22.12.2016 Views

MUHM - Museu de História da Medicina

Um acervo vivo que faz ponte entre o ontem e o hoje.

Um acervo vivo que faz ponte entre o ontem e o hoje.

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

Médicos ju<strong>de</strong>us no Rio Gran<strong>de</strong> do Sul<br />

ria cirurgião plástico dos hospitais Moinhos <strong>de</strong> Vento e Santa<br />

Casa <strong>de</strong> Misericórdia, doou a documentação <strong>da</strong> Socie<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

Ambulantes <strong>de</strong> Porto Alegre. Durante a facul<strong>da</strong><strong>de</strong> trabalhou<br />

nessa Socie<strong>da</strong><strong>de</strong>, que era basicamente composta por ju<strong>de</strong>us.<br />

Seu pai também era mascate.<br />

Alguns <strong>de</strong>stes médicos precisaram também se <strong>de</strong>dicar<br />

ao comércio, com a finali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> custear seus estudos, como<br />

Júlio Glock, que vendia cabi<strong>de</strong>s <strong>de</strong>s<strong>de</strong> muito jovem ao lado<br />

do seu irmão, inclusive no momento em que estava se preparando<br />

para fazer o vestibular. Em sua narrativa, revela: “Po<strong>de</strong>s<br />

imaginar o que é trabalhar com cabi<strong>de</strong>s e fazer vestibular, com<br />

a certeza dos nossos parentes, tios, amigos, <strong>de</strong> que não seríamos<br />

aprovados?”. Júlio se referia também ao seu irmão mais<br />

velho, José Glock, que se formou na UFRGS no mesmo ano<br />

que ele, 1956.<br />

Ele conta uma história interessante: continuava ven<strong>de</strong>ndo<br />

cabi<strong>de</strong>s enquanto cursava <strong>Medicina</strong> e, um dia, teve sua<br />

mercadoria apreendi<strong>da</strong> por não pagar imposto <strong>de</strong> ven<strong>de</strong>dor<br />

ambulante, o que, segundo ele, não sabia que existia.<br />

Os fiscais ficaram surpresos pelo fato <strong>de</strong> ele ser estu<strong>da</strong>nte<br />

<strong>de</strong> <strong>Medicina</strong> e prometeram <strong>de</strong>volver a mercadoria mediante<br />

a comprovação <strong>de</strong> que era mesmo acadêmico, mas tiveram<br />

que voltar atrás, por questões burocráticas, contorna<strong>da</strong>s a partir<br />

<strong>da</strong> intervenção do prefeito Ildo Meneghetti, que pediu que<br />

<strong>de</strong>volvessem os cabi<strong>de</strong>s ao jovem. Júlio, avalia sua trajetória <strong>de</strong><br />

vi<strong>da</strong>: “Trinta anos <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> todo esse drama para conseguir<br />

recuperar os meus cabi<strong>de</strong>s na Prefeitura, eu subia novamente<br />

as esca<strong>da</strong>rias <strong>da</strong> Prefeitura não mais para brigar por mim, mas<br />

para receber o título <strong>de</strong> ci<strong>da</strong>dão emérito <strong>de</strong> Porto Alegre”.<br />

A maioria dos médicos era ashkenazim, apenas dois<br />

eram sefaradim, um <strong>de</strong>les é o médico oftalmologista Moysés<br />

Sabani, e sobre essa relação afirma que não havia dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s:<br />

Existiam relações <strong>de</strong> amiza<strong>de</strong>, relações <strong>de</strong> comércio<br />

inclusive. E, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> algumas déca<strong>da</strong>s, na nova<br />

geração, eu me consi<strong>de</strong>ro a segun<strong>da</strong> geração <strong>de</strong><br />

imigrantes sefaradim aqui em Porto Alegre, houve<br />

uma integração maior através <strong>de</strong> laços matrimoniais.<br />

Eu me lembro que no começo <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

do Centro Hebraico Riogran<strong>de</strong>nse, que congregava<br />

a coletivi<strong>da</strong><strong>de</strong> sefaradim, não havia ain<strong>da</strong> uma<br />

se<strong>de</strong> construí<strong>da</strong>. Então, as reuniões <strong>da</strong> diretoria,<br />

os ofícios religiosos eram realizados em casas dos<br />

diversos membros <strong>da</strong> coletivi<strong>da</strong><strong>de</strong>, inclusive na <strong>de</strong><br />

meu pai. E as festivi<strong>da</strong><strong>de</strong>s maiores, Rosh Hashaná,<br />

Iom Kipur, eram realiza<strong>da</strong>s numa sala aluga<strong>da</strong> pela<br />

União, pela União Israelita Porto Alegrense. E conjuntamente<br />

com os ofícios religiosos, que os ashkenazim<br />

realizavam na União, em sua sala principal,<br />

havia a realização <strong>de</strong> ofícios com o ritual sefaradim<br />

numa sala pequena, que eles cediam para a coletivi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

sefaradim.<br />

Não foram muitas as lembranças <strong>de</strong> preconceitos, mas<br />

um médico pioneiro <strong>da</strong> endocrinologia no Rio Gran<strong>de</strong> do Sul<br />

e professor <strong>da</strong> UFRGS e UFCSPA 21 , Henry Wolff, por exemplo,<br />

narra episódios relacionados à sua infância, assim dizendo:<br />

“Eu quando pequeno tive cenas <strong>de</strong> perseguição, me chamaram<br />

<strong>de</strong> ju<strong>de</strong>u. No começo me chamaram <strong>de</strong> russo, russinho,<br />

não se sabia <strong>de</strong> ju<strong>de</strong>u. Tanto que eu nem sabia que era ju<strong>de</strong>u,<br />

vim saber já com uma certa i<strong>da</strong><strong>de</strong>, eu disse: ‘Vem cá, eu sou<br />

ju<strong>de</strong>u?’. ‘Sim, tu és ju<strong>de</strong>u’”.<br />

Wolff passa a se reconhecer como ju<strong>de</strong>u a partir, sobretudo,<br />

do reconhecimento dos outros, permitindo que se pense<br />

a i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> como relacional. Segundo Woodward (2009, p.<br />

14), a i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong>, entre outras questões, “[...] é, na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />

relacional, e a diferença é estabeleci<strong>da</strong> por uma marcação simbólica<br />

relativamente a outras i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong>s”.<br />

Também no espaço do trabalho, Wolff se refere a uma<br />

dificul<strong>da</strong><strong>de</strong> em entrar em uma enfermaria que não era vincula<strong>da</strong><br />

à Facul<strong>da</strong><strong>de</strong>, a <strong>de</strong> cirurgia. Segundo ele, “era uma <strong>da</strong>s melhores<br />

enfermarias <strong>de</strong> cirurgia, melhor cirurgia, on<strong>de</strong> melhor se<br />

aprendia. E on<strong>de</strong> ju<strong>de</strong>u não podia entrar”. Entretanto, havia<br />

a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> “romper tradições”. O colega <strong>de</strong> Wolff, o<br />

médico e professor <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Santa Maria<br />

(UFSM) 22 Jacob Salomão Seligman, contou: “Então eu quebrei<br />

21 Cria<strong>da</strong> a 8 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1953, com a <strong>de</strong>nominação <strong>de</strong> Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> Católica<br />

<strong>de</strong> <strong>Medicina</strong> <strong>de</strong> Porto Alegre, e autoriza<strong>da</strong> a funcionar em 1961. Na déca<strong>da</strong> <strong>de</strong><br />

1980 foi fe<strong>de</strong>raliza<strong>da</strong> e, em 2008, é instituí<strong>da</strong> a Fun<strong>da</strong>ção Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong><br />

Ciências <strong>da</strong> Saú<strong>de</strong> <strong>de</strong> Porto Alegre – UFCSPA.<br />

22 O curso <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong> em Santa Maria (RS) foi criado em 1954 e incorporado<br />

à UFSM no ano <strong>de</strong> criação <strong>da</strong> universi<strong>da</strong><strong>de</strong>, em 1960.<br />

MUSEU DE HISTÓRIA DA MEDICINA - <strong>MUHM</strong>: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje 179

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!