MUHM - Museu de História da Medicina

Medicina militar no rio grande do sul
conseguir faxina, cavar trincheiras ocupavam soldados que de
ordinário tinham alimentação e fardamentos insuficientes. Ou
havia doenças, ou ocorriam acidentes que mantinham os cirurgiões
ativos. O mesmo Francisco Ferreira de Souza, o cronista,
falou de homens que faleceram por enfermidades contraídas
ao cortar capim “no mais calamitoso inverno” para usar na
cobertura de novo hospital. Muita documentação dos primeiros
tempos de Rio Grande foi destruída pelos espanhóis, sem
falar do muito que se extraviou quando, em 1763, o governador
Elói Madureira e seus auxiliares empreenderam a fuga
para Viamão acossados pelos espanhóis de Cevallos. Mas há,
por exemplo, em folhas de pagamento de oficiais e soldados
do Regimento dos Dragões, quando Rafael Pinto Bandeira era
o comandante, referências a muitos homens que eram considerados
imprestáveis para o serviço das armas por estarem
atacados do peito. Era a tuberculose a se manifestar entre
homens submetidos aos rigores do clima e quase sempre mal
abrigados, com vencimentos em atraso e com alimentação irregular.
Outra referência interessante é sobre os soldados enviados
de São Paulo para participar da expulsão dos espanhóis
e que ficaram inativos por algum tempo ao serem atacados
por surto de varíola.
Tanto em Rio Grande quanto em Viamão e nas outras
incipientes povoações, os cirurgiões militares eram muito considerados
pela população e costumavam, através dos pelouros,
ser eleitos para a Câmara ou para exercer funções tais
como a de almotacé, autoridade responsável pela qualidade
do pão, da carne e do leite fornecidos à população, bem como
pela correção dos pesos e medidas praticados no comércio. O
velho Sebastião foi membro da Câmara tanto em Rio Grande
quanto depois em Viamão, mas outros cirurgiões recorreram
a livranças, concedidas pelo ouvidor de Santa Catarina e que
os eximiam desse encargo e de outros em função de se ocuparem
com atividade médica. Fatos como esses indispunham
a Câmara com alguns dos cirurgiões, que eram considerados
homens prósperos na época, já que eram donos de sesmarias
ou de casas nos povoados ou vilas. Tais indisposições aconteceram,
sobretudo, quando o governador era José Marcelino,
ele mesmo atritado com a Câmara, pois chegara a ordenar
a prisão de seus membros enquanto não aceitassem morar
em Porto Alegre, a nova capital, em vez de continuarem em
Viamão, como desejavam. Os cirurgiões André Machado Soares
e Manoel Marques de Sampaio foram alguns dos que
se beneficiaram com as tais livranças. Em 1781, decisão do
ouvidor e corregedor da Ilha de Santa Catarina, atendendo a
reclamações da Câmara, dos nobres e do povo, fixou o valor
máximo das consultas, bem como dos acréscimos autorizados
em função das distâncias percorridas para o atendimento de
pacientes em lugares afastados das vilas. Foram estabelecidas
multa e prisão para os cirurgiões infratores. O certo é que todos
eles estavam sujeitos a um cirurgião-mor, que, baseado em
informes e verificação de conhecimentos, concedia provisões
para que exercessem a profissão e vigiava o procedimento de
cada um deles no Continente de São Pedro. Atender pacientes,
estabelecer normas de higiene e salubridade bem como
lidar com a fiscalização de alimentos e buscar melhores serviços
para a população estimulavam os cirurgiões a participarem
das estratégias do Império Português, que era dependente do
domínio dos mares. Alimentar bem os marinheiros era tão importante
quanto plantar linho cânhamo para a fabricação das
amarras, velas e outros objetos indispensáveis à navegação da
época. E o Rio Grande esteve presente com iniciativas em ambos
os campos: foi plantado linho cânhamo e houve tentativas
de obter extratos de carne. Assim, um dos nove filhos de
Sebastião Gomes de Carvalho, cirurgião militar em Rio Pardo,
participou da busca de carne em conserva para facilitar a alimentação
dos marinheiros nas longas e demoradas viagens
marítimas. Buscando solução para o problema, o cirurgião Vicente
Venceslau Gomes de Carvalho desenvolveu as Tabelletas
de Caldo, encaminhadas a Lisboa e que lhe renderam elogio
e estímulos da corte. Décadas depois, outro médico, o doutor
Manoel Pereira da Silva Ubatuba, que se tornou cavaleiro da
Ordem de Cristo, estabeleceu indústria em Pedras Brancas em
que fabricava o Extratum Carnis, produto premiado em exposições
internacionais. Tais empreendimentos foram anteriores
à produção do Fleischextrakt de Liebig, em Fray Bentos, na
América Espanhola (XAVIER, 2004). Outro aspecto interessante
era a frequência com que a atividade médica passava a ser
exercida pelos filhos dos cirurgiões. A familiaridade com os
procedimentos cirúrgicos e as dificuldades para formar novos
MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - MUHM: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje 59