MUHM - Museu de História da Medicina
Um acervo vivo que faz ponte entre o ontem e o hoje.
Um acervo vivo que faz ponte entre o ontem e o hoje.
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
Luciano Raul Panatieri e Veridiano Farias<br />
Além <strong>de</strong>stas questões, outra tensão, envolvendo Santiago<br />
e Abrilina, foi a suposta tentativa <strong>de</strong> roubo do menino após<br />
a separação ocorri<strong>da</strong> no Uruguai. Nas escritas <strong>de</strong> Panatieri:<br />
“eu era ain<strong>da</strong> pequeno quando meu pai resolvera regressar.<br />
Minha mãe se opôs ele quis me roubar, mas não conseguiu”<br />
(PANATIERI, [s.d.], p. 2). Santiago retornou à Itália ou para a<br />
África, e Luciano ficou com a mãe, <strong>de</strong> quem herdou os traços<br />
negro-africanos (AMRIGS, 2006, p. 15).<br />
Provavelmente, Santiago rumou para lutar na Guerra entre<br />
a Itália e a Abissínia (Etiópia) e quis levar o seu filho para a Europa<br />
ou África, situação impedi<strong>da</strong> por Abrelina. Dona Elvira afirma<br />
que, após este episódio, “do roubo”, seu pai passou a ser criado,<br />
exclusivamente, por sua mãe, cozinheira (ELVIRA, 2013, p. 3) e<br />
doméstica (PANATIERI, [s.d.,], p. 3). Entretanto, nas escritas <strong>de</strong> si<br />
<strong>de</strong> Panatieri, localizou-se que sua mãe, após a separação <strong>de</strong> Santiago,<br />
se casou com o mestre <strong>de</strong> obras João dos Santos.<br />
Panatieri <strong>de</strong>screve: “morávamos no Uruguai e a maior satisfação<br />
<strong>de</strong> minha mãe era que eu não tinha nascido no Brasil<br />
e sim no Uruguai, pois ela não queria um filho brasileiro [...]<br />
eu fui matriculado e iniciei meus estudos no Uruguai” (PANA-<br />
TIERI, [s.d.], p. 1-2). Quais os motivos <strong>de</strong> sua mãe Abrelina não<br />
querer que seu filho fosse brasileiro? Seria uma consciência<br />
sobre as dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s encontra<strong>da</strong>s pelos negros no Brasil em<br />
virtu<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma abolição tardia? 12<br />
Após viver em Artigas, a família se mudou para Quaraí,<br />
no Brasil. Sua mãe ven<strong>de</strong>u as proprie<strong>da</strong><strong>de</strong>s que tinha na ci<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />
o que indica uma condição financeira razoável <strong>de</strong> sua família<br />
– ren<strong>da</strong>s possivelmente <strong>de</strong>ixa<strong>da</strong>s por Santiago e soma<strong>da</strong>s aos<br />
esforços <strong>de</strong> Abrelina e João dos Santos, seu padrasto. Porém,<br />
Luciano todos os dias atravessava a fronteira para estu<strong>da</strong>r em<br />
uma escola pública <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong> uruguaia (PANATIERI, [s.d.], p. 6).<br />
No dia 7 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 1912, “sem o consentimento <strong>de</strong><br />
sua mãe”, Luciano Panatieri veio com o seu padrasto, João dos<br />
Santos, para a capital do estado. Auxiliado por um “bom velho<br />
doente”, que o acompanhou até o cartório, inclusive, servindo<br />
<strong>de</strong> sua testemunha, Panatieri obteve o registro <strong>de</strong> nascimento<br />
como porto-alegrense, realizando assim, segundo ele, “sua<br />
maior aspiração”, ser brasileiro (PANATIERI, [s.d.], p. 7).<br />
12 No Uruguai a abolição foi <strong>de</strong>creta<strong>da</strong> em 1842, isto é, 46 anos antes do Brasil,<br />
o último país do mundo a abolir a escravidão, em 1888.<br />
Interessante notar, mesmo com estas afirmações, um<br />
fato curioso na entrevista com Dona Elvira. Na Copa <strong>de</strong> 1950,<br />
realiza<strong>da</strong> no Brasil, o jogo final foi entre Brasil e Uruguai, que,<br />
com o gol <strong>de</strong> Chiggia (1926-2015), <strong>de</strong>cretou o placar <strong>de</strong> 2 a<br />
1 e a <strong>de</strong>rrota brasileira para os visitantes (PERDIGÃO, 1986).<br />
Este episódio ficou conhecido como “maracanazo” pelos uruguaios.<br />
Na ocasião, a família <strong>de</strong> Panatieri estava assistindo ao<br />
jogo. Com muita emoção, o uruguaio naturalizado brasileiro<br />
levantou-se do sofá, colocou a mão no peito e começou a entoar<br />
o hino do Uruguai, seu país <strong>de</strong> origem. Nas memórias <strong>de</strong><br />
dona Elvira: “[...] ele falava uruguaio [...] aí a gente estava quase<br />
ganhando né, e houve um gol não sei <strong>de</strong> quem [Chiggia], o<br />
pai estava assistindo junto conosco e ele se levantou botou a<br />
mão no peito e cantou todo o hino do Uruguai [...] nós é que<br />
ficamos chateados” (ELVIRA, 2015, p. 4).<br />
Mesmo com esta dupla condição <strong>de</strong> nacionali<strong>da</strong><strong>de</strong>, <strong>de</strong>sperta<strong>da</strong><br />
por seus sentimentos posteriores, Luciano Raul Panatieri,<br />
ao ter se naturalizado brasileiro em 1912, aos 15 anos <strong>de</strong><br />
i<strong>da</strong><strong>de</strong>, enfim, conseguiu ain<strong>da</strong> jovem continuar seus estudos<br />
no Brasil, sem precisar mais atravessar a fronteira para estu<strong>da</strong>r.<br />
A PROCEDÊNCIA DE VERIDIANO FARIAS<br />
E O CONTEXTO SOCIAL DA IDENTIDADE<br />
NEGRA SUL-RIO-GRANDENSE NO FINAL<br />
DO SÉCULO XIX E INÍCIO DO SÉCULO XX<br />
Seis anos antes <strong>de</strong>ste acontecimento na vi<strong>da</strong> <strong>de</strong> Panatieri,<br />
mais precisamente no dia 18 <strong>de</strong> fevereiro <strong>de</strong> 1906, nascia<br />
na ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Rio Gran<strong>de</strong>, interior do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul, outro<br />
indivíduo negro: Veridiano Farias, filho <strong>de</strong> Franklin Fortunato<br />
e Maria Farias. Seu pai era estivador do Porto <strong>de</strong> Rio Gran<strong>de</strong>.<br />
Em Rio Gran<strong>de</strong> em 1888, havia 3.710 estrangeiros na população<br />
total do município, sendo quase a meta<strong>de</strong> composta<br />
<strong>de</strong> portugueses, <strong>de</strong>pois aparecendo italianos, alemães, franceses<br />
e ingleses. Esses estrangeiros correspon<strong>de</strong>riam a 18,3%<br />
<strong>da</strong> população total, enquanto 5.573 eram negros ou pardos<br />
(27,48%) (LONER, 1999, p. 67), correspon<strong>de</strong>ndo à expressiva<br />
<strong>de</strong>mografia afro<strong>de</strong>scen<strong>de</strong>nte.<br />
De maneira abrangente, no pós-abolição brasileiro, o negro<br />
libertado recebeu poucos incentivos <strong>de</strong> inserção por parte<br />
MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje 163