. Francisco Bononi, lente <strong>de</strong> medicina<br />

operatória e clínica cirúrgica <strong>da</strong> Regia Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Siena<br />

(Itália), cirurgião chefe e diretor do Hospital Civil <strong>de</strong> Scansano,<br />

e o Dr. Hugo Parentelli, químico pela Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Perugia<br />

(A FEDERAÇÃO, 1926, p. 6). Eram enfatiza<strong>da</strong>s as intervenções<br />

cirúrgicas passíveis <strong>de</strong> serem realiza<strong>da</strong>s, como o tratamento<br />

cirúrgico <strong>da</strong> tuberculose pleuropulmonar, bronquiectasias e<br />

empiema, os meios <strong>de</strong> diagnóstico laboratorial disponíveis e<br />

a realização <strong>de</strong> condutas recentemente divulga<strong>da</strong>s nos meios<br />

científicos para o tratamento <strong>de</strong> doenças venéreas e <strong>de</strong> rejuvenescimento,<br />

que incluíam o sistema <strong>de</strong> Steinach e o método<br />

<strong>de</strong> Voronoff.<br />

Gaetano Anella se formou em Nápoles, em 1904. Era especialista<br />

em enfermi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> senhoras e partos. Sua casa <strong>de</strong><br />

saú<strong>de</strong> se originou do antigo Hospital do Carmo <strong>de</strong> Rio Gran<strong>de</strong>,<br />

que foi a<strong>da</strong>ptado para se tornar um estabelecimento <strong>de</strong> acordo<br />

com a ciência mo<strong>de</strong>rna e a mais rigorosa higiene, possuidor<br />

<strong>de</strong> enfermarias amplamente areja<strong>da</strong>s (ECHO DO SUL, 1915, p.<br />

4). O conjunto <strong>de</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong>senvolvi<strong>da</strong>s i<strong>de</strong>ntificava a participação<br />

específica <strong>da</strong> sua mulher no acompanhamento <strong>da</strong>s<br />

gestantes. As instalações contavam com telefone nos quartos,<br />

havia leito especial para as parturientes e um gabinete elétrico<br />

on<strong>de</strong> eram feitas radioscopia, radiografia e radioterapia.<br />

Eram indica<strong>da</strong>s sessões <strong>de</strong> hidroterapia com diferentes tipos<br />

<strong>de</strong> banho e feitas aplicações dos remédios 606 e 914 para o<br />

tratamento <strong>da</strong> sífilis.<br />

José Canessa foi o primeiro médico do Novo Hospital<br />

São Roque, enti<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> caráter beneficente construí<strong>da</strong> no<br />

antigo município <strong>de</strong> Getúlio Vargas, situado no noroeste do<br />

estado, região que recebeu imigrantes provenientes principalmente<br />

<strong>da</strong> Itália, Alemanha, Polônia e Rússia. A <strong>de</strong>cisão <strong>da</strong><br />

construção do hospital ocorreu na reunião popular composta<br />

por indivíduos <strong>de</strong> distintas origens étnicas na se<strong>de</strong> <strong>da</strong> então<br />

socie<strong>da</strong><strong>de</strong> italiana Societá Mutuo Socorso Unione e Fratelanza<br />

di Erechim (MUNICÍPIO DE GETÚLIO VARGAS, 1952). O<br />

edifício era <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira, dividido em vários pavilhões e coberto<br />

<strong>de</strong> zinco. Foi inaugurado em 1927, com a administração<br />

ficando a cargo <strong>da</strong>s Irmãs Franciscanas Missioneiras <strong>de</strong> Maria<br />

Auxiliadora. Paulo Rosito assumiu a direção médico-cirúrgica<br />

em 1935.<br />

Em Porto Alegre, Pietro Polcenigo e Romulo Carbone<br />

inauguraram uma casa <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> no bairro Menino Deus, em<br />

1914. Esta possuía quartos diferenciados para doentes <strong>de</strong> primeira<br />

e segun<strong>da</strong> classe e não eram admitidos doentes com<br />

moléstias contagiosas. Os médicos atendiam casos ginecológicos<br />

e realizavam operações <strong>de</strong>nomina<strong>da</strong>s <strong>de</strong> alta cirurgia, salientavam<br />

a cirurgia abdominal e a cura <strong>de</strong> hérnias e hidroceles<br />

em poucos dias (A FEDERAÇÃO, 1914, p. 5).<br />

No curto espaço <strong>de</strong> tempo em que residiu em Porto Alegre,<br />

Carbone acumulou as funções <strong>de</strong> professor <strong>da</strong> ca<strong>de</strong>ira <strong>de</strong><br />

Clínica Cirúrgica e o cargo <strong>de</strong> diretor <strong>da</strong> Escola Médico-Cirúrgica<br />

<strong>de</strong> Porto Alegre. No retorno a Caxias, fundou um hospital<br />

(Figura 1). Também dirigiu o Hospital <strong>de</strong> Cari<strong>da</strong><strong>de</strong> Nossa Senhora<br />

<strong>da</strong> Pompéia, apoiado pela Associação Damas <strong>de</strong> Cari<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

e inaugurado em 1920. Foi médico <strong>da</strong> Cruz Vermelha e<br />

aten<strong>de</strong>u os feridos <strong>da</strong> Revolução <strong>de</strong> 1923.<br />

MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje 151


A CONTRIBUIÇÃO DOS MÉDICOS ITALIANOS PARA A MEDICINA DO RIO GRANDE DO SUL<br />

quais seriam administrados todos os conhecimentos<br />

e noções <strong>de</strong> higiene necessários ao <strong>de</strong>senvolvimento<br />

normal <strong>de</strong> sua progenitura, dirigimos ao<br />

governo do estado pedir um auxílio para a realização<br />

<strong>de</strong> tão útil empreendimento (BIBLIOTECA DA<br />

SANTA CASA DE RIO GRANDE, 1923, p. 4).<br />

Figura 1. Hospital Santo Antônio<br />

Fonte: Arquivo Histórico Municipal João Spa<strong>da</strong>ri A<strong>da</strong>mi<br />

Diferentemente do que ocorreu em São Paulo, Montevidéu<br />

e Buenos Aires, ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s que receberam um gran<strong>de</strong> fluxo<br />

<strong>de</strong> imigrantes, Porto Alegre não teve um hospital direcionado<br />

para a comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> italiana, apesar <strong>de</strong> terem sido iniciados os<br />

trâmites para a construção e a arreca<strong>da</strong>ção <strong>de</strong> fundos. O hospital<br />

iria ser chamado <strong>de</strong> Ospe<strong>da</strong>le Italiano Regina Margherita<br />

e seria construído no arrabal<strong>de</strong> do Moinhos <strong>de</strong> Vento, no terreno<br />

doado pelo ci<strong>da</strong>dão brasileiro José Gonçalves Mostar<strong>de</strong>iro,<br />

em 1886 (CINQUANTENARIO..., 1925, p. 366).<br />

A separação <strong>da</strong> ginecologia e obstetrícia <strong>da</strong> cirurgia geral<br />

na Santa Casa <strong>de</strong> Rio Gran<strong>de</strong> foi obra <strong>de</strong> Riego Sparvoli.<br />

Sparvoli conheceu Berchon D’Essarts, médico pelotense que<br />

estava em visita à Roma, quando foi convi<strong>da</strong>do para trabalhar<br />

no Brasil, em 1911. Depois <strong>de</strong> algum tempo em Pelotas, mudou-se<br />

para Rio Gran<strong>de</strong>. Trabalhou na Santa Casa e ali criou<br />

uma materni<strong>da</strong><strong>de</strong>, que foi concluí<strong>da</strong> em 1930, assim como<br />

criou o Dispensário Infantil. Foi, também, um dos pioneiros <strong>da</strong><br />

cirurgia oncológica <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> porte em nosso meio. A ativa<br />

comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> italiana <strong>de</strong> Rio Gran<strong>de</strong> cooperou na construção<br />

<strong>da</strong> materni<strong>da</strong><strong>de</strong>. Entre os maiores doadores, estava a Companhia<br />

Ítalo-Brasileira, fábrica <strong>de</strong> tecidos <strong>de</strong> algodão, que possuía<br />

um gran<strong>de</strong> contingente <strong>de</strong> operários imigrantes. O relatório<br />

<strong>da</strong> Santa Casa <strong>de</strong>staca as orientações e os planos <strong>de</strong> Sparvoli<br />

para a sua concretização:<br />

Que uma “materni<strong>da</strong><strong>de</strong>” com acomo<strong>da</strong>ções suficientes<br />

e instalações apropria<strong>da</strong>s contribuiria para<br />

reduzir a percentagem <strong>de</strong> mortali<strong>da</strong><strong>de</strong> infantil que<br />

em nosso município atinge a proporções tão eleva<strong>da</strong>s,<br />

não só pelos cui<strong>da</strong>dos ali dispensados aos<br />

recém-nascidos, como pela influência benéfica e<br />

instrutiva do meio hospital com relação às mães, as<br />

O CASO DO DR. NICOLA TURI<br />

O exemplo <strong>de</strong> Turi permite conhecer a mobili<strong>da</strong><strong>de</strong> espacial<br />

pela América Latina, a participação na construção <strong>de</strong><br />

hospitais, o reconhecimento no diagnóstico e tratamento <strong>de</strong><br />

certas doenças e a integração na socie<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Santa Maria.<br />

Esta ci<strong>da</strong><strong>de</strong> está situa<strong>da</strong> no centro do estado do Rio Gran<strong>de</strong><br />

do Sul. Sua localização estratégica fez com que se tornasse<br />

um importante entroncamento ferroviário. No início do século<br />

XX, seu <strong>de</strong>senvolvimento era sustentado principalmente pelas<br />

ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> comércio (PADOIN, 2010, p. 336). Possuía em<br />

torno <strong>de</strong> 30.000 habitantes em 1900 e sua população cresceu<br />

para 52.700 habitantes em 1910.<br />

O Brasil rompeu as relações diplomáticas com a Alemanha<br />

em abril <strong>de</strong> 1917. Um evento singular marcou a vi<strong>da</strong> do<br />

Dr. Turi ao ser alvo <strong>de</strong> homenagens públicas, quando o 1º<br />

Regimento <strong>da</strong> Briga<strong>da</strong> Militar, sediado em Santa Maria, foi<br />

transferido para Porto Alegre, <strong>de</strong>ntro dos preparativos para o<br />

esforço <strong>de</strong> guerra. Naquela ocasião, um grupo <strong>de</strong> manifestantes<br />

que empunhava ban<strong>de</strong>iras dos países aliados dirigiu-se à<br />

residência do distinto médico para <strong>de</strong>monstrar a união fraterna<br />

dos países no combate aos alemães <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> acompanhar<br />

o regimento até a estação ferroviária. Houve discursos e vivas<br />

152<br />

MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje


A CONTRIBUIÇÃO DOS MÉDICOS ITALIANOS PARA A MEDICINA DO RIO GRANDE DO SUL<br />

realizados à frente do palacete. O Dr. Turi, ao agra<strong>de</strong>cer, pronunciou<br />

um patriótico discurso, dizendo que o Brasil era a sua<br />

segun<strong>da</strong> pátria (A FEDERAÇÃO, 1917, p. 1).<br />

Nicola Turi nasceu em 1873, em Cabrito, na Província <strong>de</strong><br />

Avelino, Itália. Formou-se na Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong> <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> Nápoles em 1889. Especializou-se em medicina geral<br />

e cirurgia. Empreen<strong>de</strong>u viagens <strong>de</strong> estudos a Roma, on<strong>de</strong><br />

frequentou hospitais e policlínicas. Sua trajetória mostra uma<br />

gran<strong>de</strong> mobili<strong>da</strong><strong>de</strong> pela América do Sul. Chega a Montevidéu<br />

em 1900, on<strong>de</strong> foi interno do Hospital Italiano pelo período <strong>de</strong><br />

três anos. Segue-se a mu<strong>da</strong>nça para Santa Maria e a abertura<br />

do seu consultório em 1903. Seu irmão Pedro, também médico,<br />

o seguiu ao Brasil, em 1909. A época <strong>da</strong> vin<strong>da</strong> <strong>de</strong> Nicola<br />

a Santa Maria coinci<strong>de</strong> com a inauguração do Hospital <strong>de</strong> Cari<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />

sugerindo que a posição no novo hospital <strong>de</strong>terminou<br />

sua parti<strong>da</strong> do Uruguai.<br />

O Hospital <strong>de</strong> Cari<strong>da</strong><strong>de</strong> foi inaugurado em 1903. Formavam<br />

o corpo clínico Astrogildo <strong>de</strong> Azevedo, Nicola Turi,<br />

Pantaleão José Pinto, Nicolau Becker Pinto e José Mariano<br />

<strong>da</strong> Rocha, consi<strong>de</strong>rados os “pioneiros <strong>de</strong> 1903-1904” (MO-<br />

RALES, 2008). Nesta ci<strong>da</strong><strong>de</strong>, ain<strong>da</strong> não havia um local a<strong>de</strong>quado<br />

para o tratamento dos doentes que respon<strong>de</strong>sse às<br />

necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> uma ci<strong>da</strong><strong>de</strong> em progressivo crescimento. A<br />

importância <strong>da</strong> presença <strong>de</strong> hospitais nas ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s localiza<strong>da</strong>s<br />

no interior do estado foi reconheci<strong>da</strong> pelo Dr. Protásio<br />

Alves, diretor do Departamento <strong>de</strong> Higiene do Estado, que<br />

consi<strong>de</strong>rou ser “acontecimento capital” a sua inauguração<br />

(ARQUIVO HISTÓRICO DO RIO GRANDE DO SUL, 1904, p.<br />

200). O hospital se tornou local <strong>de</strong> observação clínica para<br />

os médicos estudiosos e <strong>de</strong> atração para profissionais <strong>de</strong><br />

todo o estado e do exterior. Seu corpo clínico contou com a<br />

participação <strong>de</strong> uma série <strong>de</strong> estrangeiros nos seus primeiros<br />

50 anos <strong>de</strong> existência. Além <strong>de</strong> Turi, citam-se os italianos<br />

Cesar Merlo, Arthur Filose e Bruno Cataldi. A instituição<br />

se tornou reconheci<strong>da</strong> por suas inovações: foi um dos primeiros<br />

hospitais do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul a possuir uma enfermaria<br />

especial para tuberculosos, inaugura<strong>da</strong> em 1913<br />

(Figura 2).<br />

Figura 2. Corpo médico do Hospital <strong>de</strong> Cari<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Santa Maria,<br />

em 1921. Sentados, a partir <strong>da</strong> esquer<strong>da</strong>, Nicola Turi, Astrogildo<br />

<strong>de</strong> Azevedo, Arthur Filose e Francisco Mariano <strong>da</strong> Rocha.<br />

Fonte: Isaia (1983, p. 84)<br />

Turi acumulou a direção <strong>da</strong> Casa <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> <strong>da</strong> Cooperativa<br />

Viação Férrea do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul. Segui<strong>da</strong>mente, havia<br />

aci<strong>de</strong>ntes nas estra<strong>da</strong>s <strong>de</strong> ferros que envolviam empregados,<br />

passageiros ou pessoas que inadverti<strong>da</strong>mente cruzavam as<br />

linhas férreas. O médico era chamado para aten<strong>de</strong>r os casos<br />

no consultório <strong>da</strong> farmácia <strong>da</strong> Caixa <strong>de</strong> Socorros, sendo que<br />

os <strong>de</strong> maior gravi<strong>da</strong><strong>de</strong> eram encaminhados ao Hospital <strong>de</strong><br />

Cari<strong>da</strong><strong>de</strong>. Em 1913, iniciaram os trâmites para a construção<br />

do hospital para aten<strong>de</strong>r aos empregados <strong>da</strong> Viação Férrea<br />

e seus familiares ou às vítimas <strong>de</strong> <strong>de</strong>sastres oriundos nas vias<br />

férreas. Turi participou <strong>da</strong> comissão que proce<strong>de</strong>u ao estudo<br />

do terreno para a edificação do hospital (A FEDERAÇÃO,<br />

1913, p. 8). A casa <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> <strong>da</strong>quela cooperativa foi inaugura<strong>da</strong><br />

em 1932.<br />

Na vi<strong>da</strong> associativa, foi membro <strong>da</strong> Socie<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong><br />

<strong>de</strong> Santa Maria. Publicou o trabalho intitulado Um caso<br />

<strong>de</strong> poliorquidia bilateral na Gazeta dos Hospitais <strong>de</strong> Milão, em<br />

1928. Reconhecido conferencista em Santa Maria, os temas<br />

<strong>de</strong> suas palestras versavam entre casos cirúrgicos e clínicos,<br />

<strong>de</strong>stacando-se: contribuição prática <strong>da</strong> diatermia como meio<br />

terapêutico; profilaxia <strong>da</strong>s moléstias infectocontagiosas; uma<br />

complicação muito rara <strong>da</strong> febre tifoi<strong>de</strong>; e um caso <strong>de</strong> tétano<br />

traumático em recém-nascido (FRANCO; RAMOS, 1943, p.<br />

575). Os trabalhos são <strong>de</strong> etiologias diversas que abrangem<br />

um gran<strong>de</strong> campo <strong>de</strong> conhecimento, não necessariamente<br />

MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje 153


A CONTRIBUIÇÃO DOS MÉDICOS ITALIANOS PARA A MEDICINA DO RIO GRANDE DO SUL<br />

aprofun<strong>da</strong>do, como era frequente acontecer entre aqueles<br />

que praticavam a medicina no período.<br />

Turi contraiu matrimônio com uma <strong>da</strong>s filhas do tesoureiro<br />

<strong>da</strong> Compagnie Auxiliaire <strong>de</strong>s Chemins <strong>de</strong> Fer au Brésil,<br />

sedia<strong>da</strong> em Santa Maria. Sua filha se casou com o otorrinolaringologista<br />

Gino Cataldi, diplomado em 1924 e que já clinicava<br />

em Santa Maria com dois anos <strong>de</strong> formado. O exemplo<br />

do casamento <strong>de</strong> Nicola Turi permite inferir a sua assimilação.<br />

Devoto (2004) explica que a integração dos imigrantes é medi<strong>da</strong><br />

em torno <strong>de</strong> três indicadores clássicos: casamentos, local<br />

<strong>de</strong> residência e participação em associações voluntárias.<br />

Quando os imigrantes se casam com alguém, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente<br />

<strong>da</strong> sua origem étnica, vivem entre outros estrangeiros<br />

ou nacionais e participam <strong>de</strong> enti<strong>da</strong><strong>de</strong>s que incluem membros<br />

<strong>de</strong> origens varia<strong>da</strong>s, <strong>de</strong>monstrando que estão assimilados em<br />

uma socie<strong>da</strong><strong>de</strong> acrisola<strong>da</strong>. As taxas <strong>de</strong> endogamia ten<strong>de</strong>m a<br />

baixar quanto mais os casamentos se distanciam do momento<br />

<strong>da</strong> chega<strong>da</strong> ao país do respectivo grupo migratório (DEVOTO,<br />

2004).<br />

A competência técnica e social do médico era reconheci<strong>da</strong><br />

pela comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>. Acumulou a função <strong>de</strong> agente consular<br />

<strong>da</strong> Itália, participou nas comissões <strong>de</strong> organização dos festejos<br />

comemorativos ao 1º Centenário <strong>de</strong> Santa Maria (1914) e ao<br />

Cinquentenário <strong>da</strong> Colonização Italiana no Rio Gran<strong>de</strong> do Sul<br />

(1925), quando assumiu a presidência do comitê local. Colaborou<br />

no Hospital <strong>de</strong> Cari<strong>da</strong><strong>de</strong> até a sua morte, ocorri<strong>da</strong> em<br />

1949.<br />

CONSIDERAÇÕES FINAIS<br />

Os médicos italianos cooperaram no <strong>de</strong>senvolvimento <strong>da</strong><br />

medicina e na criação dos serviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> do Rio Gran<strong>de</strong><br />

do Sul. Colaboraram para disseminar o conhecimento médico<br />

adquirido em universi<strong>da</strong><strong>de</strong>s italianas, em um tempo em que<br />

havia notável carência <strong>de</strong>stes profissionais. Aportaram conhecimentos<br />

intelectuais e práticos que ocasionaram repercussões<br />

no país <strong>de</strong> acolhimento. Foram inovadores, contribuindo para<br />

a introdução <strong>de</strong> novas práticas na medicina que estavam sendo<br />

<strong>de</strong>senvolvi<strong>da</strong>s nos países europeus. Por suas características<br />

profissionais e formação médica <strong>de</strong> excelência, vários foram<br />

incluídos na elite médica do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul. Na medi<strong>da</strong> em<br />

que estes imigrantes reforçaram os cui<strong>da</strong>dos <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> no país<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>stino, as condições <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> <strong>da</strong> população local também<br />

melhoraram.<br />

REFERÊNCIAS<br />

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154<br />

MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje


A CONTRIBUIÇÃO DOS MÉDICOS ITALIANOS PARA A MEDICINA DO RIO GRANDE DO SUL<br />

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MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje 155


Luciano Raul Panatieri e Veridiano Farias<br />

LUCIANO RAUL PANATIERI E<br />

VERIDIANO FARIAS:<br />

a trajetória <strong>de</strong> dois médicos negros<br />

sul-rio-gran<strong>de</strong>nses<br />

ARILSON DOS SANTOS GOMES<br />

Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Sul e Su<strong>de</strong>ste do Pará - UNIFESSPA<br />

156<br />

MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje


Luciano Raul Panatieri e Veridiano Farias<br />

No dia 16 <strong>de</strong> maio do ano <strong>de</strong> 2006, o GT Negros <strong>da</strong> Associação<br />

Nacional <strong>de</strong> <strong>História</strong> – Seção do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul<br />

(ANPUH-RS) realizou em parceria com É<strong>de</strong>r Farias, neto do médico<br />

Veridiano Farias (1906-1952), um encontro <strong>de</strong>dicado à<br />

memória <strong>de</strong> seu avô. Na época, exercia a função <strong>de</strong> assistente<br />

cultural no Memorial do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul, além <strong>de</strong> ser membro<br />

do GT. O evento aconteceu nas <strong>de</strong>pendências do próprio<br />

Memorial, localizado no Centro Histórico <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Porto<br />

Alegre, Rio Gran<strong>de</strong> do Sul.<br />

A ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> era alusiva ao centenário <strong>de</strong> nascimento <strong>de</strong><br />

Veridiano Farias (1906-2006), consi<strong>de</strong>rado por membros <strong>da</strong><br />

comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> negra o primeiro médico negro formado em uma<br />

facul<strong>da</strong><strong>de</strong> pública do Estado. Na ocasião, recor<strong>da</strong>-se com satisfação<br />

a oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> participar <strong>da</strong> comissão organizadora<br />

do encontro, visto que havia conhecido a história <strong>de</strong> Veridiano<br />

Farias, “o teimoso”, através <strong>de</strong> uma edição do jornal A Hora,<br />

publicado no ano <strong>de</strong> 1954 (A HORA, 1954, p. 7). Tal impresso<br />

foi consultado no acervo particular do Sr. José Domingos Alves<br />

<strong>da</strong> Silveira, colecionador <strong>de</strong> jornais resi<strong>de</strong>nte na ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

Viamão, região <strong>da</strong> Gran<strong>de</strong> Porto Alegre. 1<br />

1 A coleção do senhor José Domingos Alves <strong>da</strong> Silveira começou a partir <strong>de</strong> seu<br />

trabalho no serviço <strong>de</strong> Engenharia <strong>da</strong> V Zona Aérea <strong>da</strong> Aeronáutica (V COMAR) na<br />

déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1940. Ali, passou a recolher os jornais que sobravam e eram <strong>de</strong>volvidos<br />

para reciclagem. Nesse trabalho <strong>de</strong> “garimpagem”, como ele mesmo <strong>de</strong>nomina,<br />

foi selecionando recortes e reportagens dos mais diferentes assuntos: história, personali<strong>da</strong><strong>de</strong>s,<br />

meio ambiente, política etc. Alguns dos jornais que compõem o acervo<br />

são: Jornal do Brasil; Folha <strong>de</strong> São Paulo; Última Hora/RJ; Correio <strong>da</strong> Manhã/RJ;<br />

Correio do Povo/RS; A Hora/RS; Zero Hora/RS; Jornal do Comércio/RS; Diário do<br />

Sul/RS; El País, <strong>de</strong> Montevidéu; e as revistas Manchete; Seleções; Reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, entre<br />

outras, além <strong>de</strong> livros raros amealhados em sebos <strong>de</strong> Porto Alegre e na ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

Alvora<strong>da</strong>, RS (PEREIRA, 2008, p.51).<br />

MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje 157


Luciano Raul Panatieri e Veridiano Farias<br />

Farias recebeu a alcunha <strong>de</strong> “o teimoso” nas escritas<br />

do médico Isaac Kelbert, autor <strong>da</strong> matéria publica<strong>da</strong> no referido<br />

impresso. Kelbert foi seu colega <strong>de</strong> curso e produziu<br />

uma extensa notícia sobre a inesquecível trajetória <strong>de</strong> Farias,<br />

recompensa<strong>da</strong> na formatura <strong>de</strong> colação <strong>de</strong> grau <strong>da</strong> turma<br />

<strong>de</strong> <strong>Medicina</strong> <strong>da</strong> UFRGS, em 1951. Soleni<strong>da</strong><strong>de</strong> na qual esteve<br />

presente e po<strong>de</strong> testemunhar a realização <strong>de</strong> um sonho protagonizado<br />

pelo esforço intelectual <strong>de</strong> um indivíduo negro.<br />

Esse evento, bem como as palmas ouvi<strong>da</strong>s e assisti<strong>da</strong>s pelos<br />

espectadores <strong>da</strong>quela noite, o motivou a escrever o artigo no<br />

ano <strong>de</strong> 1954, dois anos após o falecimento <strong>de</strong> Farias, ocorrido<br />

em 1952.<br />

A trajetória <strong>de</strong>ste médico também havia sido <strong>de</strong>staca<strong>da</strong>,<br />

em 2005, pela pesquisadora Irene Santos, no livro Negro em<br />

Preto e Branco – <strong>História</strong> fotográfica <strong>da</strong> população negra <strong>de</strong><br />

Porto Alegre. Na publicação a autora evi<strong>de</strong>nciou a luta <strong>de</strong> Veridiano<br />

Farias para vencer a intolerância racial, já que precisou<br />

<strong>de</strong> três oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong>s para se diplomar como médico, necessitando<br />

<strong>de</strong> intervenção <strong>da</strong> Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong> do Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro para ingressar na Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong> <strong>da</strong> UFRGS<br />

(SANTOS, 2005, p. 78-79). 2<br />

Portanto, assim que o neto <strong>de</strong> Veridiano, É<strong>de</strong>r Farias, que<br />

exercia a função <strong>de</strong> carteiro na Empresa Brasileira dos Correios<br />

e Telégrafos <strong>da</strong> região <strong>de</strong> Porto Alegre, procurou-nos, iniciouse<br />

uma “ação”, como diz Arendt (2011), com seus respectivos<br />

<strong>de</strong>sdobramentos. Ciente <strong>da</strong> trajetória <strong>de</strong> seu avô e <strong>de</strong> sua referência<br />

para a comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> negra, elaborou-se o projeto intitulado<br />

“Projeto Diversi<strong>da</strong><strong>de</strong> Memória Gaúcha – centenário do<br />

médico Veridiano Farias”.<br />

A principal justificativa encaminha<strong>da</strong> à direção do Memorial<br />

do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul para concretização do evento<br />

foi justamente o pioneirismo <strong>de</strong> Verdiano Farias, na ocasião<br />

consi<strong>de</strong>rado o primeiro médico negro a se formar pela Uni-<br />

2 Na publicação <strong>de</strong> Irene Santos, as jornalistas e pesquisadoras Vera Deyse<br />

Barcellos e Silvia Abreu <strong>de</strong>stacaram a um jornal <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> circulação do estado<br />

que haviam <strong>de</strong>scoberto o seguinte: “o neto do primeiro médico negro que temos<br />

notícia é carteiro em Porto Alegre e conseguimos falar com ele para sabermos um<br />

pouco mais <strong>de</strong> Veridiano Farias, seu avô” (ZERO HORA, Ca<strong>de</strong>rno D, Porto Alegre,<br />

18 set. 2005, p. 3-4). Porém, no dia 30 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 2005, após tomar conhecimento<br />

do lançamento do livro em matéria jornalística, Marta Maria <strong>de</strong> Souza<br />

Panatieri, filha <strong>de</strong> Panatieri, enviou uma carta à Zero Hora, informando sobre a<br />

existência <strong>de</strong> um Espaço Cultural localizado na ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Rio Pardo, interior do Rio<br />

Gran<strong>de</strong> do Sul, <strong>de</strong>stinado à memória do Dr. Luciano Panatieri, “Negro”.<br />

versi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul (UFRGS). O evento foi<br />

prontamente aceito pela direção <strong>da</strong> instituição.<br />

O encontro contou com ex-colegas do homenageado in<br />

memoriam, como o Dr. Isaac Kelbert e o Dr. Francisco Flores<br />

<strong>da</strong> Cunha Mattos, amigos do médico negro, além <strong>de</strong> membros<br />

<strong>da</strong> comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>. Foi uma ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> inesquecível, principalmente<br />

por conta <strong>da</strong>s falas a partir <strong>da</strong>s “lembranças dos mais<br />

velhos” (BOSI, 1979) presentes ao evento que conviveram com<br />

“o teimoso”. Mas por que iniciar o trabalho com estas lembranças?<br />

No dia posterior à ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>, após receber as congratulações<br />

<strong>da</strong> direção do Memorial, principalmente pelo impacto do<br />

evento junto aos meios culturais e <strong>da</strong> imprensa 3 , um jornalista<br />

<strong>da</strong> Associação Médica do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul (AMRIGS) e um<br />

funcionário do <strong>Museu</strong> <strong>da</strong> <strong>História</strong> <strong>da</strong> <strong>Medicina</strong> (<strong>MUHM</strong>) procuraram-nos.<br />

Ambos informaram-nos sobre a existência <strong>de</strong> outro<br />

médico negro anterior ao homenageado, seu nome: Luciano<br />

Raul Panatieri (1897-1972).<br />

Mas como assim, Panatieri? E isto é nome <strong>de</strong> negro?<br />

Ou como noticiou o próprio Jornal AMRIGS: “Mas isso não é<br />

sobrenome <strong>de</strong> gringo?” (AMRIGS, 2006, p.15). Interessante<br />

notar que o equívoco cometido a partir do evento motivou os<br />

familiares do médico Luciano Raul Panatieri a buscar a imprensa<br />

para confirmar sua i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> étnica, bem como reivindicar<br />

a sua condição <strong>de</strong> primeiro negro a se diplomar na universi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

pública do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul, <strong>de</strong> fato, ocorrido no ano <strong>de</strong><br />

1922. 4<br />

Na época <strong>de</strong> Panatieri a facul<strong>da</strong><strong>de</strong> era <strong>de</strong>nomina<strong>da</strong> Facul<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

Livre <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong> e Farmácia <strong>de</strong> Porto Alegre (SCHIAVO-<br />

NI, 2005, p. 1). Veridiano somente concluiu o seu curso no dia<br />

15 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1951, com a facul<strong>da</strong><strong>de</strong> já fe<strong>de</strong>raliza<strong>da</strong>, 29<br />

anos <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> Panatieri.<br />

3 No dia <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> o jornal Zero Hora, em sua seção intitula<strong>da</strong> Almanaque<br />

Gaúcho, noticiou a ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> do centenário do Dr. Veridiano, <strong>de</strong>stacando o jazz<br />

como “uma <strong>da</strong>s paixões <strong>de</strong> Veridiano Farias, o primeiro negro a formar-se médico<br />

pela UFRGS” (ZERO HORA, Porto Alegre, 16 maio 2006, p. 62).<br />

4 As irmãs Elvira e Marta Panatieri (1937-2013), filhas <strong>de</strong> Luciano Panatieri, juntamente<br />

com o neto do médico, Ramiro, e familiares, com mais intensi<strong>da</strong><strong>de</strong>, se<br />

mobilizaram para comprovar que seu avô Luciano Panatieri foi o primeiro médico<br />

negro a se formar na Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong> (ZERO HORA, Porto Alegre, 27 maio<br />

2006, p. 46; Jornal AMRIGS, Porto Alegre, julho/agosto, p. 15). Antes <strong>de</strong>sta matéria,<br />

no dia 24 <strong>de</strong> maio, José Ernesto Wun<strong>de</strong>rlich, “afilhado <strong>de</strong> batismo” <strong>de</strong> Luciano<br />

Panatieri, enviou um e-mail à Zero Hora para informar que o primeiro médico negro<br />

a se formar pela Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong> <strong>de</strong> Porto Alegre havia sido Panatieri.<br />

158<br />

MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje


Luciano Raul Panatieri e Veridiano Farias<br />

In<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente <strong>de</strong> quem tenha sido o primeiro médico<br />

negro a se formar pela renoma<strong>da</strong> Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong><br />

<strong>da</strong> UFRGS, já que outras trajetórias po<strong>de</strong>rão surgir a partir dos<br />

aprofun<strong>da</strong>mentos e dos questionamentos <strong>de</strong> outros pesquisadores<br />

que se atenham a i<strong>de</strong>ntificar e a trazer dos “silêncios”<br />

<strong>da</strong> história <strong>de</strong>stacados personagens negros e negras, enfatizase<br />

que a ação concretiza<strong>da</strong> no Memorial do Rio Gran<strong>de</strong> do<br />

Sul, no ano <strong>de</strong> 2006, propiciou um vínculo i<strong>de</strong>ntitário entre<br />

os médicos Luciano Raul Panatieri e Veridiano Farias. Contato<br />

que não <strong>de</strong>ve ter ocorrido entre ambos, mas que, por meio <strong>da</strong><br />

narrativa proposta, será estabelecido.<br />

A IDENTIDADE NEGRA COMO ELO ENTRE<br />

LUCIANO PANATIERI E VERIDIANO FARIAS<br />

A i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> negra é entendi<strong>da</strong>, aqui, como uma construção<br />

social, histórica, cultural e plural. Implica a construção<br />

do olhar <strong>de</strong> um grupo étnico/racial ou <strong>de</strong> sujeitos que pertencem<br />

a um mesmo grupo étnico/racial, sobre si mesmos, a<br />

partir <strong>da</strong> relação com o outro. Construir uma i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> negra<br />

positiva em uma socie<strong>da</strong><strong>de</strong> que, historicamente, ensina aos<br />

negros, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> muito cedo, que para ser aceito é preciso negarse<br />

a si mesmo é um <strong>de</strong>safio enfrentado pelos negros brasileiros<br />

(GOMES, 2005).<br />

A <strong>de</strong>limitação espaço-temporal <strong>de</strong>ste artigo correspon<strong>de</strong><br />

aos finais do século XIX a meados do XX, período <strong>da</strong> colonização<br />

dos territórios africanos, do pós-abolição no Brasil em<br />

consonância com as trajetórias pessoais e públicas <strong>de</strong> Luciano<br />

Panatieri (1897-1972) e <strong>de</strong> Veridiano Farias (1906-1951) no<br />

estado do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul.<br />

A trajetória dos indivíduos negros torna-se relevante diante<br />

do contexto atual <strong>da</strong>s ações afirmativas e <strong>da</strong> Lei 10.639/03.<br />

Decretos e programas, surgidos pelas pressões dos movimentos<br />

negros, que instituíram a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> um “novo olhar”<br />

na produção do conhecimento e do ensino que contemplem a<br />

história social e cultural <strong>da</strong> i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> negra.<br />

Antes, era vista somente como uma i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> vincula<strong>da</strong><br />

à escravidão, sem agências intelectuais, em que pese o reconhecimento<br />

às organizações <strong>de</strong> fugas e dos quilombos. Atualmente,<br />

constituíram-se outras possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> evi<strong>de</strong>nciar a<br />

comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> negra, não somente pelos <strong>de</strong>cretos citados, mas,<br />

principalmente, pelas revisões históricas, que permitem outras<br />

abor<strong>da</strong>gens além <strong>da</strong>quelas tradicionais, consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong>s sem movimentos,<br />

sem relações familiares e comunitárias, e que <strong>de</strong><br />

certa forma fixaram a i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> negra a um discurso colonial<br />

<strong>de</strong> inferiori<strong>da</strong><strong>de</strong>, <strong>de</strong>nominado estereótipos. 5<br />

Problematizar, mesmo que brevemente, os indícios <strong>da</strong>s<br />

trajetórias <strong>de</strong>stes personagens, formados no curso <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong><br />

<strong>de</strong> uma universi<strong>da</strong><strong>de</strong> pública, é contribuir para o reconhecimento<br />

positivo <strong>da</strong> i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> negra como agente <strong>de</strong> sua<br />

história.<br />

Mas quais foram os possíveis obstáculos pessoais e sociais<br />

enfrentados por estes dois homens negros para ingressar<br />

no curso <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong> e como ambos <strong>de</strong>senvolveram suas ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

profissionais em um período tão próximo do pós-abolição<br />

em Porto Alegre, no estado do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul?<br />

Para respon<strong>de</strong>r a estas questões, convém relacionar a<br />

trajetória individual <strong>de</strong>stes personagens com o contexto histórico<br />

vivenciado pela comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> negra no estado e no mundo.<br />

6 Através <strong>de</strong> análises dos discursos (ORLANDI, 2001) <strong>de</strong><br />

entrevista oral, <strong>da</strong>dos biográficos relacionados aos impressos e<br />

as correspondências pessoais coteja<strong>da</strong>s com uma bibliografia<br />

pertinente, serão interpretados, por meio dos conceitos relacionados<br />

à i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> negra, os problemas enunciados. 7<br />

Acredita-se que o estigma sofrido pela comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> negra<br />

no pós-abolição tenha sido um dos <strong>de</strong>safios enfrentados por<br />

Luciano Raul Panatieri (1897-1972) e Veridiano Farias (1906-<br />

1952), tanto para conquistar seus diplomas quanto para exercer<br />

a sua profissão.<br />

Entretanto, <strong>de</strong>staca-se que ambos optaram por enfrentar<br />

<strong>de</strong> maneira diferente a sua condição i<strong>de</strong>ntitária, provavelmente<br />

<strong>de</strong>vido às origens familiares, vincula<strong>da</strong>s às i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

5 Estereótipos, conforme Homi Bhabha (2007), geram a fixação <strong>da</strong> i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Aos olhos do estigma, os grupos inferiores na escravidão carregam, mesmo<br />

após a libertação, o peso <strong>da</strong> representação outrora cria<strong>da</strong>.<br />

6 Agra<strong>de</strong>ço a Ana Maria Panatieri, Angela Beatriz Pomatti e Jane Rocha <strong>de</strong><br />

Mattos pela disponibili<strong>da</strong><strong>de</strong> com as fontes.<br />

7 Para Orlandi (2001, p. 10), no momento em que o sujeito diz o que diz, ele se<br />

assume como autor. Seus sentimentos, seus <strong>de</strong>sígnios, suas expectativas e sua<br />

<strong>de</strong>terminação são i<strong>de</strong>ntificados. O sujeito é <strong>de</strong>terminado pela exteriori<strong>da</strong><strong>de</strong>, pela<br />

formulação discursiva, passível <strong>de</strong> contradições. Relatos e manuscritos produzidos<br />

serão interpretados neste trabalho a fim <strong>de</strong> examinar as trajetórias <strong>de</strong>stes dois<br />

médicos negros.<br />

MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje 159


Retrato do Dr. Luciano Raul Panatieri<br />

Acervo: Dr. Luciano Raul Panatieri<br />

Doador: Espaço Cultural Panatieri <strong>de</strong> Rio Pardo


Luciano Raul Panatieri e Veridiano Farias<br />

negras diapóricas (GILROY, 1993) elabora<strong>da</strong>s por meio <strong>de</strong> suas<br />

escolhas, tensões e possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s sociais. 8<br />

Para sistematizar a proposta, o texto será <strong>de</strong>senvolvido<br />

<strong>da</strong> seguinte forma: <strong>de</strong>monstrar-se-á a origem familiar dos<br />

médicos em consonância com o contexto cultural e social do<br />

continente africano e <strong>da</strong> i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> negra no final do século<br />

XIX a meados do século XX; após, será <strong>de</strong>senvolvi<strong>da</strong> a trajetória<br />

estu<strong>da</strong>ntil e profissional <strong>de</strong> ambos, além <strong>de</strong> se estabelecer<br />

uma relação histórica media<strong>da</strong> pela i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> negra entre os<br />

médicos Luciano Raul Panatieri e Veridiano Farias através <strong>de</strong><br />

suas agências, como representantes <strong>de</strong>ste grupo.<br />

A ORIGEM DE PANATIERI E SUAS<br />

MÚLTIPLAS IDENTIDADES<br />

Sem ilusões biográficas (BORDIEU, 1996) ou sem uma<br />

lineari<strong>da</strong><strong>de</strong> constante, serão abor<strong>da</strong>dos a origem familiar e o<br />

contexto <strong>de</strong> nascimento dos médicos Luciano Panatieri e Veridiano<br />

Farias. Luciano Raul Panatieri nasceu no Uruguai no dia<br />

23 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 1897, na ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Artigas, município que<br />

faz fronteira com a ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Quaraí, interior do Rio Gran<strong>de</strong><br />

do Sul; filho do genovês Santiago Panatieri e <strong>de</strong> Abrilina Santiago<br />

Panetieri, etíope. 9<br />

Nas escritas <strong>de</strong> si (GOMES, 2004) <strong>de</strong> Luciano Panatieri, um<br />

manuscrito autobiográfico, localizou-se indícios <strong>de</strong> sua trajetória<br />

<strong>de</strong> vi<strong>da</strong>. Percurso que, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o seu nascimento, evi<strong>de</strong>ncia uma<br />

situação no mínimo inusita<strong>da</strong>: ser fruto <strong>de</strong> uma união entre um<br />

italiano e uma etíope nos finais do século XIX. Não pelo afeto,<br />

mas pelos conflitos coloniais entre seus territórios <strong>de</strong> origem.<br />

8 Abrelina, liberta, mãe <strong>de</strong> Panatieri, trouxe consigo sua i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> negro-africana.<br />

Paul Gilroy (1993) problematizou a intensa re<strong>de</strong> <strong>de</strong> trocas culturais existentes<br />

entre os africanos a bordo <strong>de</strong> embarcações, em seus <strong>de</strong>slocamentos <strong>da</strong> África, na<br />

época <strong>da</strong> escravidão, para a América e a Europa, situação que o autor chamou <strong>de</strong><br />

middle passage. Para Gilroy, existiram sofrimentos, mas interações para a construção<br />

<strong>de</strong> uma i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> diaspórica, reforça<strong>da</strong> por uma infini<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> trocas <strong>de</strong><br />

conhecimentos em pleno Atlântico rumo aos continentes em que possivelmente esses<br />

negros seriam negociados. Abrelina não veio como escrava para a América do<br />

Sul, entretanto trouxe experiências a partir do <strong>de</strong>slocamento e <strong>de</strong> sua relação com<br />

o europeu Panatieri. A família negra dos Farias, que saiu <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Rio Gran<strong>de</strong>,<br />

foi acolhi<strong>da</strong> pela comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> negra porto-alegrense, principalmente a localiza<strong>da</strong><br />

nos territórios negros <strong>da</strong> colônia africana, on<strong>de</strong> as representações carnavalescas<br />

eram uma constante (SANTOS, 2010).<br />

9 Sobre a i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> etíope <strong>da</strong> mãe <strong>de</strong> Luciano Panatieri, consultar o Minuto<br />

SIMERS, com Dona Elvira Panatieri, intitulado O <strong>Museu</strong> <strong>de</strong> <strong>História</strong> <strong>da</strong> <strong>Medicina</strong><br />

homenageia o Dr. Luciano Raul Panatieri. Disponível em Acesso em: 20 jul. 2015.<br />

Salienta-se que o século XIX presenciou a colonização<br />

dos territórios africanos. Pilhagem, exploração e divisão territorial<br />

seriam os sinônimos dos <strong>de</strong>sequilíbrios históricos entre os<br />

países <strong>da</strong>quele continente, presentes até os dias atuais.<br />

Entre 1876 e 1880, três importantes acontecimentos são<br />

verificados na conduta expansionista europeia. O primeiro foi<br />

o interesse <strong>da</strong> Bélgica, que se expressou na Conferência <strong>de</strong><br />

Bruxelas (1876), redun<strong>da</strong>ndo na criação <strong>da</strong> Associação Internacional<br />

Africana, sob a li<strong>de</strong>rança <strong>de</strong> Henry Morton Stanley,<br />

para explorar o Congo em nome <strong>da</strong> Associação. O segundo<br />

refere-se às ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> Portugal que anexam as proprie<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

rurais <strong>de</strong> Moçambique, e o terceiro acontecimento está relacionado<br />

ao caráter expansionista <strong>da</strong> França e do Reino Unido<br />

no controle do Egito (1879) (SILVÉRIO, 2013, p. 341). Entram<br />

na disputa por territórios africanos as recém-unifica<strong>da</strong>s Alemanha<br />

e Itália.<br />

Visando acalmar as tensões entre os imperialistas, seus<br />

interesses foram ratificados após a Conferência <strong>de</strong> Berlim<br />

(1884-1885). Conforme Rivair Macedo (2013), as déca<strong>da</strong>s situa<strong>da</strong>s<br />

entre 1880 e 1914 constituem um ponto <strong>de</strong> viragem.<br />

Um continente inteiro caiu sob o domínio <strong>de</strong> povos estrangeiros<br />

associados ao <strong>de</strong>senvolvimento do capitalismo oci<strong>de</strong>ntal,<br />

em sua fase monopolista, caracteriza<strong>da</strong> pela concorrência por<br />

mercados fornecedores <strong>de</strong> matérias-primas para a indústria,<br />

<strong>de</strong> mão <strong>de</strong> obra barata para extração <strong>de</strong>ssas matérias-primas<br />

e <strong>de</strong> mercados consumidores limitados (MACEDO, 2013, p.<br />

135).<br />

O tratado <strong>de</strong> Berlim, conhecido como um marco <strong>da</strong><br />

partilha europeia, foi <strong>de</strong>cisivo nas relações imperialistas, pois<br />

estabeleceu convivências e regras entre os dominadores. O<br />

documento do encontro possibilitou um panorama geral <strong>de</strong><br />

como os europeus construíram por meio <strong>de</strong> uma normativa<br />

curta, porém intensa, as prerrogativas <strong>de</strong> seu domínio sob o<br />

território africano.<br />

Segundo a Ata do Congresso, este teve como objetivos:<br />

regular “num espírito <strong>de</strong> boa compreensão mútua as condições<br />

mais favoráveis ao <strong>de</strong>senvolvimento do comércio e <strong>da</strong><br />

civilização em certas regiões <strong>da</strong> África e assegurar a todos os<br />

povos”, imperialistas europeus, “as vantagens <strong>da</strong> livre navegação<br />

sobre os principais rios africanos”, além “<strong>de</strong> prevenir<br />

MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje 161


Luciano Raul Panatieri e Veridiano Farias<br />

os mal-entendidos e ao mesmo tempo cui<strong>da</strong>r dos crescimentos<br />

do bem-estar moral e material <strong>da</strong>s populações aborígenes<br />

[...]” (ATA DA CONFERÊNCIA, Berlim, 26 fev. 1885).<br />

Essa foi a maneira <strong>de</strong> acalmar os ânimos <strong>da</strong>s potências e <strong>de</strong><br />

levar a “civilização” à África. Os portugueses per<strong>de</strong>m espaços nesta<br />

região, motivo: fraco po<strong>de</strong>rio militar (ASSUMPÇÃO, 2008). 10<br />

A Itália, país <strong>de</strong> origem do lado paterno <strong>de</strong> Luciano Panatieri,<br />

recebeu como território, via Conferência <strong>de</strong> Berlim, a<br />

região <strong>da</strong> Eritréia, atual Etiópia (ou Abissínia), país <strong>de</strong> origem<br />

do lado materno do médico negro.<br />

Destaca-se que os africanos resistiram às ingerências externas.<br />

Contudo, a ocupação <strong>da</strong> África era irreversível, como <strong>de</strong>stacou<br />

Silvério (2013, p. 345), principalmente pela vantagem tecnológica<br />

e militar dos europeus. Essa vantagem não significou<br />

falta <strong>de</strong> resistências, <strong>de</strong>vido à força <strong>da</strong>s populações africanas.<br />

Os africanos nunca se haviam resignado à pacificação em<br />

uma resistência movi<strong>da</strong> por i<strong>de</strong>ologias racionais e inovadoras<br />

em movimentos <strong>de</strong> resistências significantes como os ocorridos<br />

em Senegal (1861-1892), Egito (1881), Sudão (1896), Tunísia<br />

(1881), Marrocos (1881), Daomé, Golfo <strong>da</strong> Guiné (1880-<br />

1900), Costa do Ouro e Serra Leoa (1880), Quênia (1880) etc.,<br />

ca<strong>da</strong> qual com sua característica (SILVÉRIO, 2013). A Libéria e<br />

a Etiópia sobreviviam in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes. 11<br />

Tem-se na Somália, território <strong>de</strong> fronteira com a Etiópia,<br />

um teatro <strong>de</strong> rivali<strong>da</strong><strong>de</strong>s coloniais entre a Itália, o Reino Unido<br />

e a França. Na reali<strong>da</strong><strong>de</strong> todos estavam voltados para a Índia<br />

e a Ásia. A partilha do país somali estava termina<strong>da</strong> em 1897<br />

(SILVÉRIO, 2013, p. 347), no mesmo ano <strong>de</strong> nascimento <strong>de</strong><br />

Luciano Raul Panatieri.<br />

Conforme um documento localizado na residência <strong>de</strong><br />

sua filha, Dona Elvira, em uma escrita <strong>de</strong> si, conforme já citado,<br />

elaborado pelo próprio médico, sem <strong>da</strong>ta, mas que<br />

provavelmente tenha sido redigi<strong>da</strong> na déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1970, têm-<br />

10 Na divisão do território africano, após a Conferência presidi<strong>da</strong> por Bismark,<br />

<strong>da</strong> Alemanha, com influência <strong>de</strong> Leopoldo II <strong>da</strong> Bélgica, a Itália tomou posse <strong>da</strong><br />

Eritréia e <strong>da</strong> Somália.<br />

11 A Libéria resistiu a expropriações e ao controle externo por meio <strong>de</strong> representações<br />

diplomáticas junto aos Estados Unidos, já a Etiópia conseguiu, a partir<br />

<strong>da</strong> resistência arma<strong>da</strong>, expulsar os italianos <strong>de</strong> seus territórios em 1896, na batalha<br />

<strong>de</strong> Adwa. O resultado <strong>da</strong> batalha teve profun<strong>da</strong> influência na história <strong>da</strong>s relações<br />

entre Europa e África. A Etiópia ganhou prestígio em to<strong>da</strong> a região do Mar Vermelho.<br />

Intelectuais negros do mundo manifestaram interesses pelo último estado<br />

in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>da</strong> África, visto que a Libéria fora forma<strong>da</strong> por afro-estaduni<strong>de</strong>nses<br />

(SILVÉRIO, 2013, p.374).<br />

se os indícios <strong>de</strong> sua origem bem como <strong>da</strong> relação íntima <strong>de</strong><br />

seus pais: “Não sei se minha mãe casou ou não com meu pai.<br />

Apenas sei que ele era italiano <strong>de</strong> Gênova, oficial <strong>da</strong> Marinha<br />

e que fora obrigado a fugir <strong>de</strong> uma guerra na África. Santiago<br />

Panatieri. Minha mãe era <strong>de</strong> pouca conversa” (PANATIERI,<br />

[s.d.], p. 1).<br />

Detém-se nestas duas passagens do escrito acima para<br />

interpretações. Primeiro, a questão <strong>da</strong> fuga <strong>de</strong> seu pai <strong>de</strong> “uma<br />

guerra na África” e, segundo, “a pouca conversa <strong>de</strong> sua mãe”.<br />

Notou-se que em nenhum momento Luciano Panatieri<br />

fez alusão ao imperialismo europeu em solo africano, e muito<br />

menos cita a tentativa <strong>de</strong> domínio italiano sobre a Etiópia e a<br />

Somália. Seria a fuga <strong>de</strong> seu pai, Santiago Panatieri, gera<strong>da</strong><br />

pelas resistências africanas?<br />

Segundo matéria noticia<strong>da</strong> no Jornal AMRIGS, produzi<strong>da</strong><br />

com o auxílio do neto <strong>de</strong> Luciano, Ramiro Panatiere, seu<br />

bisavô Santiago, militar, veio à América do Sul, mais precisamente<br />

ao Uruguai, atraído por oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>da</strong> Guerra do<br />

Paraguai (1864-1870) (AMRIGS, 2006, p. 15). A partir <strong>de</strong>sta<br />

constatação, po<strong>de</strong>-se enten<strong>de</strong>r que Santiago veio com Abrelina<br />

para a América antes do conflito ítalo-abissínio, o que vai<br />

ao encontro <strong>da</strong>s informações obti<strong>da</strong>s em entrevista concedi<strong>da</strong><br />

pela filha <strong>de</strong> Luciano, Dona Elvira. Possivelmente seu avô era<br />

um mercenário que, provavelmente, transitava entre a Itália e<br />

a África. Segundo suas palavras:<br />

Meu avô enxergou, essa minha avó, dizem que era<br />

muito bonita e se apaixonou por ela, vieram para<br />

o Uruguai [...], se conheceram na Itália, porque ele<br />

estava fazendo a rota para vir pra cá, eu acho que<br />

ele era esse tipo <strong>de</strong> pessoa que se ven<strong>de</strong> pra lutar<br />

[...] mercenário [...] (ELVIRA, 2015, p. 3).<br />

Mas o silêncio notado por Luciano Panatieri no que tange<br />

às falas <strong>de</strong> sua mãe teria relação com as mágoas <strong>de</strong>correntes<br />

<strong>de</strong>ste contexto <strong>de</strong> conflitos? Como teria sido a relação <strong>da</strong>s<br />

pessoas que geraram Panatieri? Algo <strong>de</strong>nota muita atenção<br />

nesta escrita: o fato <strong>de</strong> Panatieri não saber se os seus pais<br />

realmente eram casados. Destaca-se que sua mãe recebeu o<br />

nome e sobrenome <strong>de</strong> seu companheiro.<br />

162<br />

MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje


Luciano Raul Panatieri e Veridiano Farias<br />

Além <strong>de</strong>stas questões, outra tensão, envolvendo Santiago<br />

e Abrilina, foi a suposta tentativa <strong>de</strong> roubo do menino após<br />

a separação ocorri<strong>da</strong> no Uruguai. Nas escritas <strong>de</strong> Panatieri:<br />

“eu era ain<strong>da</strong> pequeno quando meu pai resolvera regressar.<br />

Minha mãe se opôs ele quis me roubar, mas não conseguiu”<br />

(PANATIERI, [s.d.], p. 2). Santiago retornou à Itália ou para a<br />

África, e Luciano ficou com a mãe, <strong>de</strong> quem herdou os traços<br />

negro-africanos (AMRIGS, 2006, p. 15).<br />

Provavelmente, Santiago rumou para lutar na Guerra entre<br />

a Itália e a Abissínia (Etiópia) e quis levar o seu filho para a Europa<br />

ou África, situação impedi<strong>da</strong> por Abrelina. Dona Elvira afirma<br />

que, após este episódio, “do roubo”, seu pai passou a ser criado,<br />

exclusivamente, por sua mãe, cozinheira (ELVIRA, 2013, p. 3) e<br />

doméstica (PANATIERI, [s.d.,], p. 3). Entretanto, nas escritas <strong>de</strong> si<br />

<strong>de</strong> Panatieri, localizou-se que sua mãe, após a separação <strong>de</strong> Santiago,<br />

se casou com o mestre <strong>de</strong> obras João dos Santos.<br />

Panatieri <strong>de</strong>screve: “morávamos no Uruguai e a maior satisfação<br />

<strong>de</strong> minha mãe era que eu não tinha nascido no Brasil<br />

e sim no Uruguai, pois ela não queria um filho brasileiro [...]<br />

eu fui matriculado e iniciei meus estudos no Uruguai” (PANA-<br />

TIERI, [s.d.], p. 1-2). Quais os motivos <strong>de</strong> sua mãe Abrelina não<br />

querer que seu filho fosse brasileiro? Seria uma consciência<br />

sobre as dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s encontra<strong>da</strong>s pelos negros no Brasil em<br />

virtu<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma abolição tardia? 12<br />

Após viver em Artigas, a família se mudou para Quaraí,<br />

no Brasil. Sua mãe ven<strong>de</strong>u as proprie<strong>da</strong><strong>de</strong>s que tinha na ci<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />

o que indica uma condição financeira razoável <strong>de</strong> sua família<br />

– ren<strong>da</strong>s possivelmente <strong>de</strong>ixa<strong>da</strong>s por Santiago e soma<strong>da</strong>s aos<br />

esforços <strong>de</strong> Abrelina e João dos Santos, seu padrasto. Porém,<br />

Luciano todos os dias atravessava a fronteira para estu<strong>da</strong>r em<br />

uma escola pública <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong> uruguaia (PANATIERI, [s.d.], p. 6).<br />

No dia 7 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 1912, “sem o consentimento <strong>de</strong><br />

sua mãe”, Luciano Panatieri veio com o seu padrasto, João dos<br />

Santos, para a capital do estado. Auxiliado por um “bom velho<br />

doente”, que o acompanhou até o cartório, inclusive, servindo<br />

<strong>de</strong> sua testemunha, Panatieri obteve o registro <strong>de</strong> nascimento<br />

como porto-alegrense, realizando assim, segundo ele, “sua<br />

maior aspiração”, ser brasileiro (PANATIERI, [s.d.], p. 7).<br />

12 No Uruguai a abolição foi <strong>de</strong>creta<strong>da</strong> em 1842, isto é, 46 anos antes do Brasil,<br />

o último país do mundo a abolir a escravidão, em 1888.<br />

Interessante notar, mesmo com estas afirmações, um<br />

fato curioso na entrevista com Dona Elvira. Na Copa <strong>de</strong> 1950,<br />

realiza<strong>da</strong> no Brasil, o jogo final foi entre Brasil e Uruguai, que,<br />

com o gol <strong>de</strong> Chiggia (1926-2015), <strong>de</strong>cretou o placar <strong>de</strong> 2 a<br />

1 e a <strong>de</strong>rrota brasileira para os visitantes (PERDIGÃO, 1986).<br />

Este episódio ficou conhecido como “maracanazo” pelos uruguaios.<br />

Na ocasião, a família <strong>de</strong> Panatieri estava assistindo ao<br />

jogo. Com muita emoção, o uruguaio naturalizado brasileiro<br />

levantou-se do sofá, colocou a mão no peito e começou a entoar<br />

o hino do Uruguai, seu país <strong>de</strong> origem. Nas memórias <strong>de</strong><br />

dona Elvira: “[...] ele falava uruguaio [...] aí a gente estava quase<br />

ganhando né, e houve um gol não sei <strong>de</strong> quem [Chiggia], o<br />

pai estava assistindo junto conosco e ele se levantou botou a<br />

mão no peito e cantou todo o hino do Uruguai [...] nós é que<br />

ficamos chateados” (ELVIRA, 2015, p. 4).<br />

Mesmo com esta dupla condição <strong>de</strong> nacionali<strong>da</strong><strong>de</strong>, <strong>de</strong>sperta<strong>da</strong><br />

por seus sentimentos posteriores, Luciano Raul Panatieri,<br />

ao ter se naturalizado brasileiro em 1912, aos 15 anos <strong>de</strong><br />

i<strong>da</strong><strong>de</strong>, enfim, conseguiu ain<strong>da</strong> jovem continuar seus estudos<br />

no Brasil, sem precisar mais atravessar a fronteira para estu<strong>da</strong>r.<br />

A PROCEDÊNCIA DE VERIDIANO FARIAS<br />

E O CONTEXTO SOCIAL DA IDENTIDADE<br />

NEGRA SUL-RIO-GRANDENSE NO FINAL<br />

DO SÉCULO XIX E INÍCIO DO SÉCULO XX<br />

Seis anos antes <strong>de</strong>ste acontecimento na vi<strong>da</strong> <strong>de</strong> Panatieri,<br />

mais precisamente no dia 18 <strong>de</strong> fevereiro <strong>de</strong> 1906, nascia<br />

na ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Rio Gran<strong>de</strong>, interior do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul, outro<br />

indivíduo negro: Veridiano Farias, filho <strong>de</strong> Franklin Fortunato<br />

e Maria Farias. Seu pai era estivador do Porto <strong>de</strong> Rio Gran<strong>de</strong>.<br />

Em Rio Gran<strong>de</strong> em 1888, havia 3.710 estrangeiros na população<br />

total do município, sendo quase a meta<strong>de</strong> composta<br />

<strong>de</strong> portugueses, <strong>de</strong>pois aparecendo italianos, alemães, franceses<br />

e ingleses. Esses estrangeiros correspon<strong>de</strong>riam a 18,3%<br />

<strong>da</strong> população total, enquanto 5.573 eram negros ou pardos<br />

(27,48%) (LONER, 1999, p. 67), correspon<strong>de</strong>ndo à expressiva<br />

<strong>de</strong>mografia afro<strong>de</strong>scen<strong>de</strong>nte.<br />

De maneira abrangente, no pós-abolição brasileiro, o negro<br />

libertado recebeu poucos incentivos <strong>de</strong> inserção por parte<br />

MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje 163


Luciano Raul Panatieri e Veridiano Farias<br />

do estado, o que <strong>de</strong> certa forma contribuiu para a sua que<strong>da</strong><br />

<strong>de</strong>mográfica, anomia e <strong>de</strong>sajuste social. Antes, escravo, constituindo-se<br />

na principal força <strong>de</strong> trabalho e integrado socialmente,<br />

sendo consi<strong>de</strong>rado, juntamente com a gran<strong>de</strong> lavoura, a<br />

base do sistema escravista (COSTA, 1998, p. 271).<br />

Essa situação <strong>de</strong> dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s foi vivencia<strong>da</strong> pelos negros<br />

na região sul do estado, já que Pelotas e Rio Gran<strong>de</strong> também<br />

se constituíram como centros comerciais <strong>de</strong> mão <strong>de</strong> obra escrava<br />

(GATTIBONI, 1993; ASSUMPÇÃO, 2013).<br />

Contudo, no caso do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul, Loner (1999)<br />

<strong>de</strong>stacou que nos municípios <strong>de</strong> Rio Gran<strong>de</strong> e Pelotas a integração<br />

dos libertos negros ocorreu nas indústrias, sendo estes<br />

integrados ao operariado, diferentemente do centro do país,<br />

que optou pela mão <strong>de</strong> obra imigrante.<br />

Esta situação explica a inserção do pai <strong>de</strong> Veridiano Farias,<br />

Franklin Fortunato, na profissão <strong>de</strong> estivador na ci<strong>da</strong><strong>de</strong> marítima<br />

<strong>de</strong> Rio Gran<strong>de</strong>. Entretanto, a crise provoca<strong>da</strong> pela Primeira Guerra<br />

Mundial advin<strong>da</strong> <strong>da</strong>s disputas imperialistas, em <strong>de</strong>corrência<br />

<strong>da</strong>s concorrências dos europeus junto às colônias na África e na<br />

Ásia, baixou as <strong>de</strong>man<strong>da</strong>s <strong>de</strong> importação e exportação no porto<br />

<strong>de</strong> Rio Gran<strong>de</strong>. Esta situação fez com que Franklin Fortunato<br />

Farias e Maria <strong>de</strong>ixassem o município e rumassem, no ano <strong>de</strong><br />

1919, para a capital, Porto Alegre, em busca <strong>de</strong> dias melhores.<br />

Nasceram em Porto Alegre os seguintes filhos do casal:<br />

Júlio, Armando, Olga, Wilmar, Homero e Danilo. Veridiano Farias<br />

tinha nesta época 13 anos <strong>de</strong> i<strong>da</strong><strong>de</strong> (FARIAS, 2010, p. 14).<br />

Em comum, os contextos cultural, econômico, político e social<br />

do período <strong>de</strong> nascimento <strong>de</strong> Luciano Panatieri e Veridiano Farias,<br />

em nível local e regional, foram <strong>de</strong>sfavoráveis à i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

negra que, mesmo com a abolição <strong>da</strong> escravidão, se mantinha<br />

com muita dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>. Já a nível internacional, os africanos sofriam<br />

as agruras <strong>de</strong> uma Guerra Mundial que envolvia diretamente<br />

os interesses europeus nas ricas terras africanas.<br />

Estas tensões envolveram tanto as famílias negras dos Panatieri<br />

quanto a família dos Farias, pois, se uma teve o seu trânsito<br />

<strong>da</strong> Europa e <strong>da</strong> África ao Uruguai e <strong>de</strong>pois ao Rio Gran<strong>de</strong><br />

do Sul, a outra teve a sua vi<strong>da</strong> transforma<strong>da</strong> a partir <strong>da</strong> Gran<strong>de</strong><br />

Guerra, <strong>de</strong>ixando a ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Rio Gran<strong>de</strong>, que sofreu diretamente<br />

pela falta <strong>de</strong> <strong>de</strong>man<strong>da</strong>s no Porto local, e fez com que o<br />

estivador Franklin <strong>de</strong>ixasse a região e partisse para Porto Alegre.<br />

AS TRAJETÓRIAS PESSOAIS, ESTUDANTIS E<br />

PROFISSIONAIS<br />

Retornando ao ano <strong>de</strong> 1912, Luciano Raul Panatieri, “naturalizado”<br />

e com documentos brasileiros, consegue entrar no<br />

Colégio Júlio <strong>de</strong> Castilhos, obtendo ótimas notas e aprovações.<br />

Foi “explicador”, uma espécie <strong>de</strong> monitor, <strong>de</strong> Matemática junto<br />

ao professor Carlos Cruz, inclusive recebendo um dinheiro<br />

para sua manutenção e <strong>de</strong> sua família (PANATIERI, [s.d.], p. 8).<br />

O menino também era bom <strong>de</strong> tiro, e foi até contemplado<br />

com o quinto lugar no Concurso <strong>de</strong> Tiro 15 <strong>de</strong> Novembro,<br />

representando o Gymnásio Júlio <strong>de</strong> Castilhos (A FEDERAÇÃO,<br />

13 nov. 1916, p. 3). A<strong>de</strong>mais, foi <strong>de</strong>vido a sua quali<strong>da</strong><strong>de</strong> intelectual<br />

que conseguiu cursar seis séries em apenas quatro<br />

anos, diplomando-se em 1916. 13<br />

Após terminar o Ginásio, com experiência em Matemática,<br />

Luciano quis prestar vestibular para Engenharia, porém sua<br />

mãe disse para ele que “não seguisse [fizesse] Engenharia porque<br />

era pobre e nessa profissão [...] [ele sempre] seria empregadinho<br />

[...] [e que] fosse para <strong>Medicina</strong>” (PANATIERI, [s.d], p.<br />

9). E segundo suas palavras: “[...] lá fui eu fazer <strong>Medicina</strong> <strong>de</strong><br />

um momento para outro, passei bem e <strong>da</strong>í empregando-me<br />

no Tesouro para substituir [aju<strong>da</strong>r] minha mãe que já estava<br />

doente e cansa<strong>da</strong> <strong>de</strong> lutar” (PANATIERI, [s.d], p. 9). 14<br />

No ano <strong>de</strong> 1917, ingressou na Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong><br />

como bolsista <strong>da</strong> Santa Casa <strong>de</strong> Misericórdia. Já a<strong>da</strong>ptado ao<br />

curso, no dia 19 <strong>de</strong> maio do mesmo ano, Panatieri fez uma<br />

conferência, sendo divulga<strong>da</strong> sua posição como acadêmico <strong>de</strong><br />

<strong>Medicina</strong> no Grêmio dos Cruzados na Igreja Metodista Central<br />

<strong>de</strong> Porto Alegre. Na ocasião, ele dissertou sobre a dor (A FE-<br />

DERAÇÃO, Porto Alegre, 10 maio 1917, p. 3).<br />

Figura <strong>de</strong> renome social ascen<strong>de</strong> em sua trajetória, já<br />

que era constantemente lembrado nas notas sociais do jornal<br />

A Fe<strong>de</strong>ração, na seção Vi<strong>da</strong> Social, por ocasião <strong>de</strong> seus aniver-<br />

13 Neste ano, ele e sua família fixam em Porto Alegre, sendo sua mãe emprega<strong>da</strong><br />

na casa do professor Carlos Cruz, que também veio do Uruguai e se estabeleceu<br />

na ci<strong>da</strong><strong>de</strong>, como professor do Júlio <strong>de</strong> Castilhos. Com o tempo, sem saber-se o<br />

motivo, a mãe <strong>de</strong> Luciano rompe os serviços prestados a Carlos Cruz (PANATIERI,<br />

[s.d.], p. 8).<br />

14 Panatieri foi nomeado no Concurso do Tesouro do Estado do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul no<br />

dia 2 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 1917. Ficou na oitava colocação (A FEDERAÇÃO, 2 out. 1917,<br />

p. 6). No dia 2 <strong>de</strong> agosto, foi promovido a oficial do Tesouro por merecimento (A<br />

FEDERAÇÃO, 2 ago. 1921, p. 1).<br />

164<br />

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Fotografia <strong>de</strong> Dr. Luciano Raul Panatieri<br />

com outro médicos – novembro <strong>de</strong> 1951<br />

Acervo: Dr. Luciano Raul Panatieri<br />

Doador: Espaço Cultural Panatiere <strong>de</strong> Rio Pardo


Luciano Raul PANATIERI e Veridiano Farias<br />

sários (22 nov. 1919, 1920) e do nascimento <strong>de</strong> seus filhos. 15<br />

Em 1922 diplomou-se em <strong>Medicina</strong>, <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>ndo tese sobre o<br />

tratamento <strong>da</strong> sífilis (Contribuição para o estudo <strong>da</strong> bismutoterapia<br />

na sífilis).<br />

Neste mesmo ano casou com Jacy Marques <strong>de</strong> Souza.<br />

No ano <strong>de</strong> 1923, prestou concurso para médico do Exército<br />

Nacional e saiu <strong>de</strong> Porto Alegre. Prestou serviços militares em<br />

Bagé – RS, Lorena – SP, Santiago – RS, no estado do Mato<br />

Grosso e em Santa Maria – RS. No ano <strong>de</strong> 1926, já com três filhos<br />

e exercendo a profissão <strong>de</strong> tenente médico militar, chega<br />

à ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Rio Pardo, interior do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul.<br />

Imagem 2. Veridiano tocando na Orquestra Jazz-Paris<br />

Fonte: Acervo <strong>MUHM</strong><br />

Luciano Raul Panatieri no Exército Brasileiro<br />

(primeiro sentado <strong>da</strong> direita para a esquer<strong>da</strong> na foto)<br />

Fonte: Acervo <strong>MUHM</strong><br />

Quando Luciano Panatieri retornou ao estado, como militar<br />

estabelecido profissionalmente, em 1926, Veridiano Farias<br />

terminava <strong>de</strong> servir ao Exército Brasileiro, sem seguir na carreira.<br />

16 Veridiano acabou envere<strong>da</strong>ndo para a carreira <strong>de</strong> músico<br />

profissional e foi integrante <strong>da</strong> Orquestra <strong>da</strong> Rádio Farroupilha.<br />

15 A esposa <strong>de</strong> Panatieri, Jacy <strong>de</strong> Souza Panatieri, também teve nota <strong>de</strong> aniversário<br />

publica<strong>da</strong> no jornal A Fe<strong>de</strong>ração. Na ocasião, foi escrita a seguinte informação,<br />

na seção Vi<strong>da</strong> Social do periódico: “Fazem annos (sic) amanhã [...] Jacy<br />

<strong>de</strong> Souza Panatieri, esposa <strong>de</strong> nosso correligionário Dr. Luciano Raul Panatieri” (A<br />

FEDERAÇAO, 5 fev. 1923, p. 3). Panatieri era correligionário, provavelmente, do<br />

Partido Republicano Rio-Gran<strong>de</strong>nse. O jornal A Fe<strong>de</strong>ração era o periódico oficial do<br />

partido no estado do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul.<br />

16 To<strong>da</strong>s as informações sobre a breve trajetória <strong>de</strong> Veridiano Farias foram<br />

extraí<strong>da</strong>s <strong>de</strong> documentos localizados no acervo pessoal <strong>de</strong> É<strong>de</strong>r Farias, como documentos<br />

militares, diplomas, ca<strong>de</strong>rnetas <strong>de</strong> notas, boletins, correspondências etc.<br />

(GOMES, 2010, p. 102-106).<br />

Dedicado aos estudos e vislumbrando ascen<strong>de</strong>r socialmente,<br />

Veridiano acaba concluindo o Curso Secundário, Primeiro<br />

Ciclo, no Colégio Anchieta, em Porto Alegre, em 1940; já o<br />

Segundo Ciclo, em 1942, foi concluído no Colégio Estadual Júlio<br />

<strong>de</strong> Castilhos, na mesma ci<strong>da</strong><strong>de</strong>, instituição on<strong>de</strong> 26 anos antes<br />

Luciano havia concluído seus estudos secundários (Ginásio).<br />

To<strong>da</strong>via, o “teimoso” completou o Curso Secundário com<br />

36 anos <strong>de</strong> i<strong>da</strong><strong>de</strong>, diferentemente <strong>de</strong> Panetieri, que concluiu<br />

seus estudos <strong>de</strong> Ginásio (Nível Médio) com apenas 19 anos. In<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente<br />

<strong>de</strong> sua i<strong>da</strong><strong>de</strong>, Veridiano Farias, em 1942, inscreveu-se<br />

na seleção <strong>da</strong> Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong> <strong>de</strong> Porto Alegre.<br />

Veridiano prestou vestibular por duas vezes, em 1942 e<br />

1943. No primeiro, foi reprovado em Física. No segundo vestibular<br />

ele passa, mas não obtém a média classificatória, ocupando o<br />

51º lugar, ou seja, <strong>de</strong>ssa vez foi aprovado, mas não classificado.<br />

Entretanto, com a média alcança<strong>da</strong> po<strong>de</strong>ria cursar a Facul<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> Ciência Médica do Rio <strong>de</strong> Janeiro. Sendo assim,<br />

arrumou suas malas e rumou à capital fe<strong>de</strong>ral na época. Lá,<br />

realizou algumas disciplinas <strong>de</strong> seu curso, solicitando transferência<br />

para Porto Alegre em 1946, o que veio a acontecer no<br />

dia 25 <strong>de</strong> fevereiro do ano <strong>de</strong> 1947.<br />

No documento expedido pelo diretor <strong>da</strong> Facul<strong>da</strong><strong>de</strong>, Dr.<br />

Guerra, a transferência <strong>de</strong> Veridiano Farias ocorreu <strong>de</strong>vido a<br />

uma solicitação própria, ou como escrito no documento “em<br />

166<br />

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Luciano Raul Panatieri e Veridiano Farias<br />

virtu<strong>de</strong> <strong>da</strong>s circunstâncias”. Po<strong>de</strong>mos citar a sau<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> família,<br />

<strong>da</strong> mulher, dos filhos, <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong> on<strong>de</strong> morava etc. 17 , ou quem<br />

sabe o seu <strong>de</strong>sejo maior, que era cursar e se formar pela Facul<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> <strong>Medicina</strong> <strong>de</strong> Porto Alegre, na qual não obteve êxito<br />

momentâneo.<br />

Veridiano conseguiu sua transferência após um ano no<br />

Rio <strong>de</strong> Janeiro. Concomitantemente aos seus estudos, assumiu<br />

as funções <strong>de</strong> chofer no Departamento Estadual <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>,<br />

“emprego mo<strong>de</strong>sto que os seus amigos lhe arranjaram”, conforme<br />

explicou o colega Isaac Kelbert: “Veridiano, saía <strong>de</strong> seu<br />

serviço <strong>de</strong> dia e à noite estu<strong>da</strong>va Anatomia Patológica [...].<br />

Além <strong>de</strong> chofer exerceu a função <strong>de</strong> motorneiro <strong>de</strong> bon<strong>de</strong> e<br />

oficial administrativo” (A HORA, 1954, p. 4). Assim, no dia<br />

15 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1951, Veridiano Farias diplomou-se pela<br />

Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong> <strong>da</strong> UFRGS.<br />

Nas palavras do Dr. Isaac Kelbert: “no dia 15 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro<br />

<strong>de</strong> 1951, vestindo o seu impecável smoking teve o nosso<br />

herói a maior noite <strong>de</strong> sua vi<strong>da</strong> [...], a maior salva <strong>de</strong> palmas<br />

<strong>da</strong> noite foi reserva<strong>da</strong> para ele [...] pelo esforço, pela per<strong>da</strong><br />

<strong>de</strong> horas <strong>de</strong> dormir, pelo sacrifício pessoal” (A HORA, 10 set.<br />

1954, p. 7).<br />

Além <strong>da</strong> medicina, a música era a outra profissão <strong>de</strong> Veridiano<br />

Farias, que tocava trombone em blocos carnavalescos<br />

e em orquestras. Foi também músico <strong>da</strong> Rádio Farroupilha.<br />

Era “múltiplo instrumentista: tocava trombone <strong>de</strong> vara, violino<br />

e piano” (MATTOS apud FARIAS, 2010, p. 110) e utilizava o<br />

dinheiro recebido para custear os livros <strong>de</strong> seus estudos.<br />

Após um ano <strong>de</strong> sua formatura, Veridiano Farias foi trabalhar<br />

como <strong>de</strong>rmatologista no Leprosário <strong>de</strong> Itapuã. Contudo,<br />

faleceu em 1952, em virtu<strong>de</strong> <strong>de</strong> problemas cardíacos.<br />

Lamentavelmente, teve uma carreira <strong>de</strong> médico curta, porém<br />

intensa.<br />

Retornando às experiências profissionais <strong>de</strong> Luciano Raul<br />

Panatieri, no final <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1920, instalado na ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

Rio Pardo, pe<strong>de</strong> <strong>de</strong>missão do Exército e passa a atuar exclusivamente<br />

como médico civil.<br />

“Foi um dos integrantes <strong>da</strong> equipe que construiu o Hospital<br />

<strong>da</strong> Irman<strong>da</strong><strong>de</strong> do Senhor dos Passos <strong>de</strong> Rio Pardo” (AMRI-<br />

GS, 2006, p. 15). Porém, “era em clínica própria que mantinha<br />

no casarão, que também residíamos, que Panatieri atendia os<br />

casos mais graves” (ELVIRA, 2015, p. 7).<br />

Aliás, como Luciano Panatieri adquiriu este casarão? O<br />

sobrado, construído em 1798, abrigou o imperador D. Pedro<br />

II em visita ao Rio Gran<strong>de</strong> do Sul em 1865. Pertencia a Abílio<br />

Martins <strong>de</strong> Castro, sendo adquirido pelo médico logo após<br />

retornar <strong>de</strong> São Paulo em 1926.<br />

Sobre a aquisição do casarão, segundo Dona Elvira:<br />

Imagem 3. Veridiano, <strong>de</strong> toga<br />

Fonte: Acervo <strong>MUHM</strong><br />

17 Veridiano casou com Isabel e teve dois filhos, Judithe e William.<br />

Ele [Luciano Panatieri] foi convocado a ir numa fazen<strong>da</strong><br />

pra aten<strong>de</strong>r uma paciente que nunca conseguiu<br />

vingar os filhos [...] não sei por que cargas<br />

[...] e aí talvez tenham dito pra ele que tinha um<br />

médico assim, que ele era muito estudioso [...] ele<br />

foi buscar o meu pai, trancou no quarto que estava<br />

esperando a criança e disse assim pra ele: se ela<br />

MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje 167


Luciano Raul PANATIERI e Veridiano Farias<br />

morrer ou meu filho, tu não sai vivo <strong>da</strong>qui [...] e fechou<br />

a porta [...] ele e a parturiente. Meu pai ficou<br />

[...] um ou dois dias [...] e conseguiu então trazer a<br />

vi<strong>da</strong> à tal <strong>da</strong> criança [...] ele foi liberado, então ele<br />

po<strong>de</strong> ir embora pra casa [...] mas ele foi muito bem<br />

recompensado financeiramente [...] ele conseguiu<br />

comprar meta<strong>de</strong> <strong>da</strong> casa [...] (ELVIRA, 2015, p. 7).<br />

A outra parte <strong>da</strong> casa foi adquiri<strong>da</strong> pela mediação <strong>de</strong><br />

um padre, pois lá funcionava uma escola <strong>de</strong> freiras chama<strong>da</strong><br />

Coração <strong>de</strong> Maria, que estava ficando muito pequena para<br />

servir como escola. Panatieri comprou todo o imóvel, e as freiras<br />

foram para um espaço maior (ELVIRA, 2015). Atualmente,<br />

mantido pela família, funciona na mesma casa o Solar dos<br />

Panatieri, um espaço cultural <strong>de</strong>stinado a preservar a memória<br />

do médico.<br />

Segundo os <strong>da</strong>dos biográficos <strong>de</strong> Panatieri, localizados<br />

no acervo privado <strong>de</strong> Dona Elvira (A.P.E, 2015), seu pai “atuou<br />

no <strong>de</strong>senvolvimento do Hospital <strong>da</strong> Irman<strong>da</strong><strong>de</strong> do Senhor<br />

Bom Jesus dos Passos [...]”, consi<strong>de</strong>rado ótimo orador, e “participou<br />

<strong>de</strong> Congressos Eucarísticos em Santa Maria (1935) e<br />

em Rio Pardo (1939); no Rio <strong>de</strong> Janeiro fez cursos <strong>de</strong> especialização<br />

em cirurgia, ginecologia e obstetrícia”.<br />

Luciano Panatieri publicou livros em Rio Pardo e transitou<br />

nos meios intelectuais <strong>de</strong> Porto Alegre, sobretudo na companhia<br />

<strong>de</strong> Dante <strong>de</strong> Laytano (1908-2000), historiador e pesquisador<br />

<strong>da</strong> i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> do negro sul-rio-gran<strong>de</strong>nse. Juntos publicaram<br />

livro editado pelo Instituto Histórico e Geográfico do Rio<br />

Gran<strong>de</strong> do Sul.<br />

Na déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1940, Panatieri escreveu a Contribuição ao<br />

estudo do <strong>de</strong>senvolvimento <strong>da</strong> criança em Rio Pardo (1944) e<br />

foi colaborador <strong>de</strong> revistas científicas como Arquivos <strong>de</strong> Biologia,<br />

edita<strong>da</strong> em São Paulo, Revista Brasileira <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong> e<br />

Farmácia e Revista <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong> e Higiene Militar, além <strong>de</strong> ter<br />

sido correspon<strong>de</strong>nte <strong>da</strong> Revista O Observador Econômico e<br />

Financeiro. Publicou também o ensaio intitulado A propósito<br />

do temperamento <strong>de</strong> Dom Pedro II (1943) (A.P.E, 2015). Estas<br />

produções bem como a sua atuação como médico caracterizam<br />

a sua intensa ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> intelectual e profissional. 18<br />

Imagem 5. Médicos reunidos (Luciano em pé, à esquer<strong>da</strong>, com<br />

os colegas médicos; o quarto, sentado, <strong>da</strong> esquer<strong>da</strong> à direita,<br />

é o médico Gabino) 19<br />

Fonte: Acervo <strong>MUHM</strong><br />

Imagem 4. Luciano Panatieri com a esposa, Jacy, e o filho Raul<br />

Fonte: Acervo <strong>MUHM</strong><br />

18 Luciano teve <strong>de</strong>z filhos com Jacy. Destes, dois seguiram a profissão do pai,<br />

médico: Romeu, clínico geral, e Rômulo, anestesista. Em or<strong>de</strong>m, seguem os <strong>de</strong>z<br />

filhos do casal: Raul, Romeu, Lour<strong>de</strong>s Conceição, Jacy Terezinha, Renê Lamberto,<br />

Rui, Rômulo (83 anos), Marta, Elvira (76 anos) e Abrelina. Rômulo e Elvira são os<br />

únicos vivos.<br />

19 Gabino Prates <strong>da</strong> Fonseca (1889-1973) “foi fun<strong>da</strong>dor e presi<strong>de</strong>nte <strong>da</strong> primeira<br />

comissão executiva do Sindicato Médico do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul, tornando-se figura<br />

<strong>de</strong>staca<strong>da</strong> na busca <strong>da</strong> regulamentação do exercício <strong>da</strong> medicina. Esta meta era<br />

expressa através do Boletim do Sindicato Médico, publicação oficial <strong>da</strong> enti<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

cria<strong>da</strong> em 1931, <strong>da</strong> qual Doutor Gabino era um dos re<strong>da</strong>tores” (ACERVO <strong>MUHM</strong>).<br />

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Luciano Raul Panatieri e Veridiano Farias<br />

EXPERIÊNCIAS COMO MEMBROS DA<br />

COMUNIDADE NEGRA<br />

Frantz Fanon (1925-1961), psiquiatra e filósofo, intelectual<br />

dos estudos pós-coloniais, no final <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1950,<br />

ao relatar sua experiência, vivi<strong>da</strong> como um negro em uma socie<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

branca, disse: “lancei sobre mim um olhar objetivo,<br />

<strong>de</strong>scobri minha negridão, minhas características étnicas [...]<br />

queria simplesmente ser um homem entre os homens”, mas<br />

“alguns me associavam aos meus ancestrais escravizados, linchados<br />

[...] <strong>de</strong>cidi me assumir [...] entrei na luta” (FANON,<br />

2008, p. 105-107).<br />

Estas reflexões, mesmo sendo <strong>de</strong> um espaço geográfico<br />

diferente do vivenciado por Luciano e Veridiano, já que foram<br />

feitas por Fanon na França, possibilitam interpretar como os<br />

médicos negros sul-rio-gran<strong>de</strong>nses enfrentaram os estigmas<br />

<strong>da</strong> escravidão, pois a i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> diaspórica negro-africana e o<br />

fenótipo (corpo) negro <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a colonização foram estereotipados<br />

(GILROY, 1993; BHABHA, 2007; FANON, 2008). Portanto,<br />

como Luciano e Veridiano lutaram contra os preconceitos e a<br />

favor <strong>da</strong> negritu<strong>de</strong>?<br />

Luciano Raul Panatieri, conforme pesquisas <strong>de</strong> José<br />

Antônio dos Santos (2011), foi re<strong>da</strong>tor <strong>da</strong> imprensa negra<br />

no final <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1920. 20 Utilizando o seu senso criativo<br />

e intelectual, escreveu a favor <strong>da</strong> conscientização e <strong>da</strong> integração<br />

<strong>da</strong> i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> negra. Mais especificamente, atuou<br />

no periódico O Exemplo (1892-1930), <strong>de</strong> Porto Alegre, e no<br />

jornal O Astro (1927-1928), <strong>de</strong> Cachoeira do Sul. O intelectual<br />

participou ain<strong>da</strong> <strong>da</strong> fun<strong>da</strong>ção do Centro Riopar<strong>de</strong>nse<br />

<strong>de</strong> Letras.<br />

O envolvimento com a divulgação, geralmente, era realizado<br />

pelas principais li<strong>de</strong>ranças <strong>da</strong>s comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>s negras.<br />

Essas pareciam ser ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s obrigatórias para o reconhecimento<br />

e a legitimi<strong>da</strong><strong>de</strong> pública dos re<strong>da</strong>tores <strong>da</strong> imprensa<br />

negra (SANTOS, 2011, p. 207). Portanto, Panatieri afirmou a<br />

sua i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> e se afirmou como intelectual a partir <strong>de</strong> sua<br />

competente contribuição para a imprensa negra do Estado.<br />

20 A reivindicação por igual<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> direitos civis foi manifesta<strong>da</strong> nas páginas<br />

<strong>da</strong> imprensa negra com relatos cotidianos <strong>de</strong> atos racistas e preconceituosos, omissões<br />

<strong>de</strong> autori<strong>da</strong><strong>de</strong>s e proibições <strong>de</strong> circular em espaços públicos (SANTOS, 2011,<br />

p. 13).<br />

Já Veridiano afirmou sua i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> negra por outro<br />

viés: o carnaval <strong>de</strong> rua. “Estu<strong>da</strong>r o carnaval <strong>de</strong> rua é estu<strong>da</strong>r o<br />

grupo nele prepon<strong>de</strong>rante, que são os <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> africanos”<br />

(GERMANO, 2010, p. 102). Nas déca<strong>da</strong>s <strong>de</strong> 1930 e<br />

1940, o negro se apropria do carnaval <strong>de</strong>limitando uma i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

urbana, sobretudo, em Porto Alegre. Era uma forma <strong>de</strong><br />

afirmar a i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> negra.<br />

O carnaval <strong>de</strong> rua serviu para as populações negras urbanas<br />

celebrarem a sua memória, as suas tradições, as suas relações<br />

cotidianas, os seus territórios e sociabili<strong>da</strong><strong>de</strong>s, amiza<strong>de</strong>,<br />

compadrio e <strong>de</strong>savenças (GERMANO, 2010, p. 102-108). O<br />

número <strong>de</strong> cordões e blocos passam a ser significativos, como<br />

os “Tesouras” e os “Turunas”.<br />

Veridiano adorava o carnaval e, com seus conhecimentos<br />

sobre música, foi importante na história dos grupos <strong>de</strong> Porto<br />

Alegre. Como ensaiador dos “Prediletos”, costumava se reunir<br />

com a comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> nos bares do Areal <strong>da</strong> Baronesa, no Bairro<br />

Ci<strong>da</strong><strong>de</strong> Baixa (FARIAS, 2010, p. 46).<br />

Segundo Hélio Dias, amigo do falecido médico, a sua<br />

“convivência com o Dr. Veridiano aconteceu por causa do carnaval<br />

[...]”. Veridiano foi um dos responsáveis pela organização<br />

<strong>de</strong> uma <strong>da</strong>s primeiras tribos <strong>de</strong> índios do carnaval <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong>:<br />

“os ‘Caetés’ “ensaiavam em sua casa e ele nos oferecia<br />

iguarias e bebi<strong>da</strong>s. Era uma festa!” (DIAS apud FARIAS, 2010,<br />

p. 109). Além <strong>de</strong> participar do carnaval <strong>de</strong> rua, Veridiano também<br />

se <strong>de</strong>stacou em orquestras profissionais.<br />

Iris Germano (2010) <strong>de</strong>scobriu em entrevistas com o Sr.<br />

Adão <strong>de</strong> Oliveira (seu Lelé) (1925-2013), “Rei Momo Negro”<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1948, que a Etiópia era constantemente evoca<strong>da</strong> nos<br />

discursos <strong>de</strong> abertura do carnaval <strong>de</strong> rua <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Porto<br />

Alegre, no intuito <strong>de</strong> referenciar a resistência cotidiana <strong>da</strong><br />

i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> negra contra o estigma e a exclusão.<br />

A mãe <strong>de</strong> Luciano Panatieri, Abrelina, nasceu na Etiópia.<br />

O carnaval <strong>de</strong> rua, frequentado por Veridiano Farias em<br />

Porto Alegre, evocou a Etiópia como símbolo <strong>de</strong> luta, frente<br />

ao colonialismo. Panatieri e Farias referenciaram ao longo <strong>de</strong><br />

suas trajetórias a i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> negra. Esta i<strong>de</strong>ntificação cultural,<br />

política e social não significou retrocessos em suas vi<strong>da</strong>s, como<br />

o contexto aferia; muito pelo contrário, ambos, negros, galgaram<br />

espaços e se diplomaram médicos.<br />

MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje 169


Luciano Raul Panatieri e Veridiano Farias<br />

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SANTOS, Irene (coord.). Colonos e quilombolas: memória fotográfica<br />

<strong>da</strong>s colônias africanas <strong>de</strong> Porto Alegre. Porto Alegre: Nova Letra<br />

Gráfica, 2010.<br />

_______. Negro em preto e branco: história fotográfica <strong>da</strong> população<br />

negra <strong>de</strong> Porto Alegre. Porto Alegre: Fumproart, 2005.<br />

SANTOS, José Antônio. Prisioneiros <strong>da</strong> história. Trajetória <strong>de</strong> intelectuais<br />

na imprensa negra meridional. 2011. 281 f. Tese (Doutorado<br />

em <strong>História</strong>) – Programa <strong>de</strong> Pós-Graduação em <strong>História</strong>, Pontifícia<br />

Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Católica do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul, Porto Alegre, 2011.<br />

SILVÉRIO, Valter Roberto. Síntese <strong>História</strong> Geral <strong>da</strong> África. Século<br />

XVI ao século XX. Brasília: UNESCO/MEC/UFSCAR, 2013.<br />

SCHIAVONI, Alexandre. Triângulo <strong>de</strong> saberes em disputa: a medicina<br />

no Sul do Brasil. ANPUH – XXIII SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓ-<br />

RIA, Londrina, 2005, p. 1. Disponível em: Acesso em:<br />

13 jul. 2015.<br />

WUNDERLICH, José Ernesto. E-mail à Zero Hora, Porto Alegre, 2005.<br />

IMPRESSOS<br />

JORNAL AMRIGS, Porto Alegre, jul./ago. 2006, p. 15.<br />

JORNAL ZERO HORA, Ca<strong>de</strong>rno D, Porto Alegre, 18 set. 2005, p. 3-4.<br />

JORNAL ZERO HORA, Porto Alegre, 16 maio 2006, p. 62.<br />

JORNAL ZERO HORA, Porto Alegre, 27 maio 2006, p. 46.<br />

JORNAL A FEDERAÇÃO, Porto Alegre, 13 nov. 1916 a fevereiro <strong>de</strong> 1923.<br />

ENTREVISTA<br />

PANATIERI, Elvira. Porto Alegre, 10 jul. 2015.<br />

SITE<br />

PANATIERI, Elvira. Disponível em: <br />

Acesso em: 20 jul. 2015.<br />

ACERVOS CONSULTADOS<br />

Acervo integrante <strong>da</strong> Reserva Técnica do <strong>Museu</strong> <strong>da</strong> <strong>História</strong> <strong>da</strong> <strong>Medicina</strong><br />

(<strong>MUHM</strong>).<br />

Acervo Particular <strong>de</strong> Dona Elvira Panatieri (A.P.E).<br />

MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje 171


Médicos ju<strong>de</strong>us no Rio Gran<strong>de</strong> do Sul<br />

MÉDICOS JUDEUS NO<br />

RIO GRANDE DO SUL<br />

LORENA ALMEIDA GILL<br />

Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Pelotas - UFPEL<br />

MICAELE IRENE SCHEER<br />

Doutoran<strong>da</strong> em <strong>História</strong> pela<br />

Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul - UFRGS<br />

172<br />

MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje


I<br />

NTRODUÇÃO<br />

Médicos ju<strong>de</strong>us no Rio Gran<strong>de</strong> do Sul<br />

No final <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1990, foi <strong>de</strong>senvolvido, junto ao<br />

Núcleo <strong>de</strong> Documentação Histórica (NDH) <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Pelotas (UFPel), um trabalho que versou sobre os<br />

ju<strong>de</strong>us <strong>da</strong> prestação em Pelotas (RS) 1 , entre os anos <strong>de</strong> 1920 e<br />

1945. A intenção primeira era a <strong>de</strong> analisar to<strong>da</strong> a documentação<br />

existente na Socie<strong>da</strong><strong>de</strong> Israelita <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong> para compor um<br />

quadro geral vinculado àquela imigração, especialmente sobre<br />

cerca <strong>de</strong> 120 famílias que haviam se instalado em Pelotas, mas<br />

a inexistência 2 <strong>de</strong> qualquer acervo documental fez com que os<br />

caminhos metodológicos fossem construídos a partir <strong>da</strong> coleta<br />

e observação <strong>de</strong> notícias <strong>de</strong> jornais e do uso <strong>da</strong> história oral<br />

temática, ao serem construí<strong>da</strong>s várias narrativas com ju<strong>de</strong>us,<br />

especialmente <strong>da</strong> segun<strong>da</strong> geração.<br />

Já a partir do ano <strong>de</strong> 2000, um dos temas abor<strong>da</strong>dos,<br />

entre as pesquisas realiza<strong>da</strong>s pelo NDH, foi a história <strong>da</strong> saú<strong>de</strong><br />

e <strong>da</strong> doença, com foco na trajetória <strong>de</strong> tuberculosos também<br />

na ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Pelotas, entre os anos <strong>de</strong> 1890 e 1930. 3 Neste<br />

caso, a metodologia fun<strong>da</strong>mental, até mesmo pela distância<br />

temporal, foi a análise documental em relatórios <strong>da</strong> Intendên-<br />

1 O trabalho <strong>de</strong>u origem ao livro “Clienteltchiks”: os ju<strong>de</strong>us <strong>da</strong> prestação em Pelotas<br />

(RS) 1920-1945. Pelotas: Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Pelotas. Ed. Universitária, 2001,<br />

<strong>de</strong> autoria <strong>de</strong> Lorena Almei<strong>da</strong> Gill.<br />

2 A inexistência <strong>de</strong> fontes escritas, nesse caso, é altamente reveladora, faz com que<br />

se possa pensar nas i<strong>de</strong>ias <strong>de</strong> vazio, <strong>de</strong> lapso, <strong>de</strong> silêncio e esquecimento. Tanto<br />

po<strong>de</strong> ser compreendi<strong>da</strong> como uma reorganização <strong>da</strong>s práticas e tradições como<br />

uma obliteração força<strong>da</strong>, em razão as perseguições e discriminações sofri<strong>da</strong>s pelos<br />

ju<strong>de</strong>us ao longo <strong>da</strong> história.<br />

3 Ver: GILL, Lorena Almei<strong>da</strong>. O mal do século: tuberculose, tuberculosos e políticas<br />

<strong>de</strong> saú<strong>de</strong> em Pelotas (RS) 1890-1930. Pelotas: EDUCAT, 2007.<br />

MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje 173


Médicos ju<strong>de</strong>us no Rio Gran<strong>de</strong> do Sul<br />

cia, dos Negócios do Interior e do Exterior, além <strong>da</strong> observação<br />

<strong>de</strong> 80 anos <strong>de</strong> jornais diários, ou seja, foram observados 40<br />

anos do jornal Diário Popular (DP), órgão oficial do Partido<br />

Republicano Rio-Gran<strong>de</strong>nse, e 40 outros anos <strong>de</strong> jornais que<br />

conjunturalmente se colocavam em oposição ao DP.<br />

Desse modo, passados muitos anos <strong>da</strong> feitura <strong>de</strong>sses dois<br />

estudos, é como se os caminhos se juntassem novamente: ju<strong>da</strong>ísmo<br />

e saú<strong>de</strong> e doença, através <strong>da</strong> observação <strong>da</strong> atuação<br />

<strong>de</strong> médicos ju<strong>de</strong>us no Rio Gran<strong>de</strong> do Sul.<br />

Ao se receber o convite do <strong>Museu</strong> <strong>da</strong> <strong>História</strong> <strong>da</strong> <strong>Medicina</strong>,<br />

restou uma dúvi<strong>da</strong> em como abor<strong>da</strong>r um tema tão<br />

abrangente, até mesmo porque as pesquisas anteriores sempre<br />

tiveram como foco uma ci<strong>da</strong><strong>de</strong> do interior e não o estado<br />

como um todo, embora, é claro, o estado seja uma espécie <strong>de</strong><br />

balizador para se avaliar políticas <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>.<br />

O material que agora chega às mãos dos leitores não<br />

<strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser, portanto, oriundo <strong>de</strong> uma visão a partir <strong>de</strong> uma<br />

ci<strong>da</strong><strong>de</strong>, mas se procurou conhecer outras reali<strong>da</strong><strong>de</strong>s. Para isso,<br />

foram fun<strong>da</strong>mentais as entrevistas existentes no acervo do Instituto<br />

Cultural Ju<strong>da</strong>ico Marc Chagall (ICJMC), que reúne documentação<br />

importante e pioneira em termos <strong>de</strong> história oral. O<br />

Departamento <strong>de</strong> <strong>História</strong> Oral do ICJMC começou a realizar<br />

as entrevistas em 1986, com o projeto Preservação <strong>da</strong> Memória<br />

Ju<strong>da</strong>ica, e tinha como objetivo preservar “a memória <strong>da</strong><br />

coletivi<strong>da</strong><strong>de</strong> ju<strong>da</strong>ica no Rio Gran<strong>de</strong> do Sul (RS); o registro <strong>da</strong><br />

sua presença na história <strong>de</strong>ste estado”, valorizando sua contribuição<br />

na plurali<strong>da</strong><strong>de</strong> étnica, cultural e religiosa que caracteriza<br />

a nação brasileira . 4 Este projeto perdurou até o ano <strong>de</strong><br />

1992, compilando cerca <strong>de</strong> 400 entrevistas classifica<strong>da</strong>s como<br />

história oral <strong>de</strong> vi<strong>da</strong>. 5<br />

É preciso dizer que, neste texto, se está trabalhando fun<strong>da</strong>mentalmente<br />

com memórias, através <strong>da</strong> metodologia <strong>da</strong><br />

história oral. Portelli (1997, p. 15) tem uma <strong>de</strong>finição exemplar<br />

sobre esta metodologia, ao assim colocar:<br />

4 Além <strong>de</strong>ste projeto, o ICJMC, no ano <strong>de</strong> 1992, <strong>de</strong>u início a uma pesquisa<br />

sobre instituições, associações e li<strong>de</strong>ranças <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>/i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> ju<strong>da</strong>ica no<br />

Rio Gran<strong>de</strong> do Sul. Nesta oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong>, foram feitas diversas entrevistas temáticas.<br />

Ver: Acesso em: 24 jul. 2015.<br />

5 A história oral, para Freitas (2006), po<strong>de</strong> ser dividi<strong>da</strong> em três gêneros distintos:<br />

tradição oral, história <strong>de</strong> vi<strong>da</strong> e história temática. A história <strong>de</strong> vi<strong>da</strong> po<strong>de</strong> abranger<br />

a totali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> existência do informante e, normalmente, essas narrativas são<br />

construí<strong>da</strong>s no <strong>de</strong>correr <strong>de</strong> encontros, constituindo longos relatos. A história temática<br />

versa sobre um tema norteador, estabelecendo um roteiro e um objetivo à<br />

narrativa. A tradição oral se relaciona mais fortemente com a antropologia.<br />

A história oral é a ciência e arte do indivíduo. Embora<br />

diga respeito – assim como a sociologia e antropologia<br />

– a padrões culturais, estruturas sociais<br />

e processos históricos, visa aprofundá-los em essência,<br />

por meio <strong>de</strong> conversas com pessoas sobre a experiência<br />

e a memória individuais e ain<strong>da</strong> por meio<br />

do impacto que estas tiveram na vi<strong>da</strong> <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> uma.<br />

O foco é o que Alberti (2004, p. 25) chama <strong>de</strong> história<br />

<strong>da</strong>s experiências. Segundo a autora, “entrevistas <strong>de</strong> história<br />

oral po<strong>de</strong>m ser usa<strong>da</strong>s no estudo <strong>da</strong> forma como pessoas ou<br />

grupos efetuaram e elaboraram experiências, incluindo situações<br />

<strong>de</strong> aprendizado e <strong>de</strong>cisões estratégicas”.<br />

Embora as entrevistas tenham sido feitas na perspectiva<br />

<strong>de</strong> construir uma trajetória <strong>de</strong> vi<strong>da</strong> <strong>de</strong>stas pessoas, o olhar <strong>da</strong>s<br />

autoras se <strong>da</strong>rá, especialmente, no que interessa à profissão<br />

<strong>de</strong> médico. É importante ressaltar que haveria vários outros<br />

nomes <strong>de</strong> médicos que po<strong>de</strong>riam ser citados e cuja experiência<br />

muito contribuiria para a história <strong>de</strong>ssa etnia no estado.<br />

Tendo em vista, no entanto, a exigui<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> tempo para a<br />

composição do material, se optou por abor<strong>da</strong>r narrativas já<br />

existentes tanto no ICJMC quanto no Laboratório <strong>de</strong> <strong>História</strong><br />

Oral do NDH/UFPel. 6<br />

OS JUDEUS NO RIO GRANDE DO SUL NO<br />

SÉCULO XX<br />

A imigração ju<strong>da</strong>ica para o Rio Gran<strong>de</strong> do Sul, como um<br />

movimento <strong>de</strong> coletivi<strong>da</strong><strong>de</strong>, começou no ano <strong>de</strong> 1904, embo-<br />

6 Havia também, no Laboratório <strong>de</strong> <strong>História</strong> Oral do NDH, entrevista com o médico<br />

Simon Halpern, nascido em 1936, no Uruguai, na ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Melo, vindo para o Brasil<br />

com oito meses <strong>de</strong> i<strong>da</strong><strong>de</strong>. Seu pai iniciou como ven<strong>de</strong>dor ambulante <strong>de</strong> tecidos;<br />

sua mãe cui<strong>da</strong>va <strong>da</strong> casa. Ambos eram poloneses. Simon, que atuou a maior parte<br />

<strong>de</strong> sua vi<strong>da</strong> como pediatra, se formou na UFRGS, permanecendo em Porto Alegre<br />

pelo período <strong>de</strong> seu curso <strong>de</strong> graduação. Praticou <strong>de</strong>pois no Hospital Santo Antônio,<br />

sendo orientado por dois médicos mais antigos na profissão. O médico também<br />

teve uma carreira acadêmica como professor na Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Pelotas.<br />

Ele se aposentou no ano <strong>de</strong> 1989 na UFPel e faz uma espécie <strong>de</strong> retrospecto <strong>de</strong> sua<br />

carreira, ao assim dizer, sobre o período em que esteve à frente <strong>de</strong> uma estrutura<br />

<strong>de</strong> saú<strong>de</strong> <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong>: “[...] Estou orgulhoso do que fiz, sem falsa modéstia, mas é<br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong>. Eu cheguei ao centro <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> com a incidência <strong>de</strong> vacinação na ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

66%, eu terminei meu trabalho no centro <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> para assumir a <strong>de</strong>legacia, com<br />

92%. Eu me <strong>de</strong>diquei”. Simon revela poucos episódios em que presenciou atos <strong>de</strong><br />

antissemitismo em sua trajetória <strong>de</strong> vi<strong>da</strong>. Diz se sentir reconhecido pela comuni<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

pelotense, on<strong>de</strong> escolheu viver e à qual <strong>de</strong>dicou seu trabalho.<br />

174<br />

MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje


Médicos ju<strong>de</strong>us no Rio Gran<strong>de</strong> do Sul<br />

ra ain<strong>da</strong> em fins do século XIX e anos iniciais do século XX sejam<br />

encontrados, em jornais 7 , referências a ju<strong>de</strong>us resi<strong>de</strong>ntes<br />

no estado.<br />

O ano <strong>de</strong> 1904 será o momento em que <strong>de</strong>cisões individuais<br />

ce<strong>de</strong>m lugar à intenção <strong>de</strong> famílias estabelecerem-se<br />

no país e isso será feito através do núcleo agrícola <strong>de</strong> Philippson,<br />

no município <strong>de</strong> Santa Maria. São instala<strong>da</strong>s na região<br />

27 famílias, totalizando 267 pessoas, em uma área <strong>de</strong> 4.472<br />

hectares, que <strong>de</strong>pois foram ampliados para 5.500 hectares.<br />

Estas pessoas eram provenientes <strong>da</strong> Bessarábia, atual território<br />

<strong>da</strong> Moldávia. Ca<strong>da</strong> família recebeu um lote <strong>de</strong> 25 hectares<br />

<strong>de</strong> terra, <strong>de</strong> campo e mato, além <strong>de</strong> uma casa, instrumentos<br />

<strong>de</strong> trabalho, duas juntas <strong>de</strong> bois, duas vacas, um cavalo e suprimento<br />

em dinheiro, até o momento em que pu<strong>de</strong>ssem sobreviver<br />

exclusivamente com os rendimentos <strong>de</strong> seu trabalho<br />

(BACK, 1958, p. 273). Todos os gastos, no entanto, teriam que<br />

ser ressarcidos à Companhia em um prazo <strong>de</strong> <strong>de</strong>z a 20 anos.<br />

A colônia <strong>de</strong> Philippson 8 e, cinco anos mais tar<strong>de</strong>, a colônia<br />

<strong>de</strong> Quatro Irmãos 9 faziam parte <strong>de</strong> uma iniciativa <strong>da</strong> Jewish<br />

Colonization Association (JCA), ou ICA (Yidishe Kolonizatsye<br />

Gezelshaft, em iídiche), enti<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> amparo aos emigrantes<br />

ju<strong>de</strong>us, fun<strong>da</strong><strong>da</strong> por Maurice <strong>de</strong> Hirsh, mais conhecido como<br />

Barão <strong>de</strong> Hirsh, em 1891, que tinha como objetivo <strong>de</strong>senvolver<br />

projeto <strong>de</strong> colonização ju<strong>da</strong>ica para os Estados Unidos, Canadá,<br />

Argentina, Palestina e Brasil. Não foi a única enti<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

assistência surgi<strong>da</strong> no momento em que os ju<strong>de</strong>us, sobretudo<br />

os do Leste Europeu, sofriam todo o tipo <strong>de</strong> preconceito e<br />

7 O jornal A Opinião Pública faz referência ao nome <strong>de</strong> Albino Isaacson, como<br />

tesoureiro <strong>da</strong> 1ª Diretoria <strong>da</strong> Tipografia Guttenberg, em sua edição do dia 25 <strong>de</strong><br />

setembro <strong>de</strong> 1899. Já Osvaldo Peckman aparece compondo o Club Sport Internacional,<br />

em notícia veicula<strong>da</strong> no mesmo jornal, no dia 2 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1907, embora<br />

se saiba que os primeiros ju<strong>de</strong>us que farão parte <strong>de</strong> uma comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> maior e mais<br />

organiza<strong>da</strong> só comecem a chegar no Rio Gran<strong>de</strong> do Sul na primeira déca<strong>da</strong> do<br />

século XX.<br />

8 O nome é uma homenagem ao vice-presi<strong>de</strong>nte <strong>da</strong> Jewish Colonization Association<br />

(JCA), Franz Philippson, que também era presi<strong>de</strong>nte <strong>da</strong> Compagnie Auxiliare <strong>de</strong><br />

Chemins du Fer au Brésil, empresa esta que administrava to<strong>da</strong> a re<strong>de</strong> ferroviária do<br />

Rio Gran<strong>de</strong> do Sul.<br />

9 Isabel Gritti (1997, p. 15) faz a seguinte referência ao local: “Como o próprio<br />

nome diz, as terras pertenciam a quatro irmãos: o coronel David dos Santos, mais<br />

tar<strong>de</strong> Barão dos Campos Gerais, o Dr. José Gaspar dos Santos Lima, juiz <strong>de</strong> Direito<br />

<strong>da</strong> comarca <strong>de</strong> São Borja e que residiu em Cruz Alta até 1854, Antônio dos Santos<br />

Pacheco e Clementino dos Santos Pacheco. Este último residia na fazen<strong>da</strong> e fora<br />

assassinado pelos índios, em 1856. O assassinato teria sido cometido em consequência<br />

<strong>da</strong> insatisfação dos índios, pois ‘Clementino apossara-se <strong>da</strong>quela gran<strong>de</strong><br />

extensão <strong>de</strong> terras, que era patrimônio dos índios, ou pelo menos, consi<strong>de</strong>rado<br />

como tal, havendo também quem diga que ele lhas comprara por irrisória quantia.<br />

Um negócio <strong>da</strong> China’ (jornal O Erechim <strong>de</strong> 2 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 1930)”.<br />

discriminação, mas foi, com relação à imigração ju<strong>da</strong>ica para o<br />

Rio Gran<strong>de</strong> do Sul, a mais importante. 10<br />

O interesse em colonizar o Brasil, especialmente o Rio<br />

Gran<strong>de</strong> do Sul, estava vinculado à proximi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> terras argentinas,<br />

nas quais já havia experiências agrícolas vincula<strong>da</strong>s<br />

aos ju<strong>de</strong>us, além <strong>da</strong> tolerância religiosa, relaciona<strong>da</strong> à influência<br />

positivista do Partido Republicano Rio-Gran<strong>de</strong>nse (PRR) 11 e<br />

também ao <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong>monstrado pelos governantes em receber<br />

novos imigrantes (LESSER, 1989).<br />

No que diz respeito à colônia Quatro Irmãos, construí<strong>da</strong><br />

no município <strong>de</strong> Passo Fundo, esta possuía área superior a 93<br />

mil hectares <strong>de</strong> terra, sendo muito rica em ma<strong>de</strong>ira. O local<br />

abrigou, em uma primeira fase, colonos vindos <strong>da</strong> Argentina,<br />

tendo em vista que, segundo uma análise dos administradores<br />

<strong>da</strong> JCA, seriam necessárias pessoas com maiores habili<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

no trato com a terra e, sendo assim, a experiência efetiva<strong>da</strong><br />

nas colônias argentinas propiciaria um <strong>de</strong>senvolvimento mais<br />

a<strong>de</strong>quado no tocante ao trabalho agrícola.<br />

A colônia <strong>de</strong> Quatro Irmãos, que chegou a contar com<br />

350 famílias durante o período <strong>da</strong> Primeira Guerra Mundial,<br />

tendo inclusive escola, sinagoga e até mesmo um hospital,<br />

<strong>da</strong> mesma maneira que a colônia <strong>de</strong> Philippson, não conseguiu<br />

ter um <strong>de</strong>senvolvimento satisfatório. Os problemas<br />

eram inúmeros e <strong>de</strong> naturezas diferentes, como a escolha<br />

ina<strong>de</strong>qua<strong>da</strong> <strong>da</strong> terra, pouca atenção dispensa<strong>da</strong> aos colonos<br />

que chegavam, reduzi<strong>da</strong> experiência dos colonos com a produção<br />

agrícola, infraestrutura ina<strong>de</strong>qua<strong>da</strong> nas colônias, entre<br />

outras.<br />

Entre 1926 e 1927, foram criados dois novos núcleos<br />

agrícolas, <strong>de</strong>ntro dos domínios <strong>da</strong> fazen<strong>da</strong> <strong>de</strong> Quatro Irmãos:<br />

Barão Hirsh e Baronesa Clara, este nome em homenagem à<br />

esposa do fun<strong>da</strong>dor <strong>da</strong> ICA. Alguns outros imigrantes foram<br />

10 Grin (1995, p. 155) cita várias organizações que funcionaram como agências<br />

<strong>de</strong> aju<strong>da</strong> a imigrantes ju<strong>de</strong>us: “ORT (cria<strong>da</strong> na Rússia em 1880); JCA (Jewish Colonization<br />

Association, fun<strong>da</strong><strong>da</strong> em 1891); Hebrew Immigrant Aid Society (HIAS),<br />

fun<strong>da</strong><strong>da</strong> em 1909 em Nova York; OSE (fun<strong>da</strong><strong>da</strong> em Paris em 1912); American<br />

Distribution Committee (fun<strong>da</strong><strong>da</strong> em 1914); Hicem (um amálgama <strong>de</strong> HIAS, JCA<br />

e Emigdirekt, estabelecido em 1927 para aju<strong>da</strong>r refugiados do Leste Europeu e <strong>da</strong><br />

Alemanha Nazista); e Central British Fund (fun<strong>da</strong><strong>da</strong> em 1933 na Inglaterra, para<br />

assistir refugiados do nazismo)”.<br />

11 Segundo Gritti (1997, p. 34), “no caso específico do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul, o<br />

povoamento <strong>de</strong> regiões pouco povoa<strong>da</strong>s e a consequente valorização <strong>da</strong>s mesmas<br />

através <strong>da</strong> criação <strong>de</strong> to<strong>da</strong> uma infraestrutura necessária à fixação dos imigrantes<br />

dizia respeito ao programa do Partido Republicano Riogran<strong>de</strong>nse (PRR) que governou<br />

o Estado, ininterruptamente, <strong>de</strong> 1891 a 1930”.<br />

MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje 175


Médicos ju<strong>de</strong>us no Rio Gran<strong>de</strong> do Sul<br />

instalados em Rio Padre e Rio Pampa, quando terminaram as<br />

ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s colonizadoras <strong>da</strong> Companhia no Estado do RS. 12<br />

Com o fracasso <strong>da</strong>s experiências agrícolas do Rio Gran<strong>de</strong><br />

do Sul, os ju<strong>de</strong>us começaram a abandonar a zona rural e<br />

procurar regiões urbanas, na intenção <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolverem ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

profissionais mais conheci<strong>da</strong>s por eles, como pequenos<br />

negócios e comércio.<br />

Dentro <strong>de</strong>ste contexto, já a partir <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1920, Porto<br />

Alegre será a ci<strong>da</strong><strong>de</strong> mais procura<strong>da</strong> no Rio Gran<strong>de</strong> do Sul,<br />

na qual se organizam sinagogas, escolas, socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s culturais,<br />

grupos <strong>de</strong> jovens, teatro iídiche, bibliotecas, socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> amparo<br />

aos recém-chegados, um clube e o primeiro jornal israelita<br />

do Brasil, Di Mentshait (A Humani<strong>da</strong><strong>de</strong>, em iídiche). O Bairro<br />

Bom Fim é o lugar <strong>de</strong> forte concentração <strong>da</strong> gran<strong>de</strong> maioria <strong>de</strong><br />

ju<strong>de</strong>us que se dirige à capital, assim como outros bairros recebem<br />

outros grupos. Ali se encontram pequenas fábricas e lojas,<br />

<strong>de</strong> on<strong>de</strong> saem os ven<strong>de</strong>dores ambulantes, os clienteltchiks.<br />

Outras ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s, como Erechim, Pelotas, Rio Gran<strong>de</strong>, Santa<br />

Maria e Passo Fundo 13 , representam também uma alternativa<br />

aos colonos que abandonavam a zona rural, procurando<br />

novas possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s para suas vi<strong>da</strong>s. Erechim, Santa Maria e<br />

Passo Fundo serão regiões procura<strong>da</strong>s em função <strong>da</strong> proximi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

às colônias agrícolas, e Pelotas e Rio Gran<strong>de</strong> pela importância<br />

econômica, política e cultural que possuíam neste<br />

momento, no cenário estadual.<br />

Dois grupos culturalmente heterogêneos fizeram-se representar<br />

<strong>de</strong>ntro do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul: em sua amplíssima<br />

maioria, os imigrantes ju<strong>de</strong>us eram ashkenazim, provenientes<br />

<strong>da</strong> Europa Central e Oriental. Os ashkenazim vinham <strong>de</strong> países<br />

diferentes, com culturas distintas: Rússia, Polônia, Romênia,<br />

entre outros. Os sefaradim eram oriundos <strong>da</strong> Península Ibérica<br />

e, em função <strong>da</strong> expulsão <strong>da</strong> Espanha em 1942, quando se<br />

dispersaram, vinham, sobretudo, <strong>da</strong> Turquia e do Egito, regiões<br />

que os tinham abrigado.<br />

12 A partir <strong>de</strong> 1931, a JCA <strong>de</strong>cidiu não mais fun<strong>da</strong>r núcleos agrícolas no país,<br />

já que se haviam mostrado <strong>de</strong>ficitários, mas sim trabalhar na perspectiva <strong>de</strong> auxiliar<br />

os ju<strong>de</strong>us a entrarem no país. Esta postura será altera<strong>da</strong> em 1936, quando há a<br />

fun<strong>da</strong>ção <strong>de</strong> uma colônia agrícola em Resen<strong>de</strong>, Rio <strong>de</strong> Janeiro, que tinha como<br />

meta instalar ju<strong>de</strong>us alemães perseguidos pelo nazismo. Apesar <strong>da</strong> Companhia<br />

investir muitos recursos financeiros no projeto, não consegue fazer com que os<br />

imigrantes pretendidos obtivessem visto <strong>de</strong> entra<strong>da</strong>.<br />

13 Para saber mais ver Gutfreind (2010), Costa (1992), Silva (2002), Gritti<br />

(2008), Gill (2007) e Ducatti Netto (1981).<br />

Com relação à ascensão social, os dois grupos começam<br />

suas ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s como mascates, maneira pela qual podiam<br />

acumular alguns recursos financeiros. Os ashkenazim possuíam<br />

lojas, fabricavam móveis e ocupavam-se com a confecção<br />

<strong>de</strong> roupas. Os sefaradim trabalhavam, principalmente, com o<br />

comércio <strong>de</strong> tecidos, tarefa que dividiam com os sírio-libaneses<br />

(SCLIAR, 1990). Estas ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s, no entanto, não são exclusivas<br />

e compartimenta<strong>da</strong>s.<br />

Já a segun<strong>da</strong> geração não tinha como objetivo geral o<br />

comércio, mas sim profissões em que pu<strong>de</strong>ssem trabalhar <strong>de</strong><br />

forma autônoma. “A segun<strong>da</strong> geração, aqui nasci<strong>da</strong> e educa<strong>da</strong>,<br />

prepara<strong>da</strong> pela família e estimula<strong>da</strong> em suas aspirações no<br />

sentido <strong>de</strong> ascensão social, caminhou rapi<strong>da</strong>mente através do<br />

ensino superior e do exercício <strong>de</strong> profissões liberais, no sentido<br />

<strong>de</strong> integração na socie<strong>da</strong><strong>de</strong> adotiva” (RATTNER, 1977, p. 53).<br />

Este texto tem o objetivo <strong>de</strong> narrar as memórias <strong>de</strong> médicos<br />

<strong>de</strong>sta segun<strong>da</strong> geração que atuaram no Rio Gran<strong>de</strong> do Sul,<br />

em diversas ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s do interior do Estado. Antes, no entanto,<br />

<strong>de</strong> se falar sobre <strong>de</strong>z entrevistas encontra<strong>da</strong>s junto ao Acervo<br />

<strong>de</strong> <strong>História</strong> Oral do Instituto Cultural Ju<strong>da</strong>ico Marc Chagall e<br />

<strong>de</strong> uma narrativa presente no Laboratório <strong>de</strong> <strong>História</strong> Oral <strong>da</strong><br />

UFPel, é preciso dizer que dois grupos <strong>de</strong> médicos ju<strong>de</strong>us se<br />

fizeram representar no Estado.<br />

O primeiro foi composto por imigrantes, que encontraram<br />

no Rio Gran<strong>de</strong> do Sul um campo profissional propício para<br />

suas atuações. O Partido Republicano Rio-Gran<strong>de</strong>nse, que esteve<br />

no po<strong>de</strong>r por longos anos, <strong>de</strong>fendia a liber<strong>da</strong><strong>de</strong> profissional<br />

e a liber<strong>da</strong><strong>de</strong> religiosa, através <strong>da</strong> eliminação do culto<br />

oficial e <strong>de</strong> uma in<strong>de</strong>pendência completa entre o po<strong>de</strong>r espiritual<br />

e temporal. Articulado aos preceitos <strong>de</strong> liber<strong>da</strong><strong>de</strong> religiosa<br />

e profissional, e <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um quadro <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as<br />

liber<strong>da</strong><strong>de</strong>s, estava inscrita ain<strong>da</strong> a liber<strong>da</strong><strong>de</strong> individual.<br />

Para atuar no estado, era necessário apenas um registro<br />

na Delegacia <strong>de</strong> Higiene, que permitia que médicos estrangeiros,<br />

os chamados licenciados 14 , praticassem a medicina. Muitos<br />

<strong>de</strong>les fixavam residência em zonas rurais, nas quais não<br />

havia um trabalho especializado; outros, no entanto, disputavam<br />

clientela nas ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s, através <strong>de</strong> anúncios nos quais enfatizavam<br />

novas técnicas trazi<strong>da</strong>s, principalmente, <strong>da</strong> Europa.<br />

14 Não eram apenas os licenciados aqueles que podiam exercer a medicina no<br />

Rio Gran<strong>de</strong> do Sul, mas também aqueles sem formação específica que <strong>de</strong>claravam,<br />

através <strong>de</strong> anúncios, ter o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> curar a moléstia ou <strong>de</strong> atenuar os seus efeitos.<br />

176<br />

MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje


Médicos ju<strong>de</strong>us no Rio Gran<strong>de</strong> do Sul<br />

Segundo Preger (2011, p. 19),<br />

[...] a imigração <strong>de</strong>stes médicos ocasionou, além <strong>da</strong><br />

introdução <strong>de</strong> novas tecnologias, valores relativos ao<br />

trabalho e mo<strong>de</strong>los citadinos. Conforme as informações<br />

conti<strong>da</strong>s no material reunido, os doktors tiveram<br />

sucesso e reconhecimento entre seus pares pela formação<br />

conceitua<strong>da</strong> e pela tecnologia que aportaram.<br />

O autor escreve, principalmente, sobre médicos alemães,<br />

austríacos e húngaros que, tendo em vista as restrições políticas<br />

a ca<strong>da</strong> dia mais presentes no contexto <strong>da</strong> Europa, <strong>de</strong>cidiram<br />

vir para países on<strong>de</strong> não seriam perseguidos e po<strong>de</strong>riam<br />

exercer mais livremente seus ofícios.<br />

De todo o modo, é preciso que se diga que nem todos<br />

os ju<strong>de</strong>us que tentaram entrar no Brasil conseguiram. Especialmente<br />

a partir dos anos <strong>de</strong> 1937 e 1938 surgiram normas que<br />

criaram obstáculos para a entra<strong>da</strong> <strong>de</strong> algumas etnias. Tanto<br />

assim que, em 1938, segundo Lesser (1994, p.319), houve<br />

uma que<strong>da</strong> <strong>de</strong> 75% <strong>de</strong> imigrantes ju<strong>de</strong>us no Brasil, embora tal<br />

fato tenha sido temporário.<br />

O segundo grupo foi aquele composto por médicos <strong>de</strong><br />

uma segun<strong>da</strong> geração, que aqui nasceram, se formaram no<br />

Brasil e no Rio Gran<strong>de</strong> do Sul praticaram a <strong>Medicina</strong>. Estas<br />

serão as trajetórias observa<strong>da</strong>s neste capítulo <strong>de</strong> livro e, para<br />

isso, foi feita a leitura <strong>de</strong> várias entrevistas existentes no IC-<br />

JMC, no intuito <strong>de</strong> se encontrar tais narrativas. No acervo foi<br />

verifica<strong>da</strong> a existência <strong>de</strong> <strong>de</strong>z entrevistas e a elas será junta<strong>da</strong><br />

uma outra, realiza<strong>da</strong> pelo Laboratório <strong>de</strong> <strong>História</strong> Oral, com o<br />

fun<strong>da</strong>dor <strong>da</strong> Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong>, chama<strong>da</strong> <strong>de</strong> Leiga e que<br />

hoje está vincula<strong>da</strong> à UFPel, Naum Keiserman.<br />

OS MÉDICOS NO ACERVO DO INSTITUTO<br />

CULTURAL JUDAICO MARC CHAGALL<br />

David Eizerik nasceu em Porto Alegre, em 12 <strong>de</strong> junho<br />

<strong>de</strong> 1923, sendo ashkenazim. Seu pai tinha procedência<br />

na Ucrânia e a mãe na Moldávia. 15 No Brasil, os pais se <strong>de</strong>-<br />

15 Sabe-se que o mapa geopolítico europeu sofreu diversas reconfigurações<br />

durante o século XX. Na re<strong>da</strong>ção <strong>de</strong>ste texto manteremos as referências <strong>da</strong><strong>da</strong>s<br />

pelos narradores.<br />

dicaram, no início, a ven<strong>de</strong>r pequenos produtos à prestação,<br />

constituindo posteriormente uma fábrica <strong>de</strong> peneiras e <strong>de</strong> calçados.<br />

Os pais, com formação primária, <strong>de</strong>dicaram-se a oferecer<br />

um estudo <strong>de</strong> quali<strong>da</strong><strong>de</strong> aos filhos. Com a crise <strong>de</strong> 1929,<br />

a família per<strong>de</strong>u todos os bens e o pai adoeceu, então David<br />

e seu irmão Moisés começaram a ven<strong>de</strong>r cortes <strong>de</strong> tecido <strong>de</strong><br />

porta em porta. David formou-se médico na URGS, hoje Universi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

Fe<strong>de</strong>ral do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul (UFRGS) 16 , em 1951, e<br />

exerceu a profissão como clínico geral. David também compartilhou<br />

com a entrevistadora aspectos sobre a relação <strong>de</strong> sua família<br />

com a comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> ju<strong>da</strong>ica, sendo que ele participou <strong>de</strong><br />

movimentos juvenis e do fundo comunitário, além <strong>de</strong> exercer<br />

a função <strong>de</strong> presi<strong>de</strong>nte na Organização Sionista.<br />

A entrevista <strong>de</strong> David assim como as <strong>de</strong> outras nove pessoas<br />

17 relacionaram as trajetórias individuais com a medicina,<br />

sendo as narrativas <strong>de</strong>: Henry Wolff, nascido em Rio Gran<strong>de</strong><br />

no dia 11 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1926 e falecido em 2014. Formado em<br />

1949, sua mãe nasceu em Philippson e seu pai era proce<strong>de</strong>nte<br />

<strong>da</strong> Moldávia; Israel Schermann, nascido em Philippson no<br />

dia 17 <strong>de</strong> fevereiro <strong>de</strong> 1920 e falecido em 2010, formado em<br />

1944, cujos pais eram naturais <strong>da</strong> Romênia; Jacob Salomão<br />

Seligman, formado em 1949, nascido em Santa Maria em 10<br />

<strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1923. Sabe-se que o pai era proveniente <strong>da</strong> Ucrânia,<br />

chegando criança em Philippson; Júlio Glock, nascido em<br />

Passo Fundo no dia 14 <strong>de</strong> março <strong>de</strong> 1932 e falecido em 2009,<br />

cuja mãe era lituana e o pai russo, formou-se em 1956; Moysés<br />

Sabani nasceu no dia 6 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 1925 em Porto Alegre<br />

e concluiu o curso em 1950. Seus pais eram turcos e donos <strong>de</strong><br />

16 A UFRGS, dos anos <strong>de</strong> 1934 a 1947, era <strong>de</strong>nomina<strong>da</strong> Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Porto<br />

Alegre. Posteriormente passou a se chamar Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul<br />

(URGS), nome que perdurou até 1950, ano <strong>da</strong> fe<strong>de</strong>ralização.<br />

17 Foram encontra<strong>da</strong>s outras narrativas <strong>de</strong> médicos no acervo do ICJMC, cujos entrevistados<br />

não nasceram no Brasil, mas exerceram suas ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s e realizaram<br />

o ensino superior no RS. Trata-se <strong>de</strong> Felícia Leichter Matte, nasci<strong>da</strong> em Munique,<br />

Alemanha, em 1946. Chegou ao Brasil em 1954 e se formou na UCPel nos anos<br />

<strong>de</strong> 1960, sendo sua atuação em Pelotas na área <strong>da</strong> anestesia. Felícia vem <strong>de</strong> uma<br />

família <strong>de</strong> médicos. Segundo ela, a família per<strong>de</strong>u tudo com a guerra. Os nove<br />

irmãos do pai eram médicos e morreram durante a guerra. Isak Bejzman nasceu na<br />

Polônia em 7 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1930 e com quatro anos chegou ao Brasil, com sua<br />

mãe, para encontrar o pai que já se estava no RS. Formou-se na URGS em 1955,<br />

atuando como psiquiatra em Porto Alegre. Maurício Kotlhar nasceu na Ucrânia em<br />

1912 e já no ano seguinte estava no Brasil. Em sua família predominavam os marceneiros<br />

e alfaiates. Formou-se em 1940 na URGS e foi médico do Sindicato dos<br />

Alfaiates <strong>de</strong> Porto Alegre. Por fim, Valério Malinski, que nasceu em 1º <strong>de</strong> março <strong>de</strong><br />

1911, na Rússia, mas ain<strong>da</strong> no mesmo ano se mudou para a Argentina. Malinski<br />

comenta que a mãe era parteira diploma<strong>da</strong> na Rússia e talvez por isso tenha se<br />

<strong>de</strong>cidido pela medicina, formando-se em 1934 na URGS.<br />

MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje 177


Médicos ju<strong>de</strong>us no Rio Gran<strong>de</strong> do Sul<br />

uma fábrica <strong>de</strong> calçados <strong>de</strong> luxo; Rubens Maciel 18 , nascido<br />

em Santana do Livramento em 4 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 1913 e falecido<br />

no ano <strong>de</strong> 2004, formado em <strong>Medicina</strong> em 1937, sabe-se que<br />

o pai era advogado; a família <strong>de</strong> Salomão Cutin veio <strong>da</strong> Bessarábia.<br />

Médico formado em 1949, nasceu em Porto Alegre<br />

no ano <strong>de</strong> 1919 e faleceu em 2013; Samuel Spritzer, nascido<br />

em 3 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 1922 em Porto Alegre e formado em 1949;<br />

e José Citrin, nascido em Porto Alegre em 7 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong><br />

1935, formado em 1959.<br />

Todos os narradores são homens, na sua maioria nascidos<br />

nas primeiras duas déca<strong>da</strong>s do século XX, sendo que<br />

seis nasceram no interior. Destes, muitos se mu<strong>da</strong>ram para a<br />

capital com o objetivo <strong>de</strong> fazer o pré-médico e <strong>de</strong>pois realizar<br />

o vestibular para a Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong>. Todos se formaram<br />

na Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong> <strong>da</strong>, hoje, UFRGS. A maioria recebeu<br />

o diploma e começou a exercer a profissão nos anos <strong>de</strong> 1940<br />

e 1950, inclusive quatro <strong>de</strong>poentes formaram-se em 1949.<br />

A tradição <strong>da</strong> medicina é comum entre as famílias <strong>de</strong> ju<strong>de</strong>us.<br />

Trata-se <strong>de</strong> uma profissão através <strong>da</strong> qual se po<strong>de</strong> atuar<br />

em vários lugares, além <strong>de</strong> estar vincula<strong>da</strong> a uma prática <strong>de</strong> um<br />

forte estudo, que se tornava fun<strong>da</strong>mental para aqueles que não<br />

sabiam quando <strong>de</strong>veriam partir. Apenas o conhecimento traria<br />

a garantia <strong>de</strong> se ter como recomeçar em qualquer lugar e a<br />

qualquer tempo. Júlio Glock, médico especializado em pediatria<br />

e em medicina do trabalho, recor<strong>da</strong> que a mãe falava aos filhos<br />

que lhes <strong>da</strong>ria algo que ninguém po<strong>de</strong>ria roubar: a educação e<br />

a cultura, e assim “teriam alguma coisa que lhes <strong>da</strong>ria a tranquili<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> viver com digni<strong>da</strong><strong>de</strong> em qualquer parte do mundo”.<br />

Sobre a trajetória até a Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong>, Israel<br />

Schermann, médico otorrinolaringologista e professor <strong>da</strong> mesma<br />

especiali<strong>da</strong><strong>de</strong> na UFRGS, conta que, após fazer o pré-médico<br />

em Santa Maria, única ci<strong>da</strong><strong>de</strong> do interior que oferecia o<br />

curso, foi para Porto Alegre prestar o vestibular:<br />

E o vestibular, já naquela época, era muito difícil,<br />

era muito concorrido. Foram dois ou três meses<br />

que a gente passou aqui, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> novembro, <strong>de</strong>zembro<br />

– quando a gente veio para cá – para inscrição<br />

até fevereiro, quando se fez o exame, o exame,<br />

naquela época era escrito e oral. E oral <strong>de</strong>morava<br />

muito, se levou quase o mês <strong>de</strong> fevereiro todo<br />

fazendo exames. Eu nunca tinha estado em Porto<br />

Alegre.<br />

Muitos <strong>de</strong>sses médicos vinham do interior do estado,<br />

on<strong>de</strong> havia uma comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> ju<strong>da</strong>ica numerosa. A partir <strong>da</strong><br />

déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1940, se percebe um maior <strong>de</strong>slocamento para Porto<br />

Alegre, ci<strong>da</strong><strong>de</strong> que contava com um Colégio Israelita institucionalizado<br />

19 , uma sinagoga e, com isso, maior possibili<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> relações 20 entre o próprio grupo.<br />

Os pais <strong>de</strong>sta segun<strong>da</strong> geração, que se <strong>de</strong>dicou à medicina,<br />

eram em sua maioria mascates, conforme já abor<strong>da</strong>do, e<br />

possuíam na maior parte <strong>da</strong>s vezes apenas o ensino primário.<br />

Quando chegavam, buscavam o auxílio dos que aqui estavam.<br />

Iniciavam, no Brasil, ven<strong>de</strong>ndo tecidos e pequenos objetos,<br />

como bem observa Jacó Seligman:<br />

Mas esses, esses ju<strong>de</strong>us que saíram <strong>de</strong> Philippson,<br />

vieram pra Santa Maria, tiveram suas casas comerciais,<br />

começaram a entrar no comércio. Já os filhos,<br />

que é a minha geração, esses já então fizeram cursos,<br />

não é? Acho que nessa época, quando me formei,<br />

não havia facul<strong>da</strong><strong>de</strong> aqui, todos tinham condição<br />

<strong>de</strong> man<strong>da</strong>r os filhos, uns com mais trabalho,<br />

outros com dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>, outros com mais ou menos<br />

dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>, os filhos estu<strong>da</strong>rem fora <strong>de</strong> Santa Maria<br />

pra tirarem uma profissão.<br />

Os clienteltchiks, termo que vem <strong>de</strong> clientela, realizavam<br />

o comércio ambulante e/ou ven<strong>da</strong> a prestações, geralmente<br />

em bairros periféricos <strong>da</strong>s ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s. To<strong>da</strong> transação era feita a<br />

partir <strong>da</strong> confiança. Um dos narradores, José Citrin, que se-<br />

18 Rubens Maciel dá o nome a um prêmio <strong>de</strong> <strong>História</strong> <strong>da</strong> <strong>Medicina</strong> no Rio<br />

Gran<strong>de</strong> do Sul. Foi cardiologista, professor catedrático <strong>da</strong> UFRGS, presi<strong>de</strong>nte <strong>da</strong><br />

Socie<strong>da</strong><strong>de</strong> Brasileira <strong>de</strong> Cardiologia e consultor <strong>de</strong> diversas organizações vincula<strong>da</strong>s<br />

à saú<strong>de</strong>. Entretanto, durante a entrevista foram priorizados outros aspectos <strong>da</strong> vi<strong>da</strong><br />

do médico, já que citou apenas brevemente sua trajetória profissional. Ver mais em<br />

Gottschall (2011).<br />

19 Pelotas contava com um Colégio Israelita, que oferecia cursos <strong>de</strong> iídiche, teatro<br />

e outras ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s culturais. De todo o modo não oferecia a educação formal.<br />

20 Henry Wolff, em sua narrativa, diz que antigamente havia muitos ju<strong>de</strong>us em<br />

Rio Gran<strong>de</strong>, ci<strong>da</strong><strong>de</strong> na qual havia nascido, mas que, com o passar do tempo, muitos<br />

se mu<strong>da</strong>ram para Porto Alegre por causa, especialmente, <strong>da</strong>s oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />

casamento entre ju<strong>de</strong>us.<br />

178<br />

MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje


Médicos ju<strong>de</strong>us no Rio Gran<strong>de</strong> do Sul<br />

ria cirurgião plástico dos hospitais Moinhos <strong>de</strong> Vento e Santa<br />

Casa <strong>de</strong> Misericórdia, doou a documentação <strong>da</strong> Socie<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

Ambulantes <strong>de</strong> Porto Alegre. Durante a facul<strong>da</strong><strong>de</strong> trabalhou<br />

nessa Socie<strong>da</strong><strong>de</strong>, que era basicamente composta por ju<strong>de</strong>us.<br />

Seu pai também era mascate.<br />

Alguns <strong>de</strong>stes médicos precisaram também se <strong>de</strong>dicar<br />

ao comércio, com a finali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> custear seus estudos, como<br />

Júlio Glock, que vendia cabi<strong>de</strong>s <strong>de</strong>s<strong>de</strong> muito jovem ao lado<br />

do seu irmão, inclusive no momento em que estava se preparando<br />

para fazer o vestibular. Em sua narrativa, revela: “Po<strong>de</strong>s<br />

imaginar o que é trabalhar com cabi<strong>de</strong>s e fazer vestibular, com<br />

a certeza dos nossos parentes, tios, amigos, <strong>de</strong> que não seríamos<br />

aprovados?”. Júlio se referia também ao seu irmão mais<br />

velho, José Glock, que se formou na UFRGS no mesmo ano<br />

que ele, 1956.<br />

Ele conta uma história interessante: continuava ven<strong>de</strong>ndo<br />

cabi<strong>de</strong>s enquanto cursava <strong>Medicina</strong> e, um dia, teve sua<br />

mercadoria apreendi<strong>da</strong> por não pagar imposto <strong>de</strong> ven<strong>de</strong>dor<br />

ambulante, o que, segundo ele, não sabia que existia.<br />

Os fiscais ficaram surpresos pelo fato <strong>de</strong> ele ser estu<strong>da</strong>nte<br />

<strong>de</strong> <strong>Medicina</strong> e prometeram <strong>de</strong>volver a mercadoria mediante<br />

a comprovação <strong>de</strong> que era mesmo acadêmico, mas tiveram<br />

que voltar atrás, por questões burocráticas, contorna<strong>da</strong>s a partir<br />

<strong>da</strong> intervenção do prefeito Ildo Meneghetti, que pediu que<br />

<strong>de</strong>volvessem os cabi<strong>de</strong>s ao jovem. Júlio, avalia sua trajetória <strong>de</strong><br />

vi<strong>da</strong>: “Trinta anos <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> todo esse drama para conseguir<br />

recuperar os meus cabi<strong>de</strong>s na Prefeitura, eu subia novamente<br />

as esca<strong>da</strong>rias <strong>da</strong> Prefeitura não mais para brigar por mim, mas<br />

para receber o título <strong>de</strong> ci<strong>da</strong>dão emérito <strong>de</strong> Porto Alegre”.<br />

A maioria dos médicos era ashkenazim, apenas dois<br />

eram sefaradim, um <strong>de</strong>les é o médico oftalmologista Moysés<br />

Sabani, e sobre essa relação afirma que não havia dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s:<br />

Existiam relações <strong>de</strong> amiza<strong>de</strong>, relações <strong>de</strong> comércio<br />

inclusive. E, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> algumas déca<strong>da</strong>s, na nova<br />

geração, eu me consi<strong>de</strong>ro a segun<strong>da</strong> geração <strong>de</strong><br />

imigrantes sefaradim aqui em Porto Alegre, houve<br />

uma integração maior através <strong>de</strong> laços matrimoniais.<br />

Eu me lembro que no começo <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

do Centro Hebraico Riogran<strong>de</strong>nse, que congregava<br />

a coletivi<strong>da</strong><strong>de</strong> sefaradim, não havia ain<strong>da</strong> uma<br />

se<strong>de</strong> construí<strong>da</strong>. Então, as reuniões <strong>da</strong> diretoria,<br />

os ofícios religiosos eram realizados em casas dos<br />

diversos membros <strong>da</strong> coletivi<strong>da</strong><strong>de</strong>, inclusive na <strong>de</strong><br />

meu pai. E as festivi<strong>da</strong><strong>de</strong>s maiores, Rosh Hashaná,<br />

Iom Kipur, eram realiza<strong>da</strong>s numa sala aluga<strong>da</strong> pela<br />

União, pela União Israelita Porto Alegrense. E conjuntamente<br />

com os ofícios religiosos, que os ashkenazim<br />

realizavam na União, em sua sala principal,<br />

havia a realização <strong>de</strong> ofícios com o ritual sefaradim<br />

numa sala pequena, que eles cediam para a coletivi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

sefaradim.<br />

Não foram muitas as lembranças <strong>de</strong> preconceitos, mas<br />

um médico pioneiro <strong>da</strong> endocrinologia no Rio Gran<strong>de</strong> do Sul<br />

e professor <strong>da</strong> UFRGS e UFCSPA 21 , Henry Wolff, por exemplo,<br />

narra episódios relacionados à sua infância, assim dizendo:<br />

“Eu quando pequeno tive cenas <strong>de</strong> perseguição, me chamaram<br />

<strong>de</strong> ju<strong>de</strong>u. No começo me chamaram <strong>de</strong> russo, russinho,<br />

não se sabia <strong>de</strong> ju<strong>de</strong>u. Tanto que eu nem sabia que era ju<strong>de</strong>u,<br />

vim saber já com uma certa i<strong>da</strong><strong>de</strong>, eu disse: ‘Vem cá, eu sou<br />

ju<strong>de</strong>u?’. ‘Sim, tu és ju<strong>de</strong>u’”.<br />

Wolff passa a se reconhecer como ju<strong>de</strong>u a partir, sobretudo,<br />

do reconhecimento dos outros, permitindo que se pense<br />

a i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> como relacional. Segundo Woodward (2009, p.<br />

14), a i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong>, entre outras questões, “[...] é, na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />

relacional, e a diferença é estabeleci<strong>da</strong> por uma marcação simbólica<br />

relativamente a outras i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong>s”.<br />

Também no espaço do trabalho, Wolff se refere a uma<br />

dificul<strong>da</strong><strong>de</strong> em entrar em uma enfermaria que não era vincula<strong>da</strong><br />

à Facul<strong>da</strong><strong>de</strong>, a <strong>de</strong> cirurgia. Segundo ele, “era uma <strong>da</strong>s melhores<br />

enfermarias <strong>de</strong> cirurgia, melhor cirurgia, on<strong>de</strong> melhor se<br />

aprendia. E on<strong>de</strong> ju<strong>de</strong>u não podia entrar”. Entretanto, havia<br />

a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> “romper tradições”. O colega <strong>de</strong> Wolff, o<br />

médico e professor <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Santa Maria<br />

(UFSM) 22 Jacob Salomão Seligman, contou: “Então eu quebrei<br />

21 Cria<strong>da</strong> a 8 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1953, com a <strong>de</strong>nominação <strong>de</strong> Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> Católica<br />

<strong>de</strong> <strong>Medicina</strong> <strong>de</strong> Porto Alegre, e autoriza<strong>da</strong> a funcionar em 1961. Na déca<strong>da</strong> <strong>de</strong><br />

1980 foi fe<strong>de</strong>raliza<strong>da</strong> e, em 2008, é instituí<strong>da</strong> a Fun<strong>da</strong>ção Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong><br />

Ciências <strong>da</strong> Saú<strong>de</strong> <strong>de</strong> Porto Alegre – UFCSPA.<br />

22 O curso <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong> em Santa Maria (RS) foi criado em 1954 e incorporado<br />

à UFSM no ano <strong>de</strong> criação <strong>da</strong> universi<strong>da</strong><strong>de</strong>, em 1960.<br />

MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje 179


Médicos ju<strong>de</strong>us no Rio Gran<strong>de</strong> do Sul<br />

uma tradição neste hospital [...]. Imagina ser o diretor clínico<br />

um ju<strong>de</strong>u! Quando todos sabiam que o hospital era religioso.<br />

O provedor, um padre, e o diretor clínico, um ju<strong>de</strong>u”.<br />

Os relatos <strong>de</strong> preconceito estão relacionados, na sua<br />

maioria, à infância e à adolescência. Para gran<strong>de</strong> parte dos<br />

entrevistados essa fase coincidiu com o Integralismo. Moysés<br />

Sabani lembra: “um dos professores do Anchieta costumava<br />

trajar-se com a camisa ver<strong>de</strong> do partido, mas, apesar disso,<br />

mantinha muito boas relações comigo e com mais alguns poucos<br />

alunos israelitas”. David Eizerik também abor<strong>da</strong> episódios<br />

<strong>de</strong> preconceitos ao dizer que pelos seus 12 anos, quando estu<strong>da</strong>va<br />

em uma escola católica, os padres costumavam falar<br />

mal dos ju<strong>de</strong>us: “numa <strong>de</strong>ssas vezes, eu era o único ju<strong>de</strong>u <strong>da</strong><br />

turma. Quando terminou esta pregação do padre, todos quiseram<br />

vingar a morte <strong>de</strong> Cristo em mim”.<br />

Em Pelotas, tendo em vista trabalho realizado anteriormente<br />

sobre os ju<strong>de</strong>us na ci<strong>da</strong><strong>de</strong>, o qual já foi citado, <strong>de</strong>clararam<br />

23 os narradores que optaram por escolas públicas porque<br />

não tinham recursos financeiros e também, principalmente,<br />

porque nestas não havia o aprendizado <strong>da</strong> religião católica,<br />

sendo assim percebiam uma maior liber<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> manifestação<br />

e expressão.<br />

Os médicos ju<strong>de</strong>us foram importantes para a história <strong>da</strong><br />

medicina no Rio Gran<strong>de</strong> do Sul e também no Brasil. Até o<br />

momento foram citados alguns médicos, mencionando suas<br />

diferentes especiali<strong>da</strong><strong>de</strong>s, mas muitos se <strong>de</strong>dicaram à pesquisa<br />

em várias facul<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong> do estado. Po<strong>de</strong>m ain<strong>da</strong> ser<br />

citados: o médico Salomão Cutin, que apenas um ano <strong>de</strong>pois<br />

<strong>de</strong> formado foi convi<strong>da</strong>do para ser assistente na ca<strong>de</strong>ira <strong>de</strong><br />

Urologia <strong>da</strong> URGS, on<strong>de</strong> trabalhou até 1986, aposentando-se<br />

como professor adjunto. Em 1950, pertencia à Socie<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

Cirurgia e, em 1951, fundou, junto com outros colegas <strong>de</strong>ssa<br />

Socie<strong>da</strong><strong>de</strong>, a Associação Médica do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul. O já<br />

citado Júlio Glock começou “a trabalhar como médico num<br />

chalé humil<strong>de</strong> lá na Cavalha<strong>da</strong>”, aten<strong>de</strong>ndo gratuitamente o<br />

Instituto Santa Luzia por muitos anos. Atendia ain<strong>da</strong> o Institu-<br />

23 Simon Halpern assim diz sobre o assunto: “A gran<strong>de</strong> maioria <strong>de</strong> ju<strong>de</strong>us ia<br />

para o Pelotense, porque o Gonzaga exigia – entre os pontos que ganhávamos<br />

– a presença na missa. Coisas <strong>de</strong> religião que não po<strong>de</strong>ríamos aceitar, então eles<br />

impunham uma condição religiosa e nós não íamos para o Gonzaga, se bem que<br />

tinha uns dois jovens que estu<strong>da</strong>vam lá, eram ju<strong>de</strong>us e estu<strong>da</strong>vam, curiosamente<br />

eles não se integravam com a Socie<strong>da</strong><strong>de</strong> Israelita”.<br />

to Padre João Calábria, no Hospital Divina Providência, e teve<br />

influência na instalação do primeiro ambulatório médico na<br />

Ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus e na Restinga.<br />

No que diz respeito ain<strong>da</strong> ao ofício <strong>de</strong> médico, a maioria<br />

seguiu a carreira acadêmica, além <strong>de</strong> atuar na clínica médica,<br />

mas relatam existir bons espaços <strong>de</strong> atuação, como o faz Israel<br />

Schermann:<br />

Quando me formei, eu po<strong>de</strong>ria perfeitamente bem<br />

permanecer em Porto Alegre, porque eu já tinha<br />

um emprego do Estado. Então, <strong>de</strong> estu<strong>da</strong>nte, para<br />

passar para médico, naquela época, era só apresentar<br />

o diploma que, como a quanti<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> profissionais<br />

era pequena, sempre tinha emprego. E<br />

tinha dois, três ou quatro empregos, para quem<br />

quisesse.<br />

Israel, no entanto, preferiu iniciar sua trajetória no interior,<br />

como era comum a um recém-formado. Nestas ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

costumavam realizar vários procedimentos, colocando em prática<br />

ensinamentos obtidos ain<strong>da</strong> na Facul<strong>da</strong><strong>de</strong>. Com o passar<br />

dos anos, a maioria <strong>de</strong>les migrou para a capital, até mesmo<br />

como forma <strong>de</strong> inserção em uma comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> maior e mais<br />

organiza<strong>da</strong>.<br />

A trajetória na medicina, para a maioria dos médicos,<br />

continuou com seus filhos ou parentes próximos. Segundo o<br />

que revelaram, foram poucos aqueles <strong>da</strong> terceira geração que<br />

se <strong>de</strong>dicaram ao comércio, como seus pais.<br />

Alguns médicos se relacionaram à discussão sobre o sionismo<br />

24 , como David Eizerik e Samuel Spritzer, médico neurocirurgião<br />

que exerceu suas ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s principalmente em uma<br />

pequena ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Santa Catarina. Este último, acompanhado<br />

<strong>de</strong> outros jovens ju<strong>de</strong>us <strong>de</strong> Porto Alegre, foi em 1946 para a<br />

Argentina e para o Uruguai, com o objetivo <strong>de</strong> realizar estudos<br />

24 O movimento sionista (<strong>de</strong> Sion, colina <strong>da</strong> antiga Jerusalém) iniciou ain<strong>da</strong> no<br />

século XIX e continuou a atuar até a Segun<strong>da</strong> Guerra Mundial, sendo o austríaco<br />

Theodore Herzl consi<strong>de</strong>rado o seu fun<strong>da</strong>dor. Durante todo este período possuiu<br />

diversas frentes <strong>de</strong> trabalho, mas o gran<strong>de</strong> incentivo <strong>de</strong>u-se através <strong>da</strong> imigração<br />

<strong>de</strong> colonos em fazen<strong>da</strong>s coletivas, os kibutz. Para Arendt (1990, p. 143) o sionismo<br />

surge como uma resposta política que os ju<strong>de</strong>us encontraram para o antissemitismo,<br />

absolutamente flagrante após o processo efetivado contra Alfred Dreyfus, um<br />

oficial ju<strong>de</strong>u do Estado Maior francês que, em 1894, foi acusado e con<strong>de</strong>nado por<br />

espionagem em favor <strong>da</strong> Alemanha.<br />

180<br />

MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje


Médicos ju<strong>de</strong>us no Rio Gran<strong>de</strong> do Sul<br />

sobre o sionismo, e quando voltaram para a capital fun<strong>da</strong>ram<br />

um movimento juvenil Dror. Depois <strong>da</strong> fun<strong>da</strong>ção, o curso <strong>de</strong><br />

<strong>Medicina</strong> começou a exigir muita <strong>de</strong>dicação, o que fez Samuel<br />

se afastar. Outros, no entanto, se reconheciam como ju<strong>de</strong>us,<br />

sobretudo a partir <strong>da</strong> cultura, como <strong>de</strong>clarado por Henry Wolff:<br />

[...] O ser ju<strong>de</strong>u não é ser religiosamente ju<strong>de</strong>u, eu<br />

acho que a religião é a parte mínima <strong>de</strong>sse ju<strong>da</strong>ísmo.<br />

O ser ju<strong>de</strong>u é algo psicossocial característico,<br />

porque quando um ju<strong>de</strong>u fala a gente conhece<br />

que é um ju<strong>de</strong>u que fala pelo gesto, pela maneira<br />

<strong>de</strong> dizer as coisas a gente vê que é um ju<strong>de</strong>u. Então,<br />

clientes meus pelos gestos eu vejo meus avós,<br />

meus tios, vejo aqueles que a gente conhecia lá em<br />

Rio Gran<strong>de</strong>. Então, essas coisas que são a alma, a<br />

psique do ju<strong>de</strong>u, isso é que é o ju<strong>da</strong>ísmo. Porque a<br />

maior parte dos ju<strong>de</strong>us não conhecem nem praticam<br />

a religião.<br />

Para a maioria dos narradores entrevistados em Pelotas,<br />

<strong>da</strong> mesma forma que para Wolff, a cultura foi o ponto <strong>de</strong><br />

união entre pessoas que, muitas vezes, protagonizaram caminhos<br />

bem diferentes, mas que se sentiam próximas através <strong>de</strong><br />

uma memória coletiva.<br />

UM FUNDADOR DA FACULDADE DE<br />

MEDICINA NO ACERVO DO LABORATÓRIO<br />

DE HISTÓRIA ORAL DA UFPEL<br />

Naum Keiserman nasceu em 1917, em Porto Alegre, sendo<br />

consi<strong>de</strong>rado como o fun<strong>da</strong>dor <strong>da</strong> Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong>,<br />

atualmente vincula<strong>da</strong> à UFPel. Naum se formou em 1939 e<br />

exerceu as primeiras ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s em Porto Alegre, conforme revela:<br />

“visitadora sanitária”, e exercia sua ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> em<br />

Porto Alegre. Não havendo vaga em Rio Gran<strong>de</strong>,<br />

foi ela transferi<strong>da</strong> para Pelotas. Nos fins <strong>de</strong> semana<br />

eu ia a Pelotas. Esta situação durou pouco tempo.<br />

Ocorre que o tisiologista que atuava em Pelotas, Dr.<br />

Assunção Osório, transferiu residência para o Rio<br />

<strong>de</strong> Janeiro, proporcionando minha transferência<br />

para Pelotas. Exerci minha ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> nessa ci<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

até 1966 quando fui aposentado. Houve um intervalo<br />

<strong>de</strong> 1943 a 1945, quando fui convocado no<br />

período <strong>da</strong> Segun<strong>da</strong> Guerra Mundial.<br />

No que diz respeito à formação acadêmica, assim é dito:<br />

Para trabalhar em tisiologia eu me preparei com<br />

alguns cursos: fiz um curso oferecido pelo próprio<br />

Departamento Estadual <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>, fiz um estágio<br />

no Hospital Sanatório Belém, na época <strong>de</strong>stinado a<br />

pacientes com tuberculose. Lá trabalhavam os professores<br />

Cezar Ávila e Eliseu Paglioli, entre outros.<br />

Em Montevidéu fiz curso <strong>de</strong> broncoscopia com o<br />

Dr. Chevalier Jackson, americano que lá se encontrava<br />

para este fim. Em Córdoba, Argentina, fiz curso<br />

<strong>de</strong> cirurgia torácica. No Rio <strong>de</strong> Janeiro, acompanhei<br />

cirurgia <strong>de</strong> tórax com Jesse Teixeira.<br />

Nos anos <strong>de</strong> 1950 esteve envolvido na discussão sobre<br />

a fun<strong>da</strong>ção <strong>de</strong> uma facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong> leiga em Pelotas.<br />

De outro lado, Dom Antônio Zattera, bispo local, pretendia<br />

que ocorresse a criação <strong>de</strong> uma facul<strong>da</strong><strong>de</strong> católica na ci<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

As duas propostas foram efetiva<strong>da</strong>s na déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1960 25 , e a<br />

Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> Leiga passou pelo processo <strong>de</strong> fe<strong>de</strong>ralização alguns<br />

anos mais tar<strong>de</strong>, como pretendia Naum, ao reivindicar importantes<br />

recursos financeiros para a efetivação <strong>de</strong> um curso <strong>de</strong><br />

quali<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Formei-me em 1939. Em 1941 fui contratado pelo<br />

então Departamento Estadual <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> e <strong>de</strong>signado<br />

para o setor <strong>de</strong> tisiologia, no Centro <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> Rio Gran<strong>de</strong>. Recém-casado, minha esposa era<br />

25 A Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong> (Leiga) passou a funcionar no ano <strong>de</strong> 1963, ain<strong>da</strong><br />

que tenha sido fun<strong>da</strong><strong>da</strong> oficialmente em 1959, em ato ocorrido na Biblioteca Pública<br />

Pelotense. Em 1969 foi agrega<strong>da</strong> à UFPel, quando esta foi fun<strong>da</strong><strong>da</strong>, e passou<br />

a fazer parte <strong>da</strong> estrutura administrativa em 1977. Antes disso, era manti<strong>da</strong> pelo<br />

Instituto Pró-Ensino Superior do Sul do Estado (IPESSE). O prédio on<strong>de</strong> ain<strong>da</strong> hoje<br />

funciona, antigo Instituto <strong>de</strong> Higiene, foi doado pelo governo municipal no ano <strong>de</strong><br />

1955 (LONER, 2012).<br />

MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje 181


Médicos ju<strong>de</strong>us no Rio Gran<strong>de</strong> do Sul<br />

Naum era casado com uma visitadora sanitária, conforme<br />

mencionou em sua narrativa. Clara, nasci<strong>da</strong> em 24 <strong>de</strong> novembro<br />

<strong>de</strong> 1916 em Cruz Alta, fez parte <strong>de</strong> um grupo <strong>de</strong> pessoas<br />

prepara<strong>da</strong>s, a partir <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1920 no Brasil, para visitar<br />

os pacientes mais necessitados, repassando-lhes, principalmente,<br />

conselhos higiênicos. Nos cursos para visitadoras eram abor<strong>da</strong>dos<br />

temas como anatomia e fisiologia, microbiologia, higiene individual,<br />

princípios <strong>de</strong> medicina, cirurgia, obstetrícia, pediatria, matéria<br />

médica dietética e ética profissional, como relatou Clara.<br />

CONSIDERAÇÕES FINAIS<br />

A trajetória <strong>de</strong> vi<strong>da</strong> dos médicos apresentados no texto<br />

é bastante próxima. Foram filhos <strong>de</strong> imigrantes, ou seus pais<br />

chegaram ain<strong>da</strong> muito novos no Brasil, em sua maioria. Os<br />

pais primeiramente se <strong>de</strong>dicaram às ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s agrícolas, sendo<br />

<strong>de</strong>pois comerciantes <strong>de</strong> tecidos e <strong>de</strong> pequenos objetos em<br />

ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s do interior ou ain<strong>da</strong> na capital do estado. Muitos se<br />

<strong>de</strong>slocaram <strong>da</strong>s colônias para os centros urbanos buscando<br />

novas oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong>s econômicas.<br />

Os filhos <strong>de</strong>ssa primeira geração foram influenciados pelos<br />

pais a se <strong>de</strong>dicarem fortemente ao estudo, através do qual<br />

obtiveram ascensão social. Desse modo, foram advogados, engenheiros,<br />

magistrados e médicos, como aqueles cujas trajetórias<br />

apresentamos no texto. To<strong>da</strong>s as narrativas aqui expostas<br />

são <strong>de</strong> homens, contudo muitas mulheres judias frequentaram<br />

o ensino superior, nos mais diversos cursos.<br />

A formação <strong>de</strong>ssas pessoas em <strong>Medicina</strong> 26 esteve relaciona<strong>da</strong><br />

à Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul (UFRGS),<br />

por ser um dos poucos espaços <strong>de</strong> formação existentes no<br />

estado no período em que realizaram suas graduações.<br />

Nos corredores <strong>da</strong> Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> foram escassos os relatos<br />

<strong>de</strong> preconceito, diferentemente do período escolar. No espaço<br />

do ensino superior e <strong>de</strong> socialização <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> judia, embora<br />

alguns tivessem procedências diferentes, se relacionavam<br />

bem, pois constituíam um pequeno grupo que necessitava se<br />

fortalecer em um contexto <strong>de</strong> intolerância. As falas presentes<br />

nas entrevistas dão vestígios <strong>de</strong> que esses médicos se vinculavam<br />

sem maiores conflitos com a socie<strong>da</strong><strong>de</strong> em geral.<br />

26 Embora a UFRGS tenha sido fun<strong>da</strong><strong>da</strong> no ano <strong>de</strong> 1934, o curso <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong><br />

<strong>da</strong>ta ain<strong>da</strong> do século XIX.<br />

Pelas suas narrativas é possível perceber o que Can<strong>da</strong>u<br />

(2011, p. 44) evi<strong>de</strong>ncia como memória forte, ou seja, “uma<br />

memória massiva, coerente, compacta e profun<strong>da</strong>, que se impõe<br />

a uma gran<strong>de</strong> maioria dos membros <strong>de</strong> um grupo, qualquer<br />

que seja seu tamanho [...]”. Assim, embora a religião<br />

atravesse suas falas, como era <strong>de</strong> se esperar, o que os vincula<br />

é a cultura. A cultura, entendi<strong>da</strong> como tradição, foi o ponto<br />

<strong>de</strong> união entre pessoas que tiveram origens, idiomas e, muitas<br />

vezes, vivências bastante diferencia<strong>da</strong>s, constituindo uma reali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

multifaceta<strong>da</strong>.<br />

Suas trajetórias, como médicos, foram exitosas, já que<br />

se envolveram em especiali<strong>da</strong><strong>de</strong>s importantes, como a tisiologia,<br />

por exemplo, em um momento em que gran<strong>de</strong> parte <strong>da</strong><br />

população morria por tuberculose pulmonar, ou ain<strong>da</strong> foram<br />

pioneiros em especiali<strong>da</strong><strong>de</strong>s clínicas no Rio Gran<strong>de</strong> do Sul. De<br />

outra parte, com o seu trabalho, formaram novas gerações<br />

<strong>de</strong> médicos, pois estiveram ligados a vários outros cursos <strong>de</strong><br />

<strong>Medicina</strong>, na capital e no interior do Estado.<br />

As narrativas revelam laços profundos <strong>de</strong> uma história<br />

grupal, que fez com que mantivessem suas i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong>s culturais,<br />

vistas por eles como marcas <strong>de</strong> diferenciação étnicas, ao<br />

mesmo tempo em que <strong>de</strong>monstram um forte sentimento <strong>de</strong><br />

soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong><strong>de</strong> construído através <strong>da</strong> convivência com pessoas<br />

resi<strong>de</strong>ntes no território que os acolheu e que foi escolhido por<br />

eles para viver e trabalhar.<br />

REFERÊNCIAS<br />

ALBERTI, V. Ouvir contar. Textos em história oral. Rio <strong>de</strong> Janeiro:<br />

Editora <strong>da</strong> FGV, 2004.<br />

ARENDT, H. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia <strong>da</strong>s<br />

Letras, 1990.<br />

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COSTA, G. A imigração ju<strong>da</strong>ica no município <strong>de</strong> Santa Maria: Colônia<br />

<strong>de</strong> Philippson. Santa Maria: UFSM, 1992.<br />

DUCATTI NETTO, A. O gran<strong>de</strong> Erechim e sua história. Porto Alegre:<br />

Escola Superior <strong>de</strong> Teologia São Lourenço <strong>de</strong> Brin<strong>de</strong>s, 1981.<br />

FREITAS, Sônia Maria <strong>de</strong>. <strong>História</strong> oral: possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s e procedimentos.<br />

São Paulo: Associação Editorial Humanitas, 2006.<br />

182<br />

MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje


Médicos ju<strong>de</strong>us no Rio Gran<strong>de</strong> do Sul<br />

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1945. Pelotas: Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Pelotas, Ed. Universitária, 2001.<br />

______. O mal do século: tuberculose, tuberculosos e políticas <strong>de</strong><br />

saú<strong>de</strong> em Pelotas (RS) 1890-1930. Pelotas: EDUCAT, 2007.<br />

GOTTSCHALL, C. Rubens Maciel: o triunfo <strong>da</strong> inteligência – registros<br />

e reminiscências. São Paulo: Atheneu, 2011.<br />

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e a colonização <strong>de</strong> Quatro Irmãos. Porto Alegre: Martins<br />

Livreiro Editor, 1997.<br />

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Gran<strong>de</strong> do Sul. In: TEDESCO, João Carlos (org.). Colonos, colônias &<br />

colonizadores: aspectos <strong>da</strong> territorialização agrária no sul do Brasil.<br />

Porto Alegre: Est. Edições, 2008, p. 47-68.<br />

GUTFREIND, I. Comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>s ju<strong>da</strong>icas no interior do Rio Gran<strong>de</strong> do<br />

Sul: Santa Maria. Santa Maria, RS: Editora <strong>da</strong> UFSM, 2010.<br />

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LONER, B. Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong>. In: LONER, B.; GILL, L.; MAGA-<br />

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<strong>da</strong> UFPel, 2012, p. 137-138.<br />

PORTELLI, A. Tentando apren<strong>de</strong>r um pouquinho: algumas reflexões<br />

sobre a ética na história oral. Projeto <strong>História</strong>, São Paulo, PUC, n.<br />

15, p. 13-33, 1997.<br />

PREGER, C. “Doktors”: contos <strong>de</strong> memória. Porto Alegre: Libretos, 2011.<br />

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Paulo. São Paulo: Ática, 1977.<br />

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f. Dissertação (Mestrado em <strong>História</strong>) – Curso <strong>de</strong> Pós-Graduação em<br />

<strong>História</strong> <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Passo Fundo, Passo Fundo, 2002.<br />

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FONTES ORAIS<br />

ACERVO DO INSTITUTO CULTURAL JUDAICO MARC CHAGALL –<br />

PORTO ALEGRE:<br />

- Entrevista com David Eizerik, realiza<strong>da</strong> em 1987, por Sílvia Faierman.<br />

- Entrevista com Felícia Leichter Matte, realiza<strong>da</strong> em 1987, por Jairo<br />

Halpern.<br />

- Entrevista com Henry Wolff, realiza<strong>da</strong> em 1987, por Denise Simanke.<br />

- Entrevista realiza<strong>da</strong> com Isak Bejzman, em 1989, por Bella Faierman<br />

Igor.<br />

- Entrevista realiza<strong>da</strong> com Israel Schermann, em 1989, por Denise<br />

Simanke.<br />

- Entrevista realiza<strong>da</strong> com Jacob Salomão Seligman, em 1992, por<br />

Marta Borin.<br />

- Entrevista realiza<strong>da</strong> com José Citrin, em 1993, por Andréa Cogay.<br />

- Entrevista realiza<strong>da</strong> com Júlio Glock, em 1987, por Ellen Plummer.<br />

- Entrevista realiza<strong>da</strong> com Maurício Kotlhar, em 1988, por Sílvia Faermann.<br />

- Entrevista realiza<strong>da</strong> com Moysés Sabani, em 1990, por Denise Simanke.<br />

- Entrevista realiza<strong>da</strong> com Rubens Maciel, em 1990, por Bella Faierman<br />

Igor.<br />

- Entrevista realiza<strong>da</strong> com Salomão Cutin, em 1987, por Denise Simanke.<br />

- Entrevista realiza<strong>da</strong> com Samuel Spritzer, em 1991, por Cláudia<br />

Lavb.<br />

- Entrevista realiza<strong>da</strong> com Valério Malinski, em 1987, por Sílvia Faierman.<br />

ACERVO DO LABORATÓRIO DE HISTÓRIA ORAL DA UFPEL:<br />

- Entrevista realiza<strong>da</strong> com Simon Halpern, em 1995 por Lorena Almei<strong>da</strong><br />

Gill.<br />

- Entrevista realiza<strong>da</strong> com Simon Halpern, em 2015, por Lorena Almei<strong>da</strong><br />

Gill.<br />

- Entrevista realiza<strong>da</strong> com Naum Keiserman, em 2007, por Angela<br />

Beatriz Pomatti<br />

- Entrevista realiza<strong>da</strong> com Clara Keiserman, em 2007, por Angela<br />

Beatriz Pomatti.<br />

FONTES ESCRITAS<br />

- Jornal A Opinião Pública, 25 set. 1899.<br />

- Jornal A Opinião Pública, 2 jan. 1907.<br />

MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje 183


A PRESERVAÇÃO DA<br />

MEMÓRIA MÉDICA:<br />

o lugar do <strong>Museu</strong> <strong>de</strong> <strong>História</strong> <strong>da</strong><br />

<strong>Medicina</strong> do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul<br />

JULIANE CONCEIÇÃO PRIMON SERRES<br />

Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Pelotas – UFPEL<br />

Ex-diretora do <strong>MUHM</strong><br />

ÉVERTON REIS QUEVEDO<br />

Diretor Técnico do <strong>MUHM</strong><br />

ANGELA BEATRIZ POMATTI<br />

Coor<strong>de</strong>nadora do Setor <strong>de</strong> Acervo e Pesquisa do <strong>MUHM</strong><br />

GLÁUCIA GIOVANA LIXINSKI DE LIMA KULZER<br />

Coor<strong>de</strong>nadora do Setor Educativo do <strong>MUHM</strong><br />

184<br />

MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje


Amedicina constitui-se em um campo profissional no Brasil<br />

somente no século XIX, com a criação <strong>da</strong>s escolas médicocirúrgicas<br />

na ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Salvador e Rio <strong>de</strong> Janeiro, posteriormente<br />

converti<strong>da</strong>s nas primeiras facul<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong> em<br />

território nacional. Antes <strong>de</strong>ste período, os médicos no país<br />

eram raros, formados nas facul<strong>da</strong><strong>de</strong>s europeias e em geral atuando<br />

nas capitais <strong>da</strong>s províncias. Havia no Brasil to<strong>da</strong> a sorte<br />

<strong>de</strong> praticantes <strong>da</strong>s “artes <strong>de</strong> curar”, curan<strong>de</strong>iros, benze<strong>de</strong>iras,<br />

sagradores, mas <strong>de</strong>stes grupos, restaram poucos registros materiais<br />

que possam estar em um museu.<br />

A formação <strong>de</strong> um campo médico foi sendo consoli<strong>da</strong><strong>da</strong><br />

ao longo do século XIX e, em algumas províncias, como no<br />

Rio Gran<strong>de</strong> do Sul, veio a constituir-se apenas no século XX<br />

(WEBER, 1998). A progressiva organização dos médicos – sobretudo<br />

por meio <strong>da</strong> institucionalização <strong>de</strong> sua formação com<br />

a criação <strong>de</strong> facul<strong>da</strong><strong>de</strong>s – <strong>de</strong>u início ao processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa profissional<br />

em território brasileiro. Tânia Salgado (2003) indica<br />

que a coporação médica no país se fortaleceu com a criação,<br />

em 1832, <strong>da</strong>s facul<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong> na Bahia e no Rio <strong>de</strong> Janeiro,<br />

que unificou os ofícios <strong>de</strong> médico e <strong>de</strong> cirurgião. Neste<br />

periodo também foram cria<strong>da</strong>s várias agremiações e socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

científicas <strong>de</strong>stes profissionais. Em relação às facul<strong>da</strong><strong>de</strong>s,<br />

até o final do século XIX ain<strong>da</strong> eram poucas, e a terceira institução<br />

do país foi cria<strong>da</strong> em Porto Alegre em 1898.<br />

Em relação aos hospitais, outro campo <strong>de</strong> construção <strong>da</strong><br />

i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> médica, o século XIX caracterizou-se por institui-<br />

MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje 185


A PRESERVAÇÃO DA MEMÓRIA MÉDICA<br />

ções beneficentes, como as Santas Casas e os hospitais beneficentes,<br />

muitos <strong>de</strong> origem étnica. As Santas Casas, principais<br />

instituições do período, existiam em todo o Brasil e apresentavam<br />

um perfil bastante típico, instituições que abrigavam<br />

diversas mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> “enfermos” – militares, idosos, “alienados”,<br />

menores abandonados e doentes em geral, que iam<br />

para essas instituições para receber algum tipo <strong>de</strong> acolhimento.<br />

Esses antigos hospitais apresentavam-se como imponentes<br />

e importantes edificações, com belas facha<strong>da</strong>s e amplos pavilhões,<br />

porém possuíam poucos serviços especializados. Esse<br />

perfil <strong>de</strong> instituições marcou o século XIX. A partir dos anos<br />

1880 surgiram instituições volta<strong>da</strong>s para o atendimento <strong>de</strong><br />

moléstias específicas, e os médicos começam a construir hegemonia<br />

nestes espaços (WEBER; SERRES, 2008). Mas a reali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

foi mais complexa, havia no país uma gran<strong>de</strong> diversi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> práticas e praticantes <strong>da</strong> medicina.<br />

Para nossa reflexão importa dizer que a profissão se consolidou<br />

no país em oposição a práticas informais <strong>de</strong> cura, em<br />

meio a precárias condições <strong>de</strong> acesso a saú<strong>de</strong>, mas, ao mesmo<br />

tempo, se <strong>de</strong>senvolveu como uma medicina <strong>de</strong> excelência, que<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> o século XIX dialogava com as instituições estrangeiras<br />

<strong>de</strong> maior reconhecimento e prestígio.<br />

Essas práticas médicas em consultórios particulares, em<br />

hospitais e em facul<strong>da</strong><strong>de</strong>s legou ao presente um consi<strong>de</strong>rável<br />

acervo patrimonial, que apenas recentemente vem <strong>de</strong>spertando<br />

interesse <strong>de</strong> preservação 1 , e uma gran<strong>de</strong> quanti<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> objetos relacionados a essas práticas, ain<strong>da</strong> encontrados<br />

nas facul<strong>da</strong><strong>de</strong>, nos hospitais e guar<strong>da</strong>dos por particulares.<br />

OS MUSEUS E A PRESERVAÇÃO DA<br />

MEMÓRIA DA MEDICINA NO BRASIL<br />

Os museus são por excelência lugares <strong>de</strong> preservação e<br />

difusão <strong>da</strong> memória e são instituições que vêm crescendo ex-<br />

1 Em 2007, a Casa <strong>de</strong> Oswaldo Cruz/Fiocruz <strong>de</strong>u início à constituição <strong>da</strong> Re<strong>de</strong> Brasil<br />

<strong>de</strong> Patrimônio Cultural <strong>da</strong> Saú<strong>de</strong>. Um dos objetivos <strong>da</strong> Re<strong>de</strong> foi a realização <strong>de</strong> um<br />

Inventário Nacional do Patrimônio Cultural <strong>da</strong> Saú<strong>de</strong>: bens edificados e acervos,<br />

contemplando o mesmo período do projeto <strong>de</strong>senvolvido no Rio <strong>de</strong> Janeiro e tendo<br />

como áreas <strong>de</strong> abrangência algumas capitais brasileiras (Porto Alegre, Florianópolis,<br />

São Paulo, Belo Horizonte, Salvador e Goiânia). COSTA, Renato <strong>da</strong> Gama-Rosa; SAN-<br />

GLARD, Gisele. Patrimônio Cultural <strong>da</strong> Saú<strong>de</strong>: uma história possível? Anpuh, Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro, 2008. Disponível em: <br />

ponencialmente no Brasil. Este fenômeno, associado ao <strong>de</strong>sejo<br />

<strong>de</strong> memória, fez com que tivéssemos um crescimento <strong>de</strong> 200<br />

instituições e mais três mil estabelecimentos em pouco mais<br />

<strong>de</strong> 50 anos. 2<br />

Alguns trabalhos têm se proposto a analisar esta questão,<br />

enten<strong>de</strong>r por que a proliferação <strong>de</strong> museus ao redor do<br />

globo e as explicações gravitam em torno <strong>de</strong> análises que vão<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> mercantilização do patrimônio, passando por novas responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

sociais, re<strong>de</strong>scoberta do território e seus atrativos<br />

patrimoniais, extensão <strong>da</strong> educação, explosão consumista<br />

também em termos culturais e a cultura do ócio (BALLART;<br />

TRESSERRAS, 2007). Outro elemento por trás <strong>de</strong>sta proliferação<br />

<strong>de</strong> museus está associado à necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> referenciais<br />

culturais próprios por parte dos diferentes grupos sociais. Categorias<br />

como a nação, outrora utiliza<strong>da</strong>s para i<strong>de</strong>ntificar uma<br />

socie<strong>da</strong><strong>de</strong> inteira, se mostraram ao longo do tempo pouco<br />

eficazes.<br />

A diversi<strong>da</strong><strong>de</strong> cultural foi coloca<strong>da</strong> à socie<strong>da</strong><strong>de</strong> por influência<br />

<strong>da</strong> antropologia. Os grupos sociais, inicialmente marginais<br />

no sentido <strong>de</strong> não reconhecidos na plenitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> seu<br />

protagonismo, inclusive pela historiografia, como negros, mulheres,<br />

trabalhadores rurais etc., aos poucos passaram a reivindicar<br />

sua história e também a reivindicar a preservação <strong>de</strong><br />

seus patrimônios (ABREU, 2009). Esta on<strong>da</strong> <strong>de</strong> reivindicações<br />

atingiu distintos grupos sociais, entre os quais se <strong>de</strong>stacam<br />

grupos profissionais, como os médicos.<br />

Os museus são instrumentos importantes, bem o sabemos,<br />

na construção <strong>de</strong> i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong>s, como <strong>de</strong>monstram os<br />

gran<strong>de</strong>s museus nacionais do século XIX (ALONSO, 2004). Em<br />

relação aos museus <strong>de</strong> medicina, esse propósito <strong>de</strong> construção/reafirmação<br />

<strong>de</strong> uma i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> profissional também se<br />

faz presente. Preservar e divulgar o passado <strong>de</strong> uma profissão,<br />

construir lugares <strong>de</strong> memória (NORA, 1984), como um museu,<br />

implicam na formação <strong>de</strong> uma i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

No universo museal brasileiro, os museus <strong>de</strong> medicina<br />

têm ocupado um lugar ain<strong>da</strong> pequeno, porém, consi<strong>de</strong>rando<br />

2 Dados com base no site do Ca<strong>da</strong>stro Nacional <strong>de</strong> <strong>Museu</strong>s. A progressão representa<strong>da</strong><br />

no quadro <strong>de</strong>ve levar em consi<strong>de</strong>ração uma melhora consi<strong>de</strong>rável nos meios <strong>de</strong><br />

promover pesquisas com o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> ferramentas tecnológicas que permitem<br />

mapear um maior número <strong>de</strong> instituições. INSTITUTO BRASILEIRO DE MUSEUS.<br />

<strong>Museu</strong>s em Números, v. 2. Brasília: Instituto Brasileiro <strong>de</strong> <strong>Museu</strong>s, 2011.<br />

186<br />

MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje


A PRESERVAÇÃO DA MEMÓRIA MÉDICA<br />

a especifici<strong>da</strong><strong>de</strong> do tema, o número é significativo. Segundo<br />

o Ca<strong>da</strong>stro Nacional <strong>de</strong> <strong>Museu</strong>s do Governo Fe<strong>de</strong>ral, existem<br />

16 instituições que se intitulam <strong>Museu</strong>s <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong> no Brasil:<br />

<strong>Museu</strong>/Arquivo Histórico <strong>da</strong> Santa Casa do Pará; <strong>Museu</strong> <strong>da</strong><br />

<strong>História</strong> <strong>da</strong> <strong>Medicina</strong> do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul; <strong>Museu</strong> Inaldo <strong>de</strong><br />

Lyra Neves Manta, <strong>da</strong> Aca<strong>de</strong>mia Nacional <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong>; <strong>Museu</strong><br />

Irmão Joaquim Francisco do Livramento, <strong>da</strong> Santa Casa <strong>de</strong> Misericórdia<br />

<strong>de</strong> Porto Alegre; Memorial <strong>da</strong> <strong>Medicina</strong> Brasileira, <strong>da</strong><br />

Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>da</strong> Bahia; <strong>Museu</strong> <strong>da</strong> <strong>Medicina</strong> do Pará,<br />

<strong>da</strong> Socie<strong>da</strong><strong>de</strong> Médico-Cirúrgica do Pará; <strong>Museu</strong> <strong>de</strong> Anatomia<br />

Humana, <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Brasília; <strong>Museu</strong> <strong>da</strong> Pediatria Brasileira;<br />

Centro <strong>de</strong> Memória <strong>da</strong> <strong>Medicina</strong> <strong>de</strong> Minas Gerais; <strong>Museu</strong><br />

<strong>de</strong> <strong>Medicina</strong> <strong>da</strong> Associação Médica do Paraná; <strong>Museu</strong> <strong>de</strong><br />

Anatomia Humana Professor Alfonso Bovero; <strong>Museu</strong> <strong>de</strong> <strong>História</strong><br />

<strong>da</strong> <strong>Medicina</strong> <strong>da</strong> Associação Paulista <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong>; <strong>Museu</strong><br />

<strong>da</strong> <strong>Medicina</strong> <strong>de</strong> Pernambuco; <strong>Museu</strong> Virtual <strong>da</strong> Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

<strong>Medicina</strong> <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Rio <strong>de</strong> Janeiro; <strong>Museu</strong> <strong>de</strong><br />

<strong>História</strong> <strong>da</strong> <strong>Medicina</strong> <strong>de</strong> Alagoas; <strong>Museu</strong> Digital <strong>da</strong> <strong>História</strong> <strong>da</strong><br />

<strong>Medicina</strong> do Amazonas. 3<br />

Além <strong>de</strong>stas instituições ca<strong>da</strong>stra<strong>da</strong>s no sistema, outros<br />

levantamentos permitem i<strong>de</strong>ntificar ain<strong>da</strong> mais sete instituições<br />

no país: <strong>Museu</strong> Histórico Professor Carlos <strong>da</strong> Silva Lacaz,<br />

<strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo; Memorial <strong>da</strong> <strong>Medicina</strong> <strong>de</strong> Rio<br />

Gran<strong>de</strong> do Norte; Memorial <strong>da</strong> <strong>Medicina</strong> <strong>da</strong> Paraíba; <strong>Museu</strong><br />

<strong>de</strong> <strong>Medicina</strong> do Centro Médico <strong>de</strong> Ribeirão Preto; <strong>Museu</strong> <strong>de</strong><br />

<strong>Medicina</strong> <strong>de</strong> Goiás; <strong>Museu</strong> do Médico <strong>de</strong> Sergipe; e o <strong>Museu</strong><br />

<strong>da</strong> Vi<strong>da</strong> <strong>da</strong> Fun<strong>da</strong>ção Oswaldo Cruz.<br />

Ao analisarmos este cenário, se consi<strong>de</strong>rarmos apenas<br />

o número <strong>de</strong> instituições, po<strong>de</strong>ríamos supor que a temática<br />

médica está bem representa<strong>da</strong> no território brasileiro: dos 26<br />

estados, 13 possuem museus <strong>de</strong> medicina, o que representa<br />

instituições em 50% dos estados. Quase a totali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>stas<br />

Instituições estão nas capitais, uma vez que estão vincula<strong>da</strong>s<br />

na sua maioria a facul<strong>da</strong><strong>de</strong>s e associações, com se<strong>de</strong> nestas<br />

capitais. Alguns estados, como os <strong>da</strong> região su<strong>de</strong>ste, concentram<br />

um maior número <strong>de</strong> instituições, seguindo uma tendên-<br />

cia geral, uma vez que a região possui o maior número <strong>de</strong><br />

museus em geral do país. 4<br />

Em relação aos acervos, as informações disponíveis<br />

nos sites e visitas locais permitem concluir que, na gran<strong>de</strong><br />

maioria dos casos, são acervos <strong>de</strong> particulares – médicos,<br />

professores <strong>de</strong> medicina – que acumularam ao longo <strong>de</strong> sua<br />

carreira profissional. Poucos são os casos, como o do <strong>Museu</strong><br />

<strong>de</strong> <strong>História</strong> <strong>da</strong> <strong>Medicina</strong> do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul, inaugurado<br />

em 2007 em Porto Alegre, ou o do Paraná, que praticam<br />

uma sistemática <strong>de</strong> coleta <strong>de</strong> acervos. Quanto à organização<br />

<strong>de</strong>stes acervos, ca<strong>da</strong> instituição obe<strong>de</strong>ce a um mo<strong>de</strong>lo:<br />

alguns museus organizam seus acervos por especiali<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

médicas, como o <strong>Museu</strong> <strong>da</strong> Aca<strong>de</strong>mia Nacional <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong><br />

ou o do Pará; outros, inclusive junto às coleções <strong>de</strong> medicina,<br />

possuem coleções <strong>de</strong> arte, como o <strong>Museu</strong> <strong>da</strong> Associação<br />

Paulista <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong>.<br />

As exposições também são muito varia<strong>da</strong>s: alguns,<br />

como o <strong>Museu</strong> Carlos <strong>da</strong> Silva Lacaz, apresentam exposições<br />

temáticas, outros expõem seus acervos em forma <strong>de</strong> coleções,<br />

como os gabinetes <strong>de</strong> curiosi<strong>da</strong><strong>de</strong>, entre os quais se<br />

po<strong>de</strong> mencionar o <strong>Museu</strong> <strong>de</strong> Pernambuco. Quanto ao público,<br />

a maioria dos museus está dirigi<strong>da</strong> para acadêmicos <strong>de</strong><br />

medicina, uma vez que estão sediados nas facul<strong>da</strong><strong>de</strong>s e os<br />

horários <strong>de</strong> abertura ao público são restritos, tendência que<br />

vem se alterando conforme o afluxo <strong>de</strong> público e inserção do<br />

museu.<br />

Além <strong>de</strong>stas consi<strong>de</strong>rações gerais, se observa que a<br />

maioria <strong>de</strong>stes museus funciona com base no voluntariado<br />

e com poucos recursos. Nesse sentido, o trabalho técnico,<br />

que permite a preservação, pesquisa e difusão dos acervos,<br />

é bastante comprometido, colocando em risco as próprias<br />

coleções e não aproveitando o potencial educativo dos acervos.<br />

Certamente há exceções, instituições que nasceram com<br />

a missão <strong>de</strong> preservar e difundir esse patrimônio e investem<br />

nesse propósito.<br />

3 Disponível em: <br />

Neste grupo não estão presentes aqueles museus com acervos médicos dispersos,<br />

como é comum em gran<strong>de</strong> número <strong>de</strong> museus históricos municipais, museus <strong>de</strong><br />

profissões relaciona<strong>da</strong>s à saú<strong>de</strong>, como enfermagem, odontologia, farmácia etc.<br />

Também constatamos que muitos museus (incluindo memoriais) <strong>de</strong> hospitais,<br />

como as Santas Casas, não realizaram seu ca<strong>da</strong>stro no referido sistema.<br />

4 Disponível em: Em 2010,<br />

realizou-se na Fe<strong>de</strong>ração Nacional dos Médicos no Rio <strong>de</strong> Janeiro o I Encontro <strong>de</strong><br />

<strong>Museu</strong>s <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong>, evento que contou com a participação <strong>de</strong> representantes <strong>de</strong><br />

12 instituições e on<strong>de</strong> se <strong>de</strong>finiu a criação <strong>de</strong> uma Re<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Museu</strong>s <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong>.<br />

MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje 187


Carteira Profissional <strong>de</strong> médico,<br />

18.10.1960;<br />

Acervo: Dr. Wilson Teixeira Netto<br />

Acervo <strong>MUHM</strong><br />

Doador: Evly Teixeira Netto


Carteira <strong>de</strong> Matrícula <strong>da</strong> Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

<strong>Medicina</strong> <strong>de</strong> Porto Alegre – 1930<br />

Dr. Ottorino Frasca<br />

Doador: Dr. Renato Frasca Rodrigues


Estojo com seringa<br />

Acervo: Dr. Luis <strong>de</strong> A<strong>da</strong>il<br />

Doador: Ruth Alonso <strong>de</strong> A<strong>da</strong>il<br />

Maleta médica<br />

Acervo: Dr. Hardy Grunewaldt<br />

Doador: Dr. Hardy Grunewaldt<br />

Receituário médico<br />

Acervo: Dr. Ennio Barcelos Ferreira<br />

Receituário Médico<br />

Acervo: Dr. Wilson Teixeira Netto<br />

Doador: Evly Teixeira Netto


Máscara <strong>de</strong> Ombre<strong>da</strong>nne<br />

Acervo: Dr. Tácito Diomar Kraemer<br />

Doador: Marco Antônio Kraemer<br />

e Carmem Lúcia Kraemer


Mata borrão<br />

Acervo: Dr. Mário Bernd<br />

Doador: Dr. Fernando Ferreira Bernd<br />

Caneta tinteiro e carimbo<br />

Acervo: Dr. Antonio Peyrouton Louza<strong>da</strong><br />

Doador: Dr. Geraldo Zanini Louza<strong>da</strong><br />

Receituário médico<br />

Acervo: Dr. Orlando Dias Athay<strong>de</strong><br />

Doador: Dr. Maria Isabel Athay<strong>de</strong>


Vácuo extrator<br />

Acervo: Dr. Lírio José To<strong>de</strong>schini<br />

Doador: Dr. Lírio José To<strong>de</strong>schini


Coleção Testut<br />

Acervo: Dr. Alberto Augusto Alves Rosa<br />

Doador: Dr. Alberto Augusto Alves Rosa<br />

Crânio<br />

Acervo: Dr. Gabriel Schlatter<br />

Doador: Olga Ne<strong>de</strong>l Schlatter


Obra: Panteão Médico Riogran<strong>de</strong>nse:<br />

síntese cultural e histórica<br />

Autor: Franco, A. e Ramos, M. Publicação: 1943<br />

Editora: Ramos Ci<strong>da</strong><strong>de</strong>: São Paulo<br />

Acervo: Dr. Chaphick Saádi<br />

Doador: Gil<strong>da</strong> <strong>de</strong> Grazia Saádi


Obra: Formulário e Guia Médico<br />

Autor: Chernoviz, P. L. Napoleão<br />

Publicação: 1908<br />

Editora: A. Roger & F. Chernoviz<br />

Ci<strong>da</strong><strong>de</strong>: Paris<br />

Obra: Diccionario <strong>de</strong><br />

medicina popular<br />

Autor: Chernoviz, P. L. Napoleão<br />

Publicação: 1890 Volume: 2<br />

Editora: A. Roger & F. Chernoviz<br />

Ci<strong>da</strong><strong>de</strong>: Paris<br />

Acervo: Dr. Pascoal Adrio Manoel Brasil Crocco<br />

Doador: Ana Lucia Crocco


Obra: Lepra<br />

Acervo<br />

Autor: Leonard<br />

<strong>MUHM</strong><br />

Rogers e Ernest Muir<br />

Publicação: 1937<br />

Editora: Livraria Medica Editora<br />

Ci<strong>da</strong><strong>de</strong>: Rio <strong>de</strong> Janeiro<br />

Acervo: Dr. Homero <strong>de</strong> Macedo<br />

Doador: Dr. Homero <strong>de</strong> Macedo<br />

Obra: La Sífilis<br />

Autor: Meirowsky, E.<br />

Publicação: 1925<br />

Editora: Editorial Labor<br />

Ci<strong>da</strong><strong>de</strong>: Barcelona<br />

Acervo: Dr. Raymundo Cauduro<br />

Doador: Rafael Cauduro<br />

Obra: Le Poumon tuberculeux,<br />

Autor: Cantonnet, P.<br />

Publicação: 1925 – Editora: Malone<br />

Ci<strong>da</strong><strong>de</strong>: Paris<br />

Acervo: Dr. Chaphick Saádi<br />

Doador: Gil<strong>da</strong> <strong>de</strong> Grazia SaádiChaphick Saadi


Acervo <strong>MUHM</strong><br />

Ca<strong>de</strong>rnos <strong>de</strong> partos, 1950/1974<br />

Acervo: Parteira A<strong>de</strong>le Hoffmann<br />

Doador: Maria Helena Hoffmann


A PRESERVAÇÃO DA MEMÓRIA MÉDICA<br />

O MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA DO<br />

RIO GRANDE DO SUL<br />

O <strong>Museu</strong> <strong>de</strong> <strong>História</strong> <strong>da</strong> <strong>Medicina</strong> do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul<br />

(<strong>MUHM</strong>) é uma iniciativa do Sindicato Médico do Rio Gran<strong>de</strong><br />

do Sul (SIMERS) 5 e iniciou suas ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s em 2004, através do<br />

projeto <strong>de</strong> pesquisa <strong>de</strong>nominado “Memória médica”, que visava<br />

registrar, com base em entrevistas, a memória dos médicos<br />

do estado.<br />

A partir <strong>de</strong> um levantamento inicial <strong>de</strong> fontes e <strong>de</strong><br />

entrevistas com alguns profissionais médicos <strong>de</strong> todo o estado,<br />

constatou-se a existência <strong>de</strong> um rico acervo sobre a<br />

história <strong>da</strong> medicina e <strong>da</strong> saú<strong>de</strong>. Assim, em 2005 organizou-se<br />

por meio <strong>de</strong> uma campanha <strong>de</strong> arreca<strong>da</strong>ção junto<br />

aos médicos o Acervo Histórico Simers, que visava congregar<br />

esse potencial.<br />

Ain<strong>da</strong> com esta proposta inicial foram realiza<strong>da</strong>s duas<br />

exposições: “A formação <strong>da</strong> <strong>Medicina</strong> no Rio Gran<strong>de</strong> do Sul”,<br />

realiza<strong>da</strong> no Memorial do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul e ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s do interior,<br />

e a “Mostra do Acervo”, realiza<strong>da</strong> também <strong>de</strong> forma<br />

itinerante e exposta em várias ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s do estado. O objetivo<br />

<strong>de</strong>stas exposições era evi<strong>de</strong>nciar a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> narrar a<br />

história do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul a partir <strong>da</strong> temática “medicina”,<br />

bem como divulgar a iniciativa e conscientizar os médicos e<br />

seus familiares do potencial <strong>de</strong> suas trajetórias, estimulando<br />

assim novas doações <strong>de</strong> acervos para a instituição.<br />

Em 18 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 2006, o <strong>Museu</strong> foi lançado à comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />

<strong>de</strong>ntro <strong>da</strong>s comemorações do Sindicato referentes<br />

ao Dia do Médico. A exposição <strong>de</strong> lançamento, “Retratos <strong>da</strong><br />

<strong>Medicina</strong>: A história médica do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul”, foi reali-<br />

5 O Sindicato Médico do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul, mantenedor do <strong>Museu</strong>, foi fun<strong>da</strong>do<br />

em 20 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 1931, surgindo como uma reação a um conceito vigente<br />

nas primeiras déca<strong>da</strong>s do século XX que se chamava “liber<strong>da</strong><strong>de</strong> profissional”, uma<br />

concessão <strong>da</strong> lei que permitia a prática <strong>da</strong> <strong>Medicina</strong> por pessoas que não tinham<br />

estudo acadêmico nem mesmo uma formação técnica a<strong>de</strong>qua<strong>da</strong>. O combate à<br />

“liber<strong>da</strong><strong>de</strong> profissional” pressionou os po<strong>de</strong>res públicos, que, durante o governo<br />

provisório <strong>de</strong> Getúlio Vargas, aprovaram a lei que regulamentou o exercício <strong>da</strong><br />

<strong>Medicina</strong> (Decreto 20.931, <strong>de</strong> 11 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1932). Hoje o Sindicato é uma<br />

instituição que atua não apenas aten<strong>de</strong>ndo aos interesses médicos, mas também<br />

na linha <strong>de</strong> frente <strong>da</strong>s causas sociais <strong>da</strong> atuali<strong>da</strong><strong>de</strong>, propondo políticas públicas que<br />

permitam a valorização profissional e, ao mesmo tempo, a saú<strong>de</strong> <strong>da</strong> população<br />

gaúcha e brasileira. Sobre o positivismo e a saú<strong>de</strong> no Rio Gran<strong>de</strong> do Sul, ver: WE-<br />

BER, Beatriz Teixeira. As artes <strong>de</strong> curar: medicina, religião, magia e positivismo na<br />

República Rio-Gran<strong>de</strong>nse – 1889-1928. Santa Maria: UFSM; Bauru: Universi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

do Sagrado Coração, 1999.<br />

za<strong>da</strong> no Bourbon Shopping Center, em Porto Alegre, já que o<br />

jovem museu ain<strong>da</strong> não contava com um espaço expositivo,<br />

optando assim pela itinerância <strong>de</strong> suas ações. Esta foi a primeira<br />

iniciativa do <strong>Museu</strong> volta<strong>da</strong> ao público. Contudo, <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />

2005 o trabalho interno, em sua Reserva Técnica, era constante,<br />

recebendo e catalogando acervos que, junto às pesquisas,<br />

<strong>de</strong>ram suporte às ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s.<br />

Em 18 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 2007, exatamente um ano após<br />

sua apresentação à comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>, o <strong>MUHM</strong> foi instalado no<br />

prédio histórico do Hospital Beneficência Portuguesa <strong>de</strong> Porto<br />

Alegre, localizado na Aveni<strong>da</strong> In<strong>de</strong>pendência, nº 270, Centro<br />

Histórico, em Porto Alegre. Tal evento foi o resultado <strong>de</strong> uma<br />

parceria entre o Simers e a centenária instituição hospitalar,<br />

que, em troca do uso <strong>de</strong> seu espaço, ce<strong>de</strong>u seu acervo documental<br />

histórico, que foi higienizado, catalogado e está acessível<br />

a pesquisa.<br />

Agora com uma área expositiva para dialogar com a comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />

o <strong>Museu</strong> intensificou suas ações: exposições fixas,<br />

itinerantes, ações educativas, seminários, saraus, projeção <strong>de</strong><br />

filmes, concursos fotográficos, entre tantas outras ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s.<br />

Este novo espaço museal do Estado continuou a receber<br />

acervos e, em 2009, se fez necessária a transferência <strong>de</strong> sua<br />

Reserva Técnica para um espaço maior, o que possibilitou que<br />

a instituição possuísse espaços para a recepção <strong>de</strong> acervo, sala<br />

<strong>de</strong> higienização, sala <strong>de</strong> catalogação, reserva técnica e espaço<br />

para pesquisa.<br />

A missão do <strong>Museu</strong> <strong>de</strong> <strong>História</strong> <strong>da</strong> <strong>Medicina</strong> do Rio Gran<strong>de</strong><br />

do Sul prevê que a instituição promova o interesse pela<br />

história <strong>da</strong> medicina e <strong>da</strong> saú<strong>de</strong>, como uma ferramenta <strong>de</strong><br />

compreensão e ação sobre a reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, por meio <strong>da</strong> preservação,<br />

investigação e divulgação do patrimônio cultural médico<br />

através <strong>de</strong> exposições, ações educativas e publicações que<br />

contribuam para o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong>. O funcionamento<br />

do <strong>Museu</strong> é estruturado a partir <strong>de</strong> Organograma,<br />

Regimento Interno e Plano Museológico.<br />

Segundo o Regimento Interno e o Plano Museológico, o<br />

<strong>MUHM</strong> tem por finali<strong>da</strong><strong>de</strong>s:<br />

I. Constituir acervos, cui<strong>da</strong>ndo <strong>de</strong> sua preservação,<br />

conservação, organização e divulgação;<br />

MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje 199


A PRESERVAÇÃO DA MEMÓRIA MÉDICA<br />

II. Promover a divulgação <strong>da</strong> história <strong>da</strong> <strong>Medicina</strong><br />

por meio <strong>de</strong> exposições, publicações e ações educativas;<br />

III. Prestar atendimento à comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> científica,<br />

disponibilizando os acervos do <strong>Museu</strong> à pesquisa;<br />

IV. Contribuir com a formação <strong>de</strong> recursos humanos,<br />

inclusive por meio <strong>de</strong> estágios na Instituição;<br />

V. Produzir conhecimento sobre a história <strong>da</strong> <strong>Medicina</strong><br />

no Rio Gran<strong>de</strong> do Sul, por meio <strong>de</strong> pesquisa<br />

científica.<br />

VI. Prestar informações sobre a história <strong>da</strong> <strong>Medicina</strong><br />

para a comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Des<strong>de</strong> sua inauguração, o <strong>Museu</strong> realizou 17 exposições:<br />

Retratos <strong>da</strong> <strong>Medicina</strong>: a história médica do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul;<br />

Olhares sobre a história <strong>da</strong> <strong>Medicina</strong>; Mulheres e práticas <strong>de</strong><br />

saú<strong>de</strong>: <strong>Medicina</strong> e fé no universo feminino; Desafios: a <strong>Medicina</strong><br />

e a luta pela vi<strong>da</strong>; A <strong>Medicina</strong> através dos selos; A história<br />

do sindicalismo médico no Rio Gran<strong>de</strong> do Sul; Espaços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong><br />

e memória; As faces <strong>da</strong> saú<strong>de</strong>; Compartilhando memórias:<br />

O <strong>MUHM</strong> e seus doadores; Caminhos do Partenon: Do hospital<br />

<strong>de</strong> isolamento ao sanatório; 140 anos, Ora Pois! A Beneficência<br />

Portuguesa conta a sua história; Simers 80 anos <strong>de</strong><br />

história; Da lepra a hanseníase; As faces <strong>da</strong> saú<strong>de</strong>, 2ª edição;<br />

30 anos <strong>de</strong> AIDS no Rio Gran<strong>de</strong> do Sul: A medicina vencendo<br />

a batalha; <strong>Medicina</strong> e o futebol: quando a saú<strong>de</strong> entra em<br />

campo; Os segredos <strong>da</strong> anatomia: um olhar atento sobre a<br />

base <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> humana.<br />

Em 2007 iniciou-se também a realização <strong>de</strong> ações educativas<br />

volta<strong>da</strong>s a diferentes públicos, como visitas media<strong>da</strong>s e<br />

oficinas direciona<strong>da</strong>s principalmente ao público escolar, sobre<br />

as quais falaremos mais adiante.<br />

SETOR DE ACERVO E PESQUISA<br />

Entre as principais ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s do <strong>Museu</strong>, encontram-se a<br />

organização <strong>de</strong> acervos e a pesquisa. Para realização <strong>de</strong>ssas<br />

ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s o Regimento Interno criou o Setor <strong>de</strong> Acervo e Pesquisa<br />

com suas subdivisões: Seção <strong>de</strong> Acervo Tridimensional,<br />

Seção <strong>de</strong> Acervo Arquivístico e Seção <strong>de</strong> Acervo Bibliográfico,<br />

todos elas compostos por profissionais que se <strong>de</strong>dicam especialmente<br />

a essas áreas, interagindo, obviamente, com os <strong>de</strong>mais<br />

setores e ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s do <strong>Museu</strong>.<br />

Sendo o acervo do <strong>Museu</strong> formado por diferentes tipologias<br />

(tridimensional, arquivística e bibliográfica), possuindo<br />

ain<strong>da</strong> acervos digitalizados, o Setor <strong>de</strong> Acervo e Pesquisa visa<br />

<strong>da</strong>r maior articulação entre estes e a pesquisa, tão necessária<br />

para o processo histórico e museológico. As ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong>senvolvi<strong>da</strong>s<br />

pelo Setor incluem busca <strong>de</strong> doações, higienização,<br />

catalogação, armazenamento, organização do acervo por especiali<strong>da</strong><strong>de</strong>s,<br />

monitoramento do ambiente, controle biológico,<br />

limpeza e organização do espaço físico, seleção <strong>de</strong> acervo<br />

para exposições e pesquisa, projetos <strong>de</strong> higienização, ações<br />

emergenciais e intervenções.<br />

A Seção <strong>de</strong> Acervo Tridimensional é composta por objetos<br />

em metais, vidro, borracha, plástico, têxtil, ma<strong>de</strong>ira, pintura,<br />

escultura, gravura, entre outros, inclusive objetos tendo<br />

mais <strong>de</strong> uma materiali<strong>da</strong><strong>de</strong> combina<strong>da</strong>. O número <strong>de</strong> objetos<br />

ca<strong>da</strong>strados até o momento gira em torno <strong>de</strong> 2.340 itens.<br />

Este acervo é divido por coleções que têm como critério as<br />

especiali<strong>da</strong><strong>de</strong>s médicas: I – Anestesiologia; II – Cardiologia;<br />

III - Cirurgia geral; IV – Obstetrícia; V – Endoscopia; VI – Ginecologia;<br />

VII – Oftalmologia; VIII – Pediatria; IX – Pneumologia;<br />

X – Proctologia; XI – Radiologia; XII – Urologia; XIII – Farmacologia;<br />

XIV– Hematologia; XV – Microbiologia; XVI – Acervo<br />

pessoal; XVII – <strong>Medicina</strong> <strong>de</strong> laboratório; XVIII – Otorrinolaringologia;<br />

XIX – Tisiologia; XX – Fisiologia; XXI – Eletroterapia;<br />

XXII – Clínica Médica; XXIII – Gastroenterologia; XXIV – Ortopedia<br />

e traumatologia; XXV – Odontologia; XXVI – <strong>Medicina</strong><br />

tradicional; XXVII – Neurologia; XXVIII – <strong>Medicina</strong> alternativa;<br />

XXIX – Anatomia.<br />

A Seção <strong>de</strong> Acervo Arquivístico do <strong>MUHM</strong> possui atualmente<br />

139 coleções pessoais que possuem em torno <strong>de</strong> 1.500<br />

fotografias e 15.000 documentos. As coleções pessoais ain<strong>da</strong><br />

são classifica<strong>da</strong>s internamente <strong>da</strong> seguinte forma:<br />

Série 1: documentos referentes à vi<strong>da</strong> profissional do<br />

acumulante, por exemplo, diploma, carteira profissional, carteira<br />

<strong>de</strong> matrícula, teses, trabalhos etc.;<br />

Série 2: documentos <strong>de</strong> natureza publicitária ou <strong>de</strong> imprensa,<br />

por exemplo, recortes <strong>de</strong> jornais, panfletos, revistas etc.;<br />

200<br />

MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje


A PRESERVAÇÃO DA MEMÓRIA MÉDICA<br />

Série 3: documentos pessoais do acumulante que não<br />

estão ligados à sua vi<strong>da</strong> profissional, por exemplo, carteira <strong>de</strong><br />

i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong>, certidão <strong>de</strong> casamento ou <strong>de</strong> nascimento etc.;<br />

Série 4: Fotografias e negativos fotográficos.<br />

• Fundos Institucionais:<br />

Fundo 1: SIMERS – Sindicato Médico do Rio Gran<strong>de</strong> do<br />

Sul;<br />

Fundo 2: AMEHC – Associação dos Médicos do Hospital<br />

Conceição;<br />

Fundo 3: AMA – Associação Médica <strong>de</strong> Alegrete;<br />

Fundo 4: <strong>MUHM</strong> – <strong>Museu</strong> <strong>de</strong> <strong>História</strong> <strong>da</strong> <strong>Medicina</strong> do Rio<br />

Gran<strong>de</strong> do Sul;<br />

Fundo 5: SPB – Socie<strong>da</strong><strong>de</strong> Portuguesa <strong>de</strong> Beneficência;<br />

Fundo 6: CASL – Centro Acadêmico Sarmento Leite<br />

(CASL), <strong>da</strong> Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong> (FAMED) <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

Fe<strong>de</strong>ral do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul (UFRGS).<br />

A Seção <strong>de</strong> Acervo Bibliográfico é composta por livros,<br />

periódicos e catálogos sobre especiali<strong>da</strong><strong>de</strong>s médicas, áreas <strong>da</strong><br />

medicina, história <strong>da</strong> saú<strong>de</strong> e <strong>da</strong> medicina, além <strong>de</strong> algumas<br />

obras literárias escritas por médicos. O Acervo contém cerca<br />

<strong>de</strong> 8.200 obras, sendo 525 <strong>de</strong>las consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong>s raras. Atualmente<br />

o Acervo Bibliográfico encontra-se higienizado e organizado<br />

sumariamente e classificado por especiali<strong>da</strong><strong>de</strong>s médicas<br />

assim distribuí<strong>da</strong>s: Anatomia, Alergologia e Imunologia,<br />

Anestesiologia, Cancerologia, Cardiologia, Cirurgia Geral, Clínica<br />

Médica/<strong>Medicina</strong> Interna, Dermatologia, Endocrinologia,<br />

Gastroenterologia, Genética Médica, Geriatria, Ginecologia e<br />

Obstetrícia, Hematologia e Hemoterapia, Homeopatia, Infectologia,<br />

<strong>Medicina</strong> <strong>de</strong> Família e Comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>, <strong>Medicina</strong> do Trabalho,<br />

<strong>Medicina</strong> Legal, Nefrologia, Neurologia e Neurocirurgia,<br />

Oftalmologia, Ortopedia e Traumatologia, Otorrinolaringologia,<br />

Patologia, Pediatria, Pneumologia, Psiquiatria/Psicologia,<br />

Radiologia, Reumatologia, Urologia, <strong>História</strong> <strong>da</strong> <strong>Medicina</strong>, Histologia,<br />

Parasitologia e Toxicologia, Botânica e Zoologia, Farmacologia,<br />

Anais <strong>de</strong> Congresso/Seminário, <strong>Medicina</strong> Preventiva,<br />

Dicionários e Enciclopédias Médicas, Periódico, Química e<br />

Bioquímica, Fisiologia, Literatura e <strong>História</strong>/Médicos Escritores,<br />

Propedêutica Médica, Sexologia, Saú<strong>de</strong> Pública.<br />

O Acervo Áudio Visual Digital é dividido em quatro fundos:<br />

Fototeca, composto por fotografias históricas <strong>de</strong> personagens<br />

e instituições que ilustram o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

médica no Rio Gran<strong>de</strong> do Sul; Vi<strong>de</strong>oteca, composto por<br />

entrevistas com médicos e familiares, documentários sobre<br />

saú<strong>de</strong> e seus profissionais; Audioteca, banco <strong>de</strong> entrevistas<br />

com médicos e personagens relacionados à medicina; Obras<br />

digitaliza<strong>da</strong>s, obras raras e <strong>de</strong> referência, revistas médicas e<br />

teses. Dentro <strong>de</strong>sta proposta <strong>de</strong> construção <strong>de</strong> novas fontes,<br />

o Setor <strong>de</strong>senvolve projetos como o <strong>de</strong> história oral, que visa<br />

recolher <strong>de</strong>poimentos <strong>de</strong> médicos gaúchos, explorando suas<br />

trajetórias <strong>de</strong> vi<strong>da</strong> e profissional.<br />

O Setor <strong>de</strong> Acervo e Pesquisa atua também no suporte<br />

<strong>da</strong>s exposições e <strong>de</strong>mais ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> <strong>Museu</strong>, realizando<br />

pesquisas em fontes do próprio <strong>Museu</strong> e em fontes externas.<br />

Atua também na elaboração <strong>de</strong> textos, legen<strong>da</strong>s e <strong>de</strong>mais<br />

necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>s que aten<strong>da</strong>m ao público visitante. No que se<br />

refere à pesquisa externa, recebe contato por parte <strong>de</strong> pesquisadores,<br />

auxiliando-os em seus trabalhos. Em relação à<br />

incorporação <strong>de</strong> acervos, o Setor participa na busca <strong>de</strong> doações,<br />

mantendo atualiza<strong>da</strong> a relação <strong>de</strong> doadores (informações<br />

referentes a contatos e tipo <strong>de</strong> acervo doado), e produz<br />

novas fontes.<br />

O <strong>MUHM</strong> <strong>de</strong>senvolve ações específicas <strong>de</strong> higienização,<br />

pequenos reparos, armazenamento e acondicionamento a<strong>de</strong>quados<br />

para ca<strong>da</strong> tipo <strong>de</strong> acervo, buscando controlar questões<br />

relativas a temperatura e umi<strong>da</strong><strong>de</strong>, controle <strong>de</strong> micro-organismos<br />

e insetos, embalagens <strong>de</strong> proteção e manuseio correto.<br />

Des<strong>de</strong> 2007 o Setor é responsável pela execução <strong>de</strong> convênios<br />

com outras instituições <strong>de</strong> ensino e <strong>de</strong> pesquisa e guar<strong>da</strong><br />

<strong>de</strong> acervos, como a digitalização <strong>da</strong>s teses <strong>da</strong> Facul<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> <strong>Medicina</strong> <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul<br />

(1904-1950) e <strong>da</strong>s teses e documentos do Acervo sobre <strong>Medicina</strong><br />

do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul.<br />

Tem também convênios com hospitais e/ou seus memoriais,<br />

com o Arquivo Histórico do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul, o curso técnico<br />

<strong>de</strong> Biblioteconomia <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Rio Gran<strong>de</strong> do<br />

Sul, a Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> do Vale do Rio dos Sinos e a Aca<strong>de</strong>mia<br />

Nacional <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong>.<br />

MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje 201


Estetoscópio <strong>de</strong> Pinard<br />

Acervo: Dr. Francisco <strong>de</strong> A. M. Vieira<br />

Estetoscópio<br />

Acervo: Dr. Gayba Correia Silva<br />

Doador: Dra. Dirma <strong>de</strong> Oliveira Silva<br />

Acervo <strong>MUHM</strong><br />

Esfigmomanômetro<br />

Acervo: Dr. Gayba Correia Silva<br />

Doador: Dra. Dirma <strong>de</strong> Oliveira Silva


Fotografias <strong>de</strong><br />

Dr. Gabino Prates <strong>da</strong> Fonseca<br />

Acervo: Dr. Gabino Prates <strong>da</strong> Fonseca<br />

Acervo <strong>MUHM</strong><br />

Doador: Helio Mariante <strong>da</strong> Fonseca


Foto do Curso <strong>de</strong><br />

Cirurgia Abdominal <strong>da</strong> Facul<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> <strong>Medicina</strong> <strong>de</strong> Paris, 1925<br />

Acervo: Dr. Gabino Prates <strong>da</strong> Fonseca<br />

Doador: Helio Mariante <strong>da</strong> Fonseca


Diploma Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong> <strong>de</strong> Paris –<br />

Curso Complementar em<br />

Prática Obstétrica, 1924<br />

Acervo: Dr. Gabino Prates <strong>da</strong> Fonseca<br />

Doador: Helio Mariante <strong>da</strong> Fonseca


Tese: Da intoxicação pelo amor –<br />

Dr. Pires Porto, 1908<br />

Acervo: <strong>Museu</strong> Paulo Firpo<br />

Doador: Adilson Nunes <strong>de</strong> Oliveira


Frasco <strong>de</strong> medicamento<br />

Peitoral Soel<br />

Acervo: Sérgio Augusto Sempé<br />

Doador: Sérgio Augusto Sempé<br />

Acervo <strong>MUHM</strong><br />

Chapéu <strong>de</strong> Bixo<br />

Acervo: Dr. Carlos Alberto Carpena<br />

Doador: Dr. Carlos Alberto Carpena


Caixa <strong>de</strong> lentes<br />

Acervo: Dr. Lauro Pedro Müller<br />

Doador: Suzana Müller Kurban


Ata <strong>de</strong> Fun<strong>da</strong>ção do Sindicato Médico<br />

do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul – 1931<br />

<strong>MUHM</strong><br />

Acervo: Sindicato Médico do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul


Ata <strong>de</strong> Fun<strong>da</strong>ção do Sindicato Médico<br />

do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul – 1931<br />

Acervo: Sindicato Médico do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul


Cardioscópio<br />

Acervo: Dr. João Carlos Pinho Fernan<strong>de</strong>s<br />

Doador: Dr. João Baptista Fernan<strong>de</strong>s


Obra: Lições <strong>de</strong> Eugenia<br />

Autor: Kehl, Renato<br />

Publicação: 1929<br />

Editora: Livraria Francisco Alves<br />

Ci<strong>da</strong><strong>de</strong>: Rio <strong>de</strong> Janeiro<br />

Acervo: Dr. Angelo Caleffi<br />

Doador: Dr. Angelo Caleffi


Obra: Tratamento do Choque<br />

Autor: Schumer, William e Nyhus, L.<br />

Publicação: 1976<br />

Editora: Manole Lt<strong>da</strong>.<br />

Ci<strong>da</strong><strong>de</strong>: São Paulo<br />

Acervo: Dr. Luis <strong>de</strong> A<strong>da</strong>il<br />

Doador: Ruth Alonso <strong>de</strong> A<strong>da</strong>il<br />

Obra: Psiquiatria no<br />

Rio Gran<strong>de</strong> do Sul<br />

Autor: Godoy, J.<br />

Publicação: 1955<br />

Ci<strong>da</strong><strong>de</strong>: Porto Alegre<br />

Acervo: <strong>MUHM</strong>


Obra: Ginecologia prática: para médicos não especializados<br />

Autor: Runge, Ernest<br />

Publicação: 1934<br />

Editora: Livraria do Globo Ci<strong>da</strong><strong>de</strong>: Porto Alegre<br />

Acervo: Dr. Tácito Diomar Kraemer<br />

Doador: Marco Antônio Kraemer e Carmem Lúcia Kraemer<br />

Acervo <strong>MUHM</strong>


Pulmão <strong>de</strong> aço<br />

Acervo: Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul<br />

Doador: Marco Antonio dos Santos


A PRESERVAÇÃO DA MEMÓRIA MÉDICA<br />

O SETOR EDUCATIVO E AS AÇÕES<br />

REALIZADAS<br />

O Setor Educativo do <strong>MUHM</strong> é o responsável pela comunicação<br />

do acervo ao público, visto que é a partir <strong>de</strong> suas<br />

ações que todo o trabalho <strong>de</strong>senvolvido pela Reserva Técnica<br />

ganha a dimensão social, ou seja, a partir <strong>da</strong>s exposições, o<br />

visitante po<strong>de</strong>rá estabelecer interações com os objetos, o espaço<br />

físico e conhecer o trabalho do <strong>Museu</strong>.<br />

As ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong>senvolvi<strong>da</strong>s pelo Setor Educativo abrangem<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> o atendimento ao visitante, recepcionando-o e<br />

orientando-o para que este possa realizar sua visita <strong>de</strong> maneira<br />

livre e construir seu próprio itinerário.<br />

O <strong>de</strong>safio do <strong>Museu</strong> é conseguir dialogar com os diferentes<br />

públicos sem per<strong>de</strong>r a quali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> informação, contando<br />

com uma boa comunicação visual ou com uma mediação que<br />

oportunize o diálogo e que estimule o <strong>de</strong>senvolvimento do<br />

saber. Assim, ao longo <strong>de</strong>sses <strong>de</strong>z anos, o <strong>MUHM</strong> já recebeu<br />

34.252 visitantes espontâneos, como po<strong>de</strong>mos observar no<br />

Gráfico 1.<br />

<strong>Museu</strong> recebe escolas e grupos em visitas educativas através<br />

<strong>de</strong> mediações e oficinas previamente agen<strong>da</strong><strong>da</strong>s. Nestes oito<br />

anos o Setor Educativo vem ampliando o número <strong>de</strong> visitas<br />

educativas, consoli<strong>da</strong>ndo este espaço como um centro <strong>de</strong> promoção<br />

e compartilhamento do saber <strong>de</strong>ntro <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />

como po<strong>de</strong>mos verificar no Gráfico 2.<br />

Gráfico 2. Número <strong>de</strong> escolas recebi<strong>da</strong>s no <strong>MUHM</strong><br />

por ano (2008-2015)<br />

Fonte: Dados Relatórios do Setor Educativo, <strong>MUHM</strong> (2008-2015)<br />

Gráfico 1. Número <strong>de</strong> visitantes espontâneos por ano (2007-2015)<br />

Fonte: Dados Relatórios do Setor Educativo, <strong>MUHM</strong> (2008-2015)<br />

A intenção do <strong>Museu</strong> é que no final <strong>da</strong> visita o público<br />

<strong>de</strong>ixe o espaço museal com mais questões do que respostas,<br />

vivenciando experiências e se sentindo parte <strong>de</strong>ste patrimônio.<br />

As exposições são pensa<strong>da</strong>s e elabora<strong>da</strong>s pela equipe do<br />

<strong>Museu</strong> almejando o público visitante, seja ele espontâneo ou<br />

escolar, contando com ações educativas que visam aprofun<strong>da</strong>r<br />

e trabalhar os temas apresentados. Des<strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 2008 o<br />

Com o passar dos anos, o Setor Educativo vem abrangendo<br />

um número maior <strong>de</strong> escolas e, assim, assumindo o<br />

público escolar como ator central no processo <strong>de</strong> comunicação<br />

além <strong>de</strong> conquistar um espaço como um centro cultural<br />

<strong>de</strong> promoção e compartilhamento do saber <strong>de</strong>ntro <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Neste período recebemos 173 escolas: municipais, estaduais<br />

e particulares. As escolas são recebi<strong>da</strong>s no <strong>MUHM</strong> por<br />

agen<strong>da</strong>mento, havendo a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> visita prévia do professor<br />

que irá acompanhar a turma na visita educativa. Fica<br />

clara neste cenário uma gran<strong>de</strong> oscilação com relação ao número<br />

<strong>de</strong> escolas que visitaram o <strong>Museu</strong> ao longo <strong>de</strong>sses anos.<br />

É difícil diagnosticar todos os motivos efetivos para a redução<br />

e até mesmo ampliação do número <strong>de</strong> escolas e alunos recebidos<br />

no <strong>Museu</strong>, contudo, po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>stacar algumas questões,<br />

como atrativi<strong>da</strong><strong>de</strong> ao tema <strong>da</strong>s exposições, os protestos<br />

que paralisaram a ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Porto Alegre no ano <strong>de</strong> 2013, assim<br />

como os dias em que houve os jogos <strong>da</strong> Copa do Mundo,<br />

pois a ci<strong>da</strong><strong>de</strong> foi uma <strong>da</strong>s se<strong>de</strong>s <strong>de</strong>ste evento no ano <strong>de</strong> 2014.<br />

216<br />

MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje


A PRESERVAÇÃO DA MEMÓRIA MÉDICA<br />

Gráfico 3. Número <strong>de</strong> alunos recebidos no <strong>MUHM</strong> (2008-2015)<br />

Fonte: Dados Relatórios do Setor Educativo, <strong>MUHM</strong> (2008-2015)<br />

diversos para visitas educativas, oferecendo um aprendizado<br />

consistente, preenchendo <strong>de</strong>sta forma uma <strong>da</strong>s importantes<br />

funções <strong>de</strong> um <strong>Museu</strong>: informar, educar e contribuir para a<br />

transformação social através do conhecimento compartilhado,<br />

múltiplo, dialogado e crítico.<br />

Entre essas práticas <strong>de</strong>stacamos a mediação ativi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

vital no <strong>Museu</strong>: o diálogo com os visitantes. Assim, conforme<br />

<strong>de</strong>staca Martha Marandino (2008, p. 17),<br />

No período entre 2008 e 2015 (julho), recebemos um<br />

total <strong>de</strong> 7.619 alunos, com 547 professores. 6 Ao longo <strong>de</strong>sses<br />

oito anos, contabilizamos um fluxo total <strong>de</strong> visitantes do<br />

museu <strong>de</strong> 48.570 7 . Essa contagem <strong>de</strong> público se refere ao total<br />

<strong>de</strong> visitantes espontâneos, alunos, professores (<strong>de</strong> escolas<br />

e grupos) e frequentadores que participaram <strong>de</strong> eventos no<br />

<strong>MUHM</strong>. Para tanto, to<strong>da</strong> a ação produzi<strong>da</strong> pelo <strong>Museu</strong> é uma<br />

ação educativa e é importante pensar na forma específica <strong>de</strong><br />

comunicar aos diferentes públicos. Assim, o Setor Educativo se<br />

organiza para agir junto às escolas, aos professores e alunos a<br />

fim <strong>de</strong> promover a aprendizagem <strong>de</strong> forma criativa utilizando<br />

o lúdico como ferramenta para favorecer o conhecimento, a<br />

pesquisa e a aprendizagem.<br />

O Setor Educativo <strong>de</strong>senvolve junto às escolas um processo<br />

<strong>de</strong> formação <strong>de</strong> professores, preparando-os para a visita<br />

educativa ao <strong>Museu</strong>. Essa ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> preten<strong>de</strong> apresentar o<br />

<strong>Museu</strong> e conscientizar o professor/educador para que utilize<br />

esse espaço não formal <strong>de</strong> ensino como um local <strong>de</strong> ensino<br />

e aprendizado e, a partir <strong>da</strong> visita, estimular o prazer <strong>da</strong> <strong>de</strong>scoberta<br />

e o <strong>de</strong>safio <strong>da</strong> construção do conhecimento além <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>senvolver outras práticas em sala <strong>de</strong> aula com seus alunos.<br />

As práticas educativas do <strong>Museu</strong> são pensa<strong>da</strong>s <strong>de</strong> forma<br />

específica no tocante à temática <strong>da</strong> história <strong>da</strong> medicina e <strong>da</strong><br />

saú<strong>de</strong> e <strong>de</strong>senvolvi<strong>da</strong>s a fim <strong>de</strong> atingir todos os segmentos <strong>da</strong><br />

socie<strong>da</strong><strong>de</strong>. Assim, preten<strong>de</strong>mos atrair grupos ca<strong>da</strong> vez mais<br />

6 Fonte: Dados Relatórios do Setor Educativo, <strong>MUHM</strong> (2008-2015).<br />

7 Dados extraídos dos Relatórios do Setor Educativo <strong>MUHM</strong> (2007-2015 julho).<br />

para ser leva<strong>da</strong> à prática, essa abor<strong>da</strong>gem <strong>de</strong> comunicação<br />

propõe a incorporação <strong>de</strong> estratégias<br />

<strong>de</strong> participação e envolvimento do público que valorizem,<br />

justamente, o que o público sabe e que<br />

coloquem esses saberes no mesmo nível que os dos<br />

especialistas, na perspectiva <strong>de</strong> possibilitar um diálogo<br />

entre eles.<br />

É a partir dos mediadores que atuam junto ao Setor Educativo<br />

fazendo o papel <strong>de</strong> facilitadores do conhecimento que<br />

os visitantes conhecem o espaço do <strong>Museu</strong> e dialogam sobre<br />

a temática <strong>da</strong>s exposições, organização, arquitetura, as ações<br />

educativas e sua função social. Além disso, <strong>de</strong>spertam a curiosi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

e aguçam o interesse sobre a história <strong>da</strong> medicina, <strong>da</strong><br />

saú<strong>de</strong> e do patrimônio histórico nos diferentes públicos.<br />

O <strong>Museu</strong> tem como propósito principal na sua pe<strong>da</strong>gogia<br />

museal provocar nos seus visitantes o exercício <strong>de</strong> olhar<br />

para além dos objetos, <strong>de</strong>spertando a curiosi<strong>da</strong><strong>de</strong>, a imaginação,<br />

o gosto pela pesquisa e o sentimento <strong>de</strong> pertencimento.<br />

No nosso entendimento o espaço do <strong>Museu</strong>, enquanto<br />

espaço não formal <strong>de</strong> ensino, não está restrito somente à<br />

exposição e observação dos objetos do acervo, mas também<br />

ao estudo, pesquisa e difusão do saber, <strong>de</strong>sempenhando um<br />

papel mais relevante junto às escolas reforçando seu viés educativo.<br />

Nesse sentido, <strong>de</strong>stacamos as oficinas lúdico-pe<strong>da</strong>gógicas,<br />

que possibilitam a realização <strong>da</strong> prática educativa e o<br />

ensino-aprendizagem <strong>de</strong> uma forma mais criativa e diverti<strong>da</strong><br />

para o público escolar no espaço museal.<br />

Estas ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s favorecem o diálogo com o conhecimento,<br />

proporcionando condições <strong>de</strong> aprendizagem e <strong>de</strong>scoberta,<br />

além <strong>de</strong> envolver os alunos a <strong>de</strong>senvolverem ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s em<br />

MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje 217


A PRESERVAÇÃO DA MEMÓRIA MÉDICA<br />

grupos <strong>de</strong> forma colaborativa e interativa, revelando a estes<br />

seu papel como sujeitos ativos na construção do saber.<br />

Outro elemento importante na prática educativa no museu<br />

diz respeito à linguagem, à forma como objetos, textos,<br />

imagens e o próprio dialogo com o visitante são <strong>de</strong>senvolvidos.<br />

Aqui mais uma vez nos utilizamos as palavras <strong>de</strong> Martha<br />

Marandino (2008, p. 20), quando afirma que “o tempo, no<br />

museu, é breve. Ele é essencial para as estratégias <strong>de</strong> comunicação,<br />

já que <strong>de</strong>vemos levar em conta que a visita po<strong>de</strong>rá ser<br />

única na vi<strong>da</strong> do indivíduo ou do grupo”. Nesse sentido, <strong>de</strong>stacamos<br />

a importância do planejamento e <strong>da</strong> preparação do<br />

mediador na visita educativa e também <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s a serem<br />

<strong>de</strong>senvolvi<strong>da</strong>s com os alunos. O tempo, as abor<strong>da</strong>gens e diálogos<br />

são orientados pelo mediador reforçando a importância<br />

<strong>de</strong> atrair o olhar e o interesse dos alunos para a exposição e<br />

no <strong>de</strong>senvolvimento <strong>da</strong>s oficinas. 8<br />

NORA, Pierre. Entre mémoire et histoire: la problématique <strong>de</strong>s lieux.<br />

In: NORA, Pierre (org.). Les lieux <strong>de</strong> mémoire. Paris: Gallimard, 1984.<br />

PIMENTA, Tânia Salgado. Entre sangradores e doutores: práticas e<br />

formação médica na primeira meta<strong>de</strong> do século XIX. Cad. Ce<strong>de</strong>s,<br />

Campinas, v. 23, n. 59, p. 91-102, abr. 2003.<br />

WEBER, Beatriz Teixeira. As artes <strong>de</strong> curar: <strong>Medicina</strong>, Religião, Magia<br />

e Positivismo na República Rio-gran<strong>de</strong>nse (1889-1928). Santa<br />

Maria: Ed. Da UFSM; Bauru: Editora <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> do Sagrado<br />

Coração, 1998.<br />

WEBER, Beatriz Teixeira; SERRES, Juliane Conceição Primon. Instituições<br />

<strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> <strong>de</strong> Porto Alegre – inventário. Porto Alegre: I<strong>de</strong>ograf,<br />

2008.<br />

REFERÊNCIAS<br />

ABREU, Regina. A emergência do patrimônio genético e a nova configuração<br />

do campo do patrimônio. In: ABREU, Regina; CHAGAS,<br />

Mario. Memória e patrimônio. ensaios contemporâneos. 2. ed. Rio<br />

<strong>de</strong> Janeiro: Ed. Lamparina, 2009.<br />

ALONSO FERNANDEZ, Luis. Museologia y museografia. Barcelona:<br />

Ediciones <strong>de</strong>l Serbal, 3. ed., 2006.<br />

BALLART HERNÁNDEZ, Josep; TRESSERRAS, Jordi Juan i. Gestión<br />

<strong>de</strong>l patrimônio cultural. 3. ed. Barcelona: Editorial Ariel, 2007.<br />

CARVALHO, Ana Cristina Barreto <strong>de</strong>. Gestão <strong>de</strong> patrimônio museológico:<br />

as re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> museus. 2008. 185 f. Tese (Doutorado em Artes)<br />

– Programa <strong>de</strong> Artes Visuais <strong>da</strong> Escola <strong>de</strong> Comunicações e Artes,<br />

Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo, São Paulo, 2008.<br />

COSTA, Renato <strong>da</strong> Gama-Rosa, SANGLARD, Gisele. Patrimônio cultural<br />

<strong>da</strong> saú<strong>de</strong>: uma história possível? Anpuh: Rio <strong>de</strong> Janeiro, 2008.<br />

MARANDINO, Martha. Educação em museus: a mediação em foco.<br />

São Paulo: FEUSP, 2008.<br />

8 Como já mencionamos, a partir <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 2008, iniciaram-se as ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s junto<br />

às escolas, assim, além <strong>da</strong> mediação, passaram a ser realiza<strong>da</strong>s oficinas educativas.<br />

São elas: As aventuras <strong>de</strong> Biblos: apren<strong>de</strong>ndo a preservar; Correio museológico; Do<br />

fundo do baú: minha vi<strong>da</strong> é peça <strong>de</strong> museu; A minha versão <strong>da</strong> história; Imagens<br />

que falam: recriando a exposição; Estátua e simulação. Já em 2010, foram inseri<strong>da</strong>s<br />

mais duas oficinas: Um olhar sobre o objeto; e a Dinâmica <strong>da</strong>s baratas, que<br />

teve seu nome alterado em 2011 para Acerte na mosca!.<br />

218<br />

MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje


Ações para Preservação<br />

do Acervo Fotos: Juliane Soska<br />

Acondicionamento e armazenamento <strong>de</strong> Acervo – Seção <strong>de</strong> Acervo Arquivístico<br />

Manuseio <strong>da</strong> documentação pertencente ao acervo <strong>da</strong> Socie<strong>da</strong><strong>de</strong> Portuguesa <strong>de</strong> Beneficência<br />

<strong>de</strong> Porto Alegre<br />

219


Organização do<br />

Acervo do Sindicato<br />

Médico do<br />

Rio Gran<strong>de</strong> do Sul<br />

Acondicionamento e<br />

armazenamento dos<br />

diplomas médicos<br />

– Seção <strong>de</strong> Acervo<br />

Arquivístico


Envelopes com<br />

o Acervo dos<br />

Fundos Pessoais –<br />

Seção <strong>de</strong> Acervo<br />

Arquivístico


Armazenamento<br />

do Acervo Bibliográfico –<br />

Seção <strong>de</strong> Acervo<br />

Bibliográfico


Manuseio do<br />

Acervo Bibliográfico –<br />

Seção <strong>de</strong> Acervo<br />

Bibliográfico


Acondicionamento<br />

e armazenamento<br />

<strong>de</strong> Acervo nas<br />

estantes <strong>de</strong>slizantes<br />

– Seção <strong>de</strong> Acervo<br />

Tridimensional<br />

Envelopes com o<br />

Acervo dos Fundos<br />

Institucionais –<br />

Seção <strong>de</strong> Acervo<br />

Arquivístico


Embalagens e<br />

etiquetas utiliza<strong>da</strong>s<br />

para i<strong>de</strong>ntificação do<br />

acervo – Seção <strong>de</strong><br />

Acervo Tridimensional


Higienização<br />

do Pulmão <strong>de</strong> Aço –<br />

Seção <strong>de</strong> Acervo<br />

Tridimensional


Higienização <strong>de</strong><br />

acervo – Seção <strong>de</strong><br />

Acervo Bibliográfico<br />

Higienização<br />

<strong>de</strong> acervo –<br />

Seção <strong>de</strong> Acervo<br />

Tridimensional


Higienização <strong>de</strong><br />

acervo – Seção<br />

<strong>de</strong> Acervo<br />

Bibliográfico


Higienização <strong>de</strong><br />

acervo – Seção <strong>de</strong><br />

Acervo Arquivístico<br />

Acondicionamento<br />

do Acervo<br />

Arquivístico


Higienização<br />

<strong>de</strong> acervo –<br />

Seção <strong>de</strong> Acervo<br />

Arquivístico


Higienização <strong>de</strong> acervo – Seção <strong>de</strong> Acervo Arquivístico


Armazenamento e<br />

acondicionamento –<br />

Seção <strong>de</strong> Acervo<br />

Arquivístico


Ações com a<br />

Comuni<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

Fotos: Letícia Castro<br />

e Setor Educativo <strong>MUHM</strong><br />

Material <strong>da</strong> Ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> Educativa<br />

“Acerte na Mosca!”<br />

Ano: 2010<br />

Ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> Educativa<br />

Acerte na Mosca!<br />

Alunos do 7º Ano <strong>da</strong> E.E.E.F.<br />

Nossa Senhora do Livramento<br />

(Guaíba/RS), em 23.11.2010.


Ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> Educativa “Acerte no Gol!”<br />

Alunos do 4º Ano <strong>da</strong> E.M.E.F. Lauro Rodrigues<br />

(Porto Alegre/RS) em 24.06.2014.<br />

Material <strong>da</strong> Ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> Educativa “Acerte no Gol!” (2014).<br />

Ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> Educativa “Acerte no Gol!”<br />

Alunos do 4º Ano <strong>da</strong> E.M.E.F. Lauro Rodrigues<br />

(Porto Alegre/RS) em 01.07.2014.<br />

234


Ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> Educativa<br />

“Acerte no Vírus!”<br />

Alunos do 7º<br />

e 8º Ano <strong>da</strong><br />

E.M.E.F. Jerônimo Porto<br />

(Viamão/RS)<br />

em 19.09.2013.<br />

235


Ações com a Comuni<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

Ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> Educativa<br />

“Adivinhe o que é?”<br />

Alunos do 3º Ciclo <strong>da</strong><br />

E.M. <strong>de</strong> 1º Grau Vereador<br />

Carlos Pessoa <strong>de</strong> Brum<br />

(Porto Alegre/RS) em<br />

03.11.2010.<br />

Ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> Educativa<br />

“Adivinhe o que é?”<br />

Alunos do 3º Ano Médio<br />

<strong>da</strong> E.E.E.M. Cecília Meireles<br />

(Sapucaia do Sul/RS) em<br />

27.09.2013.


Ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> Educativa<br />

“Do fundo do Baú”<br />

Alunos <strong>da</strong> E.M.E.F. Chico<br />

Men<strong>de</strong>s<br />

(Porto Alegre/RS) em<br />

26.05.2009.<br />

Ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> Educativa<br />

“Do fundo do Baú”<br />

Alunos <strong>da</strong> E.E.E.F. no<br />

Bairro Jardim Lindóia<br />

(Porto Alegre/RS) em<br />

15.09.2009.


Ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> Educativa<br />

“As Aventuras <strong>de</strong> Biblos:<br />

Apren<strong>de</strong>ndo a Preservar”<br />

Alunos do 3º Ano <strong>da</strong><br />

E.E.E.F. Marechal Mallet<br />

(Porto Alegre/RS) em<br />

06.07.2012.<br />

Ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> Educativa<br />

“As Aventuras <strong>de</strong><br />

Biblos: Apren<strong>de</strong>ndo a<br />

Preservar”<br />

Alunos do 2º e 3º Ano<br />

<strong>da</strong> E.E.E.F. Marechal<br />

Mallet (Porto Alegre/RS)<br />

em 05.07.2013.


Ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> Educativa<br />

“As Aventuras <strong>de</strong> Biblos:<br />

Apren<strong>de</strong>ndo a Preservar”<br />

Confecção <strong>de</strong> fantoche<br />

– Alunos do 1º Ano <strong>da</strong><br />

E.M.E.F. Aurialicia Chaxim<br />

Bes (Sapucaia do Sul/RS)<br />

em 27.11.2014.<br />

Ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> Educativa<br />

“As Aventuras <strong>de</strong> Biblos:<br />

Apren<strong>de</strong>ndo a Preservar”<br />

Alunos <strong>da</strong> E.E.E.F. Machado<br />

<strong>de</strong> Assis (Porto Alegre/RS)<br />

em 28.07.2012.


Ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> Educativa “Imagens que falam”<br />

Alunos <strong>da</strong> E.E.E.F. Érico Veríssimo (Porto Alegre/RS),<br />

em 28.05.2009.<br />

Ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> Educativa “Imagens que falam”<br />

Alunos <strong>da</strong> E.E.E.M. Governador Walter Jobim<br />

(Viamão/RS), em 16.12.2009.<br />

Ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> Educativa<br />

“Imagens que falam”<br />

Alunos do Instituto Estadual<br />

Rio Branco (Porto Alegre/RS),<br />

em 25.08.2009.


Ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> Educativa “Imagens que falam”<br />

Alunos do 5º Ano <strong>da</strong> E.E.E.M. Barão <strong>de</strong> Lucena<br />

(Viamão/RS), em 20.10.2010.<br />

Ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> Educativa “Imagens que falam”<br />

Alunos <strong>da</strong> E.E.E.M. Barão <strong>de</strong> Lucena<br />

(Viamão/RS), em 20.10.2009.<br />

Ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> Educativa<br />

“Imagens que falam”<br />

Alunos do 5º Ano <strong>da</strong><br />

E.E.E.F. Marechal Mallet<br />

(Porto Alegre/RS), em<br />

12.04.2013.


Ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> Educativa<br />

“Minha Camisa é 10!”<br />

22 e 23. Alunos do 7º Ano<br />

<strong>da</strong> E.M.E.F. Getúlio Vargas<br />

(Eldorado do Sul/RS),<br />

em 13.11.2014.


Ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> Educativa “Monte o Joaquim”<br />

24-25-26 e 27. Alunos <strong>da</strong> E.E.E.M. Caetano Gonçalves, 08.07.2015.


Ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> Educativa<br />

Projeto <strong>Museu</strong> vai à Escola<br />

“As Aventuras <strong>de</strong> Biblos:<br />

Apren<strong>de</strong>ndo a Preservar”<br />

Festival Literário e XXV Feira<br />

do livro Dorense, o <strong>MUHM</strong><br />

participou no dia 14.09.2014.<br />

Ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> Educativa<br />

Projeto <strong>Museu</strong> vai à Escola<br />

“As Aventuras <strong>de</strong> Biblos:<br />

Apren<strong>de</strong>ndo a Preservar”<br />

E. Vinícius <strong>de</strong> Morais –<br />

Maio <strong>de</strong> 2013.


Ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> Educativa “Na trilha <strong>da</strong> Anatomia”<br />

Alunos do 8º Ano do Instituto Santa Luzia (Porto Alegre/RS) em 12.06.2015.


Ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> Educativa “Olhar sobre o Objeto”<br />

Alunos do 9º Ano <strong>da</strong> E.M.E.F. Professora Maria Luiza Binfaré Cezar (Eldorado do Sul/RS) em 11.04.2013.<br />

Ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> Educativa “Olhar sobre o Objeto”<br />

Alunos do 8º Ano <strong>da</strong> E.M.E.F. João Paulo I<br />

(Canoas/RS) em 08.10.2013.<br />

Ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> Educativa “Olhar sobre o Objeto”<br />

Alunos do 6º Ano <strong>da</strong> E.E.E.F. Marechal Mallet<br />

(Porto Alegre/RS) em 09.08.2013.


Ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> Educativa<br />

“Olhar sobre o Objeto”<br />

Alunos do EJA do<br />

Centro Municipal<br />

<strong>de</strong> Educação do<br />

Trabalhador Paulo<br />

Freire (Porto Alegre/<br />

RS), em 21.11.2013.


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