MUHM - Museu de História da Medicina
Um acervo vivo que faz ponte entre o ontem e o hoje.
Um acervo vivo que faz ponte entre o ontem e o hoje.
You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
A medicina missioneira entre a ciência europeia e os saberes nativos<br />
mesmo a compilação <strong>de</strong> uma obra chama<strong>da</strong> Libro <strong>de</strong> cirugia. 13<br />
Não se conhece o para<strong>de</strong>iro <strong>da</strong> obra, sendo que restaram somente<br />
alguns fragmentos <strong>de</strong> seu prólogo. 14<br />
Nestes trechos, no entanto, Montenegro, aceitando que<br />
tenha sido ele o compilador, <strong>de</strong>staca seu objetivo principal ao<br />
escrevê-la: “el <strong>de</strong>seo <strong>de</strong> reunir en un Cuerpo, lo que no he<br />
podido hallar en libro alguno, cuanto es preciso teniendo que<br />
caminar continuamente y por diversas partes; no pudiendo<br />
llevar muchos libros que me hallaba falto” (MONTENEGRO,<br />
apud CREMADES, 1999, p. 19).<br />
Assim, a compilação respeitaria às necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>da</strong>quele<br />
que a organizou, consi<strong>de</strong>rando as <strong>de</strong>man<strong>da</strong>s que a socie<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
por ele atendi<strong>da</strong> apresentassem. 15 Além disso, a atitu<strong>de</strong> estava<br />
liga<strong>da</strong> a uma questão prática, pois, mesmo que o autor<br />
possuísse obras relevantes, seria impossível transportá-las pelas<br />
diversas regiões por on<strong>de</strong> teria que an<strong>da</strong>r para aten<strong>de</strong>r aos<br />
enfermos. Em meio a isso, é fun<strong>da</strong>mental que consi<strong>de</strong>remos<br />
também as concepções científicas do jesuíta, assim como suas<br />
ambições em tornar-se, ele também, um autor <strong>de</strong> obra médica.<br />
16<br />
Para aprofun<strong>da</strong>rmos as diferenças entre espaços centrais,<br />
como Córdoba e o Rio <strong>de</strong> Janeiro, com relação às regiões<br />
dos pueblos <strong>de</strong> índios, <strong>de</strong>stacaremos agora outro tipo <strong>de</strong><br />
medicamento que ganhou espaço nas boticas ao longo do<br />
século XVII: os fármacos químicos. A química mo<strong>de</strong>rna aparece<br />
por volta <strong>de</strong> 1600 e, durante o século XVIII, foi diretamente<br />
influencia<strong>da</strong> pela iatroquímica 17 através <strong>de</strong> autores como Bo-<br />
13 O principal <strong>de</strong>fensor <strong>de</strong>ssa i<strong>de</strong>ia foi Guillermo Furlong (1947, p. 74), que assim se<br />
posiciona sobre o tema: “Montenegro es el indiscutido autor <strong>de</strong> la tan zaran<strong>de</strong>a<strong>da</strong><br />
Materia Medica Misionera pero, a nuestro parecer, es el igualmente el autor <strong>de</strong>l<br />
Libro <strong>de</strong> Cirugia que, em 1916, dio a conocer el doctor Félix Garzón Mace<strong>da</strong> en<br />
magna y eruditísima historia <strong>de</strong> la ‘<strong>Medicina</strong> en Córdoba’ ”. Ain<strong>da</strong> que se posicione<br />
favorável à i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que seria Montenegro o autor, Furlong menciona que havia<br />
uma polêmica entre os pesquisadores do tema <strong>de</strong> que o autor pu<strong>de</strong>sse ser um<br />
franciscano conhecido como Pacheco.<br />
14 Os fragmentos do prólogo <strong>da</strong> obra po<strong>de</strong>m ser encontrados em: GARZÓN MACE-<br />
DA, F. La <strong>Medicina</strong> en Córdoba. Apuntes para su Historia. Tomos I-II-III. Buenos<br />
Aires: Talleres Gráficos Rodrígues Giles, 1916 (Edição parcial do Libro <strong>de</strong> Cirugia).<br />
15 Falando sobre a questão dos compêndios, Chartier (apud FAULHABER; LOPES,<br />
2012, p. 60) alerta que “a uni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>pendia <strong>da</strong> vonta<strong>de</strong> do leitor que <strong>de</strong>sejasse<br />
reunir diversas obras em um único livro, ou do copista que <strong>de</strong>cidisse copiar e associar<br />
uma série <strong>de</strong> textos heterogêneos. Essa concepção <strong>de</strong> livro ain<strong>da</strong> estava presente<br />
nos séculos XVI e XVII, no âmbito <strong>de</strong> uma cultura manuscrita que sobreviveu<br />
à invenção <strong>da</strong> imprensa”.<br />
16 Sobre o tema ver o capítulo 4 <strong>de</strong> nossa dissertação, intitulado “O autor <strong>de</strong> botica”.<br />
17 Sobre a Iatroquímica, Nogueira <strong>de</strong>staca que: “po<strong>de</strong> ser compreendi<strong>da</strong> como um<br />
conjunto <strong>de</strong> idéias que explicava o funcionamento do corpo humano e as doenças<br />
segundo processos químicos. Neste contexto, a principal inovação <strong>de</strong>sta escola foi<br />
erhaave e Friedrich Hoffmann. Foi nesta centúria que a química<br />
se consolidou como disciplina científica, distanciando-se <strong>de</strong><br />
ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s como a dos alquimistas e tornando-se ca<strong>da</strong> vez mais<br />
uma ciência específica.<br />
O avanço dos conhecimentos químicos e seu afastamento<br />
<strong>de</strong> outras áreas geraram “um inevitável afastamento<br />
do campo com relação às práticas medicinais”, promovendo<br />
“certa estagnação nos estudos e <strong>de</strong>scobertas <strong>de</strong> fármacos”<br />
(NOGUEIRA, 2009, p. 231). Assim, ao mesmo tempo em que<br />
os medicamentos químicos afirmavam-se, os estudos sobre<br />
eles não conheceram gran<strong>de</strong>s avanços durante aquela centúria.<br />
Po<strong>de</strong>-se supor que os medicamentos <strong>de</strong> origem química,<br />
assim como os tratados sobre o tema, disponíveis no período<br />
analisado, não se alteraram <strong>de</strong> maneira significativa até a expulsão<br />
dos jesuítas.<br />
Como já <strong>de</strong>stacamos ao abor<strong>da</strong>rmos as obras disponíveis<br />
nos inventários, os tratados sobre a medicina química já se<br />
faziam presentes nessa documentação, ain<strong>da</strong> que em número<br />
muito inferior àquelas que eram as ramificações clássicas sobre<br />
as artes <strong>de</strong> curar. Eram cinco obras no Rio <strong>de</strong> Janeiro e quatro<br />
em Córdoba. Aqui cabe ressaltarmos que muitos tratados,<br />
apesar <strong>de</strong> não tratarem o tema <strong>de</strong> maneira específica, já faziam<br />
referências aos usos dos medicamentos químicos, como<br />
fica claro na obra do espanhol Felipe <strong>de</strong> Borbon: “No soy <strong>de</strong> la<br />
opinion <strong>de</strong> aquellos, que con tenaz pasion son enemigos <strong>de</strong> la<br />
Chimica, y practica suya, con<strong>de</strong>nando to<strong>da</strong>s las operaciones<br />
<strong>de</strong> esta Arte; ni <strong>de</strong> los que son tan idolatras, que reprehen<strong>de</strong>n<br />
todos los remedios Galenistas […]” (BORBON, 1705, p. 9).<br />
No Inventário <strong>da</strong> Botica <strong>de</strong> Córdoba, que analisamos <strong>de</strong><br />
maneira mais aprofun<strong>da</strong><strong>da</strong>, os medicamentos químicos abun<strong>da</strong>m.<br />
Entre os diversos fármacos arrolados, <strong>de</strong>stacamos o enxofre<br />
terebintinado e o espírito <strong>de</strong> vinho, nome <strong>da</strong>do à época<br />
para o álcool. O mercúrio arrolado no inventário era encontrado<br />
em seu estado puro, mas também contava com diversas<br />
variações, tais como: mercúrio doce, pílulas mercuriais, precipitado<br />
branco, marmellon, cinábrio nativo e azougue.<br />
Apesar <strong>da</strong>s dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s para o manuseio <strong>de</strong>sses elementos,<br />
po<strong>de</strong>-se supor que eles tenham sido trazidos em estado<br />
a introdução <strong>de</strong> medicamentos específicos no tratamento <strong>de</strong> doenças, em contraposição<br />
à idéia dos galenistas <strong>de</strong> que apenas forças ocultas, alia<strong>da</strong>s às ervas medicinais,<br />
surtiriam efeito na cura dos males do corpo.” (NOGUEIRA, 2009, p.231)<br />
30<br />
MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje