03.04.2017 Views

O Pior médico do mundo - Gerson-Salvador

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

Insuficiência cardíaca<br />

“Assim, não consideremos feliz nenhum ser humano, enquanto ele não tiver atingi<strong>do</strong>, sem sofrer os golpes da fatalidade, o<br />

termo de sua vida.”<br />

Sófocles<br />

No saguão <strong>do</strong> pronto-socorro havia dez leitos com monitores, aqueles aparelhos que mostram o<br />

tempo inteiro como está a pressão arterial, oxigenação, ritmo cardíaco. Nesses ficam os pacientes<br />

mais graves. Um deles era ocupa<strong>do</strong> pelo senhor Josef Müller. Já tinha si<strong>do</strong> admiti<strong>do</strong> havia quase uma<br />

semana quan<strong>do</strong> o conheci. Interna<strong>do</strong> por insuficiência cardíaca grave: to<strong>do</strong> incha<strong>do</strong>, tinha falta de ar<br />

mesmo em repouso, não conseguia deitar porque piorava o desconforto para respirar, estava com os<br />

pulmões cheios de líqui<strong>do</strong>!<br />

Em esta<strong>do</strong> de final de vida. Irreversível. Sozinho. Chamava atenção que não vinha nenhum<br />

familiar ficar com ele. Uma filha viera visita-lo duas vezes. O serviço social está envolvi<strong>do</strong> com o<br />

caso. Aban<strong>do</strong>no de i<strong>do</strong>so?<br />

Grave mas rude. Decrépito mas violento. Agredia verbalmente na sua língua pátria a equipe de<br />

enfermagem que tentava lhe prestar cuida<strong>do</strong>s. Ninguém entendia, ainda bem. Chegou a tentar enforcar<br />

uma enfermeira que ajeitava a sua máscara de oxigênio. Raiva. Estava em esta<strong>do</strong> de delirium, nessas<br />

<strong>do</strong>enças avançadas é comum que a pessoa perca a noção de si e que a consciência flutue. Delírio?<br />

A assistente social descobriu que o senhor Müller era pai de um colega que estudara medicina na<br />

nossa faculdade havia pouco tempo. Não chegou a concluir o curso. Nós também o chamávamos de<br />

Müller.<br />

O filho dele era um sujeito estranho. Poucas palavras, nenhum amigo. Isola<strong>do</strong>. Às vezes<br />

participava das aulas com frases de impacto, um tanto agressivo, parecia que queria causar me<strong>do</strong> nos<br />

colegas. Frequentava a faculdade de sobretu<strong>do</strong> preto mesmo nos dias mais quentes de verão e nós<br />

tínhamos receio – na verdade me<strong>do</strong>, de que um dia ele tirasse uma metralha<strong>do</strong>ra debaixo daquela<br />

roupa e matasse to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong>.<br />

Disseram que durante uma cirurgia em que entrara como observa<strong>do</strong>r ouviu alguma palavra de<br />

desagra<strong>do</strong> <strong>do</strong> cirurgião. Saiu da sala de operação. Pegou uma pistola no vestiário. Apontou para o<br />

<strong>médico</strong> que estava no meio <strong>do</strong> procedimento, paciente anestesia<strong>do</strong>, ab<strong>do</strong>me aberto, vísceras<br />

expostas. Chegou perto <strong>do</strong> ouvi<strong>do</strong> dele e disse: aqui dentro somos diferentes, lá fora somos iguais.<br />

Ainda bem que não tirou a máscara nem tocou nos campos estéreis, aqueles panos colori<strong>do</strong>s que<br />

envolvem o paciente, poderia ter contamina<strong>do</strong> tu<strong>do</strong>.<br />

O Müller foi convida<strong>do</strong> a se retirar da faculdade. Nunca mais eu soubera dele.<br />

Agora soube.<br />

O velho Müller piorava a cada dia.<br />

A assistente social encontrou o filho.<br />

Ele chegou ao hospital com o habitual sobretu<strong>do</strong> preto de anos atrás. Fez questão de ver o pai<br />

antes de conversar com a equipe médica, ou seja, comigo!

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!