22.12.2016 Views

MUHM - Museu de História da Medicina

Um acervo vivo que faz ponte entre o ontem e o hoje.

Um acervo vivo que faz ponte entre o ontem e o hoje.

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

<strong>Medicina</strong> e cari<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

ciava para ampliar seu espectro <strong>de</strong> atuação. Para compreen<strong>de</strong>r<br />

isso, Daniel Oliveira (2012) aprofundou o estudo <strong>da</strong> ação terapêutica<br />

sobre as mulheres por parte dos médicos <strong>da</strong> Santa<br />

Casa <strong>de</strong> Misericórdia <strong>de</strong> Porto Alegre. Ain<strong>da</strong> um tabu na vira<strong>da</strong><br />

do século XIX para o século XX, a medicina <strong>da</strong> saú<strong>de</strong> feminina<br />

precisava ampliar-se como forma <strong>de</strong> <strong>de</strong>svincular esse grupo<br />

<strong>da</strong>s parteiras, curan<strong>de</strong>iras e comadres, consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong>s repositórios<br />

<strong>de</strong> superstições e ignorância. Os médicos trabalharam,<br />

assim, não só para <strong>de</strong>sconstruir a <strong>de</strong>sconfiança em relação<br />

ao seu saber sobre o corpo <strong>da</strong>s mulheres, como também na<br />

construção <strong>de</strong> suas figuras como homens virtuosos, bondosos,<br />

impelidos pela cari<strong>da</strong><strong>de</strong> e benemerência.<br />

Diego Devincenzi (2012) e Felipe Vieira (2008) também<br />

avançaram no sentido <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r a atuação sócio-política<br />

<strong>da</strong> classe médica. Os historiadores trabalham respectivamente<br />

com a formação <strong>de</strong>ntro <strong>da</strong> Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong><br />

e com a construção do Sindicato Médico. O intenso trabalho<br />

<strong>de</strong> construção <strong>da</strong> hegemonia terapêutica utilizou-se tanto <strong>da</strong><br />

ação pragmática <strong>de</strong>ntro <strong>da</strong> Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> e <strong>da</strong> Santa Casa <strong>de</strong> Misericórdia<br />

como do espalhamento <strong>de</strong> jovens médicos pelas outras<br />

instituições do Estado – inclusive criando novas, como é o<br />

caso do Hospital <strong>de</strong> Cari<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Santa Maria (WEBER, 2000;<br />

ROSSI, 2015). Da mesma forma, <strong>de</strong>monstram os autores, a<br />

ação simbólica <strong>da</strong>s lutas contra os “charlatães”, do comprometimento<br />

moral com a medicina, <strong>da</strong> elaboração <strong>de</strong> uma memória<br />

marca<strong>da</strong> pela cari<strong>da</strong><strong>de</strong>, pelo cristianismo e pela eleva<strong>da</strong><br />

ética civil e humana ajudou a consoli<strong>da</strong>r, para além <strong>da</strong> ciência,<br />

a figura exalta<strong>da</strong> do médico.<br />

A lógica <strong>da</strong> dádiva também se prestou a essa construção.<br />

Afinal, se compreen<strong>de</strong>rmos a saú<strong>de</strong> como dom, o ato<br />

<strong>de</strong> doar saú<strong>de</strong> e o cui<strong>da</strong>do para com a doença po<strong>de</strong>riam<br />

estabelecer relações duradouras <strong>de</strong> respeito e a<strong>de</strong>são entre a<br />

classe médica e os doentes, agora, ca<strong>da</strong> vez mais convertidos<br />

em pacientes. Mesmo <strong>de</strong>pois que a lógica <strong>da</strong>s instituições <strong>de</strong><br />

cari<strong>da</strong><strong>de</strong> já <strong>de</strong>ixara <strong>de</strong> funcionar, a crença na benemerência<br />

médica se manteve. Em função disso – e também por acreditarem<br />

que era preciso construir uma legislação pró-saú<strong>de</strong><br />

coletiva – diversos médicos ergueram proveitosas carreiras<br />

políticas. Mesmo os clientes mais <strong>de</strong>spossuídos, aqueles que<br />

acorriam a eles porque os anúncios <strong>de</strong> jornais prometiam<br />

não cobrar na<strong>da</strong> aos pobres (WITTER, 2001), lhes pagariam<br />

com bem mais que galinhas, porcos ou bolos; o pagamento<br />

viria na moe<strong>da</strong> imaterial <strong>da</strong> obrigação, um pagamento em<br />

longo prazo com efeitos bem mais duradouros que a simples<br />

restituição monetária.<br />

Ao longo <strong>da</strong> segun<strong>da</strong> meta<strong>de</strong> do século XIX e a primeira<br />

do XX, as concepções <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> foram lentamente se modificando,<br />

juntamente com a ampliação e centralização do Estado,<br />

bem como com o aumento do protagonismo médico nas<br />

questões <strong>de</strong> cura. A cari<strong>da</strong><strong>de</strong> esteve sempre junto nesse processo<br />

simbólico e pragmático <strong>de</strong> atenção à saú<strong>de</strong> <strong>da</strong> população,<br />

atuando num importante papel mesmo diante <strong>da</strong> ascensão<br />

<strong>da</strong> <strong>Medicina</strong> clínico-científica. A conjunção <strong>de</strong> todos estes<br />

elementos modificou tão substancialmente os quadros anteriores<br />

que atualmente chegamos ao ponto <strong>de</strong> sequer conseguirmos<br />

reconhecê-los. O que antes estava no seio <strong>da</strong> cari<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

cristã modificou-se para um filantropismo moral e civilizado,<br />

chegando à virtu<strong>de</strong> cívica e, por fim, ao direito fun<strong>da</strong>mental e<br />

inalienável ligado à ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia e, em última instância, à própria<br />

i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> humani<strong>da</strong><strong>de</strong>. O estudo histórico – sem heroicizar ou<br />

vilanizar os atores <strong>de</strong>sse processo – busca compreen<strong>de</strong>r como<br />

política e signos, ciência e crença trabalharam na construção<br />

não apenas do contexto em que vivemos, mas igualmente <strong>de</strong><br />

nossas <strong>de</strong>man<strong>da</strong>s e lutas.<br />

REFERÊNCIAS<br />

ABREU, Laurin<strong>da</strong>. O papel <strong>da</strong>s Misericórdias dos “lugares <strong>de</strong> além-<br />

-mar” na formação do Império português. <strong>História</strong>, Ciências, Saú<strong>de</strong><br />

— Manguinhos, v. VIII, n. 3, p. 591-611, set./<strong>de</strong>z. 2001. on-line.<br />

Acesso em: 27 jul. 2015.<br />

______. Purgatório, Misericórdias e cari<strong>da</strong><strong>de</strong>: condições estruturantes<br />

<strong>da</strong> assistência em Portugal (séculos XV-XIX). DYNAMIS. Acta<br />

Hisp. Med. Sci. Hist. Illus., 2000, n. 20, p. 395-415. Disponível<br />

ALVES, Ismael Gonsalves. Da cari<strong>da</strong><strong>de</strong> ao welfare state: um breve<br />

ensaio sobre os aspectos históricos dos sistemas <strong>de</strong> proteção social<br />

oci<strong>de</strong>ntais. Ciência e Cultura, v. 67, n. 1, São Paulo, jan./mar. 2015.<br />

Versão on-line. Acesso em: 20 jul. 2015.<br />

BELTRÃO, Jane F. Cólera, o flagelo <strong>da</strong> Belém do Grão-Pará. Belém:<br />

<strong>Museu</strong> Paraense Emílio Goeldi; UFPA, 2004.<br />

MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje 49

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!