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Eu vi a cena, lembro como se tivesse visto no cinema.<br />
Entra no saguão, havia macas espalhadas, nelas: gente com cara de <strong>do</strong>r, coletores de urina e<br />
prontuários. Choro e gemer de dentes. Se aproxima <strong>do</strong> pai. Observa a cerca de um metro. O velho faz<br />
expressão de <strong>do</strong>r. Ele sorri. Um riso de satisfação plena. Olhos mareja<strong>do</strong>s. Percebe que o homem<br />
sofre, é perceptível que usa to<strong>do</strong>s os músculos <strong>do</strong> tórax e <strong>do</strong> pescoço para tentar respirar.<br />
Insuficiente. O jovem gargalha. Eu intervenho.<br />
– Bom dia Müller. Lembra de mim, da faculdade?<br />
– Claro, bom dia. Para mim está sen<strong>do</strong> um ótimo dia.<br />
– Ótimo, por quê?<br />
– Por quê? Sempre torci para que esse velho filho da puta sofresse muito, muito mesmo antes de<br />
morrer, não queria perder o prazer de ver essa cena.<br />
Silêncio.<br />
Não sei o que dizer. Müller, o filho, sabe. O pai já não sabe de nada.<br />
– Esse desgraça<strong>do</strong> sempre bateu em mim e nas minhas irmãs, abusou de minhas irmãs até elas<br />
saírem de casa, batia na cara de minha mãe. Tive que conviver com isso. Queria eu mesmo ter<br />
mata<strong>do</strong> ele. Mas não sabia como fazer pra ele morrer bem devagarinho. Desse jeito que está<br />
acontecen<strong>do</strong>. Bem devagarinho.<br />
Chega perto <strong>do</strong> ouvi<strong>do</strong> <strong>do</strong> pai. Fala sussurran<strong>do</strong>: Bastard sterben! Grita para quem quiser ouvir:<br />
– Morra seu desgraça<strong>do</strong>, mas antes sofra muito e pague por tu<strong>do</strong> que fez.<br />
Olhos vermelhos. Cólera. Lágrima. Só uma comprida. Ele se recompõe.<br />
Peço para me acompanhar até o consultório. A cena no meio <strong>do</strong> saguão já deixara a equipe, os<br />
outros pacientes, os acompanhantes perplexos. Eu tinha sensação de desrealização.<br />
– Müller, você não tem nada para perguntar sobre o seu pai, nada? Entendi que vocês tiveram uma<br />
relação difícil. Agora ele está morren<strong>do</strong>. Tem algo que possamos fazer por vocês?<br />
– Tem sim. Quero saber quais os procedimentos necessários para <strong>do</strong>ar o corpo dele para as aulas<br />
de anatomia! Minha família não vai fazer velório e muito menos queremos gastar um centavo com<br />
enterro desse traste. Quem sabe depois de morto ele sirva pra alguma coisa. Disseca<strong>do</strong>.