MUHM - Museu de História da Medicina
Um acervo vivo que faz ponte entre o ontem e o hoje.
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<strong>Medicina</strong> e cari<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
ção acadêmica como tendo origem na segun<strong>da</strong> meta<strong>de</strong> do<br />
século XX. Foi nesta época que alguns intelectuais médicos,<br />
como H. E. Sigerist (1952) e George Rosen (1958/1994), ancorados<br />
na tradição que via a medicina como instrumento <strong>de</strong><br />
reforma social (ROSEN, 1979), uniram suas influências socialistas<br />
e o otimismo econômico social do pós-guerra e começaram<br />
a escrever sobre que o reconheceram como o processo<br />
<strong>de</strong> coletivização <strong>da</strong> saú<strong>de</strong>. 1 Suas i<strong>de</strong>ias tinham como ponto<br />
fun<strong>da</strong>mental um “otimismo sanitário”, que envolvia a crença<br />
no planejamento <strong>da</strong>s ações em saú<strong>de</strong> e no Welfare State (o<br />
Estado <strong>de</strong> Bem-Estar Social) (PICKSTONE, 2001; ALVES, 2015).<br />
Atualmente, as pesquisas realiza<strong>da</strong>s pelos historiadores<br />
<strong>da</strong> Saú<strong>de</strong> Pública têm apontado para a superação tanto <strong>da</strong><br />
concepção que a vê como um processo constante rumo ao<br />
progresso (ROSEN, 1958) quanto como parte <strong>de</strong> uma marcha<br />
implacável em direção a uma socie<strong>da</strong><strong>de</strong> disciplina<strong>da</strong> por saberes<br />
e po<strong>de</strong>res (FOUCAULT, 1977). Em ambas as análises, a<br />
<strong>Medicina</strong> clínico-científica e seus representantes constituem os<br />
protagonistas, <strong>de</strong>ixando <strong>de</strong> lado os interesses <strong>da</strong> população,<br />
<strong>da</strong>s elites e, por vezes, <strong>da</strong> própria constituição estatal.<br />
A partir dos anos 1990, as pesquisas históricas em Saú<strong>de</strong><br />
Pública, sem querer excluir ou negar a importância <strong>de</strong> análises<br />
anteriores, buscaram alternativas, aplicando-as em tempos e<br />
lugares diferentes e <strong>da</strong>ndo maior espaço para as plurali<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />
do processo histórico a fim <strong>de</strong> constituir um quadro mais complexo<br />
<strong>de</strong> ações (PORTER, 1994). O Estado e a <strong>Medicina</strong>, longe<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>saparecerem como sujeitos nessas análises, tornaram-se<br />
parte necessária <strong>da</strong> compreensão <strong>da</strong> passagem <strong>da</strong> cari<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
para a filantropia e, <strong>de</strong>sta, para a publicização laica dos atendimentos<br />
<strong>de</strong> saú<strong>de</strong> à população. Nesse sentido, para compreen<strong>de</strong>r<br />
o papel do Estado e <strong>da</strong> <strong>Medicina</strong> clínico-científica junto<br />
à Saú<strong>de</strong> Pública, os historiadores ten<strong>de</strong>m a abdicar dos esquemas<br />
pré-concebidos em troca do estudo <strong>de</strong> contextos locais,<br />
regionais ou nacionais múltiplos, além <strong>de</strong> incorporar variáveis<br />
diversas e mais amplas possíveis.<br />
Com base nesses pressupostos, analisaremos a cari<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
dispensa<strong>da</strong> pelas elites, conjuga<strong>da</strong>s ao Estado Imperial brasileiro,<br />
durante o período pós-farroupilha. Estu<strong>da</strong>remos o mercado<br />
<strong>da</strong> assistência e o papel <strong>da</strong> dádiva na regulação <strong>da</strong> saú<strong>de</strong> entre<br />
doentes, instituições <strong>de</strong> cari<strong>da</strong><strong>de</strong> e curadores. Compreen<strong>de</strong>remos<br />
o avanço <strong>da</strong> i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> filantropia como virtu<strong>de</strong> cívica e<br />
moral e sua incorporação pela classe médica que, sem abdicar<br />
<strong>da</strong> i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> cari<strong>da</strong><strong>de</strong>, envolve-se num árduo trabalho sócio-político<br />
<strong>de</strong> constituição <strong>de</strong> sua hegemonia junto à socie<strong>da</strong><strong>de</strong> e<br />
aos doentes, ca<strong>da</strong> vez mais igualados na dor e nos itinerários<br />
terapêuticos.<br />
Analisando a atuação do Império no sul do país, muitos<br />
dos elementos que diziam respeito às questões <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> pareciam<br />
ocupar uma zona intersticial nas responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong>s governamentais,<br />
on<strong>de</strong> as leis nem sempre resultavam em práticas, e<br />
as práticas nem sempre parecem ter sido efetiva<strong>da</strong>s por uma<br />
ação governamental direta. Por outro lado, o proverbial paternalismo<br />
<strong>da</strong> monarquia brasileira – sem romper com a tradição<br />
que concebia irman<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>da</strong>s Misericórdias como órgãos “semiburocráticos”<br />
(RUSSEL-WOOD, 1981) – não se intimidou em<br />
<strong>de</strong>legar incumbências em termos <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> Pública aos outros<br />
“pais” que “sustentavam a nação”. Ou seja, aos “homens <strong>de</strong><br />
bem”, senhores <strong>de</strong> terras e gentes, aos validos (e que tinham<br />
capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> valer a outros) que também <strong>de</strong>veriam – por<br />
“<strong>de</strong>ver <strong>de</strong> cari<strong>da</strong><strong>de</strong> cristã, filantropia e civilização” – socorrer<br />
aos infelizes que “mereciam sua proteção”. 2 O fato <strong>de</strong> burocratas<br />
e políticos se alternarem, ou mesmo se conjugarem,<br />
no comando <strong>de</strong> governos locais e <strong>de</strong>stas instituições apenas<br />
complexifica as possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong>sta análise (GRAHAN, 1997).<br />
Logo, os investimentos governamentais, neste sentido,<br />
eram bastante acanhados. Aliás, nem mesmo se utilizava a palavra<br />
“investimento”. Os gastos com saú<strong>de</strong> pública eram “<strong>de</strong>spesas”,<br />
que apenas alcançavam picos quando o país, ou uma<br />
província em especial, era atingido por uma gran<strong>de</strong> epi<strong>de</strong>mia.<br />
As <strong>de</strong>spesas aumentaram significativamente no período <strong>da</strong>s<br />
epi<strong>de</strong>mias <strong>de</strong> febre amarela e cólera, na déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1850, <strong>de</strong>crescendo<br />
até meados <strong>de</strong> 1865 e mantendo-se estável até um<br />
novo aumento na déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1880 (quando novas epi<strong>de</strong>mias<br />
assolaram especialmente a capital do país), mas sem jamais<br />
atingir novamente os níveis <strong>de</strong> 1855 (CARVALHO, 2003, p.<br />
179). No mesmo período, caíram os gastos com “assistência<br />
1 A qual remonta às obras dos germânicos Johann Peter Frank (1748-1821) e Rudolf<br />
Virchow (1821-1902) e aos inquéritos sobre as condições <strong>de</strong> vi<strong>da</strong> dos trabalhadores<br />
no século XIX, como os Public Health Reports do governo inglês.<br />
2 AHRS – Relatório dos Presi<strong>de</strong>ntes <strong>da</strong> Província do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul – Barão <strong>de</strong><br />
Caxias – A7.02. 1846.<br />
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