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O encontro na festa da universidade<br />
Foi numa noite ordinária de inverno, numa festa da universidade que Anita disse que queria<br />
conversar comigo, um assunto importante, que precisava ser em particular.<br />
Eu a convidei para irmos a um lugar em que pudéssemos ficar mais à vontade. Ela me olhou<br />
concordan<strong>do</strong>. Esboçou um sorriso. Peguei sua mão e nos afastamos das pessoas, a Cidade<br />
Universitária parece um parque, sentamos próximos a um bosque. Cena bonita: no céu aparecia a lua<br />
cheia e até algumas estrelas. Esse é um fato raro nos julhos de nossa cidade, tão cinzas. Sentamos em<br />
um banquinho, sem encosto, uma perna de cada la<strong>do</strong>, ela bem em minha frente, rosto aproxima<strong>do</strong>. Ela<br />
falou que tinha certa vergonha <strong>do</strong> que iria dizer, que não sabia como começar. Eu sorri de viés,<br />
coloquei a mão direita em seu rosto, de leve. Ela disse que não conseguiria me encarar, que<br />
realmente era difícil. Eu fui me aproximan<strong>do</strong> devagarinho, como os joga<strong>do</strong>res de futebol fazem<br />
avançan<strong>do</strong> a barreira em direção à bola quan<strong>do</strong> o juiz não olha. Ela inspira bem fun<strong>do</strong>. As mãos<br />
tremem um pouco e suam frio.<br />
– Ainda bem que te encontrei. Acho que você não sabe, mas minha mãe morreu há uns dez anos,<br />
meu pai também já tinha morri<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> eu era criança e eu moro com minha avó. Ela cui<strong>do</strong>u de<br />
mim. Hoje eu tento cuidar dela. Ela está muito velhinha e tem muitos problemas de saúde. Além de<br />
estudar na universidade, <strong>do</strong>u aulas particulares e trabalho em um cursinho pré–vestibular, com o<br />
dinheiro que ganho me mantenho, compro comida e os remédios de minha avó que só recebe um<br />
salário mínimo de aposenta<strong>do</strong>ria.<br />
Ela respira fun<strong>do</strong>, os olhinhos tremem, começam a lacrimejar, chora incontida, engasga.<br />
– Eu estou trabalhan<strong>do</strong> muito, não consigo estudar, porque quan<strong>do</strong> pego os textos da faculdade, ou<br />
as redações que corrijo, sempre depois da meia–noite, acabo <strong>do</strong>rmin<strong>do</strong> em cima de tu<strong>do</strong>. Estou fraca.<br />
Fraca. Tenho me<strong>do</strong> de não dar conta. Me<strong>do</strong> de minha avozinha acabar morren<strong>do</strong> porque eu não<br />
consegui cuidar dela.<br />
Chora muito, eu a abraço. Ela me aperta com as duas mãos.<br />
– Então como você estuda medicina, bem como você é estudante de medicina, deve saber algum<br />
tipo de remédio, alguma vitamina que eu possa tomar, para não precisar <strong>do</strong>rmir, se eu conseguir ficar<br />
mais acordada, só mais um pouco, eu consigo dar conta de tu<strong>do</strong>, se não, quem sabe?<br />
Eu além <strong>do</strong> desconcerto por não saber o quefazer por ela, não sabia como dizer que não há pílulas<br />
mágicas nem de energia, nem de felicidade, que o resto é fetiche ou oportunismo. Por não encontrar<br />
palavras, ofereço meu silêncio. Continuo com o abraço forte. Há braços.