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Guia Politicamente Incorreto Da - Leandro Narloch

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DADOS DE COPYRIGHT<br />

Sobre a obra:<br />

A presente obra é disponibilizada pela equipe Le Livros e seus diversos parceiros, com o<br />

objetivo de oferecer conteúdo para uso parcial em pesquisas e estudos acadêmicos, bem como<br />

o simples teste da qualidade da obra, com o fim exclusivo de compra futura.<br />

É expressamente proibida e totalmente repudíavel a venda, aluguel, ou quaisquer uso<br />

comercial do presente conteúdo<br />

Sobre nós:<br />

O Le Livros e seus parceiros disponibilizam conteúdo de dominio publico e propriedade<br />

intelectual de forma totalmente gratuita, por acreditar que o conhecimento e a educação devem<br />

ser acessíveis e livres a toda e qualquer pessoa. Você pode encontrar mais obras em nosso<br />

site: LeLivros.Net ou em qualquer um dos sites parceiros apresentados neste link.<br />

Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por<br />

dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível.


Ficha Técnica<br />

Copyright © <strong>Leandro</strong> <strong>Narloch</strong> e Duda Teixeira, 2011<br />

Diretor Editorial Pascoal Soto<br />

Coordenação Editorial Tainã Bispo<br />

Coordenação de Produção Carochinha Editorial<br />

Edição Diego Rodrigues<br />

Revisão Técnica Marco Antonio Villa<br />

Preparação de Textos Débora Tamayose<br />

Checagem de Informações Simone Costa<br />

Revisão de Provas Solange Lemos e Cecília Madarás<br />

Índice Cecília Madarás<br />

Capa Ana Carolina Mesquita<br />

Ilustrações de Capa Gilmar Fraga<br />

<strong>Da</strong>dos Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)<br />

Ficha catalográfica elaborada por Oficina Miríade, RJ, Brasil.<br />

N231 <strong>Narloch</strong>, <strong>Leandro</strong>, 1978–<br />

<strong>Guia</strong> politicamente incorreto da América Latina /<br />

<strong>Leandro</strong> <strong>Narloch</strong>, Duda Teixeira. – São Paulo: Leya, 2011.<br />

336 p. : il.<br />

Inclui bibliografia e índice.<br />

ISBN 9788580445855.<br />

1. América Latina – História – Miscelânea. I. Teixeira,<br />

Duda. II. Título.<br />

11-0133 CDD980<br />

Entre em contato com os autores:<br />

leandron@uol.com.br / @lnarloch<br />

duda.teixeira.guia@gmail.com / @DudaTeixeira<br />

2011<br />

Todos os direitos desta edição reservados à<br />

Texto Editores Ltda.<br />

[Uma editora do Grupo Leya]<br />

Rua Desembargador Paulo Passaláqua, 86<br />

01248-010 – Pacaembu – São Paulo, SP – Brasil<br />

www.leya.com.br


À Larinha e<br />

ao Luisinho.


A melhor coisa a fazer na América [Latina] é ir embora.<br />

SIMÓN BOLÍVAR


INTRODUÇÃO


COMO DEIXAR DE SER LATINO-<br />

AMERICANO<br />

Foram os franceses os primeiros a usar a expressão “América Latina”. Por volta de<br />

1860, o imperador Napoleão III tentava aumentar sua influência no México, na época um<br />

país tumultuado por revoltas e guerras entre políticos liberais e conservadores. Um bom<br />

jeito de aproximar culturalmente os dois países era destacando o que eles tinham em<br />

comum, como a mesma origem do idioma. Tanto o francês quanto o espanhol e o<br />

português são línguas derivadas do latim – essa semelhança não só deixava a influência<br />

francesa mais natural como isolava os imperialistas britânicos e seu idioma anglo-saxão. 1<br />

“América Latina” se tornou assim uma ideia tão vazia quanto abrangente. Reúne<br />

sujeitos e povos dos mais diversos: o que há em comum entre ribeirinhos amazônicos,<br />

vaqueiros gaúchos, executivos da Cidade do México, índios das ilhas flutuantes do lago<br />

Titicaca e haitianos praticantes de vodu? Eles falam línguas derivadas do latim, mas... e<br />

daí? Colocar todos em um mesmo saco não seria o mesmo que igualar sujeitos tão<br />

diferentes quanto um xeque radical egípcio, um fazendeiro branco da África do Sul e um<br />

pigmeu do Congo? São todos africanos, é certo, mas pouca gente fala em uma única<br />

identidade para a África.<br />

Talvez a principal semelhança entre os latino-americanos não seja algo que venha de<br />

nossos longínquos antepassados, como a língua, e sim em um traço recente, forjado<br />

lentamente ao longo de séculos. Bolivianos, mexicanos, brasileiros e todos os demais,<br />

quando vislumbram o próprio passado, contam exatamente a mesma história.<br />

É como se ingredientes de sabores, cores e tamanhos diferentes entrassem todos numa<br />

grande batedeira para criar uma massa homogênea; e é como se essa massa fosse<br />

recortada por um mesmo molde de biscoito, dando origem a seres graciosos com o<br />

mesmo formato e o mesmo discurso. Tão parecidas são suas narrativas, e tão importante<br />

é a história para a identidade de um povo, que é possível tirar dessa massa algumas<br />

regras para ser um típico habitante da nossa região. Na receita para se preparar um bom<br />

latino-americano, parece ser necessário:<br />

1. Lamentar. Todo latino-americano nutre uma obsessão por episódios tristes de sua<br />

história: o massacre dos índios, os horrores da escravidão, a violência das ditaduras.<br />

Além dessas histórias de opressão, nada de bom aconteceu.<br />

2. Encarar a cultura local como uma forma de resistência. Fica proibido ligar na tomada<br />

instrumentos musicais típicos e populares e passa a ser um requisito moral usar ponchos<br />

e saias coloridas – ou pelo menos desfilar com um colar de artesanato indígena.<br />

3. Condenar o capitalismo. O latino-americano que honra o nome acredita que o<br />

comunismo foi uma ideia boa, só que mal implantada. E, se já não luta para implantar<br />

esse falido modelo por aqui, ao menos defende sistemas mais “sociais”, “solidários”,


“justos” e “comunitários”.<br />

4. Denunciar a dominação externa. Se a responsabilidade pelos problemas do continente<br />

não pode ser atribuída à Espanha, à França ou a Portugal, então certamente tem alguma<br />

mão da Inglaterra ou dos Estados Unidos. Ou, como prega o livro As Veias Abertas da<br />

América Latina, clássico desse pensamento simplista, “a cada país dá-se uma função,<br />

sempre em benefício do desenvolvimento da metrópole estrangeira do momento”.<br />

5. Cultuar heróis perversos. Quanto mais bobagens eles falarem e quanto mais sabotarem<br />

seu próprio país, mais estátuas equestres e estampas em camisetas serão feitas em sua<br />

homenagem.<br />

Tudo neste livro é contra essas regras tão batidas para se contar a história da América<br />

Latina. Não nos sentimos representados por guerrilheiros ou por indignados líderes<br />

andinos e suas roupas coloridas. Não há aqui destaque para veias abertas do continente,<br />

mas para feridas devidamente tratadas e curadas com a ajuda de grandes potências.<br />

Conhecemos bem as tragédias que nossos antepassados índios e negros sofreram, mas,<br />

honestamente, estamos cansados de falar sobre elas. E acreditamos que todos os povos<br />

passaram por desgraças semelhantes, inclusive aqueles que muitos de nós adoramos<br />

acusar. Por isso, quando vítimas da história aparecerem nesta obra, é para revelarmos<br />

que elas também mataram e escravizaram – e como elas se beneficiaram com ideias e<br />

costumes vindos de fora.<br />

Figuras ilustres da América Latina também passam neste livro, mas longe de nós<br />

mostrar somente que elas não são tão admiráveis quanto se diz. Na história de quase todo<br />

país, é comum abrilhantar as palavras de figuras públicas e até inventar virtudes de seu<br />

caráter – e não passa de chatice ficar insistindo numa realidade menos interessante.<br />

Acontece que na América Latina se vai além: escolhem-se como heróis justamente os<br />

homens que mais atrapalharam a política, mais arruinaram a economia, mais perseguiram<br />

os cidadãos. Não importam as tragédias que Salvador Allende, Che Guevara e Juan<br />

Perón tenham tornado possíveis. Importantes são o carisma, o rosto fotogênico, a morte<br />

trágica, os discursos inflamados contra estrangeiros. Por isso, não há como escapar: é<br />

ele, o falso herói latino-americano, o principal alvo deste livro.<br />

1 John Charles Chasteen, Born in Blood & and Fire: A Concise History of Latin America, W. W. Norton & Company,<br />

2011, página 156.


CHEGUEVARA


UM OLHAR MATADOR<br />

Não tem como negar: na América Latina e mesmo fora dela, Che é o cara. Seu nome e<br />

seu retrato estão em álbuns de rock, na capa de livros, no estepe externo de carros<br />

esportivos. O guerrilheiro argentino dá nome a dezenas de espaços públicos com funções<br />

bonitinhas, como o Centro Urbano de Cultura e Arte (Cuca) Che Guevara, no Ceará, ou a<br />

Cooperativa de Trabalho Ernesto Che Guevara de Córdoba, na Argentina, além de ruas e<br />

praças em todo o continente. É possível estudar na “Escola Che Guevara” tanto em Quito,<br />

no Equador, quanto na Argentina ou em Monte do Carmo, no interior do Tocantins. O<br />

guerrilheiro foi homenageado pela escola de samba Unidos da Ilha da Magia, campeã do<br />

carnaval 2011 de Florianópolis. A filha dele, Aleida, desfilou em um carro alegórico no<br />

formato de um tanque de guerra. 2 A torcida Máfia Azul, do Cruzeiro, time de Minas<br />

Gerais, já pintou a imagem de seu rosto em bandeiras e camisetas. Os nossos cineastas<br />

retratam Che como um mochileiro camarada, um jovem audacioso e sonhador. Qualquer<br />

sindicato que se preze tem uma bandeira com Che. Um livro didático para aulas de<br />

espanhol, distribuído pelo governo do Paraná em 2008, reproduz versos sobre “aquele<br />

guerrilheiro louco que mataram na Bolívia e como depois daquele dia tudo parece mais<br />

feio”. Em São Paulo, onde moram os autores deste livro, há bares com o nome de Che,<br />

postos de saúde com o nome de Che, dichavadores de maconha com o rosto de Che à<br />

venda no posto de gasolina. Se não há mais camisetas com a imagem de Che, é porque<br />

elas saíram de moda por saturação.<br />

Quem exibe a imagem ou o nome de Che tem seus motivos para admirá-lo. Dizem que,<br />

diante de um mundo tão voltado à competição, ao sucesso individual e ao dinheiro, é bom<br />

se lembrar de alguém que deu a vida por uma sociedade diferente. Se não se pode mudar<br />

o sistema por completo, pelo menos se pode fazer um pequeno ato de protesto,<br />

estampando o rosto de um jovem aventureiro que, argumentam alguns, renunciou ao<br />

próprio bem-estar em prol de uma ideia, libertou-se da vida convencional para defender<br />

os oprimidos e apostar no sonho de um mundo melhor. Che é para essas pessoas um<br />

símbolo de tudo o que dizem defender: a paz entre os povos, a tolerância, a defesa dos<br />

direitos dos mais fracos e dos trabalhadores e o fim da exploração econômica.<br />

Mas Che Guevara lutou contra as bandeiras que os seus fãs mais defendem. Como se<br />

verá a seguir, há quatro grandes contradições entre sua vida e a admiração que ela<br />

inspira. As informações a seguir vêm das principais biografias do guerrilheiro e de<br />

instituições das mais puritanas: órgãos de direitos humanos e associações de familiares<br />

de mortos e desaparecidos políticos. Mas a principal fonte é o próprio Che Guevara.<br />

Suas palavras, presentes em livros, manifestos, diários e no depoimento de seus colegas,<br />

deixam claro que, nos dias de hoje, quem nutre sentimentos politicamente corretos em<br />

favor da paz, dos direitos humanos e do bem-estar dos mais pobres precisa manter o<br />

guarda-roupa o mais longe possível do rosto de Che Guevara.<br />

Che e a liberdade artística e sexual


Antes de mergulhar nas crenças e nas ações do famoso revolucionário, é preciso fazer<br />

uma viagem à Cuba da década de 1950, pouco antes de Che e os outros guerrilheiros<br />

comandados por Fidel Castro tomarem o poder. O passeio é cheio de turbulência. Quem<br />

ainda hoje é a favor do regime comunista costuma descrever a ilha dos tempos prérevolucionários<br />

como um bordel dos americanos, um playground para marmanjos repleto<br />

de prostitutas, mafiosos e cubanos miseráveis. Já aqueles que se opõem ao regime tratam<br />

de destacar o progresso da Cuba anterior à revolução e alguns números de qualidade de<br />

vida da época bem melhores que a média latino-americana.<br />

Ao interromper o turismo para Cuba, a revolução deu impulso a outros polos turísticos, que passaram a atender aos<br />

americanos interessados no Caribe. Nos anos 70, grandes empresas hoteleiras, muitas das quais tinham sido expulsas de<br />

Havana, se instalaram a 200 quilômetros de Cuba, numa praia mexicana até então deserta – Cancún.<br />

É mais complicado que isso. Como qualquer grande cidade turística da América, Cuba<br />

tinha prostitutas, corruptos, ricos e pobres, é verdade. Havana formava com Las Vegas e<br />

Miami um triângulo de negócios de turismo que envolvia cassinos administrados por<br />

mafiosos, shows internacionais e grandes hotéis. Os mafiosos que inspiraram o filme O<br />

Poderoso Chefão tinham negócios em Cuba – não é à toa que o protagonista, Michael<br />

Corleone, visita a ilha no segundo filme da trilogia. Charles “Lucky” Luciano, líder da<br />

máfia siciliana de Nova York, se escondeu em Havana depois de ser deportado pelos<br />

Estados Unidos para a Itália; em Cuba ele se reunia com outros chefões, como o judeu<br />

Meyer Lansky e Vito Genovese. Esses figurões mantinham negócios com o ditador<br />

Fulgencio Batista, ninguém menos que o presidente e ditador de Cuba.<br />

Babalu é uma música cubana que virou hit das rádios e dos canais de TV dos Estados Unidos nos anos 40. A letra é<br />

uma homenagem a Babalu Aye, deusa da santería cubana, o equivalente ao candomblé. “Me dá 17 velas, para pôr lá na<br />

cruz, e dá um pedaço de tabaco e um jarro de aguardente”, dizia a música.<br />

No entanto, como também é de esperar de qualquer lugar com o turismo em ascensão,<br />

Cuba vivia um surto de crescimento e otimismo. Na década de 1950, a economia mundial<br />

se recuperava e o uso dos aviões a jato se difundia. O turismo de massa ganhou assim um<br />

belo impulso – e a ilha caribenha foi um dos primeiros destinos dos novos turistas<br />

americanos. “Combinado com os baixos custos da viagem depois da Segunda Guerra,<br />

Havana de repente se tornou um destino exótico de escolha de centenas de milhares de<br />

americanos excitados para ver a terra de Babalu”, afirma o historiador Peter Moruzzi no<br />

livro Havana before Castro. 3 A maior vantagem competitiva era a de ser um destino<br />

internacional a apenas 150 quilômetros dos Estados Unidos. “Excitante, exótica. Cuba:<br />

onde o passado encontra o futuro”, dizia um anúncio de 1957 da Comissão Cubana de<br />

Turismo, similar às propagandas de qualquer cidade turística que deseja atrair visitantes<br />

e movimentar a economia. Havia na época 28 voos diários entre cidades cubanas e<br />

americanas – e muitos americanos viajavam para Cuba de carro, por meio de um serviço<br />

diário de ferryboat a partir da Flórida.<br />

Se hoje os cubanos fogem de seu país, na década de 1950 acontecia o contrário: imigrantes se mudavam para Cuba.<br />

Entre 1933 e 1953, mais de 15 mil judeus, 74 mil espanhóis e 7.500 alemães se mudaram para lá. Sobre essa época, até<br />

mesmo Che Guevara afirmou que Cuba tinha um “padrão de vida relativamente elevado”. 4<br />

Essa expansão dava dinheiro não só a mafiosos, prostitutas e magnatas, mas também a<br />

donos de restaurantes, garçons, chefs de cozinha, guias de turismo, empresas de city tour,<br />

enfim, todos os trabalhadores e empresários envolvidos com o turismo. O crescimento


levava mais cubanos à classe média e aquecia outros setores da economia, como a<br />

construção civil. Prédios e casas cheios de novidades arquitetônicas se espalhavam por<br />

Havana e atraíam atenção internacional. “A recuperação da economia durante a Segunda<br />

Guerra e o crescimento do turismo tiveram um efeito estimulante no setor de construção,<br />

levando a um boom que encorajou a pesquisa de formas e novas tecnologias”, afirma o<br />

arquiteto Eduardo Luis Rodríguez. 5 As cidades, onde vivia 66% da população, 6 se<br />

beneficiavam ainda do dinheiro vindo da alta do preço da cana-de-açúcar, principal<br />

produto de exportação de Cuba. Engenheiros e arquitetos ligados ao modernismo<br />

transformavam Havana construindo arranha-céus e edifícios de linhas retas e longas<br />

curvas – os mesmos que marcariam a arquitetura modernista latino-americana. Com três<br />

revistas especializadas em arquitetura, a ilha abrigava encontros internacionais – era<br />

quando profissionais de todo o mundo visitavam obras de arquitetos formados na<br />

Universidade de Havana no começo dos anos 40, como Nicolás Arroyo e Mario<br />

Romañach. Em 1955, com um grupo de profissionais experientes, Havana criou um plano<br />

urbanístico que previa ruas só para pedestres e edifícios modernistas, espaço especial<br />

para pequenas lojas nas ruas do centro histórico, limite de altura aos prédios fora do<br />

centro financeiro, aumento de áreas verdes e recreativas pela cidade. 7<br />

Já o investimento americano em Cuba tinha o dobro do tamanho: em 1958 ultrapassou 1 bilhão de dólares. Tendo em<br />

vista o tamanho dos países, o investimeno cubano nos EUA é muito mais impressionante. 8<br />

Se Havana era um playground dos americanos, o movimento inverso também<br />

acontecia. Os cubanos ricos e da crescente classe média adoravam se divertir nos<br />

Estados Unidos. Existia entre os dois países um turismo bilateral, assim como o de<br />

brasileiros nas ruas de Buenos Aires e de argentinos nas praias brasileiras. Não eram<br />

números desprezíveis. Em meados dos anos 50, havia mais cubanos em férias nos<br />

Estados Unidos que americanos em Cuba. 9 A classe média cubana era um grupo<br />

consumidor tão importante nos Estados Unidos que “as lojas de departamento da<br />

Califórnia, de Nova York e da Flórida frequentemente anunciavam promoções nos<br />

jornais de Havana”, conforme descreve o historiador Louis A. Pérez Jr. no livro Cuba<br />

and the United States: Ties of Singular Intimacy. Assim como os americanos investiam<br />

em Cuba, empresas cubanas apostavam nos vizinhos. Pouco antes da revolução, o<br />

investimento do imperialismo cubano nos Estados Unidos ultrapassava meio bilhão de<br />

dólares. 10


CORTESIA COLEÇÃO PETER MORUZZI<br />

Antes da revolução, havia 28 voos diários entre cidades americanas e cubanas e até mesmo um serviço de ferryboat,<br />

para as famílias que quisessem viajar de carro ao país vizinho.<br />

O entretenimento era outro setor desenvolvido. “Os cubanos tinham mais televisores,<br />

telefones e jornais per capita que qualquer outro país da América Latina, e estavam em<br />

terceiro no ranking de rádios per capita (atrás do México e do Brasil)”, afirma Deborah<br />

Pacini Hernandez, no livro Rockin’ las Américas. “Em 1950, quase 90% das residências<br />

cubanas tinham um rádio que podia sintonizar mais de 140 estações.” 11 A indústria<br />

fonográfica também impressionava: havia sete gravadoras que distribuíam discos para<br />

multinacionais como a Odeon e a EMI. Além das radiolas caseiras, as músicas eram<br />

reproduzidas em cerca de 15 mil jukeboxes instaladas em cabarés e bares do país. 12<br />

A ilha vivia uma efervescência musical que daria à luz clássicos da música latinoamericana.<br />

Compositores e intérpretes de bolero, rumba, mambo e chachachá estouravam<br />

nas rádios da Argentina aos Estados Unidos, difundindo esses ritmos pelo continente.<br />

Artistas cubanos eram celebridades da Broadway e da TV americana, como Xavier<br />

Cugat, conhecido como o “Rei da Rumba”, e Desi Arnaz, que eternizou a música Babalu<br />

no seriado I Love Lucy, da década de 1950. A música cubana atraía turistas à ilha – e os<br />

turistas atraíam a música. Em 1955, o canal americano NBC transmitiu um programa ao<br />

vivo no Tropicana, o principal cabaré de Cuba. Carmen Miranda, Frank Sinatra, Nat<br />

King Cole e boa parte dos artistas mais famosos da época se apresentavam nos teatros e<br />

nos cabarés de Havana. “Éramos o que é Las Vegas hoje”, contou, muitos anos depois, a<br />

cantora Olga Guillot, a “Rainha do Bolero”. “Não, muito mais! Éramos Las Vegas e a


Broadway misturadas – e o mundo todo ia a Havana para nos assistir.” 13<br />

Na época da revolução, Cuba tinha 600 salas de cinema. O ingresso era barato e havia salas espalhadas por todos os<br />

bairros de Havana. Sob a meta de popularizar o cinema, um dos objetivos da revolução, foi construída uma sala – em<br />

cinco décadas. As que já existiam estão abandonadas.<br />

Assim como o turismo, que uniu duas populações de culturas diferentes, mas próximas<br />

geograficamente, o intercâmbio musical foi recíproco e intenso. Se os americanos se<br />

encantavam com os ritmos caribenhos, os cubanos se apaixonaram pelo rock. Os cinemas<br />

de Havana exibiam filmes como Rock Around the Clock; as rádios tocavam os sucessos<br />

de Elvis Presley, Little Richard e Chuck Berry. Cuba foi um dos primeiros países a se<br />

contagiar por esse ritmo, a ter pelas ruas jovens cabeludos com calças jeans justíssimas e<br />

também as primeiras bandas de rock fora do eixo Estados Unidos-Inglaterra, como Los<br />

Llópis, Los Armónicos e os Hot Rockers.<br />

Os cubanos também ficavam mais escolarizados. Havia a Universidade de Havana,<br />

com suas aulas de medicina, farmácia, biologia e direito (onde Fidel Castro estudou) e<br />

uma escola de belas-artes. O Colégio de Belém, inaugurado em 1854 sob o comando de<br />

padres jesuítas, era a principal referência na educação secundária. Foi lá que Raúl<br />

Castro se formou. Na década de 1920, um novo prédio foi construído, onde também<br />

passou a funcionar um colégio técnico. Em toda a ilha, havia 1.700 escolas privadas e 22<br />

mil públicas. O país dedicava 23% de seu orçamento à educação – quantia de dar inveja<br />

nos governos atuais. 14<br />

Não é o cenário que se imagina encontrar em um bordel, não?<br />

Pepín Bosch, executivo-chefe da destilaria Bacardi, deu 38 mil dólares ao grupo de Fidel (que hoje valeriam cerca de<br />

280 mil dólares). Já <strong>Da</strong>niel Bacardi, um dos donos da destilaria, liderou uma greve de empresários da cidade de Santiago<br />

contra Fulgencio Batista em 1957. 15<br />

O nome do movimento vem do dia 26 de julho de 1953, quando Fidel e outros 165 jovens tentaram tomar o quartelgeneral<br />

de Moncada, em Santiago de Cuba. O ataque não deu certo: quase todos os guerrilheiros foram ou mortos, ou<br />

presos. Fidel ficou na cadeia até 1955, quando se exilou no México, onde conheceria Che.<br />

O problema estava na política. O presidente Fulgencio Batista, depois de assumir o<br />

poder pela segunda vez, em 1952, passou a impor uma ditadura que tornou frequentes em<br />

Cuba os atos de tortura, o desaparecimento de opositores e as prisões arbitrárias. Batista<br />

proibiu em alguns momentos a circulação de jornais e o direito de greve e retaliava<br />

empresários que não o apoiavam. Em resposta, estudantes, professores, advogados,<br />

padres e pastores protestantes montavam passeatas, distribuíam panfletos e agiam como<br />

“bombistas”, nome dado às pessoas que espalhavam pequenas bombas em órgãos<br />

públicos. Entre 15 acusados de bombismo presos em agosto de 1957, havia estudantes,<br />

trabalhadores das docas, vendedores e senhoras proprietárias de apartamentos. 16 Fidel<br />

Castro, então o mais conhecido inimigo do ditador, canalizou esse clima de<br />

descontentamento. Ganhou apoio até mesmo de grandes empresários e agricultores<br />

insatisfeitos com a instabilidade política, como os Bacardi, a mais tradicional família de<br />

empresários de Cuba. “O movimento de simpatia para com Castro aumentava mesmo<br />

entre a opulenta classe média; e durante 1957 mesmo o maior barão do açúcar, Julio<br />

Lobo, entregou à oposição 50 mil dólares”, conta o historiador inglês Hugh Thomas no<br />

livro Cuba ou Os Caminhos da Liberdade, a principal referência sobre a história<br />

política da ilha. 17 Ao viajar para a cidade de Santiago, o jornalista americano Jules<br />

Dubois se espantou com o apoio de gente endinheirada aos rebeldes. “Os homens mais


icos e proeminentes de Santiago, dos quais a maioria nunca se envolveu com política,<br />

estão apoiando o rebelde Fidel Castro como um símbolo de resistência a Batista”,<br />

escreveu ele no Chicago Tribune. 18 O apoio era possível porque os rebeldes pareciam a<br />

todos uma opção pela democracia. O movimento rebelde que Fidel ajudou a fundar, o 26<br />

de Julho, tinha entre seus participantes diversos políticos moderados e mesmo<br />

anticomunistas. Fidel viajava aos Estados Unidos para arrecadar fundos para a luta<br />

política e negava veementemente ser comunista ou favorável a ditaduras (veja quadro<br />

nas páginas 34-35).<br />

No início de 1959, tanto os guerrilheiros moderados quanto os empresários e os<br />

trabalhadores comemoraram a mudança de governo. Graças à pressão exercida por<br />

estudantes revoltosos, por soldados que lutaram na cidade e no campo, por empresários<br />

que financiaram ações rebeldes e por políticos, Fulgencio Batista enfim tinha sido<br />

deposto. O ditador, depois de perder o apoio dos Estados Unidos e vendo os<br />

guerrilheiros chegarem a Havana, fugiu com sua corte de avião durante o réveillon de<br />

1959. A maior parte dos cubanos saiu às ruas para festejar. Livre da tirania de Batista, a<br />

população estava ansiosa por participar da política e confiante para construir uma<br />

democracia. A política, até então a maior pedra no caminho dos cubanos, tinha se tornado<br />

motivo de esperança. A destilaria Bacardi publicou anúncios nos jornais saudando o país<br />

por poder voltar a usar seu slogan. “Obrigado ao povo de Cuba e à Revolução Cubana.<br />

Por causa de seus esforços e de seu sacrifício, podemos dizer uma vez mais ‘Que sorte<br />

tem o cubano!’.” 19<br />

2 ”Filha de Che Guevara desfila em tanque de guerra de Carnaval”, Folha de S. Paulo, 4 de março de 2011.<br />

3 Peter Moruzzi, Havana before Castro, Gibbs Smith, 2008, página 10.<br />

4 Alberto Bustamante, “Notas y estadisticas sobre los grupos etnicos en Cuba”, revista Herencia, volume 10, 2004; e Carlos<br />

Tablada, El Pensamiento Económico de Ernesto Che Guevara, Casa de las Americas, 1987, página 66.<br />

5 Eduardo Luis Rodríguez, The Havana Guide: Modern Architecture, 1925-1965, Princeton Architectural Press, 2000,<br />

página XVII.<br />

6 Humberto Fontova, O Verdadeiro Che Guevara, Sentinel, 2007, localização 3038 (edição Kindle).<br />

7 Eduardo Luis Rodríguez, página XXII.<br />

8 Louis A. Pérez, página 219.<br />

9 Humberto Fontova, O Verdadeiro Che Guevara, Editora É, 2009, página 223.<br />

10 Louis A. Pérez, Cuba and the United States: Ties of Singular Intimacy, University of Georgia Press, 2003, página 208.<br />

11 Deborah Pacini Hernandez, Rockin’ las Américas: The Global Politics of Rock in Latin America, University of<br />

Pittsburgh Press, 2004, páginas 45 e 46.<br />

12 Deborah Pacini Hernandez, página 46.<br />

13 Rosa Lowinger e Ofelia Fox, Tropicana Nights, Harcourt, 2005, página 251.<br />

14 Pedro Corzo, Cuba: Perfiles del Poder, Ediciones Memórias, 2007, página 198.<br />

15 Tom Gjelten, páginas 195 e 197.


16 Hugh Thomas, Cuba ou Os Caminhos da Liberdade, Bertrand, 1971, página 241.<br />

17 Hugh Thomas, página 239.<br />

18 Tom Gjelten, Bacardi and the Long Fight for Cuba, Penguin Books, 2008, página 194.<br />

19 Tom Gjelten, página 206.


Um líder político organiza um golpe de Estado, toma o poder de<br />

Cuba, impõe regras trabalhistas mais severas, intervém nas indústrias e nas fazendas e<br />

ganha o apoio do Partido Comunista. Não, não estamos falando de Fidel<br />

Castro, mas de Fulgencio Batista, ele próprio, o ditador do país até a<br />

Revolução Cubana.<br />

FULGENCIO, O COMUNISTA,<br />

Duas décadas antes de ser derrubado por Che e Fidel, Fulgencio ganhou o apoio dos<br />

comunistas locais. Em 1933, participou da Revolta dos Sargentos, que derrubou<br />

o ditador da época, Gerardo Machado. Conquistou, assim, o cargo de chefe das<br />

forças armadas e passou a governar informalmente o país. Logo anunciou<br />

reformas da lei trabalhista e ações de controle estatal de produtores e<br />

empresários. “As indústrias do açúcar e do tabaco passariam a sofrer uma intervenção<br />

maior do Estado; os trabalhadores receberiam seguro, férias pagas e outras vantagens”,<br />

afirma o historiador Hugh Thomas. 20 Essas medidas à esquerda atraíram a simpatia<br />

dos comunistas. Em 1938, Fulgencio aprovou a legalidade do Partido Comunista,<br />

que tratou de elogiá-lo. “As pessoas que trabalham para afastar Batista não estão mais a<br />

atuar em defesa do povo cubano”, lia-se no principal jornal do partido naquela época. 21<br />

Quando voltou à presidência de Cuba na década de 1950, Fulgencio já tinha se<br />

afastado desses aliados. Mas ainda nessa época foi acusado de ser simpatizante dos<br />

vermelhos. Pelo próprio Fidel Castro. Em 3 de julho de 1956, o homem que seria o mais<br />

longo ditador comunista do século 20 acusa seu opositor de ser... comunista. “Qual é o<br />

direito moral que o senhor Batista tem de falar em comunismo, quando ele era o<br />

candidato presidencial do Partido Comunista nas eleições de 1940, quando seus slogans<br />

eleitorais se escondiam atrás da foice e do martelo, quando meia dúzia dos seus<br />

atuais ministros e colaboradores confidenciais são importantes membros do Partido<br />

Comunista?”, escreveu Fidel à revista Bohemia. 22<br />

E FIDEL, O CAPITALISTA<br />

Se Fulgencio começou vermelho e aos poucos mudou de cor, Fidel tomaria o rumo<br />

contrário. Até declarar que levaria Cuba para o rumo de Moscou, um ano depois de


tomar o poder, ele se dizia grande inimigo dos socialistas. Numa entrevista ao New York<br />

Times em abril de 1959, disse: “Eu não concordo com o comunismo. Nós somos<br />

democráticos. Somos contra todo tipo de ditadores. É por isso que somos contra o<br />

comunismo”. Para o cubano Huber Matos, um dos guerrilheiros da Sierra Maestra hoje<br />

exilado em Miami, Fidel não era mesmo comunista. “O irmão dele, Raúl, e Che que<br />

eram marxistas. Fidel cedeu à influência deles porque percebeu que o comunismo<br />

era um bom meio de controlar o poder de Cuba e eliminar adversários.” 23<br />

20 Hugh Thomas, página 33.<br />

21 Hugh Thomas, páginas 37 e 38.<br />

22 Hugh Thomas, páginas 187 e 188.<br />

23 Entrevista com Huber Matos realizada em 12 de maio de 2011.


Mas aquela jogada deu azar. Logo após a queda de Batista, teve início um violento<br />

embate entre a classe média e o grupo de guerrilheiros que havia conquistado uma<br />

enorme popularidade lutando contra o exército na Sierra Maestra, uma região de<br />

montanhas no sudeste da ilha. Sorrateiramente, os integrantes desse grupo, liderados por<br />

Fidel Castro, dominaram o governo provisório recém-instalado, expulsaram todos os que<br />

pensavam de forma diferente e declararam-se abertamente marxistas-leninistas. Os<br />

aliados mais moderados e democráticos foram logo presos ou expulsos do país pelo<br />

próprio governo de Fidel. Um dos principais revolucionários isolados pela nova ordem<br />

do 26 de Julho foi Huber Matos, até então amigo de Che. Por ser contra a ditadura<br />

comunista que dava as caras, ele foi capturado pelos próprios companheiros e jogado em<br />

prisões, onde permaneceria por 20 anos. Hoje com 92 anos, exilado em Miami, Huber<br />

Matos conta:<br />

O Movimento 26 de Julho não era comunista. Nós lutávamos para restaurar a democracia pluripartidária que tinha sido<br />

extinta com o golpe de Fulgencio Batista em 1952. Nos primeiros seis meses depois de tomarmos o poder, acreditávamos<br />

que os partidos e as eleições voltariam. Mas então os Castro e Che levaram a revolução para uma ditadura comunista.<br />

Logo percebemos que tínhamos caído numa ilusão. Muitos guerrilheiros que pensavam como eu ficaram quietos,<br />

acabaram ganhando cargos menores no governo e vivendo sob a chantagem de Fidel. Aqueles que, como eu, se<br />

pronunciaram contra o comunismo foram pouco a pouco eliminados. Che e os Castro ficaram cinco dias decidindo se<br />

deveriam me fuzilar ou não. Acabaram só me deixando preso, com medo do protesto dos colegas. 24<br />

Sem consultar a população ou mesmo a maioria de seus colegas, esse grupo de homens<br />

armados fez uma revolução comunista dentro da revolução democrática. Ou seria uma<br />

contrarrevolução? De qualquer forma, foi nesse momento que Che Guevara, um médico<br />

argentino que integrou o bando de rebeldes na Sierra Maestra, ganhou importância<br />

decisiva.<br />

Para aqueles cidadãos de Cuba que trabalharam, tiveram ideias empreendedoras,<br />

arriscaram seu dinheiro em novos negócios, prosperaram com o turismo e a exportação<br />

de açúcar e lutaram pela democracia, o recado de Che era claro:<br />

Jurei ante um retrato do velho camarada [Josef] Stálin não descansar até ver aniquilados estes polvos capitalistas. 25<br />

24 Entrevista com Huber Matos.<br />

25 Pedro Corzo, página 31.


Em 1957, Fidel Castro comandava 18 homens mal armados, que cuidavam de se<br />

esconder dos policiais e dos soldados de Batista na Sierra Maestra. A maioria da<br />

população cubana achava que ele sucumbira após ataques das tropas<br />

legalistas. Foi quando Herbert Matthews, repórter e editorialista do New York Times ,<br />

recebeu um convite para uma exclusiva com Castro. Os três artigos que Matthews<br />

publicou, e que foram reproduzidos em Cuba clandestinamente, diziam que Castro estava<br />

vivo.<br />

COMO O NEW YORK TIMES CRIOU FIDEL<br />

Até aí, tudo bem. Mas Matthews foi muito além. Para ele, Fidel era dono de uma<br />

personalidade irresistível. “Foi fácil perceber que seus homens o adoram e<br />

também ver por que ele seduz a imaginação da juventude cubana em toda a<br />

ilha. Ali estava um fanático instruído, dedicado, um homem de ideais, de coragem e de<br />

notáveis qualidades de liderança.”<br />

O americano escreveu ainda que o programa do “señor Castro” era “radical, democrático<br />

e, portanto, anticomunista”. “Tem ideias enérgicas sobre liberdade, democracia,<br />

justiça social, a necessidade de restaurar a Constituição, de realizar eleições”, escreveu.<br />

Disse ainda que os rebeldes estavam divididos em colunas de até 40 homens cada,<br />

armados com 50 rifles de mira telescópica – uma gigantesca mentira contada por Fidel.<br />

A propaganda gratuita do New York Times alçou Fidel à condição de herói<br />

nacional, eclipsando todos os demais grupos de oposição. Muitos jovens se uniram ao<br />

grupo “radical e democrático” depois disso. Meses depois da queda da ditadura, já com<br />

Fidel expropriando terras, fuzilando inimigos e se assumindo publicamente como<br />

marxista-leninista, Matthews virou motivo de chacota dos colegas. Pelos serviços<br />

prestados à revolução, o jornalista ganhou uma medalha “Missão de Imprensa da Sierra<br />

Maestra”, das mãos do próprio Fidel Castro. Uma foto sua está até hoje na parede do<br />

Hotel Sevilla, onde o americano se instalou antes de seguir para a entrevista. Segundo<br />

Castro disse, apontando para Matthews: “Sem a sua ajuda e a do New York Times , a<br />

revolução em Cuba jamais teria acontecido”. 26<br />

26 Anthony DePalma, O Homem Que Inventou Fidel, Companhia das Letras, página 190.


Diante de promessas como essa, não demorou para empresários, compositores,<br />

cantores de mambo, roqueiros e arquitetos irem embora de Cuba. O arquiteto Ricardo<br />

Porro, que desenhou a Escola de Belas-Artes de Havana e outros edifícios a pedido de<br />

Fidel Castro, se exilou na França nos anos 60. O compositor Osvaldo Farrés, autor do<br />

clássico bolero Quizás, Quizás, Quizás, deixou Cuba em 1962 e nunca mais pôde voltar.<br />

Frank Dominguez, famoso pela música Tú Me Acostumbraste, gravada no Brasil por<br />

Caetano Veloso e Emílio Santiago, vive hoje em Mérida, no México. Celia Cruz, a maior<br />

cantora cubana, saiu da ilha logo que Che e Fidel tomaram o poder. Expulsa do próprio<br />

país, a “Rainha da Salsa” expressou sua revolta em músicas de exílio. A famosa canção<br />

Cuando Salí de Cuba lembra composições que lamentam outras ditaduras militares da<br />

América do Sul:<br />

Nunca podré morirme,<br />

mi corazón no lo tengo aquí.<br />

Alguien me está esperando,<br />

me está aguardando que vuelva aquí.<br />

Cuando salí de Cuba,<br />

dejé mi vida dejé mi amor.<br />

Cuando salí de Cuba,<br />

dejé enterrado mi corazón.<br />

O novo governo logo limitou a liberdade artística e passou a perseguir hippies e<br />

roqueiros. Nos anos 60, o cantor e compositor Silvio Rodriguez foi demitido de seu<br />

trabalho no Instituto de Rádio e Televisão de Cuba por citar os Beatles como uma de<br />

suas influências. 27 Ele continuou no país, resignando-se a cantar apenas inofensivas<br />

músicas tradicionais. Diversos jovens cubanos, identificados como perigosos<br />

reprodutores do imperialismo cultural americano, foram enviados para campos de<br />

reabilitação por tocar em bandas de rock e cometer atos tão imorais quanto o de andar<br />

pela rua com cabelos compridos. 28


CORTESIA COLEÇÃO PETER MORUZZI<br />

Rua Netuno, em Havana: o crescimento do turismo e a alta do preço da cana-de-açúcar na década de 1950 faziam a<br />

classe média aumentar e enriqueciam as maiores cidades da ilha.<br />

Mesmo os músicos tradicionais se deram mal. Em 2007, um projeto cultural criado em parceria com a Universidade<br />

Federal de Pernambuco levou músicos cubanos da banda Los Galanes para cantar no Recife. Logo depois das<br />

apresentações, metade dos músicos se recusou a ir embora. Ao pedir asilo político ao Brasil, disseram ser perseguidos<br />

em Cuba e impedidos de tocar certas músicas. 29<br />

A mais ousada banda cubana de rock chama-se Porno Para Ricardo (procure no YouTube). É punk rock com letras<br />

anticomunistas: “Você sabe como ferrar um comunista? Ponha rock para tocar e prenda-o num porão do Buena Vista”.<br />

Assim como as orquestras e grupos de balé de inquestionável qualidade técnica que serviam como propaganda da<br />

União Soviética, a célebre banda Buena Vista Social Club espalhou a simpatia pelo regime cubano tocando as mesmas<br />

músicas por cinco décadas. O presidente Hugo Chávez, da Venezuela, usa como propaganda a Orquestra Sinfônica<br />

Jovem Simón Bolívar.<br />

Muitos jovens seguiram ouvindo rock às escondidas. Sintonizavam clandestinamente<br />

rádios americanas do Arkansas e de Miami – em volume baixo, para não causar<br />

problema. As bandas locais entraram na clandestinidade. “Sem o apoio do Estado para<br />

obter instrumentos e a instrução disponível aos músicos dos estilos aprovados pelo<br />

governo, os roqueiros de Cuba tinham que improvisar”, conta a historiadora Deborah<br />

Pacini Hernandez em seu compêndio sobre o rock na América Latina. “Ensinaram a si<br />

próprios como tocar guitarras eletrônicas e frequentemente tinham que construir seus<br />

próprios equipamentos, usando fios de telefone para cordas de baixo e montando<br />

tambores de bateria com pedaços de metal ou filmes de raio X.” 30 Oficialmente, a<br />

proibição ao rock durou pouco. Com o sucesso dos Beatles pelo mundo e o espírito de<br />

revolução associado a esse tipo de música, ficou difícil proibi-lo, a ponto de o próprio<br />

Fidel Castro homenagear John Lennon em 2000. Mas o estilo continuou marginalizado em<br />

Cuba. Ainda hoje, bandas que tocam um som digno de nota (e que corajosamente atacam<br />

a ditadura) poderiam ser contadas com os dedos de uma única mão. Já os adeptos de<br />

ritmos tradicionais cubanos rodam o mundo em shows patrocinados pelo governo. Salvo<br />

raras exceções, a cena musical cubana atual se resume aos trios folclóricos que tocam<br />

nos restaurantes para estrangeiros, inacessíveis para um cubano comum. Ao caminhar por<br />

Havana e ouvir pela centésima vez “Guantanamera, guajira guantanamera”, o turista<br />

facilmente constata: a música cubana parou no tempo.<br />

Por trás da perseguição de jovens, músicos e artistas, estava a ideia de fazer todos os<br />

cubanos se parecerem entre si como soldadinhos de chumbo. “Para construir o<br />

comunismo, tem de se fazer o homem novo”, escreveu Che. 31 A expressão, que ele repetia<br />

diversas vezes em discursos e escritos, tem uma longa história. Vem da crença dos<br />

filósofos iluministas de que a natureza humana é maleável, que o homem é uma tábula<br />

rasa em que se pode gravar diferentes comportamentos, dependendo da educação, do<br />

espírito revolucionário ou da influência da sociedade. O homem altruísta e bondoso, que<br />

deveria deixar de lado interesses individuais e colocar-se à disposição do governo, era<br />

um princípio que norteava ideias não só de Che, mas de todos os comunistas. Na prática,<br />

essa busca resultou na perseguição de todos aqueles que pareciam não se encaixar na<br />

moldura do tal homem novo.<br />

Em discursos, entrevistas e falas em reuniões, Che deixou claro esperar dos jovens<br />

disciplina e obediência. Numa das poucas vezes que falou de música, disse que as<br />

pessoas deveriam trabalhar “ao som de cânticos revolucionários”. 32 A ideia central era


desviar-se de interesses individualistas e se concentrar no trabalho, no estudo e no fuzil,<br />

além de obedecer aos mais velhos. No discurso O Que Deve Ser um Jovem Comunista,<br />

de 1962, Che pede para os jovens se acostumarem a “pensar como massa e atuar com as<br />

iniciativas que nos oferece a classe trabalhadora e as iniciativas dos nossos dirigentes<br />

supremos”. 33 Sim, ele usa mesmo a expressão “dirigentes supremos”.<br />

Rebeldia juvenil? Só se dentro do quartel. Che adorava uniformes do exército e seus símbolos. Em abril de 1959, então<br />

chefe de instrução das Forças Armadas Revolucionárias, ele fundou a revista Verde Olivo, de assuntos militares. Em<br />

1963, ajudou a aprovar a maior inimiga dos jovens: a lei do serviço militar obrigatório. Ironicamente, o próprio Che tentou<br />

escapar do serviço militar da Argentina, em 1946, quando completou 18 anos.<br />

Essas ideias foram transmitidas pelo próprio Che aos policiais e aos soldados que<br />

agiam nas ruas e nas vilas cubanas. Logo após a revolução, uma das principais missões<br />

do guerrilheiro foi capacitar as forças armadas, um dos maiores pilares do regime de<br />

Fidel Castro. Em 1959, quando Fidel ainda não havia declarado oficialmente que<br />

adotaria um governo comunista, as escolas de instrução militar de Che já doutrinavam os<br />

soldados para impor uma ditadura do proletariado. “Em pouco tempo, ele inaugura<br />

vários cursos rápidos para formação de oficiais e da tropa”, conta o biógrafo Jorge<br />

Castañeda. “Os colaboradores comunistas de Che na Sierra [Maestra] ou na invasão [da<br />

baía dos Porcos, em 1961] e outros, como o hispano-soviético Angel Ciutah, formam o<br />

núcleo dos instrutores.” 34<br />

Che montou o primeiro campo de trabalho forçado de Cuba, na região de<br />

Guanahacabibes, a mais oriental da ilha, em 1960. A ideia era reeducar pelo trabalho<br />

pessoas consideradas imorais pela revolução. “A Guanahacabibes mandamos aqueles<br />

que não devem ser presos, aqueles que cometeram faltas contra a moral revolucionária<br />

de maior ou menor grau”, disse ele numa reunião do Ministério da Indústria de 1962. O<br />

campo serviu de modelo para as Unidades Militares de Ayuda a la Producción (Umaps),<br />

que abrigaram cerca de 30 mil jovens em menos de uma década. O caso foi denunciado<br />

pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (a mesma organização que<br />

denunciava crimes de outras ditaduras da América Latina). Um relatório divulgado pela<br />

comissão em 1967 diz o seguinte:<br />

Os jovens são recrutados à força por simples disposição da polícia, sem que se faça nenhum julgamento nem seja<br />

permitido o direito de defesa. Logo depois de presos são enviados a alguma granja estatal para serem incorporados na<br />

Unidade Militar de Ajuda à Produção. Em muitas ocasiões os familiares só são notificados semanas ou meses depois da<br />

detenção. Os jovens recrutados são obrigados a trabalhar gratuitamente na granja estatal por mais de 8 horas diárias e<br />

recebem um tratamento igual ao que se dá em Cuba aos presos políticos. [...] Esse sistema cumpre dois objetivos: a)<br />

Facilitar a mão de obra gratuita do Estado. b) Castigar os jovens que se negam a participar das organizações<br />

comunistas. 35<br />

Os campos de concentração cubanos abrigaram todos aqueles que não se encaixavam<br />

na ideia de “homem novo”: gays, católicos, testemunhas de Jeová, alcoólatras, sacerdotes<br />

do candomblé cubano e, mais tarde, portadores de HIV. “Como poderia o homem novo se<br />

libertar do capitalismo? Essa era a questão central para os líderes revolucionários da<br />

época, principalmente Che Guevara, um insistente proponente da ideia de homem novo e<br />

um dos mais convictos líderes homofóbicos do período”, afirma o escritor cubano Emilio<br />

Bejel no livro Gay Cuban Nation. 36 O pensamento corrente entre os revolucionários,<br />

ideia que chegou a ser defendida num artigo de jornal pelo intelectual comunista Samuel


Feijóo, era a de que o homossexualismo em Cuba logo terminaria. Afinal, o socialismo<br />

tinha o poder de “curar comportamentos e doenças sociais”. Elementar.<br />

É verdade que, nos anos 60, eram raros os países que respeitavam os direitos dos<br />

homossexuais. Mas em poucos lugares houve uma perseguição oficial de cidadãos por<br />

causa de sua opção sexual. Até gays favoráveis ao regime se deram mal. O poeta e<br />

dramaturgo Virgilio Piñera, por exemplo, tinha sido exilado político da ditadura anterior,<br />

a de Fulgencio Batista. Em 1961, foi preso durante a “Noite dos 3 Ps”. Amigo e colega<br />

de trabalho de Virgilio, o escritor Guillermo Cabrera Infante explicou o episódio no<br />

livro Mea Cuba. “Um departamento especial da polícia, chamado de Esquadrão da<br />

Escória, se dedicara a deter, à vista de todos, na área velha da cidade, todo transeunte<br />

que tivesse um aspecto de prostituta, proxeneta ou pederasta”, escreveu Infante. 37 Virgilio<br />

conseguiria escapar da prisão, mas não do preconceito de Che Guevara. Anos depois,<br />

Che viajou para a Argélia e visitou a embaixada cubana local. Ao dar uma olhada nos<br />

livros da estante da embaixada, deparou-se com o Teatro Completo de Virgilio Piñera.<br />

“Como é que você pode ter o livro dessa bicha na embaixada?”, disse ao embaixador<br />

enquanto atirava o livro na parede. O embaixador desculpou-se e jogou a obra no lixo. 38<br />

As denúncias internacionais fizeram o governo cubano deixar, em 1968, de mandar<br />

gays para campos de trabalho forçado. Não que os problemas deles tenham sido<br />

resolvidos. Durante o Congresso de Educação e Cultura de 1971, uma resolução proibiu<br />

homossexuais de ocupar cargos públicos que pudessem converter a juventude. Só em<br />

1979 a sodomia foi retirada do código criminal cubano. Por fim, beijos homossexuais em<br />

público davam cadeia por atentado ao pudor até 1997.<br />

Completa-se assim a primeira grande contradição entre Che Guevara e seus fãs. O<br />

mesmo homem que incentivou perseguições por motivos artísticos e sexuais teve entre<br />

seus admiradores justamente artistas que criaram famosas canções de resistência e que<br />

diziam lutar pela liberdade individual. Um exemplo é a argentina Mercedes Sosa, que foi<br />

presa pelos militares durante um show de 1979. “Se o cantor se cala, a vida se cala”,<br />

advertia a cantora. Apesar daquelas roupas estranhas, quem não concordaria com ela?<br />

Talvez ela própria. Mercedes Sosa interpretou a composição Hasta Siempre<br />

Comandante, em homenagem à morte de Che, e passou a vida elogiando o compatriota.<br />

Che, a paz e o amor<br />

Logo depois de Cuba, o famoso casal de intelectuais franceses desembarcaria no Brasil. Durante dois meses, os dois<br />

foram à Amazônia, às cidades históricas mineiras e até ao interior de São Paulo. Numa palestra na cidade de<br />

Araraquara, Sartre foi recebido por um professor da USP então com 29 anos: Fernando Henrique Cardoso, décadas<br />

depois presidente do Brasil.<br />

Em 4 de março de 1960, um cargueiro com mais de 70 toneladas de armas belgas<br />

explodiu no porto de Havana. O acidente provocou a morte de 75 operários e instalou na<br />

ilha a suspeita de que o episódio teria sido fruto de sabotagem promovida pelos Estados<br />

Unidos. No dia seguinte, Fidel Castro e sua cúpula encabeçaram o cortejo fúnebre pelas<br />

ruas de Havana. Na hora de encerrar a cerimônia, o líder cubano subiu com seus colegas<br />

numa pequena varanda e, de lá, fez um discurso inflamado, acusando agentes americanos<br />

pela tragédia. Cabia ao fotógrafo oficial de Fidel, Alberto Korda, registrar o chefe ao


microfone, assim como a presença de convidados ilustres que o acompanhavam. Os<br />

entusiasmados filósofos franceses Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir passavam<br />

uns dias em Cuba conhecendo a experiência socialista. Korda tirou diversas fotos de<br />

Fidel e do casal de intelectuais, mas foi uma outra imagem daquele dia que o tornaria<br />

célebre. Entre o grupo que acompanhava Fidel, Korda conseguiu enquadrar o rosto de<br />

Che Guevara. O guerrilheiro foi fotografado de baixo para cima, olhando ao longe com<br />

uma incrível aparência de dor e determinação. Nascia ali o famoso retrato de Che, a foto<br />

mais famosa e mais reproduzida em todo o século 20.<br />

O próprio Feltrinelli se envolveria no terrorismo anti-imperialista na Itália. Em 1972, ele foi encontrado morto ao lado<br />

de uma torre de alta tensão nos arredores de Milão. Foi provavelmente vítima dos explosivos que tentava instalar na<br />

torre elétrica.<br />

O retrato de Che permaneceu pouco conhecido até 1967, quando o editor italiano<br />

Giangiacomo Feltrinelli adquiriu cópias e começou a distribuir a imagem pela Europa.<br />

Em agosto daquele ano, o retrato estaria na revista francesa Paris Match. Dois meses<br />

depois, logo após a morte de Che, um pôster com a foto foi visto pela primeira vez num<br />

protesto de rua, em Milão. A imagem então se espalhou. Pelo menos 2 milhões de<br />

pôsteres de Che Guevara foram vendidos na Europa entre 1967 e 1968. O rosto de Che<br />

estava nas barricadas do Maio de 1968 contra os generais franceses, em protestos de<br />

anarquistas holandeses, nas comunidades hippies da Califórnia, entre as passeatas contra<br />

a Guerra do Vietnã de diversas cidades dos Estados Unidos. A foto contribuiu para que<br />

Che se tornasse um ícone da paz e do amor ao lado de Gandhi e Madre Teresa de<br />

Calcutá.<br />

Pois considere as seguintes palavras escritas pelo mesmo homem daquela foto:<br />

Ícone dos pacifistas dos anos 60, Che adorava armas. Em 1959, quando o oficial da KGB Nikolai Leonov visitou Cuba,<br />

soube bem o que escolher na hora de presentear os líderes cubanos. “Para o Che, que gostava de armas, compramos<br />

duas, uma excelente pistola e uma pistola de modelo esportivo de alta precisão, com munição. Para Raúl comprei um<br />

jogo de xadrez, pois era muito bom enxadrista.” 39<br />

O ódio como fator de luta, o ódio intransigente ao inimigo, que impulsiona para além das limitações naturais do ser<br />

humano e o converte em uma efetiva, violenta, seletiva e fria máquina de matar. Nossos soldados têm de ser assim; um<br />

povo sem ódio não pode triunfar sobre um inimigo brutal.<br />

Há que levar a guerra até onde o inimigo a leve: à sua casa, a seus lugares de diversão, torná-la total. Há que impedi-lo<br />

de ter um minuto de tranquilidade, de ter um minuto de sossego fora dos quartéis, e mesmo dentro deles: atacá-lo onde<br />

quer que se encontre; fazê-lo sentir-se uma fera acossada onde quer que esteja. 40<br />

Estou imaginando o orgulho daqueles companheiros que estavam numa “quatro bocas”, por exemplo, defendendo sua<br />

pátria dos aviões ianques e de repente têm a sorte de ver que suas balas atingiram o inimigo. Evidentemente, é o<br />

momento mais feliz da vida de um homem. É uma coisa que nunca se esquece. Nunca o esquecerão os companheiros<br />

que viveram essa experiência. 41<br />

É preciso dizer mais alguma coisa?<br />

É. Che Guevara, ídolo dos jovens rebeldes e pacifistas, não só considerava o ódio um<br />

sentimento nobre como agiu para que houvesse uma guerra nuclear na América. Em 1961,<br />

ele viajou à Rússia para fechar com o líder soviético Nikita Kruschev um acordo da<br />

instalação dos mísseis com ogivas nucleares em Cuba. Em discursos e entrevistas, Che<br />

não teve pudor ao afirmar que, sim, queria armar um pesadelo atômico nos Estados


Unidos. E, sim, sabia que desencadearia uma reação americana (maior potência nuclear<br />

do mundo) no mesmo nível sobre as cidades cubanas.<br />

Essa postura ficou bem clara logo após a Crise dos Mísseis, em 1962, um dos<br />

momentos em que o mundo mais esteve perto de uma Terceira Guerra Mundial. Em<br />

outubro daquele ano, aviões de espionagem americanos fotografaram instalações<br />

militares de Cuba. Mostraram que mísseis nucleares de médio alcance (apontados para<br />

os Estados Unidos) estavam sendo instalados no oeste da ilha. Tratava-se de 42 mísseis<br />

soviéticos – 20 deles com ogivas nucleares – e mais meia dúzia de lança-mísseis também<br />

armados com ogivas. O presidente dos Estados Unidos, John Kennedy, criou um bloqueio<br />

marítimo à ilha e exigiu a retirada imediata dos armamentos. Graças à diplomacia entre<br />

as duas superpotências, os soviéticos acabaram cedendo – nem Moscou, nem Washington<br />

achavam uma boa ideia começar uma guerra de armas atômicas. Mas o governo de<br />

Havana, sim. A retirada dos mísseis foi uma decisão dos soviéticos que deixou os líderes<br />

cubanos revoltados e irritados. Fidel Castro chamou o russo Nikita Kruschev de “filho da<br />

puta, cagão e bunda-mole”. 42 “Fidel ficou puto da vida, e eu também”, disse Che ao seu<br />

amigo Ricardo Rojo. “Para descarregar a tensão que havia se acumulado, Fidel deu uma<br />

volta de 180 graus e soltou um pontapé na parede.” 43<br />

Che não conseguiu esconder sua decepção com a moderação e a prudência dos russos.<br />

Sonhava com uma guerra nuclear e disse isso em voz alta durante entrevistas que se<br />

seguiram à crise. “Se os mísseis tivessem ficado em Cuba, usaríamos todos, apontandoos<br />

para o coração dos Estados Unidos, inclusive Nova York, para nos defendermos da<br />

agressão”, disse ao London <strong>Da</strong>ily Worker, o jornal do Partido Comunista da Inglaterra.<br />

Ele sabia que os americanos revidariam o ataque, provocando um massacre nuclear em<br />

Cuba e o sacrifício de centenas de milhares de cubanos. Mas era isso mesmo que<br />

desejava, conforme escreveu meses depois:<br />

[Cuba] é o exemplo tremendo de um povo disposto ao autossacrifício nuclear, para que suas cinzas sirvam de alicerce<br />

para uma nova sociedade. 44<br />

Para quem considerava o homem não um fim em si mesmo, mas um meio para a revolução, matar ou sacrificar<br />

pessoas era perfeitamente racional e correto. Rebeldes como Che acreditavam que revoluções anteriores tinham<br />

fracassado porque seus líderes hesitaram em agir em nome de um ideal. Como em tantos casos do século 20, foi o<br />

desejo radical de mudar o mundo que nutriu a barbárie.<br />

Se um sujeito quer dedicar a vida ao autossacrifício em nome de um ideal, é seu<br />

direito. Deve ter a liberdade de fazer o que bem desejar com a própria vida. Mas não<br />

pode, por mais fotogênico que seja e por mais belo que considere seu ideal, obrigar<br />

milhões de outros indivíduos a tomar o mesmo caminho. A instalação de mísseis em<br />

Cuba havia sido decidida em sigilo por Fidel e Raúl Castro, Che e outros três líderes<br />

cubanos. Apenas seis pessoas. 45 Os milhões de cidadãos cubanos não sabiam, mas seu<br />

admirado líder Che Guevara tinha decidido levá-los a um holocausto nuclear.<br />

Prevendo ataques americanos, os líderes da revolução logo se preocuparam em<br />

perguntar ao embaixador soviético, Alexander Alexeyev, se havia espaço no abrigo<br />

antiaéreo da embaixada soviética em Cuba. 46 Não tiveram a mesma preocupação com o<br />

resto dos cubanos.


Che e os direitos humanos<br />

Continente que amargou tantas ditaduras militares, a América Latina tem hoje diversos<br />

movimentos de reparação a torturas, assassinatos e outras perseguições políticas. Na<br />

batalha para fazer os carrascos militares pagarem por seus crimes, organizações como<br />

Tortura Nunca Mais, do Brasil; Madres de La Plaza de Mayo, da Argentina; Verdade e<br />

Justiça, do Paraguai; ou as comissões de verdade e reconciliação do Chile e do Peru são<br />

geralmente as fontes mais acessadas de relatórios de mortes, dados das vítimas e<br />

depoimentos de sobreviventes. Lutam também contra a pena de morte e os abusos<br />

praticados por policiais nos dias de hoje.<br />

BETTMANN/CORBIS/LATINSTOCK<br />

Che na assembleia da ONU, em 1964: “Nosso regime é um regime à morte”.<br />

Do mesmo modo, o Projeto Verdade e Memória, da organização Arquivo Cuba, reúne<br />

dados de cubanos que foram perseguidos desde 10 de março de 1952, quando o ditador<br />

Fulgencio Batista suspendeu os direitos políticos da ilha, até hoje. Segundo essa<br />

instituição, o argentino Ernesto Guevara de la Serna se envolveu em pelo menos 144<br />

mortes entre 1957 e 1959, período que compreende a guerrilha pela tomada de poder em<br />

Cuba e o primeiro ano de governo revolucionário. Entre as vítimas, há colegas do grupo<br />

guerrilheiro, policiais mortos na frente dos filhos, menores de idade e principalmente<br />

opositores políticos executados no presídio montado dentro do Forte de La Cabaña.<br />

Nos Diários de Motocicleta, Che revela também um pouco de seu racismo. <strong>Da</strong> Venezuela, escreve que os negros<br />

“mantiveram sua pureza racional graças ao pouco apego que têm em tomar banho”. Comparando negros e portugueses,<br />

escreve que “o desprezo e a pobreza os unem na luta cotidiana, mas o diferente modo de encarar a vida os separa<br />

completamente; o negro, indolente e sonhador, gasta seu dinheiro em qualquer frivolidade, o europeu tem a tradição de<br />

trabalho e economia”. 47<br />

Mais uma vez, as palavras de Che confirmam o que se diz sobre suas ações. Bem antes


de o argentino sonhar em ser líder de uma revolução, já descrevera seu ímpeto assassino.<br />

Em 1952, quando viajou de moto pela América do Sul, registrou a viagem num diário. As<br />

anotações viraram o livro e o filme Diários de Motocicleta, em que Che aparece como<br />

um personagem mais camarada que Jesus Cristo. O filme deixou de fora passagens menos<br />

simpáticas dos escritos de Che a mostrar sua obsessão com a violência justificada em<br />

nome de um ideal. É interessante imaginar o ator mexicano Gael García Bernal, que<br />

interpreta Che no filme do brasileiro Walter Salles, dizendo estas palavras:<br />

Estarei com o povo, e sei disso porque vejo gravado na noite que eu, o eclético dissecador de doutrinas e psicanalista de<br />

dogmas, uivando como um possesso, atacarei de frente as barricadas ou trincheiras, banharei minha arma em sangue e,<br />

louco de fúria, cortarei a garganta de qualquer inimigo que me cair nas mãos. [...] Sinto minhas narinas dilatadas pelo<br />

cheiro acre da pólvora e do sangue do inimigo morto. Agora meu corpo se contorce, pronto para a luta, e eu preparo meu<br />

ser como se ele fosse um lugar sagrado, de modo que nele o uivar bestial do proletariado triunfante possa ressoar com<br />

novas vibrações e novas esperanças.<br />

Che chegou a Cuba no fim de 1956. Era um dos 81 guerrilheiros que acompanhavam<br />

Fidel Castro na travessia do México à ilha de Cuba a bordo do Granma, o iate que<br />

depois daria nome ao jornal oficial cubano. O grupo sofreu um ataque do exército,<br />

obrigando os poucos sobreviventes a se esconder na Sierra Maestra. Foi ali que Che<br />

começou a realizar seus desejos. Logo de início, revelou traços típicos dos piores<br />

ditadores comunistas: o controle extremo da conduta individual, a paranoia com a traição<br />

e o fato de considerar o ideal da revolução acima de qualquer regra de convivência.<br />

“Poucos homens estavam imunes ao olhar desconfiado de Che”, conta o biógrafo John<br />

Lee Anderson, que completa:<br />

Havia um nítido zelo calvinista na perseguição movida por ele aos que se desviavam do “caminho correto”. Che abraçara<br />

fervorosamente la Revolución como corporificação definitiva das lições da História e como o caminho correto para o<br />

futuro. Agora, convencido de que estava certo, olhava em volta com os olhos implacáveis de um inquisidor em busca<br />

daqueles que poderiam pôr em perigo a sobrevivência da Revolução. 48<br />

O primeiro cubano morto diretamente por Che Guevara foi Eutimio Guerra, um<br />

camponês que servia de guia aos guerrilheiros na Sierra Maestra. Acusado de ser<br />

informante das forças armadas, ele teve a pena de morte autorizada por Fidel em<br />

fevereiro de 1957. A identidade do executor de Eutimio ficou em segredo por 40 anos.<br />

Só em 1997, depois que o biógrafo John Lee Anderson conseguiu com a viúva de Che o<br />

original de seu diário, foi possível saber quem o matou. O guerrilheiro conta que, no<br />

momento de sua execução, um forte temporal caiu sobre a serra. Como ninguém se<br />

dispunha a cumprir a ordem, ele tomou a iniciativa. Repare na frieza da narrativa:<br />

Era uma situação incômoda para as pessoas e para [Eutimio], de modo que acabei com o problema dando-lhe um tiro<br />

com uma pistola calibre 32 no lado direito do crânio, com o orifício de saída no temporal direito. Ele arquejou um pouco e<br />

estava morto. Ao tratar de retirar seus pertences, não consegui soltar o relógio, que estava preso ao cinto por uma<br />

corrente e então ele [ainda Eutimio] me disse, numa voz firme, destituída de medo: ‘Arranque-a fora, garoto, que<br />

diferença faz...’. Assim fiz, e seus bens agora me pertenciam. Dormimos mal, molhados, e eu com um pouco de asma. 49<br />

No diário de Che, não há sinal de culpa ou de alguma inquietação quanto à execução.<br />

Horas depois da morte do camponês, seus interesses já eram outros. “Se Che ficou<br />

perturbado com o ato de executar Eutimio, no dia seguinte não havia qualquer sinal


disso”, escreve Anderson. “No diário, comentando a chegada à fazenda de uma bonita<br />

ativista do 26 de Julho, escreveu: ‘[Ela é uma] grande admiradora do Movimento, e a<br />

mim parece que quer foder mais do que qualquer outra coisa’.” 50<br />

Che também foi tirano com seus companheiros na Bolívia. Segundo o brasileiro Cláudio Gutierrez, participantes do<br />

grupo de Che “foram executados pelos próprios companheiros de esquerda incrivelmente pelo consumo escondido, e<br />

solitário, de latas de leite condensado”. Entre os mortos estaria Luís Renato Pires de Almeida, que até hoje consta na<br />

lista de vítimas da ditadura militar brasileira... 51<br />

Segundo o Arquivo Cuba, foram pelo menos 22 execuções na Sierra Maestra entre<br />

1957 e 1958. Quase todas as vítimas eram membros do próprio grupo rebelde de Fidel<br />

Castro e Che Guevara – três acusados de querer abandonar o grupo, oito considerados<br />

suspeitos de colaborar com o exército e os outros 11 mortos por cometer crimes ou por<br />

razões desconhecidas.<br />

No dia a dia de paranoias e crises de confiança entre os guerrilheiros da Sierra<br />

Maestra, Fidel Castro tinha de segurar a onda de Che Guevara. O argentino com<br />

frequência sugeria acabar com companheiros diante da menor desconfiança. Depois que<br />

os guerrilheiros ganharam comida na casa de uma família de camponeses e passaram mal,<br />

Che disse a Fidel para que voltassem lá para tirar satisfações – Fidel o deteve. A pressa<br />

em resolver as coisas à bala recaía até mesmo sobre companheiros antigos, como José<br />

Morán, “El Gallego”, um veterano do Granma. Diante da suspeita de que Morán traía o<br />

grupo, Che queria logo executá-lo. “É muito difícil saber a verdade sobre o<br />

comportamento do Gallego, mas para mim trata-se simplesmente de uma deserção<br />

frustrada”, escreveu em seu diário. “Aconselhei que ele fosse morto ali mesmo, mas<br />

Fidel descartou o assunto.” Fidel acabaria se tornando o líder do regime não democrático<br />

mais duradouro do século 20. Imagine se Che assumisse esse posto.<br />

27 Deborah Pacini Hernandez, página 43.<br />

28 Deborah Pacini Hernandez, página 47.<br />

29 Programa Fantástico, 15 de abril de 2008, disponível em http://fantastico.globo.com/Jornalismo/FANT/0,,MUL698091-<br />

15605,00.html.<br />

30 Deborah Pacini Hernandez, página 62.<br />

31 Che Guevara, Textos Políticos, Global, 2009, página 60.<br />

32 Che Guevara, página 36.<br />

33 Che Guevara, página 34.<br />

34 Jorge Castañeda, Che Guevara: A Vida em Vermelho, Companhia de Bolso, 2009, página 197.<br />

35 Arquivo da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), disponível em<br />

www.cidh.org/countryrep/cuba67sp/cap.1a.htm#_ftnref4.<br />

36 Emilio Bejel, Gay Cuban Nation, The University of Chicago Press, 2001, página 24.<br />

37 Guillermo Cabrera Infante, Mea Cuba, Companhia das Letras, página 91.<br />

38 Guillermo Cabrera Infante, página 341.<br />

39 Jorge Castañeda, página 225.


40 Che Guevara, página 82.<br />

41 Che Guevara, página 39.<br />

42 Jorge Castañeda, página 302.<br />

43 Ricardo Rojo, Meu Amigo Che, Civilização Brasileira, 1983, página 138.<br />

44 Jorge Castañeda, página 305. O artigo foi publicado postumamente, em 1968, na revista Verde Olivo.<br />

45 Jorge Castañeda, página 300.<br />

46 Humberto Fontova, Fidel: Hollywood’s Favorite Tyrant, Regnery Publishing, 2005, página 23.<br />

47 Che Guevara, Diários de Motocicleta, versão digital, página 230.<br />

48 John Lee Anderson, Che Guevara, Objetiva, 1997, página 293.<br />

49 John Lee Anderson, página 288.<br />

50 John Lee Anderson, página 289.<br />

51 José Mitchell, Segredos à Direita e à Esquerda na Ditadura Militar, RBS Publicações, 2007, página 253.


É uma história horripilante e difícil de acreditar, mas foi divulgada pela<br />

Comissão Interamericana de Direitos Humanos, a mesma entidade que denunciava os<br />

crimes das ditaduras militares da América do Sul e que até hoje pressiona os governos<br />

para punir os carrascos daquela época. No item E do relatório divulgado pela<br />

organização em 7 de abril de 1967, há a denúncia da extração de sangue de condenados à<br />

morte em Cuba. Pouco antes de fuzilar os condenados, os algozes do presídio de La<br />

Cabaña retiravam o sangue das vítimas.<br />

OS VAMPIROS REVOLUCIONÁRIOS<br />

“No dia 27 de maio, 166 cubanos civis e militares foram executados e submetidos aos<br />

processos de extração de sangue, a uma média de 7 pintas por pessoa [cerca de 3<br />

litros]”, afirma o relatório. “Este sangue é objeto de venda no Vietnã<br />

comunista por 50 dólares a pinta, com o objetivo duplo de prover-se de<br />

dólares e contribuir com o esforço do vietcongue.” Com tanto sangue extraído, as vítimas<br />

eram levadas ao paredão já desmaiadas ou inconscientes. Conforme a Comissão,<br />

hematólogos cubanos e soviéticos trabalhavam no presídio de La Cabaña para analisar o<br />

material colhido e conservar sua qualidade. Como até hoje o governo cubano não foi<br />

submetido a investigações internacionais, não se pode atestar se a denúncia é ou não<br />

fundamentada na realidade. Mas a história do mundo mostra que, em se tratando de<br />

regime comunista, tudo é possível. 52<br />

52 Arquivo da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), disponível em<br />

www.cidh.org/countryrep/cuba67sp/cap.1a.htm#_ftnref4; e Humberto Fontova, O Verdadeiro Che Guevara, Editora É,<br />

página 134.


Até então, a pena de morte era proibida. Só tinha sido praticada contra um espião alemão, capturado em Cuba durante<br />

a Segunda Guerra. A Constituição criada por Che e Fidel, em fevereiro de 1959, fez a pena capital, prática tão odiada<br />

pelos admiradores de Che, voltar à ilha.<br />

Fidel, porém, às vezes se distanciava, deixando Che sozinho com seu pelotão. Em<br />

1958, o argentino liderou a tomada da cidade de Santa Clara, o maior obstáculo entre os<br />

guerrilheiros e Havana. De acordo com a organização Arquivo Cuba e dezenas de<br />

dissidentes cubanos, a invasão foi seguida por uma onda incontrolável de execuções.<br />

Policiais da cidade e moradores acusados de colaborar com o governo de Fulgencio<br />

Batista foram mortos na rua. Che ficou dois dias e meio na cidade e logo seguiu caminho<br />

para Havana. Antes de ir embora, ordenou diversas execuções a serem cumpridas por<br />

seus subordinados. Matou ou ordenou a execução de 17 moradores. A decisão de tantas<br />

mortes não foi baseada em julgamento nem houve qualquer possibilidade real de defesa.<br />

Domingo Álvarez Martínez, do serviço de inteligência das forças armadas, cuja sentença<br />

de morte foi assinada por Che em 4 de janeiro de 1959, foi morto na frente do filho de 17<br />

anos.<br />

Logo depois, em janeiro de 1959, Che foi nomeado comandante do presídio do Forte<br />

de La Cabaña e chefe dos Tribunais Revolucionários que aconteciam ali. Eram enviados<br />

para aquele presídio militares, políticos anticomunistas, companheiros rebeldes que<br />

divergiram da cúpula da revolução, cidadãos que oferecessem resistência à nova ordem<br />

revolucionária e até mesmo parentes de opositores que haviam fugido da ilha. Os<br />

números de mortos quando La Cabaña era chefiada por Che variam muito. O Arquivo<br />

Cuba lista o nome de 104 vítimas. Já os cubanos que foram presos ou trabalharam no<br />

presídio falam em até 800 mortes até o fim de 1959. Para o cargo de juiz dos Tribunais<br />

Revolucionários, Che designou Orlando Borrego, um rapaz de 23 anos sem qualquer<br />

formação em direito. José Vilasuso, que tinha acabado de se formar advogado, virou<br />

assistente na preparação das sentenças. É bom preparar o estômago antes de ler o que<br />

Vilasuso, décadas depois, lembra daquela época:<br />

Muitas pessoas se reuniam no escritório de Che Guevara e participavam de agitadas discussões sobre a Revolução. No<br />

entanto, as falas de Che costumavam ser cheias de ironia – ele nunca mostrava nenhuma alteração de temperamento ou<br />

dava atenção a opiniões diferentes. Ele dava reprimendas em particular e em público, chamando a atenção de todos:<br />

“Não demorem com esses julgamentos. Isso é uma revolução: provas são secundárias. Temos que agir por convicção.<br />

Eles são uma gangue de criminosos e assassinos”.<br />

As execuções aconteciam nas primeiras horas da manhã. Assim que uma sentença era transmitida, os parentes e amigos<br />

caíam em prantos horríveis, suplicando piedade para seus filhos, maridos etc. Diversas mulheres tinham que ser tiradas<br />

de lá à força. Aconteciam de segunda a sábado, e em cada dia um a sete prisioneiros eram executados, às vezes mais.<br />

Casos de pena de morte tinham carta-branca de Fidel, Raúl ou Che e eram decididos pelo tribunal ou pelo Partido<br />

Comunista. Cada membro do esquadrão da morte ganhava 15 pesos por execução. Os oficiais, 20.<br />

A Fortaleza de San Carlos de La Cabaña, em Havana, pode ser facilmente visitada por turistas. Construída no século<br />

18, ela sedia todas as noites, às 20h30, o cañonazo, em que homens vestidos de soldados espanhóis simulam um tiro de<br />

canhão. Antes de Guevara, os ditadores Gerardo Machado e Fulgencio Batista também a usaram como prisão.<br />

Em frente ao paredão, cheio de buracos de balas, eram abandonados os corpos agonizantes, amarrados em paus,<br />

banhados em sangue e imóveis em posições indescritíveis, com mãos convulsivas, expressões tenebrosas de choque,<br />

mandíbulas fora do lugar, um buraco onde antes havia um olho. Alguns dos corpos, por causa do tiro de misericórdia,<br />

tinham o crânio destruído e o cérebro exposto.<br />

Testemunhar tal carnificina é um trauma que vai me acompanhar a vida toda – e é minha missão tornar esses fatos<br />

conhecidos. Durante aquelas horas as paredes daquele castelo medieval abrigavam ecos dos passos das tropas, o<br />

ruído dos rifles, as vozes de comando, o ressoar dos tiros, o gemido dos moribundos e os gritos dos oficiais e guardas<br />

depois dos tiros de misericórdia. Um silêncio macabro que consumia tudo.


Assassinos de renome internacional ajudaram Che e Fidel nos expurgos. O americano Herman Marks, condenado por<br />

assalto, roubo e estupro, virou um dos principais atiradores de La Cabaña. Os revolucionários também abrigaram o<br />

comunista espanhol Ramón Mercader – ele mesmo, o homem que em 1940 matou León Trótski, no México.<br />

Nem menores de idade ficaram de fora da pena de morte instituída por Che Guevara.<br />

No fim de 1959, um garoto de 12 ou 14 anos chegou ao presídio de La Cabaña sob a<br />

acusação de ter tentado defender o pai antes que os revolucionários o matassem. Dias<br />

depois, o garoto foi levado ao paredão com outros dez prisioneiros. “Perto do paredão<br />

onde se fuzilava, com as mãos na cintura, caminha Che Guevara de um lado para o<br />

outro”, escreveu Pierre San Martín, um dos prisioneiros de La Cabaña. “Deu a ordem<br />

para trazer antes o garoto e o mandou se ajoelhar diante do paredão. O garoto<br />

desobedeceu à ordem com uma valentia sem nome e ficou de pé. Che, caminhando por<br />

trás do garoto, disse: ‘Que garoto valente’. E deu um tiro de pistola na nuca do rapaz.”<br />

Outro jovem assassinado ali foi Ariel Lima Lago, que tinha sido colaborador da<br />

própria guerrilha de Che Guevara. Capturado pelos policiais de Fulgencio Batista em<br />

1958, foi torturado e forçado a dizer onde seus companheiros estavam. Para fazê-lo falar,<br />

os policiais levaram à prisão a mãe do rapaz, deixaram-na nua e disseram ao rapaz que<br />

iam estuprá-la caso ele não desse as respostas. Ariel não teve alternativa. Sua mãe foi<br />

liberada, mas ele seguiu preso. Quando a revolução tomou o poder, Ariel passou da<br />

prisão de Batista para a prisão comunista de La Cabaña. Sua mãe implorou com o<br />

próprio Che Guevara para que não o condenassem à morte, sem sucesso. 53<br />

Não caia na roubada de perguntar a um gari em Havana se era mesmo em La Cabaña que Che realizava seus<br />

fuzilamentos. “Che nunca matou ninguém”, gritou o funcionário para um dos autores deste livro em 2010. Logo em<br />

seguida, comentou o fato a um guarda, que ficou no encalço do arrependido jornalista.<br />

É claro que se pode questionar essas informações – talvez sejam mesmo só boatos,<br />

mentiras e intrigas daqueles cubanos que se viram em desvantagem com o golpe de Fidel<br />

Castro. Do mesmo modo, há quem considere pura invenção os relatos de mortes e<br />

torturas cometidas pelos regimes militares do Brasil ou da Argentina. Acontece que o<br />

próprio Che Guevara pregava a necessidade das execuções, dava detalhes sobre elas em<br />

seu diário e admitia as mortes em público sem o menor pudor. Além das declarações<br />

acima, há a mais evidente de todas. Anos depois da Revolução Cubana, já guerrilheiro<br />

famoso com a tomada de poder em Cuba, Che rodou o mundo propagandeando o<br />

comunismo. Participou em 1964 da Conferência das Nações Unidas, em Nova York.<br />

Durante o discurso, disse:<br />

Fuzilamentos? Sim, temos fuzilado. Fuzilamos e seguiremos fazendo isso enquanto for necessário. Nossa luta é uma luta<br />

à morte.<br />

Como se vê, os paredões e as execuções sumárias cometidas por Che Guevara não são<br />

novidade. Ele deixou claro ter diversos argumentos racionais para a violência, não sofria<br />

com dilemas morais ao matar e até se orgulhava de ter cometido assassinatos de<br />

motivação política. Essas frases e histórias estão disponíveis a qualquer pessoa que se<br />

interesse pela vida do guerrilheiro tanto em vídeos de seus discursos na internet quanto<br />

nos seus diários. Até mesmo as biografias mais adulatórias deixam passar um pouco de<br />

sua psicopatia. Por isso não dá para entender por que Che Guevara, um homem envolvido<br />

em pelo menos 144 mortes, segundo o maior banco de dados sobre as ditaduras da direita<br />

e da esquerda em Cuba, é reverenciado justamente por ativistas que fazem protestos


politicamente corretos contra a pena de morte, a tortura, a redução da maioridade penal e<br />

a perseguição política. O movimento Madres de La Plaza de Mayo, que tenta promover o<br />

julgamento e a condenação de assassinos políticos na Argentina, inclui a íntegra de textos<br />

de Che Guevara numa de suas publicações, dá cursos sobre ele e divulga livros sobre as<br />

boas intenções do guerrilheiro. O grupo Tortura Nunca Mais, que pede a punição de<br />

pessoas responsáveis por mortes e desaparecimentos durante a ditadura militar do Brasil,<br />

deu a Che Guevara, em homenagem póstuma no ano de 1997, a Medalha Chico Mendes<br />

de Resistência. Segundo o grupo, o mérito é concedido (sem ironia) a pessoas que<br />

lutaram ou lutam pelos direitos humanos. Contradições assim sugerem o seguinte: ou<br />

esses ativistas não sabem quem foi Che Guevara, ou não são realmente contrários aos<br />

assassinos e aos torturadores. São contrários apenas a assassinos e torturadores com<br />

quem não concordam.<br />

Che e os trabalhadores<br />

Seria uma cena um tanto curiosa e divertida se, durante a reunião de algum sindicato<br />

de trabalhadores na região do ABC, em São Paulo, um dos participantes pedisse a<br />

palavra e fizesse três audaciosas propostas:<br />

1. Companheiros! Não é correto aumentar o salário de quem trabalha mais. É preciso –<br />

isso sim – cortar o salário daqueles que menos produzem.<br />

2. É essencial continuarmos na fábrica durante as férias mesmo sem ganhar mais por isso.<br />

Os nossos dirigentes precisam agir com mais ênfase quando nos pedem para fazer<br />

trabalho voluntário nas férias.<br />

3. O governo, companheiros, precisa castigar aqueles trabalhadores que não cumprem<br />

seu dever. Aqueles que se mostram mais preguiçosos precisam passar por uma<br />

reeducação ideológica.<br />

São propostas tão fora de contexto que os dirigentes sindicais provavelmente nem<br />

fariam reprimendas – apenas olhariam perplexos para o estranho sujeito. “Como poderia<br />

um companheiro ter tão pouca noção e vir à sede do sindicato defender propostas tão<br />

estúpidas e contrárias aos legítimos interesses dos trabalhadores?”, alguém pensaria.<br />

Claro que aquele homem não seria aplaudido nem ganharia opiniões a favor, mesmo que<br />

tivesse barba, fumasse charutos, usasse uma boina preta e se chamasse Che Guevara.<br />

No fim de 1959, Che deixou a direção do presídio do Forte de La Cabaña. Passou a<br />

ocupar o cargo de presidente do Banco Nacional e, logo depois, o de ministro da<br />

Indústria de Cuba. Durante quatro anos, coube a ele repensar todo o sistema monetário da<br />

ilha, as recompensas aos trabalhadores e o critério para definir o preço de milhões de<br />

produtos. Durante essa experiência administrativa, o guerrilheiro produziu textos<br />

impagáveis sobre economia. Estão lá as três propostas acima. Contrário ao uso de<br />

incentivos materiais aos trabalhadores, para ele herança maldita do capitalismo, Che<br />

tentava achar um meio de incentivar os cubanos a trabalhar e desenvolver seu


conhecimento profissional. Os modos que sugere para resolver esse problema são o<br />

controle, a punição e o castigo. “O importante é destacar o dever social do trabalhador e<br />

castigá-lo economicamente quando não o cumprir”, escreveu ele na Nota sobre o Manual<br />

de Economia Política da Academia de Ciências da URSS. “O não cumprimento da<br />

norma significa o não cumprimento de um dever social; a sociedade castiga o infrator<br />

com o desconto de uma parte de seus rendimentos. Aqui é onde devem se juntar a ação do<br />

controle administrativo com o controle ideológico.”<br />

Em diversas passagens, Che atribui à educação o papel fundamental de fazer as<br />

pessoas se disciplinarem e encararem o trabalho como um sacrifício, sem se importarem<br />

com interesses individuais. Segundo ele, a sociedade socialista “deve exercer a coerção<br />

dos trabalhadores para implantar a disciplina, mas fará isso auxiliada pela educação das<br />

massas até que a disciplina seja espontânea”. 54 A disciplina deveria chegar ao ponto de<br />

fazer os trabalhadores abrirem mão das férias e voltarem à fábrica sem ganhar mais por<br />

isso. Numa reunião administrativa de outubro de 1964, o governante disse aos seus<br />

companheiros que “é necessário estabelecer uma campanha para o trabalho nas fábricas<br />

durante as férias, instrução que já foi dada aos diretores”.<br />

As regras econômicas estabelecidas por um governo não são brincadeira: determinam<br />

o poder dos cidadãos de pagar suas contas em dia e ter mais ou menos acesso a coisas<br />

que consideram seu bem-estar. Dependendo das decisões econômicas do governo, um pai<br />

de família pode levar os filhos para a primeira viagem de avião ou perder o emprego.<br />

Liderar a economia de um país, portanto, é um trabalho que exige responsabilidade.<br />

Quem não tem experiência ou conhecimento na área não deve, por respeito aos<br />

habitantes, aceitar ser ministro ou chefe de instituições financeiras. Che Guevara não teve<br />

esse cuidado. Depois de aceitar ser chefe do Banco Central de Cuba é que foi ter aulas<br />

de matemática e princípios básicos de diplomacia e economia. 55 Não deu certo.<br />

Nos 15 meses em que foi diretor do Banco Nacional, Che ia trabalhar vestido com seu<br />

uniforme militar verde-oliva e revólver na cintura. É difícil imaginar um chefe mais<br />

arrogante. Ele fazia convidados e subordinados esperarem horas para ser atendidos e os<br />

recebia com a prepotência dos pés sobre a mesa de trabalho. 56 Ignorava as tarefas de<br />

seus funcionários, reduziu os ganhos de quase todos eles e convocou espiões para<br />

perseguir as pessoas das quais desconfiava. Uma delas foi o economista José Illan, exvice<br />

ministro de Finanças do governo provisório de Cuba. “Che era um médico que tinha<br />

a presunção de saber tudo, mas não era minimamente preparado para os cargos aos quais<br />

foi nomeado”, afirma ele. Logo depois de assinar um decreto que desagradou Che, o<br />

economista Illan foi ameaçado de prisão e precisou fugir da ilha com a família. Assim<br />

como ele, mais da metade dos funcionários abandonou o banco em menos de um ano.<br />

“Não me importa, podem ir, traremos estivadores e canavieiros para fazer aqui o<br />

trabalho do campo”, disse Che ao subdiretor do banco, Ernesto Betancourt. 57<br />

Na mesma época, Che foi diretor do Departamento de Indústria do Instituto Nacional<br />

da Reforma Agrária. Teve ali a ideia de diversificar a economia cubana reduzindo a área<br />

cultivada de cana-de-açúcar. A dependência da economia cubana das exportações de<br />

açúcar incomodava os cubanos havia décadas: 80% das exportações vinham dos<br />

canaviais. O resultado da tática, porém, foi o colapso da indústria de açúcar sem o<br />

crescimento de outras atividades. A safra de cana costumava ultrapassar 6 milhões de


toneladas antes da revolução – em 1963, já tinha diminuído para 3,8 milhões. Até então,<br />

Cuba vendia açúcar com ágio para os americanos, ou seja, acima da média do preço<br />

mundial. A medida, que fazia mais dólares chegarem à ilha, vinha de um acordo com os<br />

EUA para proteger os produtores americanos de açúcar de beterraba. Levando adiante<br />

seu anti-imperialismo, Che preferiu vender mais barato, proibindo o ágio e reduzindo o<br />

volume de exportação para os americanos. Não deu certo.<br />

Seus planos de incentivo aos trabalhadores também fracassaram. Em 1961 e 1962,<br />

simplesmente metade da produção de frutas e verduras apodreceu no pé porque não havia<br />

trabalhadores no lugar certo para fazer a colheita. Como consequência, Che instituiu o<br />

documento que infernizaria a vida dos cubanos a partir de então: o carnê de racionamento<br />

para combater a escassez de alimentos. Menos de dois anos depois da revolução, já<br />

faltavam na ilha de Cuba arroz, feijão, ovos, leite, todos os tipos de carnes e óleo. Foi<br />

como se os projetos econômicos de Cuba tivessem sido traçados por alguém sem a menor<br />

noção de economia.<br />

53 Arquivo de dados do Cuba Archive, caso 206, Ariel Lima Lago, disponível em<br />

www.cubaarchive.org/database/victim_case.php?id=306.<br />

54 Carlos Tablada, página 271.<br />

55 Jorge Castañeda, página 222.<br />

56 Jorge Castañeda, página 219.<br />

57 Jorge Castañeda, página 220.


Quando alguém oferecia Coca-Cola a Che Guevara, ele costumava recusar com<br />

veemência: considerava-se diante da água negra do imperialismo. 58 Durante o<br />

tempo em que foi ministro da Indústria, Che logo tratou de estatizar a fábrica da<br />

bebida instalada em Cuba. Para sua decepção, porém, a Coca-Cola socialista que<br />

passou a ser produzida nas fábricas estatais cubanas ficava muito longe da original.<br />

Irritado com o gosto de água suja do refrigerante estatal, ele resolveu visitar a<br />

fábrica para perguntar aos administradores por que produziam algo tão ruim. A resposta<br />

foi óbvia e clara: o próprio Che tinha expulsado do país os chefes da indústria, que<br />

levaram com eles a fórmula do refrigerante. 59<br />

ÁGUA NEGRA DO IMPERALISMO<br />

Muitos anos depois, na Venezuela, o presidente Hugo Chávez foi mais precavido. No<br />

início de seu governo, diante de greves em todo o país, Chávez mandou militares à<br />

fábrica da Coca-Cola. Não para invadir a empresa e nacionalizá-la. Mas para<br />

impedir que a produção do refrigerante fosse interrompida. 60 Protestos<br />

organizados por sindicalistas chavistas nos últimos anos até podem parar a produção de<br />

vez em quando. Estão autorizados a fazer isso, contanto que não impeçam os caminhões<br />

de sair do armazém repletos de garrafas cheias.<br />

58 Jorge Castañeda, página 534.<br />

59 Humberto Fontova, O Verdadeiro Che Guevara, Editora É, página 217; e Tom Gjelten, página 286.<br />

60 Antonio Pedro Tota, Os Americanos, Contexto, 2009, página 9.


Não só Fidel e Che, mas outros líderes da América Latina tomaram o que chamamos de As Três Atitudes Infalíveis<br />

para a Ruína Econômica: 1) Estatizar empresas e atrapalhar a vida de agricultores e empresários locais, dificultando a<br />

produção de bens. 2) Confiscar propriedades, espantando investimentos nacionais e estrangeiros. 3) Com a baixa da<br />

arrecadação causada pelos itens 1 e 2, imprimir mais dinheiro para cobrir os gastos crescentes, criando inflação.<br />

Mas Che não se deu por vencido. Em 1961, chegou ao ponto máximo de poder: tornouse<br />

ministro da Indústria. Completou nesse cargo as atitudes infalíveis para provocar a<br />

ruína econômica de um país. Suas ordens passaram a influenciar 150 mil funcionários de<br />

287 empresas estatizadas, incluindo toda a indústria açucareira e as companhias elétrica<br />

e telefônica. Assumiu o cargo dando ideias e anunciando projetos: determinou uma meta<br />

de crescimento de Cuba de 15% ao ano e previu a autossuficiência do país em alimentos<br />

e matérias-primas agrícolas, a produção de 9,4 milhões de toneladas de açúcar e o<br />

aumento do consumo de alimentos em 12% ao ano. Decidiu ainda importar uma fábrica<br />

obsoleta da Checoslováquia para produzir geladeiras e cafeteiras e ordenou a produção<br />

de ferramentas, sapatos e lápis.<br />

De novo, não deu certo. Com menos dólares provenientes da exportação de açúcar, o<br />

país ficou sem dinheiro para investir na industrialização. Como os grandes<br />

empreendedores já tinham ido embora, sido expulsos ou presos pelo regime, não havia<br />

pessoal qualificado para tocar as fábricas nem matéria-prima para a produção. Mesmo as<br />

fábricas que permaneceram abertas deixaram de produzir como antes por falta de<br />

matéria-prima ou de interesse dos administradores. Che deparou-se com esse problema<br />

ao perceber que a fábrica estatizada de refrigerantes não fazia produtos tão bons quanto a<br />

Coca-Cola (veja quadro na página 65). Itens industrializados básicos, como sabão em<br />

pedra, detergente, sapatos e pasta de dente viraram raridade.<br />

Já naquela época os líderes cubanos criaram a ladainha de responsabilizar o embargo<br />

imposto pelos Estados Unidos pelo lamaçal da economia cubana. Em julho de 1960,<br />

depois de ter notícia dos fuzilamentos em La Cabaña e de assistir a refinarias de<br />

petróleo, lojas e terras de americanos serem confiscadas sem o pagamento de<br />

indenizações, o governo dos Estados Unidos rompeu relações com Cuba e deixou de<br />

fazer as habituais compras de açúcar. Nos meses seguintes, interromperia todos os<br />

acordos econômicos com a ilha. A decisão americana fragilizou ainda mais a já destruída<br />

economia cubana, mas não se pode dizer que Che e Fidel Castro não imaginassem que<br />

isso aconteceria – e que não tenham agido deliberadamente para cortar relações com os<br />

americanos. “Che provocou o embargo”, afirma o escritor cubano-americano Humberto<br />

Fontova, autor da biografia O Verdadeiro Che Guevara. 61 Em diversas passagens de<br />

seus textos, o guerrilheiro deixou evidente que não esperava manter relações com o<br />

vizinho:<br />

Os países socialistas têm o dever moral de pôr fim à sua cumplicidade tácita com os países exploradores do Ocidente. 62<br />

Ao focar a destruição do imperialismo, há que identificar sua cabeça, que outra coisa não é senão os Estados Unidos da<br />

América do Norte. 63<br />

Toda a nossa ação é um grito de guerra contra o imperialismo e um clamor pela unidade dos povos contra o grande<br />

inimigo da espécie humana: os Estados Unidos da América do Norte. 64<br />

Com o passar dos anos, a virulência e o otimismo dos discursos do ministro das


Indústrias deram lugar a explicações e pedidos de paciência ao povo cubano. Ficou claro<br />

para todos, como o próprio Che disse num discurso na TV cubana, que ele havia traçado<br />

“um plano absurdo, desligado da realidade, com metas inatingíveis e prevendo recursos<br />

que não passavam de um sonho”. 65 A partir de 1963, as divagações sobre a catástrofe da<br />

economia se tornaram frequentes. “Para um país com a economia baseada na<br />

monocultura, querer 15% de crescimento era simplesmente ridículo”, disse. “Cometemos<br />

o erro fundamental de desprezar a cana-de-açúcar.” Os problemas vinham de longe: já<br />

em 1961 ele se mostra perdido na crença de que uma pessoa poderia controlar a<br />

produção de tudo:<br />

Agora há pouco, vocês me receberam com um aplauso forte e caloroso. Não sei se foi como consumidores ou<br />

simplesmente como cúmplices. Acho que foi mais como cúmplices. Cometeram-se erros nas indústrias que resultaram<br />

em falhas consideráveis no abastecimento da população. [...] Atualmente há escassez de pasta de dentes. É preciso<br />

saber por quê. Há quatro meses, houve paralisação da produção. Mas ainda havia algum estoque. Não foram adotadas<br />

as medidas urgentes que eram necessárias justamente porque o estoque era grande. Mas logo o estoque começou a<br />

baixar, e as matérias-primas não chegaram. Até que chegou a matéria-prima, um sulfato de cálcio fora das<br />

especificações. 66<br />

Quem sustentou a ineficiente economia da ilha e ajudou a prolongar o sistema por<br />

décadas foi a União Soviética. O bloco socialista passou a comprar a produção de<br />

açúcar, criando um mercado garantido no longo prazo, e deu um crédito quase infinito<br />

para Cuba reorganizar suas contas externas – e comprar pasta de dente. Com a mesada<br />

vinda do leste, os planos de industrialização ficaram para trás. Che, que reclamava da<br />

dependência econômica dos Estados Unidos, teve de aturar a dependência econômica da<br />

URSS. Tratava os oficiais soviéticos com pavio curto – chegou a estender uma pistola a<br />

um intérprete soviético e sugerir que ele se suicidasse 67 – e insistia em acreditar que<br />

resolveria os problemas econômicos discursando aos trabalhadores nas fábricas. Isolado<br />

do governo, passou a viajar cada vez mais e, em 1965, foi para a África tentar implantar<br />

outra revolução comunista.<br />

Se a economia cubana ficou às moscas naquela época, piorou muito nos anos 90, com<br />

o fim do comunismo no Leste Europeu. A produção de açúcar, antes da revolução uma<br />

das mais dinâmicas do mundo, não conseguia mais competir com a agricultura<br />

modernizada dos vizinhos. Um detalhado estudo de 1998 mostrou que Cuba foi um dos<br />

raros países da América Latina onde o consumo de alimentos diminuiu em quatro<br />

décadas. Em 1950, de acordo com dados da Organização das Nações Unidas, Cuba<br />

estava em terceiro no ranking da América Latina de consumo per capita de calorias. A<br />

partir de então, enquanto o consumo entre os colombianos passou de 2 mil para 2.800<br />

calorias diárias, os cubanos passaram de 2.700 para 2.300 calorias. Também caiu o<br />

consumo de cereais e verduras por habitante, e o de carnes teve uma queda assustadora<br />

de 33 para 23 quilos por ano. Foi assim em toda a economia. Enquanto novos membros<br />

da classe média do resto da América Latina financiavam o primeiro carro zero, Cuba foi<br />

o único país em que o número de carros por habitantes caiu. 68<br />

Ainda hoje o problema persiste. As calorias de produtos animais caíram quase pela<br />

metade dos níveis de 1980. 69 Se na época de Che Guevara reclamava-se que Cuba tinha<br />

de importar produtos industrializados, hoje a ilha precisa comprar de fora até mesmo<br />

alimentos. Cerca de 80% do que os cubanos comem vem de fora. O grande vilão


imperialista, os Estados Unidos, fornece 30% dos alimentos que chegam à mesa dos<br />

cubanos. A despeito do embargo econômico, só em 2009 foram 490 milhões de dólares<br />

em produtos agrícolas exportados por americanos para Cuba.<br />

Para quem se preocupa com a prosperidade dos cidadãos, fazendo a opção<br />

politicamente correta de ficar do lado dos pobres, e se importa com o acesso das pessoas<br />

a comida e itens básicos de bem-estar, esses números e essas histórias mostram que é<br />

preciso se opor radicalmente a Che Guevara, suas ideias e suas ações. Países vizinhos do<br />

Caribe obtiveram avanços nas áreas da saúde e da educação e tiraram milhões de<br />

pessoas da pobreza sem que o governo precisasse manter por tantas décadas um sistema<br />

que barra a diversidade de opiniões, impede os cidadãos de sair do país e divide<br />

famílias.<br />

É claro que não se pode culpar só as trapalhadas do ministro Che Guevara pela<br />

tragédia da economia cubana. Em nenhum lugar do mundo, socialismo ou comunismo<br />

(segundo Fidel Castro, é tudo a mesma coisa) levaram a um modelo econômico eficiente,<br />

melhoraram as condições de vida da população ou levaram a um sistema político<br />

democrático. Sempre falham em seus objetivos porque têm, como princípio, acabar com<br />

os motores mais básicos da economia, como a possibilidade de ter um ganho individual e<br />

o direito de propriedade. A prosperidade de um país depende, entre outros fatores, da<br />

segurança de proprietários, geradores de riqueza e investidores de que não verão o fruto<br />

de seus esforços ameaçados ou confiscados pelo governo. Do contrário, se sentem sua<br />

riqueza em perigo, deixam de investir e poupar dentro do país. Foi o que aconteceu em<br />

todo o continente nos últimos séculos. “A persistência em violar os direitos de<br />

propriedade na América Latina, que em alguns casos dura até hoje, cria condições de<br />

insegurança permanente para a poupança e investimentos e estimula a fuga de capitais em<br />

busca do domínio da lei”, afirma o economista Jorge Domínguez no livro Ficando para<br />

Trás, uma reunião de artigos que tenta explicar as origens do atraso latino-americano em<br />

relação aos Estados Unidos. Sem segurança de direito de propriedade, rompe-se todo o<br />

caminho que leva países à riqueza: investimentos de longo prazo, lucro e aumento dos<br />

níveis de poupança, mais acesso das pessoas ao crédito barato, mais investimentos,<br />

aumento da oferta de emprego e do salário, concorrência entre as empresas que leva a<br />

reduções de preços e melhora de serviços, aumento do poder de compra dos<br />

trabalhadores, fim da pobreza.<br />

O processo é lento, mas traz ganhos duradouros e não tira a liberdade dos cidadãos.<br />

Che Guevara, no entanto, dificilmente adotaria essa regra básica de prosperidade. Ela<br />

implica reconhecer que pequenos, médios e grandes empresários e geradores de riqueza<br />

não são todos vilões – pelo contrário, eles são, em geral, peça importante para tirar os<br />

pobres da miséria. Che era orgulhoso demais para reconhecer coisas assim – e movido<br />

não tanto pelo desejo de aliviar as dores dos latino-americanos, mas pelo ódio a<br />

indivíduos e países enriquecidos. De fato, cumpriu seu objetivo: fez um estrago danado<br />

entre as famílias prósperas de Havana. Mas deu o mesmo rumo para o resto dos cubanos.<br />

É uma pena Che ter deixado Buenos Aires em 1953 para iniciar sua segunda viagem<br />

pela América (viagem que o levaria a Cuba). Se ficasse mais alguns anos na Argentina, o<br />

guerrilheiro teria a chance de ouvir uma célebre série de palestras sobre princípios<br />

básicos de economia e liberdade. No fim de 1958, o economista austríaco Ludwig von


Mises passou por Buenos Aires e fez seis conferências a centenas de jovens argentinos –<br />

conferências que se tornariam um de seus melhores livros. Se desse a sorte de estar por<br />

ali, Che descobriria, no segundo dia de palestras de Mises, como tentar melhorar o<br />

mundo sem impor um ideal de felicidade:<br />

Liberdade significa realmente liberdade para errar. Podemos ser extremamente críticos com relação ao modo como<br />

nossos concidadãos gastam seu dinheiro e vivem sua vida. Podemos considerar o que fazem absolutamente insensato e<br />

mau. Numa sociedade livre, todos têm, no entanto, as mais diversas maneiras de manifestar suas opiniões sobre como<br />

seus concidadãos deveriam mudar seu modo de vida: eles podem escrever livros; escrever artigos; fazer conferências.<br />

Podem até fazer pregações nas esquinas, se quiserem – e faz-se isso, em muitos países. Mas ninguém deve tentar<br />

policiar os outros no intuito de impedi-los de fazer determinadas coisas simplesmente porque não se quer que as pessoas<br />

tenham a liberdade de fazê-las. 70<br />

Pensando bem, na próxima vez que você se deparar com Che Guevara numa camiseta,<br />

na capa de um álbum de rock ou no biquíni de uma modelo, veja ali uma boa notícia. A<br />

imagem é uma prova de que você vive em um sistema mais livre que o defendido por<br />

Che. No bom, velho e tão criticado capitalismo democrático, as pessoas estão livres para<br />

fazer da vida o que acharem melhor, inclusive errar. Podem ver filmes ruins (não só<br />

aqueles aprovados pelo governo), deixar de pentear o cabelo ou trabalhar 16 horas por<br />

dia para comprar um carro novo. Podem até mesmo sair por aí vestindo a camiseta com a<br />

imagem de um dos assassinos mais patéticos do século 20.<br />

61 Humberto Fontova, O Verdadeiro Che Guevara, Editora É, página 227.<br />

62 Che Guevara, Textos Políticos, página 51.<br />

63 Che Guevara, Textos Políticos, página 81.<br />

64 Che Guevara, Textos Políticos, página 84.<br />

65 Jorge Castañeda, página 284.<br />

66 Jorge Castañeda, página 289.<br />

67 Jorge Castañeda, página 306.<br />

68 Kirby Smith e Hugo Lloren, “Renaissance and decay: a comparison of socioeconomic indicators in pre-Castro and currentday<br />

Cuba”, em Cuba in Transition, volume 8, ASCE, 1998.<br />

69 Foreign Agricultural Service (FAS), Cuba’s Food & Agriculture Situation Report, março de 2008, disponível em<br />

www.fas.usda.gov/itp/cuba CubaSituation0308.pdf.<br />

70 Ludwig von Mises, As Seis Lições, Instituto Ludwig von Mises Brasil, 1979, página 31.


ASTECAS, INCAS, MAIAS


OS ÍNDIOS CONQUISTADORES<br />

Repare nas seguintes afirmações:<br />

Quero dizer a vocês, sobretudo aos irmãos indígenas da América concentrados aqui na Bolívia: a campanha de 500 anos<br />

de resistência indígena, negra e popular não foi em vão. [...] Não vamos permitir mais humilhações e dores para o nosso<br />

povo. Faz mais de 500 anos que esperamos a verdadeira liberdade. 71<br />

Evo Morales, presidente da Bolívia<br />

O corpo nu dos índios não ofereceu resistência ao aço afiado dos europeus; com suas espadas a infantaria espanhola<br />

enfim conseguiu deter aquela torrente humana. 72<br />

William H. Prescott, historiador americano do século 19<br />

Depois da queda e do extermínio das sociedades nativas, veio a hora dos colonos europeus e a da apropriação das terras<br />

dos nativos e dos recursos naturais. 73<br />

BBC, rede de comunicação inglesa<br />

As frases da página anterior refletem a ideia da conquista espanhola que boa parte das<br />

pessoas tem em mente. Segundo esse modo de contar a história, os europeus agiram na<br />

América como homens a um degrau da onipotência. Seus cavalos, suas “armas, germes e<br />

aço”, como no título de um famoso livro que, entre diversos temas, fala sobre a<br />

conquista, deram a eles a capacidade de dominar hordas de nativos indefesos. Tirando<br />

proveito dos conflitos locais, os espanhóis conseguiram ajudantes e guerreiros para<br />

destruir, sem piedade, as grandes cidades indígenas e capturar seus soberanos. A partir<br />

de então, a conquista estava estabelecida; os recém-chegados trataram de escravizar,<br />

retirar o ouro e a prata, sugar os recursos naturais americanos. Aos índios, vulneráveis<br />

por terem contraído doenças trazidas pelos europeus e com armas inferiores, não houve<br />

alternativa senão obedecer aos espanhóis ou resistir em vão ao seu domínio.<br />

Com uma ou outra variação, é assim que se conta a vitória de Hernán Cortés contra o<br />

líder dos astecas, Montezuma, e a de Francisco Pizarro contra o inca Atahualpa, no Peru.<br />

A conquista aparece como uma sequência de batalhas travadas entre dois grupos bem<br />

definidos. De um lado, há os espanhóis; de outro, os índios, sempre derrotados ou<br />

subservientes.<br />

Pois experimente ver a conquista espanhola de um jeito diferente. Mais ou menos<br />

assim:<br />

Há séculos, índios do mesmo grupo étnico e linguístico lutam entre si. Uma cidade-<br />

Estado ora batalha sozinha, ora se alia a outra para derrotar inimigos que também<br />

formaram uma aliança. Todos sabem o destino dos perdedores: pagar pesados tributos<br />

em forma de mercadorias, ser obrigado a migrar para regiões inóspitas e ver familiares<br />

serem enviados para sangrentos rituais de sacrifício. Os vencedores ainda reúnem<br />

guerreiros entre os derrotados para prosseguir a conquista e construir um império. De<br />

repente, há uma novidade. Surgem indivíduos com barba, roupas estranhas, animais nunca<br />

antes vistos e armas mais ágeis – os espanhóis. As cidades que tentam escapar do


império vizinho veem nesses homens estranhos aliados potenciais. Oficializam uma união<br />

com os recém-chegados e voltam à guerra. Acontece assim uma reviravolta. Depois de<br />

combinarem juntos as rotas e as estratégias, os novos aliados dominam o poderoso<br />

império opressor e, como mandava o costume nativo, reúnem guerreiros entre os<br />

derrotados para dominar outros povos. Os índios, antes ameaçados, agora têm orgulho de<br />

serem amigos dos espanhóis e se intitularem “índios conquistadores”.<br />

Alguém poderá dizer que essa segunda versão é puro revisionismo dos dias atuais,<br />

uma tentativa politicamente incorreta de varrer fatos há tanto tempo conhecidos e atenuar<br />

as atrocidades sobre os povos nativos da América. A versão, porém, não é nova. Foi<br />

registrada há mais de 500 anos pelos próprios índios do México. Como se verá adiante,<br />

relatos como esse estão disponíveis em cânticos, altares, pedras, cartas e pinturas de<br />

tradição milenar – as mesmas obras que descrevem epopeias anteriores à chegada dos<br />

europeus.<br />

Traduzidas para cinco idiomas, as cartas de Cortés fizeram tanto sucesso que chegaram a ser proibidas pela corte<br />

espanhola, preocupada com o culto excessivo do povo ao conquistador.<br />

A ideia dos espanhóis como guerreiros épicos e dos índios como ajudantes em<br />

segundo plano nasceu com os próprios exploradores europeus, no século 16. Para prestar<br />

contas de seus serviços de colonização, os conquistadores escreviam longas cartas para<br />

o rei espanhol. As Relaciones ou Probanzas de Mérito detalhavam as batalhas e as<br />

descobertas com o objetivo disfarçado de fazer o rei conceder títulos de posse das terras<br />

conquistadas, cargos ou pensões reais. Havia ainda a expectativa de ver as cartas<br />

publicadas por alguma gráfica europeia, o que tiraria o autor do anonimato. Era preciso,<br />

portanto, ser fiel ao estilo de epopeia, atribuir a conquista à genialidade dos próprios<br />

atos e à ajuda divina; enfim, era preciso tornar o cotidiano mais heroico (tarefa nada<br />

difícil em se tratando da descoberta de um continente e de um novo tipo de ser humano).<br />

Os relatos de Hernán Cortés dirigidos ao rei Carlos V se tornaram sucessos editoriais.<br />

Esses textos, ao lado das cartas de Bernal Díaz del Castillo e Francisco López de<br />

Gómara, no caso do México, e de Francisco de Xerez, secretário pessoal de Pizarro, e<br />

Pedro Cieza de León, no Peru, criaram a ideia da conquista como uma sequência de<br />

grandiosas vitórias militares vencidas por um punhado de espanhóis cheios de bravura e<br />

fé. “Quantos dos homens do universo demonstraram tanta audácia?”, escreveu sobre si<br />

mesmo o conquistador Bernal Díaz del Castillo. 74<br />

Enquanto os relatos dos conquistadores destacavam seus atos de coragem, os frades<br />

dominicanos que vieram à América mostraram outro lado da história: o da morte dos<br />

índios. A conquista ganhou, nos relatos dos religiosos, a forma de uma sucessão de<br />

episódios de massacre e escravização dos nativos. Em tratados como a Brevísima<br />

Relación de la Destrucción de las Indias, o frade Bartolomé de las Casas conseguiu<br />

convencer o imperador espanhol Carlos V de que era urgente garantir direitos aos índios.<br />

Não sem sua dose de exagero, o frade descreveu os habitantes locais como partes de um<br />

rebanho pacífico e ingênuo. “Entre essas ovelhas mansas, dotadas de qualidades divinas,<br />

entraram os espanhóis, cruéis como lobos, tigres e leões há muitos dias famintos”,<br />

escreveu Las Casas. “E outra coisa não fizeram os espanhóis senão despedaçá-las, matálas,<br />

angustiá-las, afligi-las, atormentá-las e destruí-las.”<br />

Unido a Portugal, o reino espanhol tinha poderes sobre terras do Chile à Califórnia, do Brasil, das ilhas do Caribe, além<br />

de representações na África, na Índia, no Oriente Médio e nas ilhas que hoje formam as Filipinas e a Indonésia. Seu


domínio ainda abrangia terras na Holanda, na Bélgica e no sul da Itália.<br />

As denúncias do frade dominicano foram reproduzidas com gosto pelos maiores<br />

adversários do reino espanhol – os protestantes. Com a conquista da América e a<br />

unificação a Portugal, em 1580, a Espanha teve em mãos um dos maiores impérios da<br />

história – um império católico. Entre os intelectuais europeus, se tornou estimulante falar<br />

mal de um império tão poderoso e dar uma exageradinha na crueldade dos<br />

conquistadores católicos. Protestantes holandeses, ingleses, franceses e germânicos<br />

trataram de destacar as mortes durante a conquista com o objetivo de invalidar o direito<br />

dos espanhóis sobre os territórios americanos. Como escreveu o historiador francês<br />

Pierre Chaunu, as denúncias dos padres se tornaram “armas de uma guerra psicológica<br />

das nações hostis”. 75<br />

Surgiu, assim, o que o escritor espanhol Julián Juderías chamou, em 1914, de “lenda<br />

negra”. Trata-se do costume de demonizar os conquistadores e exagerar a crueldade de<br />

suas ações, como se a conquista espanhola fosse um episódio dos mais lamentáveis da<br />

história. Desde que os pesquisadores se deram conta dessa lenda, o debate tem evoluído<br />

para uma visão mais equilibrada, segundo a qual nem os europeus eram lobos tão<br />

famintos, nem os índios ovelhas tão mansas. “É claro que a descoberta da América e a<br />

sua conquista estiveram repletas de horrores, mas também de gestas gloriosas que não<br />

podemos deixar de lado”, afirmou o escritor mexicano Octavio Paz, Prêmio Nobel de<br />

Literatura de 1990. “Aqueles que definem a conquista como um genocídio dos povos<br />

americanos cometem um erro grave.”<br />

Túpac Katari foi um líder aimará que montou um cerco a La Paz em 1781. Seu grupo costumava incluir espanhóis,<br />

índios e mestiços que vestiam roupas à moda europeia. Nos dias de hoje, o líder indígena inspira o Exército Guerrilheiro<br />

Túpac Katari.<br />

Apesar dessa moderação intelectual, durante o século 20 o relato-denúncia da<br />

conquista seguiu fazendo sucesso na América Latina. Autores locais, aplicando a luta de<br />

classes à história, trataram de ressaltar o martírio e a resistência dos heroicos índios e<br />

camponeses perante a elite colonial ou republicana. Com essa inspiração, surgiu o<br />

katarismo, movimento dos índios bolivianos inspirado no revolucionário Túpac Katari.<br />

“Durante os tempos coloniais, nossa cultura não foi nem respeitada, nem reconhecida –<br />

foi esmagada e subordinada”, diz o Manifesto de Tiwanaku, um dos primeiros<br />

documentos kataristas, de 1973. 76 Ainda hoje, a narrativa dos cruéis conquistadores<br />

alimenta discursos indignados, emociona e revolta o público no cinema. E elege<br />

presidentes.<br />

Entre tantos relatos de tantas épocas, algumas semelhanças se mantiveram através dos<br />

séculos. Nas histórias dos conquistadores, dos jesuítas e dos marxistas do século 20, os<br />

personagens e a estrutura da história pouco mudaram: os espanhóis eram fortes; os índios<br />

raramente eram protagonistas de uma ação e quase sempre apareciam acompanhados de<br />

um verbo na voz passiva. O melhor exemplo disso são as declarações do presidente da<br />

Bolívia, Evo Morales. Só em seu discurso de posse, em 2006, ele se referiu aos índios<br />

usando os seguintes termos: “marginalizados”, “humilhados”, “odiados”, “depreciados”,<br />

“condenados à extinção”, “submetidos à opressão”, “jamais reconhecidos”.<br />

É isso o que agora está mudando. Nos últimos anos, com a análise mais atenta dos<br />

relatos espanhóis e a consulta a obras e documentos indígenas, os historiadores passaram<br />

a dar papéis muito mais relevantes aos índios. Sob essa nova ótica, diversos episódios


do México, da Guatemala ou do Peru parecem agora resultado tanto da vontade e da<br />

influência dos índios quanto dos europeus. Entram nesse conjunto até mesmo grandes<br />

atrocidades que ocorreram durante a conquista. Essas novas interpretações corroem<br />

ideias que estruturam a historiografia tradicional. Como a noção da onipotência dos<br />

espanhóis; de sua aparência de deuses; dos índios como excluídos das decisões políticas;<br />

dos estrangeiros e dos nativos como grupos coesos e donos de objetivos contrários; e até<br />

mesmo a ideia da conquista espanhola como uma sequência de batalhas.“Não houve ‘nós’<br />

contra ‘eles’”, escreveu o pesquisador argentino Gonzalo Lamana, da Universidade de<br />

Pittsburgh, num livro cujo título diz tudo: Domination without Dominance (“Dominação<br />

sem Domínio”). “Quase não houve episódio em que as tensões internas dos espanhóis e<br />

dos povos nativos não se desenrolassem e se sobrepusessem, frequentemente em direções<br />

ambíguas.” 77 As descobertas mais desagradáveis dessa nova historiografia estão a seguir.<br />

Começando pelo básico: o ódio que os índios nutriam entre si antes de os conquistadores<br />

chegarem.<br />

Boa parte dos andinos comemorou a chegada dos espanhóis<br />

Conta-se que, pouco antes da batalha, alguns dos 168 espanhóis urinaram nas calças, tamanho o temor ao passar com<br />

seus cavalos pelas dezenas de milhares de guerreiros incas.<br />

Em 1545, com a descoberta da mina de Potosí, na Bolívia, a prata se tornaria a maior fonte de riquezas da América.<br />

Em menos de 30 anos, Potosí chegou a 120 mil habitantes, população maior que a de Lisboa, Roma ou Sevilha. O<br />

dinheiro que circulava pela cidade atraía de professoras de balé a vendedores indianos. 78<br />

Um dos episódios mais tristes da conquista espanhola é a execução de Atahualpa, o<br />

líder dos incas, senhor de milhões de índios, soberano de um território com 4 mil<br />

quilômetros de fronteiras entre a Argentina e a Colômbia. Não há, em toda a história<br />

tradicional da conquista, um caso em que se atribui tanta baixeza aos europeus. Em 1532,<br />

depois de meses de espera para conhecer o imperador inca, a tropa do espanhol<br />

Francisco Pizarro chegou a Cajamarca, nos Andes peruanos. O encontro amigável logo se<br />

transformou em batalha: em poucas horas, os 168 espanhóis afugentaram dezenas de<br />

milhares de guerreiros, tomaram a cidade e prenderam o líder Atahualpa. Para escapar<br />

da morte, o soberano inca prometeu entregar aos conquistadores um aposento de seu<br />

palácio repleto de metais preciosos. Cumpriu a promessa, entregando 6.035 quilos de<br />

ouro e 11.740 quilos de prata. 79 Mesmo assim foi barbaramente estrangulado, em julho de<br />

1533, na praça principal de Cajamarca.<br />

As doenças europeias chegaram ao Peru antes dos europeus. O imperador inca Huayna Cápac morreu<br />

provavelmente de varíola pouco antes de Pizarro aparecer por ali. A morte provocou a disputa de poder entre dois de<br />

seus filhos: Atahualpa e Huáscar. O primeiro conseguiu tomar o poder de Cuzco, a capital do império, meses antes de os<br />

espanhóis chegarem.<br />

Os soldados do imperador Atahualpa tentaram queimar a cidade invadida e<br />

organizaram uma resistência desesperada nas proximidades; há relatos de que mulheres e<br />

irmãs do líder se mataram. Para um leitor moderno, o relato é de arrepiar. Mas os índios<br />

já estavam acostumados com batalhas e quedas de líderes como aquela. Na verdade, a<br />

prisão e a execução de líderes era um fato corriqueiro na história andina. Se os espanhóis<br />

praticaram crueldades contra o povo e a cultura inca, o mesmo se pode dizer dos incas<br />

em relação a tradicionais povos andinos sob seu domínio. O próprio Atahualpa, meses


antes de morrer, ordenou, da prisão em que os espanhóis o mantinham, o assassinato de<br />

seu irmão, Huáscar, na cidade de Cuzco. O imperador temia que o irmão se aliasse aos<br />

espanhóis e lhes oferecesse mais ouro e prata para matá-lo. A fúria do imperador inca<br />

não poupou as mulheres, alguns parentes e assessores de Huáscar, que também foram<br />

executados.<br />

Quando os europeus chegaram ao Peru, o Império Inca estava em pé havia pouco mais<br />

de cem anos. Até o século 14, os incas eram apenas uma entre diversas etnias a brigar<br />

por espaço nos Andes. Aos poucos sua força se estabeleceu nos povoados ao redor da<br />

cidade de Cuzco. No século 15, durante os reinos de Pachacútec e Túpac Yupanqui,<br />

houve uma expansão tão avassaladora quanto a de Alexandre, o Grande, pelo Oriente<br />

Médio. O exército inca chegou ao lago Titicaca e firmou alianças políticas com povos<br />

aimarás, como os lupacas, e partiu para a guerra contra aqueles aimarás que não<br />

aceitaram uma dominação consensual. No norte do Peru, os incas derrotaram a<br />

civilização chimu – cujo líder, Minchançaman, também foi levado como refém a Cuzco.<br />

Em terras onde hoje estão a Argentina e o Chile, travaram batalhas com os povos<br />

omaguacas, atacamas e diaguitas. Os derrotados foram expulsos de suas casas e enviados<br />

ao norte do império.<br />

Outra execução bem parecida com a de Atahualpa foi a de Chunqui Cápac, líder do<br />

reino qolla. Em 1438, a tropa do inca Pachacútec chegou a Hatunqolla, nas margens do<br />

lago Titicaca. Os conquistadores incas esperavam havia meses para dominar aquele<br />

reino, um dos mais avançados dos povos aimarás, donos de grandes cidades e<br />

fortificações ao redor do lago. Depois de ocupar um forte e erguer no lugar dele uma<br />

guarnição militar, os invasores conseguiram atingir a capital do reino e capturar seu<br />

líder, que foi levado a Cuzco. Nos meses seguintes, o soberano qolla, exatamente como<br />

aconteceria com Atahualpa, foi estrangulado na praça principal da cidade.<br />

Como as revoltas locais e o assassinato dos representantes incas eram frequentes nas<br />

terras conquistadas, a dominação inca nunca era completa. Até o começo do século 16,<br />

era preciso realizar novas expedições militares para assegurar a unidade do império e<br />

abafar revoltas locais. Foi por isso que, quando o imperador Atahualpa foi executado<br />

pelos espanhóis em 1533, nem todos os índios lamentaram sua morte. Boa parte dos<br />

povos andinos ficou aliviada com a execução e comemorou a queda dos incas.<br />

71 Discurso presidencial de Evo Morales e revista Zoom, 11 de dezembro de 2009, disponível em http://revistazoom.com.ar/articulo3498.html.<br />

72 William Prescott, The History of the Conquest of Mexico, Barnes & Noble, 2004, página 170.<br />

73 Michael Wood, “Story of the Conquistadors”, BBC History, disponível em<br />

www.bbc.co.uk/history/british/tudors/conquistadors_01.shtml#four.<br />

74 Bernal Díaz del Castillo, Historia Verdadera de la Conquista de la Nueva España, Biblioteca Virtual Universal, página<br />

52, disponível em www.biblioteca.org.ar/zip22.asp?texto=10011374.<br />

75 Benjamin Keen, “The black legend revisited”, em The Hispanic American Historical Review, novembro de 1969, página<br />

714.<br />

76 Manifesto de Tiwanaku, disponível em http://www.nativeweb.org/papers/statements/identity/tiwanaku.php.<br />

77 Gonzalo Lamana, Domination without Dominance, Duke University Press, 2008, página 19.


78 Jorge Caldeira, Mulheres no Caminho da Prata, volume 1 de O Banqueiro do Sertão, Mameluco, 2006, página 47.<br />

79 Gonzalo Lamana, página 94.


Os espanhóis são frequentemente acusados de atropelar a língua, os<br />

modos de vida e, sobretudo, a religião dos povos nativos dos Andes. Os padres<br />

que acompanharam os conquistadores trataram as crenças indígenas como<br />

pagãs e logo impuseram o catolicismo, destruindo templos e proibindo<br />

rituais nativos. Uma prova frequentente citada dessa imposição religiosa é a<br />

Igreja de São Domingo, em Cuzco. Na base do edifício, há paredes do<br />

Coricancha, o Templo do Sol, edifício que foi destruído pelos<br />

espanhóis para dar lugar à igreja.<br />

OS INCAS TAMBÉM IMPUSERAM SUA<br />

RELIGIÃO<br />

Pouco se fala, porém, que os incas praticavam a mesma imposição cultural<br />

com os povoados sob seu domínio. Quando derrotavam um povo, obrigavam-no a<br />

aceitar sua língua, o quéchua, suas leis e sua religião. 80 No lugar de templos e<br />

símbolos de deuses locais, as autoridades incas erguiam santuários a seus<br />

próprios deuses, o Sol e a Lua. Símbolos de divindades locais davam lugar às<br />

múmias reais, à ideologia do Estado e à adoração do soberano inca,<br />

considerado<br />

um semideus. Quando os espanhóis chegaram, esses povos não<br />

precisaram mais adorar os deuses incas. “Em muitas regiões, a religião inca era um<br />

estrangeiro malvisto pelos moradores”, conta o arqueólogo americano Terence D’Altroy.<br />

“Assim que o Império Inca se desintegrou, o louvor ao Sol e o uso do calendário<br />

solar só permaneceram em Cuzco. Os templos do Sol e as terras que serviam<br />

aos deuses foram logo abandonados.”<br />

80 Padre Bernabe Cobo, History of Inca Empire, University of Texas Press, 1979, página 190.


As punições incas incluíam torturas, apedrejamentos e castigos físicos dos mais inventivos. Aqueles azarados que<br />

fossem acusados de traição ao soberano do império eram jogados em calabouços cheios de cobras e onças. Esses<br />

animais eram encomendados por Cuzco das províncias a leste dos Andes, onde havia florestas e fauna amazônicas.<br />

Quem conseguisse sobreviver por três dias nos calabouços ganhava a liberdade. 81<br />

Entre aqueles que haviam sido dominados por Atahualpa ou que tinham se aliado ao<br />

irmão dele, Huáscar, na disputa pela soberania do império, a morte de Atahualpa os<br />

salvou de anos de trabalhos forçados, de punições e até mesmo da morte. “Os aliados de<br />

Huáscar e inúmeros grupos étnicos ficaram radiantes com a notícia, enquanto os<br />

partidários de Atahualpa ficaram irritados e inconsolados. Os nativos Xauxa e Wanka,<br />

que estavam do lado de Huáscar, comemoraram a morte nas ruas. A população local<br />

imediatamente se aliou aos espanhóis e começou a abastecê-los com os estoques reais de<br />

comida”, conta o arqueólogo Terence D’Altroy, um dos maiores especialistas em<br />

Império Inca dos dias de hoje. “Talvez metade das pessoas dos Andes estivesse disposta<br />

a se aliar aos espanhóis para se salvar da sangrenta vingança que as forças de Atahualpa<br />

já vinham promovendo com muitos partidários de Huáscar.” 82 A historiadora peruana<br />

María Rostworowski, também uma grande referência no assunto, tem a mesma opinião:<br />

Os senhores locais se aliaram aos espanhóis e os ajudaram a realizar a conquista. Desse ponto de vista, não foi um<br />

punhado de aventureiros que derrubou o Império Inca, mas os próprios nativos andinos, infelizes com a situação e<br />

acreditando estar em circunstâncias favoráveis para voltar a viver em liberdade. 83<br />

Viviam os incas em 1984?<br />

No começo do século 20, os incas caíram no gosto dos historiadores marxistas por<br />

causa da forma coletiva com que organizavam a terra e pela simplicidade e disciplina<br />

com que se dedicavam ao trabalho. Essa semelhança inspirou alguns intelectuais que<br />

lutavam pela implantação do comunismo nos Andes. O jornalista José Carlos Mariátegui,<br />

um dos fundadores do Partido Comunista Peruano, considerava os incas “a mais<br />

avançada organização comunista primitiva que a história registra”. Conforme o que ele<br />

pregou no livro Sete Ensaios de Interpretação da Realidade Peruana, era preciso ir<br />

além do comunismo rural dos incas, pois “uma nova ordem não pode renunciar a nenhum<br />

dos progressos morais das sociedades modernas”.<br />

Os incas foram mais um povo a mumificar seus mortos ilustres. A diferença é que as múmias incas participavam da<br />

vida social do império. Carregadas em liteiras e vestidas em roupas finas, integravam de reuniões políticas a conselhos de<br />

guerra. Seus parentes ainda as levavam para visitar umas às outras e davam-lhes comida e chicha (a tradicional bebida<br />

andina à base de mandioca ou milho). 84<br />

O que os incas tinham de mais próximo da escrita eram os quipos, um misterioso sistema de guardar informações por<br />

meio de nós em emaranhados de fios de lã. A posição e o número de nós indicavam quantidades. E a cor dos fios<br />

representava o tema do registro: população, quantidade de grãos estocados, impostos recolhidos.<br />

Obviamente é impreciso chamar os incas de comunistas. A visão de mundo e as<br />

motivações dos índios andinos eram de outra galáxia – basta lembrar que as múmias dos<br />

líderes pregressos participavam das reuniões de Estado. No entanto, alguns traços da<br />

vida inca lembram, sim, o comunismo. O Estado inca controlava quase todos os meios de<br />

produção: as fazendas, os rebanhos de lhamas e vicunhas, os armazéns de comida.<br />

Regiões agrícolas eram abastecidas com ferramentas e roupas produzidas pelo Estado em


outras províncias e vice-versa. Oficiais do Estado supervisionavam a contribuição de<br />

cada província com base em censos e registros contábeis detalhados, organizavam<br />

grupos de trabalho e cuidavam da manutenção de estradas (que cortavam os Andes,<br />

apesar de os andinos não conhecerem a roda). Como a autoridade do Estado prevalecia<br />

diante de valores e vontades individuais, cidadãos comuns eram recrutados para<br />

trabalhar desde a infância, com a humildade e a disciplina de soldadinhos de chumbo, em<br />

campos, pastos, minas, oficinas de ferramentas e objetos de ouro e prata. A organização<br />

estatal até funcionava, mas ao custo de transformar os incas em formigas. Essa falta de<br />

individualidade ainda hoje decepciona alguns peruanos, como o escritor Mario Vargas<br />

Llosa:<br />

Os incas dominaram dezenas de povos, construíram estradas, canais de irrigação, fortalezas, cidadelas e estabeleceram<br />

um sistema administrativo que lhes permitiu produzir o suficiente para alimentar todos os peruanos, o que nenhum regime<br />

conseguiu, a partir de então. Apesar disso, nunca simpatizei com os incas. Embora os monumentos que eles deixaram me<br />

deixem extasiado, sempre achei que a tristeza peruana – característica marcante da nossa personalidade – é originária,<br />

talvez, dos incas: uma sociedade com uma disciplina militar e burocrática de homens-formiga, na qual um rolo<br />

compressor todo-poderoso anulava qualquer personalidade individual.<br />

O que os historiadores marxistas não contaram – ou não puderam prever – é que os<br />

incas se pareciam com os comunistas até mesmo na opressão promovida pelo governo e<br />

nas tragédias comuns a todos os governos socialistas. O melhor exemplo são as<br />

migrações forçadas. Na União Soviética, entre 1920 e 1950, a transferência de população<br />

atingiu pelo menos 6 milhões de pessoas, a maioria membros de etnias que incomodavam<br />

o regime (como os chechenos, os curdos, os cossacos e os ucranianos). Também eram<br />

removidos os kulaks, camponeses mais ricos, considerados inimigos do povo. Essas<br />

pessoas foram enviadas a zonas de fronteiras, campos agrícolas e regiões pouco<br />

povoadas, como a Sibéria. Pelo menos um quarto dos migrantes morreu de fome e frio em<br />

consequência da mudança. Os que sobreviviam passavam a morar em residências<br />

supervisionadas pela NKVD, a polícia soviética para assuntos internos.<br />

Os incas praticavam uma atrocidade semelhante com os povos que dominavam.<br />

Quando conquistavam uma nova região, os oficiais obrigavam boa parte dos moradores a<br />

migrar para outras partes do império. A ação era chamada de mitmaquna, palavra que<br />

em quéchua deriva de “espalhar”. Suas vítimas eram os denominados mitimaes. Os<br />

arqueólogos estimam que as migrações atingiram entre 20% e 30% da população – por<br />

conta dessa política, um quarto de todos povos andinos morava em terras estrangeiras. 85<br />

O padre jesuíta Barnabé Cobo, que escreveu sobre o modo de vida inca no comecinho do<br />

século 17, ouviu de seus entrevistados que até 7 mil famílias se mudavam de uma vez,<br />

travando caminhadas pelos Andes que ultrapassavam centenas de quilômetros. No<br />

começo do século 16, o rei Huayna Cápac, logo depois de conquistar povoados da região<br />

de Cochabamba, na Bolívia, ordenou que quase todos os moradores fossem removidos de<br />

lá. No lugar deles, 14 mil pessoas de povoados vizinhos habitaram a região e passaram a<br />

cultivar as fazendas estatais.<br />

As migrações aconteciam com mais frequência entre os povos que resistiram ao<br />

domínio inca, e não com os que fizeram acordos com Cuzco. Os lupacas, índios próximos<br />

ao lago Titicaca, se aliaram aos imperialistas e permaneceram em suas terras. Já os<br />

ayaviris resistiram: foram quase todos solicitados a se mudar. 86 “O imperador obrigava


[os mitimaes] a aprender a língua da nação para onde eles se mudavam, sem esquecer a<br />

língua geral, o quéchua, que todos das províncias conquistadas deveriam aprender e<br />

saber”, escreveu o navegador Pedro Sarmiento de Gamboa. 87 O objetivo da mudança era<br />

evitar resistências regionais, dispersar rebeldes e consolidar o controle de territórios tão<br />

distantes de Cuzco, a capital do império. Os migrantes deixavam de obedecer ao cacique<br />

habitual com os quais estavam familiarizados para seguir os chefes dos povoados que<br />

passavam a habitar, indicados pelo governo. “Com essa transferência de vassalos de um<br />

lugar para outro, os incas tentavam conseguir similaridade e uniformidade na religião e<br />

na política”, escreveu o padre Cobo. “Esperavam ainda que todas as nações dominadas<br />

falassem a língua de Cuzco, que se tornou assim a língua de todo o Peru.” 88<br />

As autoridades incas tinham certos cuidados na hora de remover a população.<br />

Provavelmente para evitar doenças e revoltas, quem vivia em ambientes frios do<br />

altiplano se mudava para um lugar de clima semelhante, onde poderia desenvolver<br />

atividades costumeiras. Mas é difícil pensar que a viagem não fosse um horror. Os<br />

mitimaes podiam percorrer mais de mil quilômetros até chegar à nova morada. No século<br />

14, quando forças incas invadiram o sul do Equador, povos locais foram trocados por<br />

povos da região do lago Titicaca, a cerca de 1.500 quilômetros de distância. 89<br />

Assim como nos povoados vigiados pela polícia soviética, as residências andinas<br />

podiam ser inspecionadas, a qualquer momento, pelos oficiais do Estado e pelos novos<br />

moradores. Esse costume impressionou o navegador Pedro Sarmiento de Gamboa.<br />

Segundo ele, o imperador inca dava aos colonos “autoridade e poder para entrar nas<br />

casas dos nativos a qualquer hora, noite e dia, para inspecionar o que eles falavam,<br />

faziam ou organizavam, com ordens para relatar ao governo mais próximo se alguma<br />

coisa era armada contra o inca”. 90 Quando os espanhóis chegaram e derrubaram o<br />

império, muitos migrantes forçados deram graças. “Alguns dos povos estabelecidos<br />

pelos incas voltaram para suas comunidades, deixando para trás uma vida de estrangeiros<br />

entre povos ressentidos”, diz o historiador Steve J. Stern. 91<br />

Outro traço do comunismo que passa perto dos incas é a prática de mudar a história.<br />

Em Cuba, na China do século 21, na União Soviética de Stálin ou em qualquer governo<br />

comunista do século 20, o passado foi uma mercadoria política a ser alterada sem<br />

hesitação. O exemplo mais acabado desse comportamento são as fotografias históricas<br />

alteradas pelos censores de Stálin. Entre muitas outras, a famosa foto de um discurso de<br />

Lênin em 1920 teve a imagem de León Trótski, inimigo de Stálin, retirada e trocada por<br />

um fundo negro. 92<br />

Por costumes como esse, o escritor Mario Vargas Llosa comparou os incas às piores ditaduras do século 20: “Cinco<br />

séculos antes da Grande Enciclopédia soviética e do romance 1984, de George Orwell, os incas praticaram a<br />

manipulação do passado em função das necessidades políticas do presente”.<br />

Os incas iam além. Pois, como afirmam os historiadores franceses Serge Gruzinski e<br />

Carmen Bernand, eles “não faziam distinção entre o mito e a narrativa histórica”. Um tipo<br />

especial de profissionais, os amautas, espécie de filósofos-oradores, se encarregava de<br />

manipular a história do soberano, criando para ele um passado cheio de proezas e<br />

conquistas, e de fazer circular histórias constrangedoras sobre seus adversários. As sagas<br />

criadas pelos amautas eram declamadas em público aos caciques, aos oficiais e aos<br />

cidadãos comuns. Esse estranho costume inca embaralhou os espanhóis interessados em


ecompor a história pré-hispânica dos Andes. Os descendentes de cada família indígena,<br />

quando entrevistados, reproduziam versões que favoreciam seu próprio ancestral. 93<br />

Os incas chamavam seu império de Tawantinsuyo, o “Reino dos Quatro Cantos”. O Collasuyo era a parte oeste desse<br />

território, mais ou menos onde fica a Bolívia.<br />

Apesar desse passado sombrio, um saudosismo de tempos pré-hispânicos impera nos<br />

Andes, principalmente na Bolívia. Nas praças de La Paz, nas ruas de Cochabamba,<br />

descendentes de índios chegam a pregar o retorno ao Collasuyo. O mesmo sentimento<br />

move documentários indigenistas, como o brasileiro Pachamama, lançado em 2010 com<br />

patrocínio da Petrobras. Conforme a sinopse, o filme trata dos “povos historicamente<br />

excluídos do processo político de seus países que, pela primeira vez na história, buscam<br />

uma participação efetiva no seu próprio destino”. Lá pela metade da obra, um dos<br />

entrevistados, um ativista aimará, diz o seguinte:<br />

Nós queremos resgatar nossa nação originária. O Estado originário. Somos uma nação aimará, espalhada hoje em dia<br />

nas repúblicas de Peru, Bolívia, Argentina e Chile. Há 514 anos estamos dominados e humilhados. Os espanhóis<br />

chegaram aqui e mataram nosso grande líder, chamado Atahualpa.<br />

Sem querer, o documentário Pachamama traz um grande ensinamento. Mostra que boa<br />

parte dos ativistas indígenas não sabe patavina sobre a própria história, aquela que<br />

querem resgatar. Ora, Atahualpa não foi líder dos aimarás, mas dos incas. Apesar das<br />

alianças de alguns povos aimarás com os incas, outros resistiram e foram subjugados em<br />

batalhas. É bem provável que povos aimarás tenham estado entre aqueles que não<br />

choraram – e até comemoraram – a morte de Atahualpa. Se os índios atuais pudessem<br />

voltar à sua nação originária, seriam obrigados a abandonar a própria casa, viajar a pé<br />

para terras desconhecidas e aceitar o trabalho que lhes fosse imposto. Uma situação<br />

ainda mais degradante do que viver hoje na Bolívia.<br />

Antes dos espanhóis, muito mais sangue era derramado na América<br />

Latina<br />

Se o bicho já pegava no Peru, as guerras entre nações indígenas eram muito mais<br />

sangrentas na Mesoamérica. Em 1519, quando a expedição de Hernán Cortés saiu de<br />

Cuba e chegou à costa mexicana, centenas de cidades independentes ocupavam o<br />

território onde hoje fica o México, a Guatemala e Belize. Nos vales do México central,<br />

viviam os nahuas – nome que engloba os povos que falavam náuatle, como os astecas<br />

(também chamados de mexicas), os tlaxcaltecas, os acolhuas, os tepanecas, entre muitos<br />

outros. Esses povos construíram diversas cidades no meio ou na margem dos grandes<br />

lagos da região. Tenochtitlán, a capital dos astecas e hoje capital do México, foi erguida<br />

numa ilha do lago de Texcoco. A cidade era cortada por imensos canais, aquedutos, vias<br />

elevadas e contava ainda com palácios e jardins.<br />

81 Paul Steele, Handbook of Inca Mythology, ABC-Clio, 2004, página 96.<br />

82 Terence D’Altroy, The Incas, Blackwell, 2002, páginas 316 e 319.<br />

83 María Rostworowski, History of the Inca Realm, Cambridge University Press, 1999, página 226.


84 Terence D’Altroy, páginas 115 e 317.<br />

85 Terence D’Altroy, página 248.<br />

86 Terence D’Altroy, página 256.<br />

87 Pedro Sarmiento de Gamboa, History of the Incas, Dover, 1999, página 121.<br />

88 Padre Bernabe Cobo, página 190.<br />

89 Dennis Edward Ogburn, The Inca Occupation and Forced Resettlement in Saraguro, dissertação apresentada na<br />

Universidade da Califórnia em Santa Barbara, 2001, página 382.<br />

90 Pedro Sarmiento de Gamboa, página 121.<br />

91 Steve J. Stern, Peru’s Indian Peoples and the Challenge of Spanish Conquest: Huamanga to 1640, The University of<br />

Wisconsin Press, 1993, página 30.<br />

92 Veja outras imagens alteradas pelos censores de Stálin no site:<br />

www.newseum.org/berlinwall/commissar_vanishes/vanishes.htm.<br />

93 Terence D’Altroy, página 5.


Em cidades como Cuzco ou La Paz, o chá de coca é um fantástico remédio<br />

contra os enjoos e dores de cabeça provocados pela elevada altitude. Mineiros também<br />

colocam folhas de coca dentro da bochecha para suportar melhor o esforço braçal e<br />

não sentir fome. Sacerdotes indígenas deixam cair folhas no chão para entender as<br />

mensagens dos deuses, assim como em um jogo de búzios.<br />

TÃO SAUDÁVEL QUANTO ORÉGANO<br />

Na Bolívia, a folha de coca tornou-se objeto de culto oficial. O artigo 384 da<br />

Constituição é apoteótico: “o Estado protege a coca originária e ancestral como<br />

patrimônio cultural, recurso natural renovável da biodiversidade da Bolívia, e<br />

como fator de coesão social”. O consumo da folha de coca é promovido por causa<br />

de seus pretensos valores nutricionais. 94 Em 2006, o ministro de Relações Exteriores,<br />

<strong>Da</strong>vid Choquehuanca, propôs substituir o leite por folhas de coca no café<br />

da manhã escolar. Segundo ele, a planta teria mais cálcio que o leite e mais fósforo<br />

que o peixe. 95<br />

O estudo mais abrangente sobre os poderes da coca, publicado em 2009, mostra<br />

que não é bem assim. Mascar folhas de coca dá no mesmo que mastigar folhas de<br />

salsa, orégano ou coentro, concluiu a pesquisa. 96 Se a coca for consumida em<br />

grandes quantidades, ao redor de 100 gramas diárias, o único efeito possível seria<br />

o provocado pelo alcaloide cocaína – aquele mesmo que ajuda os mineiros a disfarçar a<br />

fome e aguentar firme o trabalho forçado. Só um governante muito sem<br />

coração poderia querer algo assim para as pobres criancinhas bolivianas.


Fique tranquilo: essa sequência de nomes esquisitos já vai acabar.<br />

Em 1428, os astecas se uniram a duas cidades nahuas vizinhas, Texcoco, dos índios<br />

acolhuas, e Tlacopan, a maior cidade dos tepanecas. Formou-se assim uma tríplice<br />

aliança que em menos de cem anos incluiu em seu domínio 450 cidades, espalhadas entre<br />

a costa do Pacífico e o golfo do México. Os primeiros conquistados foram os nahuas que<br />

viviam perto de lagos menores, como as cidades de Chalco, Xochimilco e Huexotzinco.<br />

As campanhas militares continuaram para o sul, onde hoje fica a cidade de Oaxaca,<br />

atingindo índios de outros troncos linguísticos, como os mixtecas e os zapotecas, e<br />

chegaram até mesmo aos maias, na península de Yucatán. Entre todos esses povos, os<br />

poucos que resistiam ao domínio asteca estavam em Tlaxcala (no meio do caminho entre<br />

o golfo do México e Tenochtitlán), e em Michoacán, próxima à costa do Pacífico. Esses<br />

grupos estavam a ponto de serem dominados quando os espanhóis chegaram para salvar<br />

sua pele.<br />

Os códices astecas são documentos pictóricos que os índios criavam em peles de animais ou papéis feitos com cascas<br />

de árvores. Assim como os lienzos, retratava as dinastias e o dia a dia do império. Muitos códices foram reproduzidos<br />

pelos índios a pedido dos missionários europeus. O Códice Mendoza, por exemplo, foi terminado às pressas para ser<br />

enviado ao rei espanhol. Ao cruzar o Atlântico, porém, o navio que o transportava foi atacado por piratas franceses.<br />

Como o papagaio para o Brasil, o quetzal era o pássaro que identificava os astecas. Suas penas eram essenciais na<br />

arte e nos rituais indígenas.<br />

O principal objetivo das conquistas militares astecas era fazer as cidades derrotadas<br />

pagarem impostos e, assim, assegurar a boa vida dos nobres na capital. Ao contrário dos<br />

incas, os astecas não estabeleciam um império direto – costumavam manter os líderes<br />

derrotados no poder desde que cumprissem com os tributos. Graças aos códices<br />

indígenas, sabemos quanto cada cidade conquistada pagava de imposto a Tenochtitlán.<br />

Um exemplo: o pequeno vilarejo de Coaixtlahuacán (melhor nem tentar pronunciar)<br />

fornecia por ano 4 mil peças de roupa, 800 asas de quetzal, 40 sacolas de corante de<br />

cochonilhas, 20 quantidades de ouro, entre outros produtos. 97 Segundo o Códice<br />

Mendoza, Tenochtitlán arrecadava anualmente, de todas as suas províncias, mais de 150<br />

mil peças de roupa, 32 mil instrumentos de guerra (como escudos e flechas), mais de 30<br />

mil penas coloridas, além de centenas de ornamentos para guerreiros, peles de jaguar e<br />

veados, jarras e potes, carregamentos de sal, cacau, mel, pimenta, objetos de ouro e<br />

bronze.<br />

A arma mais usada pelos astecas era o macauitl, um tacape com cacos de vidro<br />

vulcânico encrustrados. Era usado não tanto para matar os inimigos, mas para feri-los e<br />

capturá-los vivos. Isso porque o segundo objetivo das guerras nahuas era arrecadar<br />

vítimas para a maior obsessão dos povos da Mesoamérica: os rituais de sacrifício<br />

humano.<br />

É difícil encontrar, entre todos os continentes, entre todas as épocas, uma civilização<br />

mais obcecada por cerimônias de morte que os astecas. As estimativas de mortos durante<br />

o domínio desse império variam muito: mesmo as mais baixas são assustadoras. Relatos<br />

espanhóis do século 16, com base em histórias contadas pelos índios, falam em 80.400<br />

mortes em 1487, durante a inauguração do Templo Maior de Tenochtitlán. Trata-se<br />

certamente de um exagero: nem as máquinas de morte em série do Holocausto<br />

conseguiriam matar tanta gente em tão pouco tempo. Provavelmente os astecas, para<br />

realçar sua majestade e espalhar o temor entre os vizinhos; e os espanhóis, para destacar


a selvageria dos índios, extrapolavam a quantidade de pessoas mortas em sacrifícios. Já<br />

o Códice Telleriano-Remensis, uma reunião de pinturas narrativas dos astecas criada no<br />

século 16, fala de uma matança menor, ainda assim impressionante: 4 mil pessoas<br />

sacrificadas na inauguração do templo.<br />

ALBUM/ORONOZ/LATINSTOCK – BIBLIOTECA NACIONALCENTRAL, FLORENÇA<br />

Quando os espanhóis chegaram ao México, espantaram-se com as escadarias das pirâmides astecas repletas de sangue<br />

seco. Na imagem do Códice Magliabechiano, o tipo mais comum de sacrifício humano: arrancar o coração das vítimas e<br />

jogá-las escada abaixo.<br />

O mesmo acontece com os povos ancestrais de maias e astecas. Em Teotihuacán, cidade habitada até o século 7º<br />

(cujas ruínas são passeio obrigatório para quem vai à Cidade do México), só a equipe do arqueólogo japonês Saburo<br />

Sugiyama encontrou 174 restos mortais.<br />

Até mesmo a arquitetura das pirâmides da Mesoamérica foi pensada para servir de<br />

cenário de sacrifícios: pedaços dos corpos de guerreiros eram atirados do alto das<br />

pirâmides e cambaleavam pelas escadarias, para deleite do público. As marcas desses<br />

rituais deixaram os espanhóis perplexos. Quando se depararam com os edifícios, eles<br />

perceberam que as escadas dos templos estavam manchadas de um marrom-avermelhado<br />

por causa do sangue seco das vítimas de sacrifício. 98 Vestígios dos rituais de morte dos<br />

astecas, de seus vizinhos e de seus ancestrais aparecem às dezenas ainda hoje. Em<br />

Tenochtitlán, desde as primeiras escavações do século 20, 126 pessoas já foram<br />

classificadas como resultados de sacrifícios.<br />

Duas antropólogas físicas do México analisaram 153 corpos encontrados no santuário<br />

de Tlatelolco, ao norte de Tenochtitlán. Comparando as fraturas de ossos do tórax, elas<br />

concluíram que aquelas pessoas morreram por cardioectomia (extração do coração).<br />

Essa era a execução ritual mais comum entre os astecas – é aconselhável preparar o<br />

estômago antes de descobrir como as mortes aconteciam.


Os astecas viam 1.001 utilidades nos restos mortais dos sacrificados. Caveiras decoravam edifícios, serviam de base<br />

para máscaras ou iam para os tzompantlis, espécie de varais paralelos cheios de crânios que “adornavam” as grandes<br />

cidades e impunham respeito aos que se metiam a visitá-las.<br />

Primeiro, a vítima – ainda viva – era presa, de barriga para cima, numa pequena mesa<br />

no alto da pirâmide. Para arrancar o órgão vital, os algozes astecas tinham pelo menos<br />

duas técnicas. Uma delas era através do osso esterno: com a ajuda de uma faca de pedra,<br />

bastava um impacto para dividi-lo em dois e – com a vítima ainda viva – enfiar a mão até<br />

chegar ao coração. Na outra opção, os astecas “introduziam a faca entre duas costelas e,<br />

para abrir espaço, empurravam o osso esterno de dentro para fora”. 99 Com a vítima ainda<br />

viva.<br />

As crianças não estavam a salvo dessas crueldades. O sangue delas era requerido em<br />

ocasiões especiais, geralmente para saciar a fúria de deuses relacionados a secas e<br />

inundações, como Tláloc. No Templo Maior de Tenochtitlán foram encontradas ossadas<br />

de 42 crianças mortas como oferenda a essa divindade. Em geral, eram filhos de<br />

prisioneiros de guerra, pequenos escravos ou crianças compradas fora da cidade. Há<br />

ainda menções de que os reis e senhores, por se sentirem mais responsáveis pelo bom<br />

funcionamento do clima, ofereciam os próprios filhos para os rituais, com o objetivo de<br />

obter boas colheitas. Nos sítios arqueológicos mexicanos, há dezenas de esqueletos<br />

infantis sepultados junto de esculturas de pedra e madeira, conchas, sementes e areia do<br />

mar. Um garoto de 5 anos, cujos restos mortais foram encontrados em 2005 numa base da<br />

parte sul do Templo Maior de Tenochtitlán, teve os braços colados às asas de um gavião.<br />

Baseados nas diversas marcas na parte interna das costelas, arqueólogos concluíram que<br />

o elemento cortante, provavelmente uma faca de sílex, “entrou na cavidade torácica a<br />

partir do abdômen”, rasgando os músculos para chegar ao coração. 100<br />

Carnificinas similares aconteciam entre os maias, ainda que eles não gostem de falar<br />

sobre isso. Em 2006, o cineasta Mel Gibson ergueu uma pirâmide de polêmica ao lançar<br />

o filme Apocalypto, inspirado na vida dos índios de Yucatán antes da conquista<br />

espanhola. Na Guatemala, onde vive a maior parte das pessoas que se dizem<br />

descendentes daquela civilização, houve uma gritaria generalizada de representantes<br />

indígenas e autoridades públicas. Ricardo Cajas, diretor da comissão contra o racismo<br />

no país, afirmou que o filme ignorava 50 anos de avanços na arqueologia, pois mostrava<br />

“os maias como bárbaros, assassinos de pessoas que só poderiam ser salvas pela<br />

chegada dos espanhóis”. Ignacio Ochoa, diretor da Fundação Nahual, que divulga a<br />

cultura indígena da região, gritou mais alto – disse que o filme era baseado numa “visão<br />

ofensiva e racista de que o povo maia era brutal contra si próprio e por isso precisava de<br />

ajuda externa”. As cenas mais violentas – e que mais irritaram os ativistas – são as que<br />

reconstroem os sacrifícios humanos no alto das pirâmides. 101 O filme mostra fanáticos<br />

maias arrancando o coração de guerreiros capturados, para logo depois os degolarem e<br />

os atirarem em série pelas escadarias dos edifícios. Apocalypto, de fato, é repleto de<br />

tropeços históricos e episódios de injustiça extrema típicos dos filmes de Mel Gibson.<br />

Apesar dessas limitações e da reclamação dos ativistas, pode-se dizer que o cineasta<br />

tinha material para retratar a vida na América Central com ainda mais fanatismo, mais<br />

crueldade, mais esguichos de sangue.<br />

Os maias tinham até um termo próprio – cuculeb – para a expressão “rolar escada abaixo”.


Os estudos recentes de arqueologia e antropologia física dão detalhes asquerosos dos<br />

rituais maias. Mel Gibson poderia, por exemplo, mostrar a tortura ritual que antecedia os<br />

sacrifícios humanos. Essa prática é bem documentada em pinturas do período clássico<br />

maia, como as das paredes de templos de Chiapas, onde os homens a caminho da morte<br />

aparecem com os dedos sangrando e feridas por todo o corpo. Também seria possível<br />

retratar outros tipos de execução, como o desentranhamento – a retirada das vísceras da<br />

vítima ainda viva, tipo de morte provavelmente reservada a prisioneiros de guerra.<br />

Resume a antropóloga austríaca Estella Weiss-Krejci: “Cenas de decapitação e<br />

desentranhamento em cerâmicas funerárias, totens, altares e murais parecem completar<br />

alguns dos corpos encontrados sem cabeça e os membros em tumbas individuais e<br />

coletivas”. 102<br />

A cardioectomia, retratada no filme Apocalypto, também aparece em pinturas e<br />

registros que os padres espanhóis obtiveram dos índios no século 16. Quando esse tipo<br />

de morte surge na iconografia maia, diz o antropólogo <strong>Da</strong>vid Stuart, “os sacrificados<br />

quase sempre eram crianças”. Duas outras antropólogas, Vera Tiesler e Andrea Cucina,<br />

analisaram sete ossadas (a maioria de adolescentes homens e mulheres) encontradas ao<br />

redor de ruínas dos estados mexicanos de Chiapas e Campeche. Notaram que os<br />

esqueletos tinham marcas de impacto no lado esquerdo das vértebras e nas costelas. As<br />

marcas sugerem que o sacerdote se aproximava com uma faca de pedra e fazia um corte<br />

profundo no lado esquerdo do ventre, logo abaixo das costelas. O algoz tinha de enfiar<br />

um bom pedaço do braço através do diafragma até sentir os batimentos cardíacos.<br />

“Depois disso, ele entregava o coração ao sacerdote para sua consagração e<br />

apresentação aos deuses”, contam as antropólogas. 103<br />

Se os sacrifícios astecas e maias são bem registrados e conhecidos, não acontece o<br />

mesmo com aqueles praticados pelos incas. O Peru hoje é um país com uma elite<br />

progressista e ótima gastronomia, onde o turista pode se aventurar com a certeza de que<br />

será bem tratado. Exceto se perguntar numa livraria se há algum livro com sacrifícios dos<br />

incas, como fez um dos autores deste livro. Será impelido a pedir desculpas no ato,<br />

baixar a cabeça e fugir para o hotel. Se, por pura insistência, repetir a pergunta para um<br />

político, vai ouvir um sermão pela segunda vez.<br />

Na opinião de muitos peruanos, quem fazia sacrifícios humanos por lá eram somente<br />

os mochicas, povo que viveu ao norte do Peru até o século 8º e adorava um deus<br />

sacrificador – chamado de “El Degollador”. Uma pirâmide na cidade de Trujillo permite<br />

um passeio por várias salas internas, em que as pessoas eram presas e depois<br />

sacrificadas. Mas esses eram os mochicas, ou “moches”. Os incas, vários séculos depois,<br />

não faziam esse tipo de coisa. Jamais. E coitado de quem perguntar.<br />

Mas vamos às pesquisas arqueológicas. O sacrifício de pessoas e animais fazia parte<br />

de quase todas as ocasiões importantes dos incas: funerais, comemorações religiosas,<br />

dias de cultivo e colheita, momentos de preparação para batalhas. Além do calendário de<br />

cerimônias, qualquer evento extraordinário era motivo de sacrifícios, como terremotos,<br />

eclipses e inundações. As mortes rituais ainda eram oferecidas ao deus Sol como prece<br />

pelo sucesso do imperador inca, após o seu falecimento e em louvor aos seus<br />

ascendentes. O inca Atahualpa, por exemplo, executou centenas de pessoas somente para<br />

se preparar para o encontro com Pizarro em Cajamarca, de acordo com o conquistador e


cronista Pedro de Cieza de León. 104 Durante a cerimônia chamada de capacocha, as<br />

vítimas, os meninos e as meninas mais bonitos entre todas as terras do império, eram<br />

mortos com pancadas na cabeça ou enterrados vivos lado a lado, como casais. 105<br />

Prisioneiros de guerra também eram executados como agradecimento ao Sol e como<br />

símbolo do poder inca. Em mais de 50 santuários instalados a pelo menos 5 mil metros<br />

de altitude, arqueólogos encontraram ossos de lhamas sacrificadas, cabelo humano, peças<br />

de cerâmica e madeira e corpos de crianças, adolescentes e adultos bem conservados<br />

pela neve. Alguns locais guardavam até vestígios de cercas usadas para encarcerar as<br />

vítimas. 106 Em 1995, o derretimento da neve do monte Ampato, no sul do Peru, expôs um<br />

antigo santuário inca, onde o arqueólogo Johan Reinhard encontrou o corpo mumificado<br />

de uma garota que tinha entre 11 e 14 anos. Juanita, a “dama do gelo”, como passou a ser<br />

chamada, estava vestida com um xale branco e vermelho preso no corpo com botões de<br />

prata.<br />

Nem todo ritual de morte dependia de atos de extrema violência. Os índios<br />

acreditavam tanto no poder trágico de seus deuses que muitos se mutilavam, ofereciam os<br />

próprios filhos e a si mesmos para acalmar os céus. Há diversos relatos, em toda a<br />

América Latina pré-colombiana, de pessoas que caminharam contentes rumo ao seu ritual<br />

de morte. O autossacrifício parece ter sido mais comum entre os incas, como descreveu o<br />

conquistador Pedro de Cieza de León:<br />

Antes que as pessoas fossem levadas à morte, o sacerdote pronunciava um discurso, explicando a eles que iriam servir o<br />

deus que estava sendo celebrado e que habitariam o mesmo lugar glorioso que ele habitava. Aqueles que estavam para<br />

ser sacrificados acreditavam nisso e se vestiam com roupas finas e peças de ouro, braceletes e objetos dourados nas<br />

sandálias. Depois de ouvir o discurso, os sacrificados ganhavam muita chicha para beber, em grandes vasos de ouro. O<br />

sacrifício era celebrado com músicas, e as vítimas se consideravam agraciadas por chegar à morte daquele modo. 107<br />

O pulque é o que os astecas tinham de mais próximo da cerveja: uma bebida alcoólica feita a partir da fermentação do<br />

agave. Plantas da família do agave, quando destiladas, dão origem à tequila.<br />

É certo que o sacrifício humano era um costume aceito pela tradição e pelo modo<br />

como os índios enxergavam o mundo: não é correto condená-los com os olhos de hoje.<br />

Para quem atribuía ao humor de seus deuses a boa sorte em batalhas ou a chegada de<br />

chuvas, derramar sangue funcionava como o pagamento de uma dívida, uma atitude<br />

necessária para manter a ordem do mundo. Além disso, os índios, tanto da Mesoamérica<br />

quanto dos Andes, não consideravam errado o ato de matar alguém de outro povo. Os<br />

astecas, por exemplo, tinham um tremendo orgulho dos seus assassinos. Como acontecia<br />

entre os índios tupis do Brasil, um jovem só ganhava permissão para se casar depois de<br />

capturar seu primeiro homem. Quem matava mais era mais reconhecido – tinha roupas<br />

melhores, entrada garantida em festas e mais mulheres. “Um guerreiro com quatro mortes<br />

nas costas, por exemplo, podia dançar em importantes cerimônias e vestir finos<br />

ornamentos nos lábios, além de tiaras com penas de águia”, conta o antropólogo<br />

americano Michael Smith. “Já os guerreiros águia e jaguar podiam jantar no palácio real,<br />

beber pulque e ter amantes. A escalada de um jovem na carreira militar era fonte de<br />

grande orgulho para sua família.” 108<br />

Os “encomendeiros” ganhavam permissão real para cobrar impostos de um grupo de índios em forma de trabalho ou<br />

produtos. Em troca, tinham de ajudar a protegê-los contra inimigos e iniciá-los na língua espanhola.<br />

É certo também que os conquistadores espanhóis protagonizaram episódios de


crueldade máxima na América. Francisco Pizarro, semanas antes de encontrar o inca<br />

Atahualpa, queimou vivos índios que haviam atacado seus homens; decapitações<br />

aconteceram com frequência; no México, o conquistador Nuño de Gusmán era famoso<br />

por torturar caciques e atirá-los a cães. Esses atos, no entanto, não eram em geral<br />

considerados corretos: a morte dos índios e a degradação das comunidades locais<br />

provocaram denúncias indignadas de padres e conquistadores, além de uma intensa<br />

discussão ética entre os espanhóis. A ponto de o imperador Carlos V, em 1550,<br />

interromper as ações de colonização para debater a moralidade da conquista espanhola.<br />

O debate de Valladolid, travado entre os frades Bartolomé de las Casas e Juan<br />

Sepúlveda naquele ano, marca um dos primeiros momentos da história em que um povo<br />

levantou questões humanitárias e se preocupou com o outro. Também pela primeira vez<br />

na história um império parou para refletir sobre as consequências éticas de seus atos. O<br />

debate de Valladolid ratificou as “novas leis” que tinham proibido, oito anos antes, a<br />

exploração do trabalho dos índios pelo sistema de encomienda. As leis provocaram<br />

revoltas entre os conquistadores – basta lembrar que um dos irmãos de Pizarro, Gonzalo,<br />

foi executado pelo reino espanhol depois de ameaçar proclamar-se rei do Peru em<br />

protesto à proibição de explorar o trabalho dos índios por meio do sistema de<br />

encomiendas. Como sua morte atesta, o valor da vida humana, noção que tantos ativistas<br />

usam para tentar corrigir injustiças históricas, não chegaria à América não fosse a bordo<br />

das caravelas.<br />

Quando Hernán Cortés e seus aliados conquistaram Tenochtitlán, uma de suas<br />

primeiras ações foi mandar lavar as escadarias astecas para retirar as manchas de sangue<br />

seco e envelhecido que vertia dos corpos atirados por ali. Hoje, cinco séculos depois,<br />

ainda há crianças nas escadarias das pirâmides indígenas. Elas brincam, correm e contam<br />

alegremente quantos degraus cada monumento possui.<br />

A descoberta do índio conquistador<br />

Um antigo costume dos índios nahuas era o de registrar a história em grandes pinturas<br />

em tecido, como os astecas e seus vizinhos. Os lienzos, como os espanhóis chamaram<br />

essas peças, retratam os feitos dos soberanos, as conquistas militares e as migrações que<br />

os povos empreenderam. Como peças de comunicação interna, eram expostos em muros<br />

durante cerimônias das grandes cidades do México pré-colombiano, para que os<br />

moradores se lembrassem da história de seu povo e da importância de seus líderes. Essa<br />

tradição avançou pelo século 16: para deleite dos pesquisadores, há telas com registros<br />

preciosos de episódios da conquista espanhola da América. Algumas dessas raridades<br />

foram decifradas recentemente por historiadores, que ficaram estupefatos com o que<br />

descobriram ali.<br />

A história que aqueles pictogramas contavam não parecia em nada com os relatos<br />

tradicionais da Conquista Espanhola propagados hoje em dia nas escolas, nos palanques<br />

de campanha eleitoral ou nos manifestos de ativistas. Não havia destaque aos episódios<br />

de violência praticada pelos europeus ou para a resistência indígena. Na verdade, as<br />

imagens tinham pouca diferença daquelas criadas antes da chegada das caravelas. Os


espanhóis aparecem nas pinturas como mais um povo com quem os índios se uniram para<br />

guerrear, retratados com os mesmos padrões das narrativas anteriores.<br />

A historiadora holandesa Florine Asselbergs analisou três peças feitas por índios que<br />

se aliaram aos espanhóis: o Lenço de Tlaxcala, cujo original foi criado no ano de 1550, o<br />

de Analco, também pintado pelos tlaxcaltecas, e o de Quauhquecholán, um tecido de 2,35<br />

por 3,25 metros com pinturas sobre as campanhas militares na Guatemala sob a liderança<br />

do espanhol Jorge de Alvarado, entre 1527 e 1530. Asselbergs concluiu que as imagens<br />

têm pelo menos três grandes ensinamentos:<br />

1. O episódio mais significativo dos registros é a aliança com os recém-chegados, e não<br />

as lutas travadas contra eles. Os tlaxcaltecas, por exemplo, guerrearam três vezes com os<br />

espanhóis antes de se aliar aos inimigos. Nos registros oficiais, essas batalhas foram<br />

omitidas – no lugar delas, entraram imagens dos “senhores indígenas em encontros<br />

amigáveis com os espanhóis, abraçando-os e dando-lhes presentes, sem nenhum sinal de<br />

hostilidade”, conta a historiadora.<br />

UNIVERSIDAD FRANCISCO MARROQUÍN, GUATEMALA/MUSEO CASA DEL ALFEÑIQUE, PUEBLA, MÉXICO<br />

Lenço de Quauhquecholán, criado por índios nahuas no século 16: a águia de duas cabeças, portando um tacape indígena<br />

e uma espada espanhola, representa a união militar entre os dois povos. Conforme o relato dos índios, o encontro com os<br />

espanhóis foi fraterno e teve até troca de presentes.<br />

2. Mesmo sendo obra de índios que se aliaram aos espanhóis, é espantosa a ausência de<br />

um episódio de conquista, de sub-jugação à ordem europeia. “As alianças dos senhores<br />

indígenas com os espanhóis são percebidas como igualitárias, e não alianças compelidas<br />

pela dominação espanhola. As comunidades estavam subjugadas à Coroa espanhola, é<br />

verdade, mas não de um jeito humilhante”, conta a historiadora. O pictograma principal<br />

do Lenço de Quauhquecholán é o símbolo da cidade (uma águia com duas cabeças) unida<br />

à Coroa espanhola. A águia carrega, em um dos lados, uma espada espanhola; do outro,<br />

um tacape nahua. “Essas alianças e conquistas foram entendidas como parte da rotina<br />

pré-hispânica e assim foram comunicadas.”<br />

3. Muitos dos índios do século 16 festejaram a chegada dos espanhóis e se orgulhavam<br />

de tê-los ajudado a exterminar nativos inimigos. Identificavam-se mais com os espanhóis<br />

do que com outros povos indígenas. “O lenço quauhquecholteca retrata tanto os espanhóis<br />

quanto os índios com a mesma cor de pele, enquanto os inimigos têm pele marrom ou<br />

vermelha”, conta a historiadora.


“Muitos astecas que sobreviveram à queda de Tenochtitlán participaram de outras conquistas pela Mesoamérica, até<br />

mesmo na Guatemala”, diz a historiadora americana Laura Matthew. “Eram mais bem treinados para a guerra e ainda<br />

politicamente importantes. Por causa desse enorme poder, tiveram provavelmente um status mais alto nas alianças que<br />

os outros povos.” 109<br />

O apoio de parte dos índios da América aos europeus já é bem conhecido e aceito<br />

pelos historiadores. Desde o século 16 sabe-se que, no caso do México, os índios<br />

tlaxcaltecas ajudaram os europeus a impor sua vontade, e que o mesmo aconteceu entre<br />

caciques andinos. No entanto, a participação dos índios aparecia sempre em segundo<br />

plano. O exemplo mais típico é o quadro A Conquista do México por Cortés, do século<br />

17. Na frente da batalha contra os astecas, estão os capitães e guerreiros espanhóis – já<br />

os índios aliados estão à margem dos acontecimentos. 110 Como afirma o pesquisador<br />

Gonzalo Lamana, “os atores nativos, no máximo, são marionetes no palco dos espanhóis<br />

– eles são punidos, coroados, enviados a batalhas”. O que está se descobrindo agora é<br />

que as alianças travadas com os espanhóis foram, primeiro, mais numerosas. No México,<br />

além dos tlaxcaltecas, muitos outros povos aderiram às ações de conquista – até mesmo<br />

os astecas, depois de serem derrotados em Tenochtitlán. Segundo, as alianças parecem<br />

agora mais igualitárias do que se pensava. Tanto os índios como os espanhóis tinham de<br />

se adequar às necessidades do aliado para manter a união. <strong>Guia</strong>s, tradutores, mulheres,<br />

chefes militares indígenas não atuaram só como marionetes, mas em diversos momentos<br />

impuseram os seus desejos (entre os quais estava o de exterminar vizinhos inimigos).<br />

COLEÇÃO JAY I. KISLAK/BIBLIOTECA DO CONGRESSO, WASHINGTON<br />

Quadro A Conquista do México por Cortés: índios como personagens secundários.<br />

Só é possível entender aquelas alianças reconstituindo o cenário dos primeiros<br />

europeus que chegaram à América. Ao contrário do que muita gente imagina, os<br />

conquistadores não eram seres com todo o poder sobre os índios. Não eram guerreiros


especiais contratados pelo reino espanhol nem soldados de algum exército. Na maioria<br />

jovens artesãos (alfaiates, ferreiros, pedreiros) ou pequenos proprietários, eles vieram à<br />

América por conta própria. <strong>Da</strong> Coroa espanhola ganhavam somente a autorização para se<br />

apossar de terras que viessem a ser descobertas. Investindo o próprio dinheiro, eles<br />

arranjavam sócios para o investimento e persuadiam vizinhos, amigos e parentes a fazer<br />

parte da companhia. Não eram treinados nem organizados: a hierarquia dividia-se<br />

somente em capitão do navio, cavaleiros (aqueles que tiveram dinheiro para embarcar<br />

nos navios com um cavalo) e peões. 111 Sequer podiam contar com as armas de fogo para<br />

espantar os índios. Os arcabuzes do século 16 demoravam preciosos minutos para serem<br />

carregados e exigiam pólvora seca, uma raridade depois de tantos dias cruzando o<br />

oceano. E ainda não tinham sido criadas, naquela época, técnicas de artilharia que<br />

permitissem um ataque contínuo de fogo contra os inimigos.<br />

Sem tanta preparação e superioridade militar, os conquistadores da América<br />

frequentemente passavam da expectativa de riquezas à esperança de voltar para casa, da<br />

esperança de voltar para casa à desilusão, da desilusão ao desespero. O fracasso era o<br />

destino mais comum. Em 1510, por exemplo, 69 dos 70 espanhóis instalados no Caribe<br />

colombiano foram mortos por índios. Juan de la Cosa, o chefe da expedição, foi<br />

encontrado “desfigurado e inchado, recoberto de flechas envenenadas e de espantosas<br />

chagas vermelhas”. 112 Dos 800 homens que, em 1536, acompanharam Gonzalo Jiménez de<br />

Quesada numa expedição ao interior da Colômbia, só 179 sobreviveram. Mesmo<br />

Francisco Pizarro, quando conseguiu chegar ao Peru, em 1532, tentava se levantar de<br />

dois grandes fiascos. A primeira expedição de Pizarro, entre 1523 e 1524, foi posta para<br />

correr por poderosos inimigos: os mosquitos.<br />

Nas cartas para a corte espanhola, os conquistadores costumavam deixar papelões<br />

como esse de lado. Mas relatos menos comprometidos mostram o sofrimento dos<br />

navegadores quando não encontravam índios dispostos a ajudá-los. “As pessoas não<br />

tinham o que comer e se morria de fome e padecia de grande escassez”, escreveu o<br />

alemão Ulrich Schmidl, participante da expedição de Pedro Mendoza que desembarcou<br />

no rio da Prata em 1535. “Foram tais a pena e o desastre da fome que não bastaram ratos<br />

nem ratazanas, víboras ou insetos; até os sapatos e couros, tudo teve que ser comido.”<br />

Dos 2.500 participantes dessa companhia, quase 2 mil morreram de fome ou atacados por<br />

índios. 113 Duas décadas antes, o navegador português João Diaz de Solis, que sucedeu<br />

Américo Vespúcio no cargo de piloto-mor da expedição, foi morto logo depois de<br />

descobrir o rio da Prata, entre a Argentina e o Uruguai. Solis e muitos de seus homens<br />

foram atacados na praia, após desembarcarem para entrar em contato com os índios.<br />

“Tomando às costas os mortos, os índios se afastaram da margem, até onde os navios<br />

podiam ver”, escreveu um dos sobreviventes, o navegador espanhol Antônio de Herrera.<br />

“Então assaram os corpos inteiros e os comeram.” 114<br />

Dos quatro irmãos Pizarro que vieram à América, três foram mortos em combates. Só um deles, Hernando (o único<br />

filho legítimo), morreu de velhice na Espanha.<br />

Outro inimigo a enfraquecer os conquistadores eram os conflitos internos. Como<br />

acontecia com os índios, cada companhia e cada conquistador tinham objetivos nem<br />

sempre convergentes. Os capitães competiam entre si para obter títulos e encomendas –<br />

nessa disputa valia até espalhar fofocas na corte para que o inimigo perdesse benefícios.


Também valia partir para a batalha. Diversos espanhóis foram atacados por outros<br />

espanhóis. Diego de Almagro, que havia passado de melhor amigo de Francisco Pizarro<br />

a seu grande adversário, foi decapitado em Cuzco, em 1538, por ordem de Hernando<br />

Pizarro, um dos três irmãos de Francisco a explorar a América. Três anos depois, Diego<br />

de Almagro, o filho, vingou-se da morte do pai executando Francisco Pizarro em Lima.<br />

Malinche teve um filho com Cortés, que ganhou o nome do avô, Martín. A índia chegou a morar com Cortés na<br />

mesma casa em que ele vivia com sua mulher espanhola.<br />

A precariedade e os perigos diminuíam tão logo os recém-chegados conseguissem<br />

fazer amizade com índios. Por isso, não demoravam a fazer concessões aos povos locais<br />

e se adaptar ao modo local de viver e guerrear. Ao pisar na América e perceber os<br />

conflitos entre as nações, logo se colocavam de um lado da briga. Como mandava o<br />

costume indígena, em que alianças políticas são alianças familiares, de sangue, os<br />

espanhóis casaram com diversas mulheres com o objetivo de obter o apoio local.<br />

“Apesar das mudanças trazidas pelo colonialismo, as cacicas continuaram a ter posições<br />

de autoridade e poder em suas comunidades”, conta o historiador Robinson Herrera. 115<br />

Formava-se assim uma elite de índios aliados que tinha tanto poder quanto alguns dos<br />

exploradores europeus. No México, a famosa índia Malinche, amante e tradutora de<br />

Cortés, trabalhou como braço-direito e conselheira do conquistador, ganhando o respeito<br />

dos outros espanhóis, que logo passaram a chamá-la de “Doña Marina”. Também havia<br />

nativas poderosas no Peru, como mostra um curioso episódio ocorrido em Cuzco no ano<br />

de 1536. Índias nobres reclamaram com Hernando Pizarro que algumas de suas roupas<br />

tinham sido roubadas por dois espanhóis. O conquistador agiu imediatamente. Mandou<br />

prender os dois suspeitos, homens subordinados a seu irmão, Juan Pizarro. Os acusados<br />

tiveram de armar uma pequena revolta para não serem presos, mas devolveram as peças<br />

roubadas. 116<br />

Os espanhóis costumavam manter líderes locais como reféns para evitar ataques. Como contou Gaspar de Marquina,<br />

um dos homens de Pizarro, numa carta ao pai, com a captura do senhor local, “um homem pode percorrer sozinho 500<br />

léguas sem ser morto”. 117<br />

Até mesmo a execução do imperador Atahualpa, em 1533, teve uma oculta influência<br />

desses aliados e familiares indígenas. O que raramente se conta sobre esse episódio tão<br />

lamentado é que houve um debate entre os exploradores sobre o que fazer: deveriam<br />

mesmo matar o imperador inca? O conquistador Francisco Pizarro era contra – preferia<br />

mantê-lo refém na longa viagem de Cajamarca até Cuzco, para facilitar a tomada de<br />

controle da capital dos incas. O imperador espanhol, Carlos V, tinha a mesma opinião.<br />

Seu tesoureiro, Pedro Riquelme, preocupado com a segurança do tesouro que havia sido<br />

arrecadado, mandou um funcionário escrever a Pizarro pedindo para que mantivesse<br />

Atahualpa vivo. Depois que a execução aconteceu, o rei considerou um ultraje a morte de<br />

um soberano e seu sepultamento terem ocorrido sem a cerimônia que ele merecia.<br />

A vontade real valeu menos que a de alguns índios e exploradores. Nos oito meses<br />

entre a captura e a execução de Atahualpa, os espanhóis estabeleceram uma boa<br />

convivência com os índios de Cajamarca. Os huancas, nativos que até então viviam sob<br />

domínio inca, não demoraram a se aliar aos espanhóis em represália a seus antigos<br />

senhores. Mulheres da corte, oficiais de elite inca (os “orejones”) e até parentes do<br />

imperador Atahualpa fizeram o mesmo. No meio de um território e de uma cultura pouco


conhecidos, os europeus tinham que confiar nos nativos como informantes. Esses índios,<br />

inclusive um sobrinho de Atahualpa, alertavam frequentemente os espanhóis quanto à<br />

possibilidade de uma tropa fiel ao imperador inca atacar a cidade com o objetivo de<br />

libertá-lo, o que poderia resultar no extermínio dos espanhóis. Como prova de que<br />

Atahualpa mantinha seu poder mesmo na prisão, havia o fato de ter ordenado a morte do<br />

irmão, Huáscar, que estava preso em Cuzco. Casos de matança geral dos espanhóis eram<br />

bem comuns naqueles anos, por isso o boato de uma revanche inca fez o grupo de<br />

espanhóis tremer. Quem mais atemorizou os espanhóis foi o índio Felipillo, principal<br />

tradutor entre Pizarro e Atahualpa. “As fontes nativas sugerem que Felipillo teve ou<br />

tentou fazer sexo com uma das mulheres de Atahualpa”, conta Gonzalo Lamana. “Usando<br />

sua posição-chave, ele traduziu tendenciosamente as respostas do inca e de outras<br />

testemunhas sobre o provável ataque.” O medo de uma batalha para livrar Atahualpa foi<br />

crucial na decisão de executá-lo.<br />

94 Mary E. Penny, “Can coca leaves contribute to improving the nutritional status of the Andean population?”, Food and<br />

Nutrition Bulletin, volume 30, número 3, The United Nations University, 2009.<br />

95 “Canciller propone sustituir leche por coca en desayuno escolar”, disponível em www.bolpress.com.<br />

96 Mary E. Penny, página 214.<br />

97 Michael E. Smith, The Aztecs, Blackwell, 2003, localização 2469 (edição Kindle).<br />

98 Michael E. Smith, localização 1953.<br />

99 Carmen María Pijoan Aguadé e Josefina Mansilla Lory, em Guilhem Olivier e Leonardo López Luján (org.), El Sacrificio<br />

Humano en la Tradición Religiosa Mesoamericana, Instituto Nacional de Antropología e Historia/Universidad Nacional<br />

Autónoma de México – Instituto de Investigaciones Históricas, 2010, página 29.<br />

100 Leonardo López Luján, Ximena Chávez Balderas, Norma Valentín e Aurora Montúfar, Huitzilopochtli y el Sacrificio de<br />

Niños en el Templo Mayor de Tenochtitlán, disponível em www.mesoweb.com/about/articles/Huitzilopochtli.pdf.<br />

101 “‘Racist’ Apocalypto accused of denigrating Mayan culture”, The Guardian, 10 de janeiro de 2007, disponível em<br />

www.guardian.co.uk/film/2007/jan/10/news.melgibson.<br />

102 Estella Weiss-Krejci, “Victims of human sacrifice in multiple tombs of the ancient Maya: a critical review”, em Andrés<br />

Ciudad Ruíz (org.), Antropología de la Eternidad: la Muerte en la Cultura Maya, volume 1, parte 1, Sociedad Española de<br />

Estudios Mayas, 2005, página 356.<br />

103 Vera Tiesler e Andrea Cucina, “El sacrificio humano por extracción de corazón: una evaluación osteotafonómica de<br />

violencia ritual entre los mayas del clasico”, Estudios de Cultura Maya, volume 30, páginas 57-78, Universidad Autónoma de<br />

Yucatán, disponível em www.iifl.unam.mx/html-docs/cult-maya/vera-cucci.pdf.<br />

104 Gonzalo Lamana, página 55.<br />

105 Sabine MacCormack, Religion in the Andes: Vision and Imagination in Early Colonial Peru, Princeton University<br />

Press, 1991, páginas 198 a 201.<br />

106 Terence D’Altroy, páginas 170 e 171.<br />

107 Pedro de Cieza de León, The Second Part of the Chronicle of Peru, Adamant, 2005, páginas 87 e 88.<br />

108 Michael E. Smith, localização 1881.


109 Entrevista com a historiadora americana Laura Matthew, em 6 de maio de 2011.<br />

110 É possível baixar a sequência de pinturas da conquista no site:<br />

http://myloc.gov/Exhibitions/EarlyAmericas/ExplorationsandEncounters/ConquestPaintings/ExhibitObjects/EntranceofCort%C3%A9s<br />

LaConquistadeMexico.aspx.<br />

111 Matthew Restall, Sete Mitos da Conquista Espanhola, Civilização Brasileira, 2006, página 75.<br />

112 Eduardo Bueno, Náufragos, Traficantes e Degredados, Objetiva, 1998, página 114.<br />

113 Jorge Caldeira, página 19.<br />

114 Eduardo Bueno, página 124.<br />

115 Robinson Herrera, “Concumbines and wives”, em Laura Matthew (org.), Indian Conquistadors, University of Oklahoma<br />

Press, 2007, página 130.<br />

116 Gonzalo Lamana, página 150.<br />

117 Matthew Restall, páginas 62 e 63.


É comum se afirmar que durante a conquista europeia “os índios homens foram<br />

mortos e as mulheres, emprenhadas”. A sentença reproduz a ideia de que os europeus<br />

tiveram pleno controle de suas ações da América. Na verdade, a própria relação dos<br />

recém-chegados com as índias mostra como eles precisaram mergulhar na<br />

cultura local para realizar seus objetivos. Tanto entre índios guaranis do<br />

Brasil e do Paraguai como entre os andinos e os nahuas do México, o<br />

casamento era muito mais que um evento particular: determinava alianças<br />

militares e posições sociais.<br />

O ADÃO PERNAMBUCANO<br />

Em toda a América Latina, índios só se aliavam depois que mulheres de seu clã se<br />

casassem com os europeus. Dois casos mostram isso muito bem. Um deles é o do<br />

português Jerônimo de Albuquerque, fundador do primeiro engenho de cana-de-açúcar de<br />

Pernambuco e cunhado de Duarte Coelho, o primeiro donatário daquela região. Ao<br />

chegar ao Brasil, eles não se entenderam com os índios tabajaras. Precisavam do<br />

trabalho dos índios para mover seu engenho, mas os nativos preferiam derrubar paubrasil<br />

para outros europeus. O problema se resolveu quando Jerônimo de Albuquerque se<br />

casou com Tabira, a filha do cacique dos Tabajaras. Teve tantos filhos com ela e outras<br />

mulheres que ganhou o nome de “Adão Pernambucano”. 118<br />

No México, há um correspondente feminino. Diversas índias nobres procuraram se casar<br />

com os espanhóis para manter o status de sua linhagem. O caso mais famoso é o de<br />

uma das filhas do imperador Montezuma, batizada como Doña Isabel Moctezuma. Antes<br />

de os espanhóis chegarem, ela já havia casado com três líderes vizinhos, com o objetivo<br />

de selar alianças entre os povos.<br />

E A EVA MEXICANA<br />

Depois da conquista, foi morar na casa do próprio Hernán Cortés, com quem teve um<br />

filho. Ainda se casou com outros três exploradores espanhóis: Alonso de Grado, Pedro<br />

Gallego e Juan Cano. Ninguém a considerava uma mulher promíscua – e sim uma<br />

respeitável representante da nobreza, dona de encomiendas e preocupada em construir<br />

alianças de sangue com os espanhóis mais proeminentes. 119<br />

118 Maria do Carmo Andrade, “Jerônimo de Albuquerque”, Fundação Joaquim Nabuco, disponível em www.fundaj.gov.br.


119 Michel Oudijk e Matthew Restall, “Mesoamerican conquistadors in the 16th century”, em Laura Matthew (org.), página 45.


No México, até o avanço militar dos espanhóis teve influência indígena. Como<br />

sugerem os lienzos nahuas, as batalhas de conquista foram decididas tanto pelos<br />

espanhóis quanto pelos índios aliados. Há outros vestígios dessa convergência de<br />

objetivos. Logo depois de a colônia espanhola se estabelecer, descendentes de índios<br />

aliados enviaram à corte na Europa pedidos de pensões e isenção de impostos.<br />

Justificavam o pedido destacando seus próprios feitos em prol da conquista, como faziam<br />

os exploradores nas probanzas de mérito. Em 1584, por exemplo, Don Joachin de San<br />

Francisco Moctezuma, cacique da região de Puebla, solicitou que sua comunidade ficasse<br />

livre da cobrança de impostos. A isenção seria uma retribuição em reconhecimento aos<br />

esforços de seu avô, Matzatzin, ao receber Hernán Cortés e conquistar povos da região<br />

de Mixteca e Oaxaca. O cacique ainda se dizia tataraneto do próprio Montezuma, o<br />

imperador asteca. O mais notável é que, segundo o relatório do cacique, a conquista<br />

desses territórios aconteceu sem nenhum guerreiro espanhol. “Enquanto Cortés voltou<br />

para o norte para reconquistar e punir Tenochtitlán por sua revolta, Matzatzin foi para o<br />

sul e conquistou cerca de 20 cidades”, dizem os historiadores Michel R. Oudijk e<br />

Matthew Restall num dos estudos do livro Indian Conquistadors (“Índios<br />

Conquistadores”). Apesar dos interesses do cacique em exagerar os feitos do avô, sua<br />

história converge com o que contam outras fontes nativas. 120 O cacique Joachin acabou<br />

obtendo a isenção de impostos que solicitava.<br />

Há diversos casos assim. Como o dos índios mexicas (astecas), tlaxcaltecas e<br />

zapotecas que partiram com o espanhol Pedro de Alvarado para a Guatemala, em 1524,<br />

com o objetivo de conquistar povos maias. Quarenta anos depois de assentados em terras<br />

guatemaltecas, esses índios protocolaram um pedido de isenção de impostos que incluía<br />

relatórios de campanhas militares, testemunhos de vizinhos e de guerreiros indígenas.<br />

Todo o processo, incluindo ofícios reais e interrogatórios, chegou a 800 páginas. Entre<br />

as pessoas que apoiavam o pedido havia até mesmo conquistadores europeus, como<br />

Gonzalo Ortíz, conselheiro de uma cidade próxima. 121 De acordo com seu testemunho,<br />

“depois de conquistada esta terra os ditos índios conquistadores da Nova Espanha<br />

ficaram, muitos deles, povoados na cidade velha de Almolonga, onde agora estão e<br />

vivem com seus filhos e descendentes”.<br />

O número tão alto de “índios conquistadores”, entre tão poucos espanhóis, fez as<br />

guerras da conquista espanhola ganhar a cara das guerras anteriores à chegada dos<br />

espanhóis. Repare neste trecho do livro Aztec Warfare (“Guerra Asteca”), sobre as<br />

batalhas pré-hispânicas:<br />

As cidades frequentemente eram atacadas em sequência, com os recursos, a inteligência e, algumas vezes, os guerreiros<br />

da última conquista auxiliando a próxima. A expansão sem precedentes dos astecas os levou a regiões onde foram<br />

capazes de explorar antagonismos locais aliando-se com um adversário contra o outro. Também faziam campanhas de<br />

intimidação contra cidades que não atacavam diretamente. Mensageiros iam a essas cidades para perguntar, geralmente<br />

oferecendo vantagens, se os moradores se tornariam súditos do Império Asteca. 122<br />

Basta trocar a palavra “asteca” por “espanhóis” para descrever boa parte do modo de<br />

guerrear dos europeus na América. Mais uma amostra de que, no dia a dia de longas<br />

caminhadas, pousos, negociações e batalhas, os costumes indígenas não foram totalmente<br />

reprimidos. “A Conquista da América Central foi, desde o começo, uma parceria


hispano-americana: planejada, coordenada, guiada e guerreada por milhares de índios<br />

nahuas, zapotecas e mixtecas, e algumas centenas de espanhóis, em nome de suas cidades,<br />

dos deuses mesoamericanos, de Cristo e da Coroa espanhola”, afirma a historiadora<br />

Laura Matthew. 123 Diante desse protagonismo indígena ao exterminar seus conterrâneos, é<br />

fácil entender o que quis dizer o conquistador espanhol Francisco de Bracamonte, em<br />

1576, quando escreveu a seguinte frase:<br />

Posso dizer com toda a honestidade que sem os índios nós nunca teríamos conquistado esta terra. 124<br />

Os índios não foram excluídos das decisões políticas<br />

Não é correto, é claro, cometer o equívoco oposto e acreditar que os espanhóis não<br />

protagonizaram ação alguma, só acompanharam os índios em seus conflitos internos. Ou<br />

que não provocaram uma tremenda reorganização da vida dos índios. Mas a ideia do<br />

índio conquistador mostra como é exagerado e simplista dizer que os povos locais da<br />

América Latina foram marginalizados e excluídos de suas decisões políticas. Líderes e<br />

guerreiros locais não só estabeleceram alianças estratégicas para impor sua vontade<br />

como, muito depois de a conquista espanhola se estabelecer, continuaram participando da<br />

elite política.<br />

No dia a dia colonial, as famílias de nobres indígenas se adaptaram às novas<br />

instituições criadas pelos espanhóis. Chefes de clãs e das cidades indígenas se tornaram<br />

governadores, chefes dos cabildos (os conselhos municipais) e caciques, ao mesmo<br />

tempo senhores dos índios locais e donos de terras. Bem ao costume pré-hispânico, o<br />

cacique cedia terra aos índios em troca de impostos em mercadorias. Além dos cargos de<br />

representação política, os índios fizeram parte da administração burocrática da colônia<br />

como juízes, fiscais ou tesoureiros. “Desde o século 16 se generalizou a prática de<br />

utilizar índios nobres como comissários, representantes do governo para resolver<br />

diferenças, levar a cabo auditorias e às vezes exercer a máxima autoridade em povos<br />

distantes de sua residência”, conta o historiador mexicano Tomás Jalpa Flores. 125 É<br />

verdade que, durante a conquista, houve uma diminuição do número de famílias indígenas<br />

nobres e que a influência delas mudava de acordo com as ordens reais e a relação de<br />

cada região com o reino. No entanto, como afirma Flores sobre as famílias da região de<br />

Chalco:<br />

É preciso reconhecer que, na prática, durante os séculos 16 e 17, as linhagens indígenas seguiram participando da vida<br />

política da província; ocuparam os principais postos e, como consequência, administraram, como parte dos cacicados, as<br />

terras das comunidades e o seu patrimônio particular. Sua posição na sociedade permitiu a eles explorar a força do<br />

trabalho e continuar se beneficiando dos tributos e outros serviços que exigiam dos povoados. 126<br />

Esses índios logo deixaram os seus costumes de lado para entrar na sociedade<br />

espanhola. Não demoraram a adotar nomes europeus, vestirem-se como aristocratas<br />

espanhóis, criar rebanhos de ovelhas, morar em casas coloniais com camas, colchões,<br />

mesas e cadeiras, ter cavalos, espadas e armas de fogo. Alguns viraram até mesmo<br />

senhores escravistas. “Os testamentos e inventários de suas posses mostram uma adoção


progressiva dos artigos da civilização espanhola, incluindo algumas vezes escravos<br />

negros”, conta o historiador americano Charles Gibson no clássico The Aztecs under<br />

Spanish Rule (“Os Astecas sob o Domínio Europeu”). 127 O cacique Juán de Galicia é um<br />

bom exemplo de índio europeizado. Como governador da região mexicana de<br />

Tlalmanalco no século 17, cobrava impostos das cidades e dividia a quantia arrecadada<br />

entre a Coroa espanhola e o Hospital Real dos Índios. Amigo de outros fazendeiros da<br />

região, criava cavalos, bois, vendia madeira, plantava milho e portava armas de fogo. 128<br />

De geração em geração, esses índios tão europeizados deixaram de se considerar índios.<br />

Os incas davam enorme importância à linhagem dos jovens nobres. Quem aspirava a um cargo real ou mesmo ao posto<br />

de soberano inca deveria ter a ascendência de nobres então no poder. Essa preocupação foi tão grande que há relatos de<br />

um jovem se casar com sua irmã (provavelmente meia-irmã) para que tivessem filhos “mais puros”. 129<br />

Uma parcela do poder indígena também continuou existindo nos Andes. Os curacas<br />

exerceram papéis essenciais na administração colonial. Arregimentavam índios para<br />

montar grupos de trabalho, coletavam impostos e também forneciam comida e<br />

ferramentas ao redor das minas de prata. Em troca ganhavam armas, apoio contra<br />

agressões de índios inimigos e o título honorífico de “Don”. No século 18, 250 anos<br />

depois da “queda do Império Inca” ainda havia índios disputando poder com base em sua<br />

ascendência nobre. Em 1785, um em cada dez índios de Cuzco fazia parte da nobreza<br />

colonial. Na eleição para conselheiro municipal, alguns candidatos se diziam “netos de<br />

imperadores incas”. 130 Há registros do século 17 de índios nobres que apelaram à corte<br />

de Lima para que só descendentes de Huayna Cápac, como eles, pudessem ser eleitos em<br />

seu cabildo. 131 “Em alguns casos, as elites locais eram descendentes de elites dos tempos<br />

anteriores à conquista – entre eles, a nobreza de Cuzco e as dinastias de caciques da<br />

bacia do Titicaca”, escreveu o historiador americano <strong>Da</strong>vid T. Garrett. 132<br />

Entre os lagos que formam a bacia do Titicaca está a região onde nasceu aquele que é<br />

considerado o primeiro presidente indígena de um certo país andino, um certo país<br />

conhecido por ser campeão do mundo em golpes de Estado. Para evitar mais convulsões<br />

políticas, os autores deste livro preferem não afirmar que o tal presidente talvez não seja<br />

descendente de índios marginalizados, mas de opressoras dinastias andinas que se<br />

perpetuaram no poder. Em nome da paz, já basta por aqui.<br />

120 Michel Oudijk e Matthew Restall, página 35 e 36.<br />

121 Laura Matthew (org.), Indian Conquistadors, University of Oklahoma Press, 2007, página 117.<br />

122 Ross Hassig, Aztec Warfare, University of Oklahoma Press, 1995, página 21, citado em Laura Matthew (org.), página 42.<br />

123 Laura Matthew (org.), páginas 111 e 112.<br />

124 Laura Matthew (org.), página 175.<br />

125 Tomás Jalpa Flores, La Sociedad Indígena em la Región de Chalco durante los Siglos 16 e 17, Instituto Nacional de<br />

Antropologia e Historia de México, 2009, página 371.<br />

126 Tomás Jalpa Flores, página 292.<br />

127 Charles Gibson, Los Aztecas Bajo el Dominio Español (1519-1810), FCE, 2003, página 158.<br />

128 Tomás Jalpa Flores, páginas 303 a 305.


129 Terence D’Altroy, página 104 e entrevista com o autor em 5 de maio de 2011.<br />

130 <strong>Da</strong>vid T. Garrett, Shadows of Empire: The Indian Nobility of Cusco, 1750-1825, Cambridge University Press, 2005,<br />

página 58.<br />

131 <strong>Da</strong>vid T. Garrett, página 59.<br />

132 <strong>Da</strong>vid T. Garrett, página 42.


SIMÓN BOLÍVAR


DA DIREITA PARA A ESQUERDA<br />

Na Venezuela, entre bater aquela vontade e sentar no vaso sanitário, é preciso pedir<br />

licença ao “Libertador” Simón Bolívar pelo menos duas vezes. O herói da independência<br />

nacional, conquistada depois de 11 anos de luta em 1821, está em todos os lugares. No<br />

nome do país, a República Bolivariana da Venezuela, nas ruas, nos muros, nos cartazes e<br />

nas notas de dinheiro – a moeda nacional é o Bolívar Forte. Nas livrarias de Caracas,<br />

não há uma estante sobre a História da Venezuela, assim como há uma de História da<br />

Argentina nas livrarias de Buenos Aires ou uma de História do Brasil nas de São Paulo.<br />

Há, sim, uma sobre Temas Bolivarianos. É como se a trajetória de um país inteiro ao<br />

longo dos séculos pudesse ser resumida à vida de um único homem.<br />

Bolívar, que nasceu na Venezuela, foi o protagonista de momentos decisivos na<br />

história desse e de outros cinco países. No fim do século 18 e início do 19, período em<br />

que ele viveu, as colônias espanholas na América nutriam enorme ressentimento com a<br />

metrópole. Durante a dinastia dos Bourbon, que governou a Espanha até 1808, o controle<br />

comercial foi restringido, e os impostos, elevados. Intendentes espanhóis foram<br />

nomeados para substituir os criollos, ou seja, os nativos americanos descendentes de<br />

europeus, nos principais cargos da burocracia do Estado. 133 Sob o reinado Bourbon, os<br />

oficiais de patentes mais elevadas no exército também passaram a ser, obrigatoriamente,<br />

espanhóis. 134 As colônias eram obrigadas a importar produtos como fumo, pólvora e<br />

tecidos apenas da Espanha e era apenas para lá que deveriam exportar seus metais e seus<br />

produtos agrícolas. “Os proprietários rurais criollos procuravam mercados de<br />

exportação maiores do que a Espanha poderia oferecer. Na Venezuela, os grandes<br />

latifundiários, produtores de cacau, de anil, de fumo, de café, de algodão e de couros<br />

viam-se permanentemente frustrados pelo controle espanhol do comércio de importaçãoexportação”,<br />

escreveu o historiador inglês Leslie Bethell. 135<br />

O Panamá foi parte da Colômbia até 1903 quando seus habitantes, apoiados pelos americanos, declararam<br />

independência. O suporte dos Estados Unidos se deveu ao interesse estratégico no Canal do Panamá, em construção na<br />

época.<br />

Um dos mais ricos desses proprietários, Simón Bolívar, uniu-se aos demais criollos<br />

venezuelanos para declarar a independência e iniciar uma série de batalhas contra a<br />

Espanha. Ele atravessou os Andes com uma tropa de venezuelanos e de mercenários<br />

ingleses até a atual Colômbia. Contando sempre com a ajuda dos criollos locais,<br />

começou uma luta vitoriosa no país vizinho. Enquanto isso, Equador e Panamá<br />

declararam sua independência. Depois, Bolívar viajou rumo ao sul, para o Peru, e repetiu<br />

o feito. Subiu até o Alto Peru, atacou novamente os espanhóis e assim contribuiu para a<br />

criação de uma nova nação, batizada em sua homenagem: Bolívia. Em 1821, seguindo<br />

suas ambições, Venezuela, Colômbia e Equador se uniram em um mesmo país, a Grande<br />

Colômbia, que tinha Bolívar como presidente e ainda incluía o Panamá.


ALBUM/ORONOZ/LATINSTOCK – CASA MUSEO QUINTA DE BOLÍVAR, BOGOTÁ<br />

Mural pintado pelo colombiano Jose Ignacio Castillo Cervantes mostra a entrada triunfal de Bolívar em Bogotá.<br />

Quase 200 anos após sua morte, todos esses países guardam uma dívida para com<br />

Bolívar, mas em nenhum deles a adoração é tão intensa quanto na Venezuela. Graças ao<br />

empurrãozinho do presidente Hugo Chávez, eleito em 1998, Bolívar é um herói<br />

internacional. Com ele, o bolivarianismo expandiu-se e ganhou o coração de muitos<br />

presidentes de esquerda (até da Argentina, onde o Libertador jamais esteve!), ansiosos<br />

por confessar sua “pegada bolivariana” e ganhar como recompensa alguns petrodólares<br />

venezuelanos.<br />

Sendo Bolívar hoje um ícone dos marxistas, emprestemos o centro do auditório para<br />

que o alemão Karl Marx, o pai intelectual da esquerda, nos introduza às particularidades<br />

desse personagem tão importante na América Latina. Por um capricho da história, em<br />

1857, Marx foi contratado pelo diretor do jornal New York <strong>Da</strong>ily Tribune para escrever<br />

alguns verbetes para uma tal New American Cyclopaedia. Entre suas atribuições, ele foi<br />

encarregado de resumir a vida de Bolívar, que tinha morrido com tuberculose 27 anos<br />

antes. Inicia, assim, o texto de Marx:<br />

Bolívar y Ponte, Simón, o “libertador” da Colômbia, nasceu em Caracas, em 24 de julho de 1783, e faleceu em San<br />

Pedro, perto de Santa Marta, em 17 de dezembro de 1830. Era filho de uma das famílias mantuanas que, no período da<br />

supremacia espanhola, constituíam a nobreza criolla da Venezuela. 136<br />

O verbete, então, segue contando as aventuras militares do comandante, incluindo<br />

traições a seus companheiros, como Francisco de Miranda, que encarregara Bolívar de<br />

tomar conta da fortaleza de Porto Cabello:<br />

Quando os prisioneiros de guerra espanhóis, que Miranda costumava confinar na fortaleza de Porto Cabello,<br />

conseguiram dominar de surpresa os guardas e tomar a cidadela, Bolívar – apesar de os prisioneiros estarem<br />

desarmados, ao passo que ele dispunha de uma guarnição numerosa e uma grande quantidade de munição – fugiu


precipitadamente durante a noite com oito de seus oficiais, sem informar seus próprios soldados. Ao tomar conhecimento<br />

da fuga de seu comandante, a guarnição retirou-se ordeiramente do local, que foi ocupado de imediato pelos<br />

espanhóis. 137<br />

Manuel Piar, um caudilho mestiço que lutou contra a Espanha, queria que Bolívar fosse a julgamento na Corte Marcial<br />

por deserção e covardia. Ele o chamava de “Napoleão das retiradas”. A disputa entre os dois fez com que Piar fosse<br />

depois fuzilado por Bolívar. 138<br />

É a primeira narração de Marx de uma fuga covarde de Bolívar. Ao todo, há outras<br />

cinco. Outra é esta aqui, quando Marx relata o depoimento de uma testemunha:<br />

Quando os combatentes [espanhóis] dispersaram a guarda avançada de Bolívar, segundo o registro de uma testemunha<br />

ocular, este perdeu toda a presença de espírito, não disse palavra, fez meia-volta no ato com o cavalo, fugiu a toda<br />

velocidade para Ocumare, passou pelo vilarejo num galope desabalado, chegou à baía próxima, apeou de um salto, entrou<br />

num bote e embarcou no Diana, deixando todos os seus companheiros privados de qualquer auxílio. 139<br />

Para Marx, Bolívar também era despótico e egocêntrico. A ideia fixa do venezuelano<br />

era criar uma única República, que seria resultante da independência de várias colônias:<br />

“Eu desejo, mais do que qualquer outro, ver formar-se na América a maior nação do<br />

mundo, menos por sua extensão e riquezas do que pela liberdade e glória”, 140 escreveu<br />

ele em uma carta na Jamaica, em 1815. Em 1826, com a Espanha fora da região, o<br />

Libertador organizou um congresso no Panamá com representantes de vários países de<br />

toda a América do Sul. Convidou até mesmo diplomatas do Brasil. Segundo o pensador<br />

alemão:<br />

O que Bolívar realmente almejava era erigir toda a América do Sul como uma única república federativa, tendo nele<br />

próprio seu ditador. Enquanto, dessa maneira, dava plena vazão a seus sonhos de ligar meio mundo a seu nome, o poder<br />

efetivo lhe escapou das mãos. 141<br />

O número de habitantes da Venezuela antes da guerra de independência beirava 1 milhão. Depois, estava em 660 mil.<br />

Três em cada dez venezuelanos pereceram no conflito. 142<br />

No ano seguinte, em 1827, Bolívar voltou à Venezuela após cinco anos lutando contra<br />

soldados que defendiam a Espanha na Colômbia, no Peru e na Bolívia. Os interesses dos<br />

espanhóis eram guarnecidos por apenas mil soldados, a maioria deles americanos<br />

doentes e mal equipados. 143 Para ajudá-los, a Espanha enviou sua maior expedição<br />

militar para a colônia em três séculos de dominação e reforços anuais. “Mas o tamanho<br />

excedia a moral, e uma vez na América os números eram reduzidos pela morte ou<br />

deserção. Os soldados espanhóis eram conscritos (alistados obrigatoriamente), não<br />

voluntários. A Guerra Colonial não era uma causa popular na Espanha, e nem os<br />

soldados, nem os oficiais queriam arriscar suas vidas na América, muito menos na<br />

Venezuela, onde o ambiente de luta era notoriamente cruel”, escreveu John Lynch. 144<br />

Era tanta gente treinando para lutar com Bolívar nas ruas de Londres que a embaixada da Espanha apresentou uma<br />

reclamação formal ao governo inglês. Em 1819, foi decretado o Ato de Alistamento Estrangeiro, proibindo os britânicos<br />

de lutar em exércitos na América do sul e vender armas. Foi uma lei para espanhol ver, pois de nada adiantou. 145<br />

Para confrontá-los, Bolívar e seus parceiros criollos contaram com a ajuda dos<br />

ingleses. Após as guerras com Napoleão, havia milhares de soldados desempregados ou<br />

com baixos salários na Grã-Bretanha. Ansiavam tanto por um convite para lutar na<br />

América do Sul que treinavam voluntariamente durante o dia em Londres. Ao chegar à


Venezuela, passaram a ser conhecidos como bons marchadores, pois deixavam os<br />

soldados locais sempre para trás nos grandes deslocamentos de tropas. A Batalha de<br />

Boyacá, ocorrida quando Bolívar entrou na Colômbia e a qual o libertador considerava<br />

“minha mais completa vitória”, foi vencida graças aos ingleses, que também venderam<br />

rifles, pistolas e espadas aos republicanos.<br />

No retorno à Venezuela, quem recebeu Bolívar foi o general José Antonio Páez, que<br />

ajudara a debandar as tropas da metrópole e, três anos depois, se tornaria presidente da<br />

Venezuela. Em sua aula, o professor Marx nos conta então como se dá a entrada<br />

apoteótica do Libertador em Caracas:<br />

De pé sobre um carro triunfal, puxado por 12 jovens vestidas de branco e enfeitadas com as cores nacionais, todas<br />

escolhidas entre as melhores famílias de Caracas, Bolívar, com a cabeça descoberta e uniforme de gala, agitando um<br />

pequeno bastão, foi conduzido por cerca de meia hora, desde a entrada da cidade até sua residência. Proclamando-se<br />

“Diretor e Libertador das Províncias Ocidentais da Venezuela”, criou a “Ordem do Libertador”, formou uma tropa de<br />

elite que denominou de sua guarda pessoal e se cercou da pompa própria de uma corte. Entretanto, como a maioria de<br />

seus compatriotas, ele era avesso a qualquer esforço prolongado, e sua ditadura não tardou a degenerar numa anarquia<br />

militar, na qual os assuntos mais importantes eram deixados nas mãos de favoritos, que arruinavam as finanças públicas<br />

e depois recorriam a meios odiosos para reorganizá-las. 146<br />

Ao ser questionado se não teria exagerado na crítica ao descrever uma pessoa com<br />

tantas conquistas, Marx respondeu o seguinte em uma carta para o camarada Friedrich<br />

Engels:<br />

Seria ultrapassar os limites querer apresentar como Napoleão I o mais covarde, brutal e miserável dos canalhas. 147<br />

Um rei para a América Latina<br />

Em resumo, a aula de Karl Marx sobre Simón Bolívar revela que esse último lhe<br />

suscitara uma imagem nada honrosa. O venezuelano, segundo ele, era covarde, folgado,<br />

egocêntrico, narcisista, inútil como estrategista militar e sempre ávido por acumular<br />

poder. Marx tinha razão? Em alguns pontos, sim. Em outros, é difícil saber.<br />

Principalmente em relação às acusações sobre sua falta de bravura e sua preguiça. Mas<br />

uma análise das atitudes políticas que Bolívar tomava após suas conquistas militares, das<br />

cartas que escreveu, dos discursos e, principalmente, da Constituição que redigiu para a<br />

Bolívia não deixa dúvida com relação às acusações de que ele fez de tudo para acumular<br />

poder. Apesar de ter entrado em contato com conceitos iluministas durante uma viagem à<br />

França e à Inglaterra, essas ideias começaram a se enfraquecer logo após seu retorno até<br />

desaparecerem.<br />

Bolívar, um devorador de livros, leu Jean-Jacques Rousseau, John Locke, Voltaire e<br />

Montesquieu. Do inglês Locke, aprendeu o conceito de que os homens tinham direitos<br />

naturais, como a vida, a propriedade e a liberdade. Do francês Rousseau, sorveu a<br />

necessidade de lutar por liberdade, o que ele interpretou como a urgência do fim do<br />

domínio espanhol. “O homem nasce livre, mas em qualquer lugar está acorrentado”, lia<br />

ele em seu livro de cabeceira Do Contrato Social, de Rousseau. Todos esses autores<br />

exerceram alguma influência sobre o venezuelano no início de sua vida política. Era


também uma época marcada por duas revoluções, a inglesa do século 17 e a francesa de<br />

1789. Bolívar e os demais criollos viam com bons olhos o sucesso econômico da<br />

Inglaterra, que sobrepujava a Espanha, mas tinham receio de repetir o banho de sangue<br />

que se dera na França. 148 De qualquer modo, nos seus anos de vida, as ideias mais<br />

revolucionárias já tinham desaparecido de sua mente, e Bolívar defendia abertamente um<br />

absolutismo monárquico nos territórios que anos antes ele ajudara a libertar do rei<br />

espanhol.<br />

Seus primeiros traços autoritários aparecem logo no início dos confrontos, em 1813.<br />

Depois que a disputa com os espanhóis na Venezuela chegou a um impasse, Bolívar<br />

viajou com um exército mercenário para a Colômbia, com o objetivo de abrir uma outra<br />

frente contra os espanhóis. Em Cartagena, em 1813, após dominar os inimigos<br />

colonizadores, Bolívar estabeleceu uma pequena ditadura. Ditava as políticas e nomeava<br />

os membros do governo. Recebeu poder supremo pela assembleia recém-formada e<br />

estabeleceu um governo linha-dura, sem misericórdia com os espanhóis e com a pena de<br />

morte para os que ameaçavam a ordem social. No ano seguinte, ele justificou sua<br />

ditadura como uma medida necessária para manter sob controle um país em estado de<br />

emergência:<br />

Meu desejo de salvar vocês da anarquia e de destruir os inimigos que ainda estão se esforçando para manter os<br />

opressores me forçaram a aceitar e manter o poder soberano […]. Eu vim para trazer a vocês o estado das leis.<br />

Na Carta da Jamaica, em 1815, já começou a atacar mais fortemente os valores e as<br />

instituições democráticos, os quais ele considerava inadequados para as sociedades<br />

americanas:<br />

Eventos na Terra Firme nos provaram que instituições totalmente representativas não estão adaptadas para o nosso<br />

caráter, costumes e conhecimento atual. Em Caracas o espírito dos partidos cresceu nas sociedades, assembleias e<br />

eleições populares, e os partidos nos levaram de volta à escravidão. 149<br />

Talvez Bolívar estivesse certo quanto às limitações da democracia. O fato é que assim<br />

se revela sua malandragem intelectual. Ele adorava escrever em suas longas cartas que<br />

era um liberal, adepto das ideias do Iluminismo, da igualdade entre as pessoas, da<br />

separação dos poderes. Muito nobre. Algumas linhas abaixo, e ele já se dizia convencido<br />

de que isso não valia para a América, que a herança de colônia espanhola e a mistura de<br />

raças tornavam impossível implantar algo assim por aqui. A solução? Um governo de<br />

“pulso infinitamente firme, um tato infinitamente delicado”. Em um discurso de 1819,<br />

essa artimanha fica evidente. Primeiro, Bolívar afirma ser um partidário da democracia,<br />

da liberdade, da alternância de poder:<br />

A continuação da autoridade em um mesmo indivíduo frequentemente tem sido o fim dos governos democráticos. As<br />

repetidas eleições são essenciais nos sistemas populares, porque nada é tão perigoso como deixar permanentemente por<br />

um longo tempo em um mesmo cidadão o poder. O povo se acostuma a obedecer, e ele se acostuma a mandar, de onde<br />

se origina a usurpação e a tirania.<br />

Depois, solta esta:<br />

A diversidade da origem social requer uma mão infinitamente dura e um tato infinitamente delicado para administrar essa


sociedade heterogênea, cujo complexo mecanismo é facilmente deteriorado, separado e desintegrado pela menor<br />

controvérsia. 150<br />

No mesmo texto, em que dá orientações para a formação de um único governo para<br />

administrar a Venezuela e a Colômbia e de um Congresso, propõe a criação de um<br />

Senado hereditário, seguindo o modelo da Câmara dos Lordes inglesa. No trecho,<br />

defende regalos monárquicos:<br />

A veneração que professam os povos à magistratura real é um prestígio que influi poderosamente para aumentar o<br />

respeito supersticioso que se atribuiu a essa autoridade. O esplendor do trono, da coroa, da púrpura, o apoio formidável<br />

que empresta a nobreza, as imensas riquezas que gerações inteiras acumulam em uma mesma dinastia, a proteção<br />

fraternal que reciprocamente recebem todos os reis são vantagens muito consideráveis que militam em favor da<br />

autoridade real e a fazem quase ilimitada. Essas mesmas vantagens são, por consequência, as que devem confirmar a<br />

necessidade de atribuir a um magistrado republicano uma soma maior de autoridade que a que possui um príncipe<br />

constitucional. 151<br />

Quando ajuda na independência da Bolívia e escreve a Constituição do país, sua veia<br />

autoritária se revela plenamente. Segundo o texto, o presidente deve governar por toda a<br />

sua vida e teria o direito de escolher o seu sucessor e o vice-presidente (que seria o<br />

primeiro-ministro). Eleições deveriam ser evitadas, pois, segundo ele, apenas produzem<br />

anarquia. 152 Nem mesmo os conservadores europeus eram tão conservadores:<br />

Estou convencido do tutano dos meus ossos que a América só pode ser governada por um despotismo hábil. 153<br />

Com a aprovação de seu projeto de Constituição, Bolívar tentou espalhar essa mesma<br />

carta de leis pelos demais países da América do Sul onde tinha alguma influência e<br />

convidou seus presidentes ao tal Congresso no Panamá. Era isso o que Marx queria dizer<br />

com “O que Bolívar realmente almejava era erigir toda a América do Sul como uma<br />

única república federativa, tendo nele próprio seu ditador”.<br />

Bolívar participou da luta de classes – só que na parte de cima<br />

O que mais impressiona no verbete escrito por Marx, contudo, não é o que o alemão<br />

diz a respeito do venezuelano, mas o que ele esqueceu. Ao participar dos conflitos de<br />

independência, Bolívar envolveu-se em uma sangrenta luta de classes. Não no lado de<br />

baixo, das classes menos favorecidas, mas na classe de cima. Seu maior medo era que<br />

negros, índios e mestiços tomassem o poder e instalassem um governo dos pardos, que<br />

eram os negros livres e mulatos. Bolívar se referia a isso como uma “pardocracia”. Em<br />

uma carta endereçada ao general Francisco de Paula Santander, ele escreveu:<br />

A igualdade natural não é o bastante para o povo, que quer uma igualdade absoluta, tanto no público como no doméstico.<br />

E depois irá querer a pardocracia, que é a inclinação natural e única, para exterminar depois a classe privilegiada. 154<br />

Um mês depois, ele afirma:<br />

Vão nos sepultar em uma guerra de cores, ou mais ainda, destruir nossa miserável espécie. 155


Com a intenção de realçar os traços latinos do seu libertador querido, o presidente venezuelano Hugo Chávez, no<br />

programa dominical Aló Presidente, em 5 de março de 2006 disse: “Bolívar não era branco. Bolívar nasceu entre os<br />

negros, era mais negro do que branco. Não tinha olhos verdes. Bolívar era zambo”. 156<br />

O preconceito contra outros grupos sociais era comum. Sua família era parte da elite<br />

branca espanhola, de origem basca. Era um “mantuano”, como eram chamados os donos<br />

de terras e de escravos e comandantes do exército colonial 157 que descendiam dos<br />

espanhóis. O pai, que morreu de tuberculose quando ele tinha dois anos, possuía duas<br />

fazendas de cacau, uma de cana-de-açúcar na cidade de San Mateo, três ranchos de gado<br />

nas planícies, uma plantação de índigo, uma mina de cobre e quatro casas em Caracas e<br />

outras em La Guaira. A consciência de raça era bem enraizada em toda a região, e as<br />

conversas de vizinhos normalmente eram sobre a ascendência dos demais. 158<br />

O temor de Bolívar tinha fundamento de acordo com o pensamento da época. Na<br />

Venezuela, de economia agrícola, escravos e pardos constituíam 61% da população, ou<br />

seja, a maioria. 159 Por decisão dos espanhóis, foi permitido a eles que integrassem as<br />

milícias, decisão que foi reprovada pela aristocracia local, temerosa de rebeliões. 160 Não<br />

era uma época tranquila para as aristocracias. Na Europa, os princípios liberais da<br />

Revolução Francesa tinham acabado em guilhotina e tragédia. No Haiti, então a colônia<br />

francesa mais próspera no Caribe, uma revolta de escravos matou senhores brancos e<br />

tomou propriedades em 1791. A partir de então, boa parte dos agricultores e dos donos<br />

de terras deixaram o país, que mergulhou em conflitos raciais de brancos ricos, brancos<br />

pobres, mulatos, negros livres e escravos, além da invasão de franceses, ingleses e<br />

espanhóis. Depois de anos seguidos de devastação e carnificinas, a República do Haiti,<br />

proclamada em 1804, matou ou expulsou todos os brancos que viviam por ali e manteve<br />

os negros em um sistema que dissimulava a escravidão (veja mais sobre o Haiti na<br />

página 157).<br />

Quando Napoleão invadiu a Espanha, em 1807, as colônias latino-americanas ficaram<br />

subitamente sem uma metrópole para obedecer. Mais do que isso, a aristocracia criolla<br />

percebeu que não poderia contar com ela para sua proteção. No vácuo de poder,<br />

esperava-se que uma revolução acontecesse de um jeito ou de outro. “Os hispanoamericanos<br />

tiveram de preencher o vazio político e conquistar sua independência, não<br />

para criar um outro Haiti, mas para impedi-lo”, escreveu o historiador John Lynch. 161<br />

Não é por acaso que em toda a América Latina, os mesmos militares e aristocratas que<br />

tinham lutado contra a Espanha passam a atuar para conter insatisfações sociais e<br />

pequenas rebeliões internas. “Após um envolvimento inicial numa agitação puramente<br />

fiscal, os criollos geralmente percebiam o perigo de um protesto mais violento das<br />

camadas inferiores, dirigido não somente contra a autoridade administrativa mas também<br />

contra todos os opressores”, afirma o historiador Leslie Bethell. “Então se uniam às<br />

forças da lei e da ordem para reprimir os rebeldes sociais.” 162<br />

De qualquer modo, a aula de Marx foi incompleta. Bolívar tinha medo das classes<br />

sociais abaixo dele e agiu para evitar que elas chegassem ao poder. Não ter enxergado<br />

isso foi uma falta gravíssima de Marx, considerando-se que hoje seus discípulos de<br />

universidades públicas e privadas sempre começam qualquer análise social procurando,<br />

em qualquer lugar, em qualquer data, qualquer coisa relacionada a uma luta de classes.<br />

Na opinião de Simón Bolívar, que escreveu a constituição da Bolívia, essa sua obra-


prima tinha o mérito de criar uma ferramenta para enfrentar os obstáculos que viriam pela<br />

frente, principalmente as rebeliões de pardos, mestiços e mulatos, nascidos da mistura de<br />

espanhóis, índios e negros africanos:<br />

Um grande vulcão está sob nossos pés, e seus tremores não são poéticos ou imaginários, mas muito reais. Quem deve<br />

reconciliar as mentes? Quem deve reprimir as classes oprimidas? A escravidão vai quebrar seu jugo, cada tom de cor<br />

vai buscar supremacia, e o resto vai lutar como vitória ou morte. Ódios latentes entre as diferentes classes vão aparecer<br />

de novo, cada opinião vai querer ser soberana. 163<br />

Em uma carta ao general Santander, Bolívar deixa transparecer sua obsessão com o<br />

perigo das classes subalternas. Entre os argumentos para convencer o destinatário a<br />

aceitar negros nas fileiras do exército era que, assim, seria possível reduzir o número<br />

(por meio das baixas) e manter o saudável equilíbrio social da República. 164<br />

Não seria apropriado que os escravos adquirissem seus direitos no campo de batalha, e que os seus números perigosos<br />

fossem reduzidos por um processo que é ao mesmo tempo efetivo e legítimo? Na Venezuela nós temos visto a população<br />

livre morrer e os escravos sobreviverem. Eu não sei o quanto isso é político, mas sei que, a menos que a gente recrute<br />

escravos em Cundinamarca, a mesma coisa vai acontecer de novo. 165<br />

Onde está lá (no Haiti) um exército de ocupação para impor a ordem? África? − nós teremos mais e mais da África. Eu<br />

não digo isso levemente, qualquer um com pele branca que escape será sorte. 166<br />

Bolívar contra os bolivarianos<br />

Felizmente, a ambição de Bolívar em juntar vários países americanos sob sua ditadura<br />

não agradou aos militares nem aos donos de terras. O encontro no Panamá foi um<br />

fracasso diplomático. Equador, Colômbia e Venezuela eram países com identidades<br />

nacionais já construídas, que não tinham nada a ganhar sob o mando de um ditador<br />

venezuelano e sua autoritária Constituição boliviana. Além do mais, seu conceito de uma<br />

única nação era impraticável. Os pré-requisitos para uma união política ou comercial<br />

eram pequenos. Por essa época, Venezuela, Colômbia e Equador não tinham mais do que<br />

3 milhões de habitantes, pouco menos do que tem hoje a região metropolitana de<br />

Maracaibo, na Venezuela. 167 A maior parte vivia no campo, e não havia na região uma<br />

única cidade com mais de 40 mil habitantes. 168 O transporte terrestre era precário. As<br />

distâncias normalmente eram vencidas a cavalo, em estradas de terra. Diz-se que Bolívar<br />

teria percorrido mais de 100 mil quilômetros em sua vida. Os Andes não ajudavam. Ao<br />

cruzar as montanhas com uma legião de mercenários ingleses para lutar em Boyacá, na<br />

Colômbia, um em cada quatro gringos morreu no caminho. 169 A navegação costeira e<br />

fluvial também era difícil. O barco a vapor até facilitou a vida, mas era preciso esperar<br />

dias até que ele ficasse carregado para que a viagem compensasse financeiramente.<br />

“Poucas pessoas viajavam, assim como poucas mercadorias viajavam”, escreve o<br />

historiador Leslie Bethell. 170 Segundo ele, “as distâncias eram grandes demais, e a<br />

identidade de cada província era demasiado forte para que um governo localizado em<br />

Bogotá pudesse durar muito tempo depois da vitória definitiva sobre as forças<br />

espanholas. Entre as três províncias não havia quaisquer vínculos econômicos mais


estreitos”.<br />

Com seu discurso alienígena e sem ter uma função prática no novo cenário, uma vez<br />

que as batalhas já haviam sido vencidas, a popularidade de Bolívar foi se esmigalhando.<br />

Em 1828, em Bogotá, ele sofreu um atentado. Estava dormindo no Palácio de San Carlos,<br />

hoje sede do Ministério das Relações Exteriores, quando um grupo invadiu o prédio,<br />

matou três sentinelas e os cachorros de guarda. Bolívar, alertado por Manuela Sáenz, sua<br />

amante, fugiu pela janela e teve de se esconder, por três horas, nadando nas águas sujas<br />

do rio San Agustin, embaixo de uma ponte, até que o perigo passasse. 171<br />

A falta de sintonia do herói com a sociedade o transformou em vilão. Nas ruas de<br />

Bogotá, a população queimava retratos de Bolívar e gritava o nome de Santander. O<br />

general ficou dirigindo seu país, a Colômbia, como vice-presidente, enquanto o Bolívar<br />

viajava pelo Peru e pela Venezuela. Nesse tempo, Santander colocou-se contra as<br />

investidas autoritárias e monárquicas de Bolívar, insuflando alguns grupos políticos<br />

contra seu antigo companheiro, ao lado do qual tinha lutado no passado. O jornal El<br />

Fanal escreveu em seu editorial frases bem próximas das que os jornais colombianos de<br />

hoje escrevem sobre o venezuelano Hugo Chávez:<br />

O general Bolívar não tem tentado outra coisa em toda a sua carreira de administração despótica senão absorver em sua<br />

vida um mando absoluto e arbitrário sobre o povo colombiano a quem tem considerado sempre como seu verdadeiro<br />

patrimônio.<br />

O jornal Gazeta de Colombia seguiu a mesma linha:<br />

Se tivéssemos chegado sequer a imaginar que os imensos sacrifícios feitos pela causa da liberdade haviam de refluir em<br />

proveito da utilidade de Bolívar, estamos certos de que todos teriam permanecido tranquilos com os espanhóis. 172<br />

Com o clima pesado, o Libertador decidiu deixar a Colômbia com destino incerto:<br />

Jamaica ou Europa. Do caminho, escreveu ao general Flores, que então governava o<br />

Equador:<br />

Você sabe que eu governei por 20 anos e desses tirei apenas algumas certezas:<br />

(1) A América é ingovernável por nós;<br />

(2) Quem serve à causa da revolução perde tempo;<br />

(3) A única coisa a fazer na América é ir embora;<br />

(4) Este país cairá infalivelmente nas mãos de massas desenfreadas e quase imperceptivelmente passará para as mãos<br />

de tiranos mesquinhos de todas as raças e cores;<br />

(5) Uma vez que formos devorados por todos os crimes e aniquilados pela ferocidade, seremos desprezados pelos<br />

europeus;<br />

(6) Se fosse possível que uma parte do mundo voltasse ao caos primitivo, essa parte seria a América na sua hora<br />

final. 173<br />

Ídolo de Mussolini, cultuado por Chávez<br />

Tendo em vista que algumas revoluções da época (assim como quase todas as<br />

revoluções) resultaram em caos, dá para entender por que Bolívar teve atitudes<br />

autoritárias, centralistas e repressoras. O mistério é que ele tenha sido adotado como um<br />

herói por pessoas de esquerda que, ainda hoje, querem convencer a todos que são


democratas convictos, avessos à ditaduras. Como já escreveu o pensador venezuelano<br />

José Toro Hardy, “uma pessoa pode ser marxista ou pode ser bolivariana, mas não se<br />

pode ser marxista e bolivariana ao mesmo tempo”. 174<br />

A apropriação de Bolívar pelos socialistas é recente. Até o fim do século passado,<br />

Bolívar foi frequentemente lembrado pela direita e por ditadores. Um deles foi Juan<br />

Vicente Gómez, o mais terrível ditador venezuelano, presidente em quatro mandatos,<br />

entre 1908 e 1935. No seu segundo ano no poder, Gómez ordenou a reconstrução do<br />

Panteão Nacional, depois de um terremoto que destruiu o prédio em 1900. O edifício,<br />

construído inicialmente para ser a Igreja da Santíssima Trindade, tinha sido adaptado<br />

para guardar os restos de Simón Bolívar, em 1876.<br />

Gómez, que aboliu os partidos, gostava especialmente daquele último pensamento de<br />

Bolívar: “Se a minha morte contribui para que acabem os partidos e se consolide a<br />

União, eu baixarei tranquilo ao sepulcro”. 175 A frase está à direita do altar no panteão em<br />

Caracas. Para ditadores ávidos por reprimir movimentos dissonantes, como Gómez, as<br />

derradeiras palavras do Libertador caíram muito bem.<br />

Na Itália, Bolívar virou herói dos fascistas. Ézio Garibaldi, presidente do Senado,<br />

chegou ao extremo de pensar que Benito Mussolini, o ditador que se juntou a Adolf Hitler<br />

na Segunda Guerra, fosse uma reencarnação de Bolívar. “Há no Duce a mesma audácia<br />

religiosa do ditador Bolívar, a mesma fé inquebrantável no destino da Pátria e no seu<br />

próprio.” 176 Giuseppe Bottai, ministro do governo de Mussolini, dizia que “a Itália<br />

fascista vislumbra em Simón Bolívar um temperamento extremamente próximo a nossa<br />

sensibilidade política. Bolívar não é só um libertador, mas também, e sobretudo, um<br />

homem de armas, um condottiero”. 177<br />

Por fim, o próprio Mussolini fez referências ao venezuelano. Disse o Duce durante a<br />

inauguração do monumento ao herói:<br />

Herói honesto, empurrado por uma energia incontrolável e às vezes cruel, semelhante à que animava aos primeiros<br />

conquistadores, digna de sua própria linhagem.<br />

Contribuiu com uma obra verdadeiramente revolucionária e criadora, a assentar as bases da América Latina de hoje em<br />

dia. 178<br />

Bolívar é atraído para a esquerda só em 1992, quando o presidente Hugo Chávez, após<br />

tentar um golpe de Estado, começa a citá-lo em seus discursos e textos. De início,<br />

ninguém ligou. Mas com o tempo ficou impossível não reparar. Por obra do presidente<br />

venezuelano, Bolívar tornou-se um dos raríssimos casos conhecidos no universo de uma<br />

pessoa que, com o tempo, passou da direita para a esquerda. Chávez deixa até uma<br />

cadeira vazia ao seu lado na cabeça da mesa de reuniões, no Palácio Miraflores, a sede<br />

do Poder Executivo, para Bolívar passar lá de vez em quando e lhe dar alguns<br />

conselhos. 179 A julgar pela ditadura que a Venezuela se tornou nos últimos dez anos, é<br />

razoável acreditar que, sim, Simón Bolívar, senta ali todos os dias. Mais vivo do que<br />

nunca, dá seguidos conselhos catastróficos a Hugo Chávez.<br />

133 Leslie Bethell, História da América Latina: da Independência até 1870, Edusp, 2009, página 25.<br />

134 Leslie Bethell, página 28.


135 Leslie Bethell, página 39.<br />

136 Karl Marx, Simón Bolívar por Karl Marx, Martins Fontes, 2008.<br />

137 Karl Marx, página 34.<br />

138 Karl Marx, página 45.<br />

139 Karl Marx, página 43.<br />

140 Carta de Jamaica, disponível em www.analitica.com/bitbliotecarob/bitblioteca/bitblioteca/bolivar/jamaica.asp.<br />

141 Karl Marx, página 53.<br />

142 Ángel Rafael Lombardi Boscán, “1813: La ‘Guerra a Muerte’ – El horror se abate sobre Venezuela”, Revista de Artes y<br />

Humanidades UNICA, volume 4, número 8, Universidad Católica Cecilio Acosta, 2003, páginas 57-75.<br />

143 John Lynch, Simón Bolívar, a Life, Yale University Press, 2006, página 125.<br />

144 John Lynch, página 91.<br />

145 John Lynch, página 123.<br />

146 Karl Marx, página 37.<br />

147 Karl Marx, página 7.<br />

148 John Lynch, página 30.<br />

149 John Lynch, página 94.<br />

150 Simón Bolívar, “Discurso de Angostura”, disponível em www.analitica.com/bitblioteca/bolivar/angostura.asp. Publicado<br />

originalmente no Correo del Orinoco, em março de 1819.<br />

151 Idem.<br />

152 John Lynch, página 202.<br />

153 John Lynch, página 217.<br />

154 Elías Pino Iturrieta, Simón Bolívar, coleção Biblioteca Biográfica Venezolana, volume 100, El Nacional, 2009, página 163.<br />

155 Elías Pino Iturrieta, página 163.<br />

156 Plinio Apuleyo Mendoza, Carlos Alberto Montaner, Álvaro Vargas Llosa, A Volta do Idiota, Odisseia Editorial, 2007,<br />

página 157.<br />

157 John Lynch, página 10.<br />

158 John Lynch, página 9.<br />

159 Leslie Bethell, página 50.<br />

160 Idem.<br />

161 John Lynch, “As origens da independência da América Espanhola”, em Leslie Bethell, História da América Latina,<br />

Edusp, 2009, volume 3, página 71.<br />

162 Leslie Bethell, página 53.<br />

163 John Lynch, página 224.


164 Manuel Caballero, Por Qué No Soy Bolivariano, Editorial Alfa, 2006, página 148.<br />

165 John Lynch, página 152.<br />

166 John Lynch, página 218.<br />

167 Leslie Bethell, página 506.<br />

168 Idem.<br />

169 John Lynch, página 128.<br />

170 Leslie Bethell, página 508.<br />

171 John Lynch, página 241.<br />

172 Elías Pino Iturrieta, página 185.<br />

173 John Lynch, página 276.<br />

174 José Toro Hardy, ”Revolucion Socialista del Siglo XXI?”, El Universal, 10 de agosto de 2010, páginas 3-6.<br />

175 Manuel Caballero, página 51.<br />

176 Manuel Caballero, página 72.<br />

177 Idem.<br />

178 Elías Pino Iturrieta, El Divino Bolívar, Editorial Alfa, 2006, página 136.<br />

179 Elías Pino Iturrieta, página 189.


Na sua conversão forçada para a esquerda, Bolívar tornou-se também um ícone<br />

antiamericano. Alguns acreditam que, ainda no início do século 19, o libertador já teria<br />

farejado o papel que os Estados Unidos exerceriam no mundo, expandindo sua área de<br />

influência. Um profeta. Um visionário. Tudo por conta de sua frase:<br />

... e os Estados Unidos que parecem destinados pela Previdência para encher a América de misérias em nome da<br />

liberdade?<br />

Não é bem assim. Em primeiro lugar, Bolívar era um fervoroso devoto da Inglaterra,<br />

império que andava em rixa com sua ex-colônia e disputava mercados com os<br />

americanos. O Libertador, vale lembrar, recebeu amplo apoio dos ingleses para sua luta<br />

de independência. Estima-se que 6 mil ingleses e irlandeses mercenários viajaram em 53<br />

navios para lutar ao lado do venezuelano contra a Espanha. 180 Foi para um representante<br />

da Inglaterra que Bolívar mandou a carta que continha a frase acima: falar mal dos<br />

Estados Unidos era um ótimo jeito de conquistar a benevolência do inglês.<br />

UM PROFETA DO ANTIAMERICANISMO<br />

Em segundo lugar, a oposição de Bolívar aos Estados Unidos tinha um toque de inveja.<br />

Ao declarar-se independente da Inglaterra e implantar uma república – tudo isso 13 anos<br />

antes da Revolução Francesa –, o país se tornou exemplo de revolução e republicanismo<br />

para os europeus e os latino-americanos. Os avanços obtidos nas áreas de educação, nas<br />

eleições e na redução do analfabetismo estavam muito além do que tinha conquistado a<br />

Colômbia ou a Venezuela na época. E eram esses princípios que o venezuelano dizia que<br />

jamais funcionariam na América. O modelo de Bolívar era o absolutismo monárquico,<br />

não a república ou o federalismo.<br />

180 John Lynch, página 122.


HAITI


OS REVOLUCIONÁRIOS REACIONÁRIOS<br />

Uma das primeiras histórias de viagem no tempo a conquistar multidões de leitores<br />

foi o conto O Ano 2440, escrito pelo francês Louis-Sébastien Mercier em 1771. Mesmo<br />

proibida pelas autoridades de Versalhes por causa de suas críticas à monarquia, a obra<br />

foi o maior best-seller da época. Teve em poucos meses 25 reimpressões, popularizando<br />

ideias que resultariam, 18 anos depois, na Revolução Francesa. Em O Ano 2440, o<br />

narrador conta que, logo depois de uma tensa discussão com um amigo sobre as injustiças<br />

de Paris, resolveu tirar uma soneca. Acorda com uma longa barba, o corpo fraco e<br />

envelhecido: tinha dormido por quase 700 anos. Um filósofo logo percebe sua situação e<br />

se dispõe a guiar o viajante no tempo pela Paris de 2440. 181<br />

O futuro que Mercier descreve é a sua imagem de um mundo quase perfeito. Paris tinha<br />

deixado de ser o lugar sujo e desorganizado de 1771 para dar lugar a ruas limpas,<br />

planejadas e cheias de árvores. Uma revolução havia limitado o poder do rei, que andava<br />

a pé pela cidade, assim como quase todos os habitantes – e as melhores carruagens eram<br />

reservadas aos idosos. A população vivia em igualdade quase total, vestindo o mesmo<br />

tipo de roupas e morando em casas do mesmo padrão. Não havia mendigos, prisões,<br />

criminosos, soldados, impostos, padres e, o principal: não existiam escravos. A<br />

escravidão tinha sido abolida séculos antes, depois de uma grande revolta dos negros.<br />

No centro de uma praça, o narrador se depara com a estátua de um célebre<br />

revolucionário negro que fez jorrar o sangue de seus tiranos e libertou o mundo daquele<br />

costume odioso. “Franceses, espanhóis, ingleses, holandeses e portugueses, todos se<br />

tornaram vítimas do ferro, do veneno e do fogo. O solo da América bebeu avidamente o<br />

sangue que esperava por tanto tempo.” 182<br />

Algumas previsões do escritor Mercier se tornaram realidade muito antes do que ele<br />

imaginou. Paris passaria no século 19 por uma transformação urbanística que resolveria<br />

o caos das vielas medievais e daria origem aos bulevares que hoje marcam a cidade. Em<br />

1789, os cidadãos enfrentariam o rei Luís XVI para logo depois invadir igrejas e<br />

massacrar religiosos. Dois anos depois, os escravos da mais importante colônia francesa<br />

na América, o Haiti, que naquela época se chamava São Domingos, deixaram as senzalas<br />

e invadiram a casa de seus senhores. Mataram franceses, violentaram suas mulheres e<br />

filhas, queimaram canaviais e plantações de café. Com ataques repentinos, destruíam<br />

moinhos e casas de engenho, capturavam prisioneiros e armavam grandes festas no que<br />

havia sido seu cativeiro. “Espantados com o próprio progresso e bêbados de prazer,<br />

gastavam preciosos momentos festejando suas vitórias, festas que acabavam no massacre<br />

de um grande número de prisioneiros desafortunados”, contou um naturalista francês<br />

chamado Michel Descourtilz, que testemunhou as revoltas. 183 Planejados por uma extensa<br />

rede de líderes escravos, os ataques aconteceram ao mesmo tempo em centenas de<br />

propriedades. Apavorados, muitos fazendeiros fugiram para Cuba ou para outras<br />

colônias francesas, como Martinica e Guadalupe. Ingleses e espanhóis tentaram se<br />

apoderar da colônia, mas, como previu o best-seller Mercier, também foram vítimas do<br />

ferro e do fogo dos rebeldes negros. A Revolução do Haiti foi a maior revolta escrava de


toda a história do mundo e a única da América em que os rebeldes acabaram<br />

vitoriosos. 184 Hoje, dois séculos depois, há no centro de Porto Príncipe, a capital do<br />

Haiti, uma estátua em homenagem ao rebelde negro desconhecido, como Mercier<br />

imaginou.<br />

A ilha de Hispaniola, onde estão o Haiti e a República Dominicana, foi onde o navegador Cristóvão Colombo<br />

estabeleceu a primeira colônia europeia, em 1492. A Espanha dominou a ilha até 1697, quando reconheceu a existência<br />

de colonos franceses da parte oeste e cedeu metade da ilha para a França. O território ficou dividido em duas colônias<br />

com nome parecido: Santo Domingo, do lado espanhol (hoje República Dominicana), e Saint-Domingue, ou São<br />

Domingos, do lado francês, hoje Haiti.<br />

Nas primeiras plantations de São Domingos, servos brancos trabalhavam ao lado dos negros. Eram os engagés,<br />

trabalhadores com um pouco mais de direitos que os de origem africana. Depois de três anos de trabalho forçado e<br />

cativeiro, conquistavam a liberdade.<br />

No entanto, ao contrário da previsão do jovem escritor francês, a Revolução Francesa,<br />

em 1789, e a do Haiti dois anos depois não resultaram num mundo perfeito. Até então,<br />

São Domingos era uma das regiões mais prósperas do planeta. Seu território era ocupado<br />

por centenas de grandes fazendas de monocultura de exportação, as plantations, que<br />

usavam engenhos e sistemas de irrigação dos mais modernos da América. Apesar do<br />

pequeno tamanho a colônia produzia 40% de todo o açúcar consumido no mundo durante<br />

boa parte do século 18 – uma produção maior até mesmo que a do Brasil, colônia com<br />

um território 300 vezes maior. Le Cap (a principal cidade da época, no norte da colônia)<br />

tinha um teatro que abrigava 1.500 espectadores e recebia espetáculos logo depois de<br />

Paris. A cidade tinha ainda 25 padarias e um sistema de encanamento que levava água<br />

limpa das montanhas até fontes instaladas em praças. 185 Na agitada feira de domingo era<br />

possível encontrar porcelanas e joias trazidas por marujos da Europa, alimentos e<br />

especiarias, sapatos, chapéus, papagaios e macacos vindos de outras ilhas. “As<br />

montanhas eram cheias de florescentes fazendas de café e as cidades, um alvoroço de<br />

navios chegando e saindo, passageiros e mercadorias de todos os tipos”, conta o<br />

historiador Laurent Dubois, da Universidade Duke, nos Estados Unidos. “Em um século<br />

São Domingos cresceu de uma colônia marginal do Caribe para a mais rica colônia do<br />

mundo.” 186 No entanto, depois de 13 anos de batalhas intermináveis, o lugar ficou<br />

irreconhecível. Transformou-se num terreno de lavouras abandonadas, ruínas, cinzas e<br />

covas de brancos, mulatos e negros – e onde a escravidão ainda vigorava. Surgiu assim o<br />

país que é hoje o mais pobre da América.<br />

A revolução desencadeou uma sucessão de guerras e rebeliões. Começou como uma<br />

disputa entre classes sociais, com os rebeldes negros tentando se libertar de fazendeiros<br />

que se recusavam a lhes fazer concessões. No meio do turbilhão da Revolução Francesa,<br />

misturou-se a uma guerra civil entre elites, travada entre franceses brancos e mulatos,<br />

republicanos e monarquistas. Depois deu lugar a uma guerra entre impérios, pois a<br />

Espanha e a Inglaterra tentaram se aproveitar do caos que a França vivia tanto na Europa<br />

quanto no Caribe e tomar para si os valiosos territórios de São Domingos. E terminou<br />

como uma guerra de independência: quando tudo parecia calmo e um líder negro tentava<br />

pôr a colônia em ordem, o imperador Napoleão Bonaparte mandou 50 navios cheios de<br />

soldados para tentar retomar o poder de São Domingos e reimplantar a escravidão.<br />

Grande parte da destruição que essa próspera colônia sofreu se deve à insistência dos<br />

senhores brancos em manter a escravidão e o sistema colonial.


Essa história, porém, também revela que o costume milenar de ter e vender gente<br />

estava impregnado nos próprios líderes de escravos e de negros livres. Assim que<br />

conseguiram algum poder, eles se tornaram senhores escravistas a agir contra a<br />

liberdade. É difícil achar, na história da Revolução do Haiti, um protagonista de<br />

qualquer etnia ou classe social que não esteve imbuído ao mesmo tempo de ideias dos<br />

novos tempos e do Antigo Regime, de discursos contra o racismo e práticas racistas, de<br />

decisões revolucionárias e reacionárias. É o que mostram os cinco protagonistas<br />

descritos a seguir.<br />

A estranha revolta de Jean-François<br />

Em outras regiões da América, como em Minas Gerais, no Brasil, os escravos recém-chegados da África também<br />

ganhavam, tanto pelos brancos quanto pelos negros, o apelido de “bugres”. O termo também denominava os índios que<br />

tentavam se integrar na vida das cidades.<br />

A escravidão era um sistema tão estabelecido que os donos de terras, tanto do Brasil, do sul dos EUA ou do Caribe,<br />

confiavam sua própria segurança a escravos. <strong>Da</strong>vam a eles armas e os encarregavam até mesmo de capturar negros<br />

fugitivos. Por incrível que pareça, em boa parte dos casos esses homens armados não atacavam seus donos. Não foi o<br />

que aconteceu no Haiti.<br />

Para entender como aqueles escravos conseguiram planejar dezenas de revoltas<br />

simultâneas – numa época em que não havia Twitter ou Facebook –, é preciso conhecer<br />

duas coisas: sua rotina e o perfil de seus líderes.<br />

Os escravos de São Domingos, assim como quase todos na história, não eram uma<br />

massa uniforme, na mesma posição social. Havia aqueles com mais status e maior<br />

capacidade de impor sua vontade e liderar os demais. Os “boçais”, africanos recémchegados<br />

que não falavam a língua local, ingressavam nas fazendas em desvantagem em<br />

relação aos negros nascidos na América. Enquanto os novatos ficavam com o trabalho<br />

pesado da lavoura, os mais antigos tinham mais chances de conquistar a confiança de<br />

seus donos e ganhar tarefas consideradas mais nobres. No topo da pirâmide social do<br />

cativeiro estavam os empregados domésticos – mordomos, lavadeiras e cozinheiras – e<br />

também marceneiros, operadores das “máquinas” dos engenhos e seguranças, que<br />

evitavam furtos e fugas de colegas.<br />

Os mais poderosos eram os cocheiros e os feitores. Era um privilégio (se é que se<br />

pode falar de privilégios dentro da escravidão) ser cocheiro, porque dirigir carroças<br />

pelas vilas dava a possibilidade de ter acesso a outras fazendas, estabelecer mais<br />

contatos e circular com alguma liberdade. Já o feitor era uma espécie de líder informal e<br />

carismático das senzalas. Dele dependia tanto o dono da fazenda – que precisava de<br />

alguém influente para evitar descontentamentos e revoltas – quanto os escravos, pois ele<br />

tinha poder para liberar os doentes do trabalho, agir como um árbitro em brigas internas<br />

e permitir passeios à noite e aos domingos.<br />

Muitos senhores, para resolver o problema da alimentação dos escravos, cediam a eles um pedaço de terra para<br />

plantar o que preferissem. Muitos negros aproveitavam para produzir mais que o necessário e ganhar um dinheiro com a<br />

venda.<br />

Os mercados de rua de Porto Príncipe vendem aos turistas diversos bonecos daqueles que, segundo os filmes de<br />

terror, são alfinetados em rituais de vodu para atingir pessoas de verdade. Na realidade, esses bonecos têm pouco a ver<br />

com o vodu – são mesmo coisa de Hollywood. O vodu do Haiti está mais para a umbanda brasileira e a santería cubana:


ituais com tambores, danças e pessoas sendo incorporadas por entidades de outro mundo.<br />

Mistura de líder religioso e político, Dutty Boukman foi o arquiteto da revolta de 1791. Muito antes daquele dia, os<br />

escravos já vinham aterrorizando os senhores envenenando a água e a comida da casa grande. Líderes místicos como<br />

Boukman geralmente dominavam a arte de criar venenos a partir de plantas da ilha.<br />

Na rotina dos escravos, o domingo era o dia mais divertido, ou o único em que viver<br />

não era tão sofrido. Depois de passar os dias de semana trabalhando de sol a sol e gastar<br />

o sábado cuidando de suas hortas particulares, os escravos eram geralmente autorizados<br />

a deixar a fazenda. Boa parte deles aproveitava o dia livre para vender frutas e verduras<br />

nas agitadas feiras de rua das principais cidades. Depois da feira, chegava a hora de<br />

esticar em festas, casamentos ou cerimônias de vodu, o candomblé de São Domingos.<br />

Eram importantes eventos de socialização, quando os escravos trocavam notícias,<br />

queixas, planos e até conspirações políticas. Foi numa cerimônia de uma noite de<br />

domingo que a grande revolta de 1791 foi planejada.<br />

A cerimônia aconteceu em Bois Caiman, uma floresta no norte da ilha. Reuniram-se ali<br />

homens que formavam a elite dos escravos: além dos feitores e dos cocheiros, negros<br />

fugitivos, aqueles que tinham abandonado as fazendas para viver em quilombos nas<br />

florestas. Há pouca certeza sobre o que aconteceu de verdade em Bois Caiman, pois os<br />

cronistas da época tentaram retratar os negros como selvagens e bárbaros. Segundo eles,<br />

a reunião ocorreu sob uma forte tempestade e contou com danças e rituais de vodu. Um<br />

porco teria sido sacrificado para que os negros pudessem beber o seu sangue e firmar,<br />

assim, um pacto de lealdade. Há menos suspeita quanto ao acordo que foi feito naquela<br />

noite. Os líderes negros combinaram que, na noite do domingo, 21 de agosto de 1791,<br />

todos atacariam e matariam os senhores brancos em diversas fazendas, simultaneamente.<br />

A decisão foi logo comunicada entre as fazendas pelos cocheiros, e entre os escravos da<br />

mesma fazenda pelos feitores.


BIBLIOTECA NACIONAL DA FRANÇA, PARIS<br />

A revolta dos negros em 1791: Haiti em chamas.<br />

Deu certo. Na data marcada, milhares de negros deixaram as senzalas e invadiram as<br />

casas-grandes. Alguns gerentes de fazendas ou mesmo proprietários foram mortos na<br />

cama, enquanto dormiam; outros se esconderam nos canaviais e morreram queimados<br />

depois que os rebeldes atearam fogo às plantações. Poucos fugiram para contar a<br />

história. “Não poupavam nem os mais idosos – e algumas mulheres foram expostas a<br />

horrores mil vezes mais cruéis que a morte”, contou o naturalista Michel Descourtilz. O<br />

que mais impressionava e amedrontava os brancos eram o fogo dos canaviais e a fumaça<br />

que tomava conta de vilas inteiras por vários dias. O colono francês Antoine <strong>Da</strong>lmas<br />

descreveu o episódio com tons apocalípticos:<br />

O tamanho e o número de estabelecimentos consumidos pelo fogo criaram uma cena difícil de esquecer. A nuvem densa<br />

de fumaça, que durante o dia pairou acima de Cap Français, depois do pôr do sol ficou com a aparência de uma aurora<br />

boreal, situada acima de 20 plantations transformadas em vulcões. À meia-noite, o fogo apareceu no cais de Limonade,<br />

anunciando que os rebeldes haviam chegado até lá. No dia seguinte, as duas paróquias mais ricas e importantes no norte<br />

da província não eram nada além de cinzas e ruínas. 187<br />

Tropas de fazendeiros e do governo francês reagiram três meses depois, conseguindo<br />

capturar Boukman, o principal líder da revolta negra. Os rebeldes tinham então se<br />

reunido em diversos grupos armados. Com a execução de Boukman, o comando da<br />

maioria das tropas passou para um dos subordinados. Tratava-se de um típico líder negro<br />

da época, cocheiro que havia fugido de sua fazenda. Seu nome era Jean-François.


Alguns líderes escravos ficaram conhecidos pela extrema violência com que trataram não só os brancos, mas<br />

subordinados negros. Jeannot, que fazia parte do grupo de Jean-François, mandou queimar vivo um de seus assistentes<br />

suspeito de ajudar brancos a fugir. Jeannot logo depois foi morto por Jean-François. 188<br />

Em poucos meses, o cocheiro fugitivo já era um general de respeito. “O chefe supremo<br />

do exército africano estava sempre bem vestido”, contou um oficial chamado Gros (não<br />

se sabe seu primeiro nome), que foi capturado pelos homens de Jean-François e acabou<br />

virando assistente dele nas negociações de paz com os brancos. “Usava um crucifixo de<br />

São Luís [símbolo de exército real francês] e um cordão vermelho. Tinha dez guardacostas,<br />

que usavam uma bandoleira com a flor-de-lis [símbolo da Coroa francesa]. Era<br />

amado por todos aqueles que eram livres e pelos melhores escravos; seu comando era<br />

respeitado, sua tropa, bem disciplinada.” Jean-François não era, na verdade, um líder<br />

supremo – dividia suas decisões com outro general negro, Georges Biassou. Foi<br />

retratado como um líder menos violento e adepto de boas festas. Era provavelmente<br />

mais egocêntrico que eficiente – costumava decorar seu uniforme com um enorme<br />

conjunto de medalhas e bugigangas coloridas que impusessem respeito. 189<br />

“Comissários” eram os representantes que o governo francês enviava às colônias para comunicar decisões e novas<br />

políticas estipuladas na metrópole. Geralmente tinham poder para governar os territórios para onde eram enviados.<br />

A cúpula dos rebeldes negros ficava atenta ao que se passava na política francesa. Em<br />

dezembro de 1791, por exemplo, comissários chegaram da França dando ordens aos<br />

fazendeiros para anistiar os escravos que voltassem ao trabalho. Jean-François e Biassou<br />

se apressaram em escrever uma carta detalhando as suas condições para baixar as armas.<br />

Em tom educado e de conciliação, afirmam estar sob pressão dos escravos, que não<br />

abriam mão de mudanças, como a de ter três dias livres por semana. E pedem liberdade<br />

apenas para si próprios e outros líderes da revolta. Em troca, se dispõem até a capturar<br />

os escravos que se recusassem a voltar às plantations. “Muitos negros vão se esconder<br />

nas florestas; será necessário persegui-los com diligência e enfrentar perigos e o<br />

cansaço. Mas os generais e chefes que estamos pedindo a vocês para emancipar vão se<br />

juntar a nós nessa tarefa, e as riquezas públicas vão renascer das cinzas.” 190<br />

Até aí, as ações de Jean-François são compreensíveis. Ainda levaria alguns anos para<br />

a ideia revolucionária de liberdade total dos escravos se difundir pelo mundo. “Em<br />

sociedades que foram sempre divididas por cativos e senhores, os escravos geralmente<br />

aspiravam passar de uma categoria para outra, não eliminar a barreira entre elas”, diz o<br />

historiador americano <strong>Da</strong>vid Patrick Geggus. “Isso é um traço comum das rebeliões<br />

escravas antes do período revolucionário da França, que espalhou o conceito de<br />

liberdade individual.” 191 Sem maiores objetivos em mente, Jean-François e seu colega<br />

tentaram salvar a própria pele e, quem sabe, aliviar a carga de trabalho dos escravos<br />

comuns. Na tentativa de convencer os brancos a dar a liberdade à elite escrava,<br />

mostraram como seriam úteis para manter a ordem das senzalas. No entanto, com o<br />

desenrolar da revolução, as atitudes de Jean-François e de outros líderes rebeldes<br />

ficaram cada vez mais estranhas aos olhos de hoje. A partir de 1792, eles passaram a<br />

lutar entre si, contra os abolicionistas franceses e a favor da monarquia espanhola.<br />

A Espanha viu na revolta dos negros contra os franceses uma oportunidade de se<br />

apoderar do território que havia perdido menos de um século antes. Invadiu a colônia<br />

francesa e, para engrossar suas tropas, recrutou os bandos de guerreiros negros. Jean-


François, desde o começo da revolta, tinha se mostrado defensor do rei espanhol e da<br />

Igreja e disposto a um acordo. Em maio de 1793, deu a si próprio o título de grandealmirante<br />

e levou cerca de 6 mil soldados para o lado espanhol. Em troca, ganhou terras,<br />

um salário de 250 dólares da Coroa espanhola e garantia de liberdade para sua família.<br />

Enquanto os soldados espanhóis guardavam a fronteira, as tropas de Jean-François e<br />

Biassou partiram para o ataque aos franceses. 192<br />

Se a situação de São Domingos era caótica, a metrópole ardia ainda mais. A França vivia nessa época o auge do<br />

período do terror da Revolução Francesa. Dezenas de execuções públicas aconteciam diariamente. Padres, nobres ou<br />

qualquer cidadão considerado inimigo político do povo foram para a guilhotina ou foram vítimas de execuções sumárias<br />

nas ruas. Foram quase 40 mil pessoas mortas – entre elas Antoine Lavoisier, o “pai da química”.<br />

No fim de 1793, a situação ficou mais esquisita. Os republicanos franceses<br />

declararam a liberdade dos escravos de São Domingos, na tentativa de atrair para o seu<br />

lado as tropas negras. No ano seguinte, a França aboliu a escravidão em todas as suas<br />

colônias. Foi uma decisão inédita em todo o mundo – mesmo a Inglaterra, que se tornaria<br />

o berço do abolicionismo, levaria décadas para tomar a mesma atitude. Se a luta do líder<br />

negro Jean-François era por liberdade, ele deveria rapidamente abrir uma negociação e<br />

passar para o lado francês, certo? Mas Jean-François ficou do lado espanhol. Pior: com<br />

o anúncio da França de abolir os escravos, diversos fazendeiros franceses pediram<br />

abrigo à Espanha, que começou a protegê-los. Armou-se assim uma cena inusitada. Os<br />

rebeldes negros do Haiti passaram a proteger alguns dos senhores de terras contra os<br />

quais se revoltaram dois anos antes. 193<br />

Até hoje os historiadores tentam explicar por que esses líderes rebeldes tomaram<br />

atitudes assim. A primeira hipótese é que eles enxergavam os republicanos franceses<br />

abolicionistas com desconfiança. Boa parte dos burgueses que apoiaram a Revolução<br />

Francesa eram mercadores das cidades portuárias da França, como Nantes e Bordeaux.<br />

Esses homens, que impuseram os valores de igualdade e liberdade na Europa,<br />

enriqueceram vendendo produtos feitos do outro lado do Atlântico por escravos – e não<br />

lhes passava pela cabeça acabar com esse sistema. Na França europeia eram<br />

revolucionários; na França caribenha, escravistas convictos.<br />

Além disso, anos antes da revolta de 1791 estourar, a corte francesa tentou impor aos<br />

senhores coloniais mais regras sobre como deveriam tratar seus escravos. O novo<br />

“Código Negro” determinava um limite de horas de trabalho por dia, folga em parte do<br />

sábado, melhorias nas roupas e na alimentação e o mais grave: estipulava que os<br />

escravos poderiam reclamar às autoridades reais se as medidas não fossem cumpridas.<br />

Os fazendeiros se negaram a obedecer a quase todas as novas regras. Notícias desse<br />

embate se espalharam pelas fazendas, criando assim uma aproximação entre o rei e as<br />

senzalas. “Os escravos identificam o progresso à majestade real e o abuso a esses<br />

brancos que formam assembleias, conselhos municipais e outras sociedades, visando a<br />

evitar que o monarca imponha suas decisões”, afirma o historiador francês Pierre<br />

Pluchon. 194<br />

Mesmo no Brasil, os escravos foram os que mais lamentaram a queda de dom Pedro II. Até o começo do século 20<br />

era possível ver, no Rio de Janeiro, negros com a coroa real tatuada nas costas.<br />

Não só Jean-François, mas diversos outros rebeldes negros se mostraram defensores<br />

das monarquias (veja o quadro ao lado). Isso aconteceu não só em São Domingos, mas<br />

em diversas regiões da América. Num estudo clássico, o historiador americano John


Thornton, especialista em história da África, defendeu que havia uma grande influência<br />

africana na opção de tantos escravos pela monarquia. Na época da Revolução do Haiti,<br />

dois terços dos escravos tinham nascido na costa da África, principalmente no Congo.<br />

Nessa região, havia um debate político parecido com o europeu sobre os limites do<br />

poder do rei. Para o historiador, o monarquismo dos negros não deve ser visto como uma<br />

volta a políticas tribais e arcaicas da África – mas como uma tentativa de manter ou<br />

impor reis que realmente mereciam o cargo. 195<br />

181 Robert <strong>Da</strong>rnton, Os Best-Sellers Proibidos da França Pré-Revolucionária, Companhia das Letras, 1995, páginas 131 a 140.<br />

182 Laurent Dubois, Avengers of the News World: The History of the Haitian Revolution, Harvard University Press, 2004,<br />

localização 24 (edição Kindle).<br />

183 Michel-Etienne Descourtilz, Histoire des Désastres de Saint-Domingue, versão em inglês disponível em<br />

http://thelouvertureproject.org/index.php?title=History_of_the_Disasters_in_Saint-Domingue.<br />

184 Laurent Dubois, localização 24.<br />

185 Laurent Dubois, localização 2640.<br />

186 Laurent Dubois, localização 156.<br />

187 Laurent Dubois e John D. Garrigus, Slave Revolution in the Caribbean: 1789–1804, Bedford, 2006, página 93.<br />

188 Carolyn Fick, The Making of Haiti: The Saint Domingue Revolution from Below, The University of Tennessee Press, 1990,<br />

página 113.<br />

189 Carolyn Fick, páginas 112 e 113.<br />

190 Laurent Dubois e John D. Garrigus, página 101.<br />

191 Entrevista por e-mail com o historiador americano <strong>Da</strong>vid P. Geggus em 19 de junho de 2011.<br />

192 Laurent Dubois, localização 2011.<br />

193 C. L. R. James, Os Jacobinos Negros, Boitempo, 2010, página 131.<br />

194 Pierre Pluchon, Toussaint Louverture: un Révolutionnaire Noir d’Ancien Régime, Fayard, 1989, página 46.<br />

195 John K. Thornton, página 209.


Rebeldes escravos nutriam uma curiosa fidelidade à monarquia da França<br />

e, na falta dela, à Coroa espanhola, com a qual se aliaram. Diversos negros se<br />

denominavam gens du roi (“homens do rei”). Em 1793, um escravo rebelde, convidado a<br />

se unir às tropas republicanas francesas, recusou a oferta dizendo: “Estou a serviço de<br />

três reis: do rei do Congo, mestre de todos os negros, do rei da França, que representa<br />

meu pai, e do rei da Espanha, que representa minha mãe”.<br />

COM O REI NA BARRIGA<br />

Mesmo antes da revolta de 1791, grupos de escravos escolhiam reis e rainhas<br />

de sua comunidade. Esses reis escravos na América provavelmente participaram<br />

dos saques e das batalhas. No fim de 1791, tropas europeias encontraram, entre rebeldes<br />

mortos ao redor de um forte, o corpo de um escravo vestido com roupas nobres e<br />

usando uma coroa. 196<br />

196 John K. Thornton, “I am the subject of the king of Congo: African political ideology and the Haitian Revolution”, Journal of<br />

World History, volume 4, número 2, 1993, páginas 181 a 214, disponível em www.jstor.org/stable/20078560.


Gros, o oficial capturado pelos homens de Jean-François, escreveu em suas memórias<br />

que a revolta dos escravos era claramente uma “contrarrevolução”, ou seja, uma revolta<br />

armada em protesto à Revolução Francesa:<br />

Em todo lugar os escravos acreditavam que o rei tinha sido preso e que eles tinham sido requisitados para se armar e<br />

restaurar a liberdade; eles estavam cientes da queda do clero e da nobreza. Jurando pelo mais sagrado, nós podemos<br />

assegurar que há muitas provas de que a revolta dos escravos é uma contrarrevolução. 197<br />

Jean-François provavelmente lutava também para enriquecer. Com o objetivo de<br />

arrecadar pólvora e dinheiro, sua tropa capturava mulheres e crianças de tropas negras<br />

inimigas e as vendia como escravos para fazendeiros da Espanha. 198 A mesma coisa<br />

faziam outros generais negros. Esse foi um dos motivos para Jean-François arranjar<br />

tantas brigas com outros grupos da mesma etnia. Seu grande inimigo foi Toussaint<br />

L’Ouverture, que se tornaria o general negro mais poderoso do Haiti (falaremos sobre<br />

ele mais adiante). Jean-François atacou até mesmo Biassou, seu antigo aliado, matando<br />

um sobrinho dele. Essas guerras internas, entre duas tropas que agiam do lado espanhol,<br />

geraram preocupação. “Os espanhóis conseguiram apaziguar suas diferenças impondo<br />

pactos de obediência e delimitando muito bem o território de Jean-François e Biassou”,<br />

afirma o historiador <strong>Da</strong>vid Geggus. 199<br />

Em 1795, depois de sofrer derrotas de outros líderes negros e afetado por um acordo<br />

de paz entre a França e a Espanha, Jean-François se exilou. Tentou se mudar com a<br />

família para Havana, em Cuba, mas acabou atravessando o Atlântico para se fixar na<br />

cidade espanhola de Cádiz, acompanhado de 16 familiares e 19 empregados. Até morrer,<br />

provavelmente em 1806, ganhou uma pensão mensal do reino espanhol. 200<br />

Julien Raimond, carrasco e vítima<br />

Até o fim do século 19, quando a química não tinha se desenvolvido o suficiente para criar corantes sintéticos, havia<br />

um grande mercado de extratos de plantas como o índigo, fonte de azul e roxo. Bem adaptado ao clima quente do<br />

Caribe, o índigo se tornou a principal atividade de diversas fazendas escravistas da Guatemala, de São Domingos e da<br />

Venezuela – o libertador Simón Bolívar também cultivava essa planta.<br />

O registros de alguns de seus gastos sobreviveram até hoje. Sabemos assim que entre 1767 e 1784 ele gastou com<br />

joias, alfaiates, cristais, livros e partituras um valor equivalente a uma boa fazenda da região – cerca de 8 mil livres (1<br />

livre era mais ou menos quanto um trabalhador comum ganhava por dia). 201<br />

Julien Raimond foi um dos maiores produtores de índigo do sul de São Domingos.<br />

Típico membro da oligarquia de sua comunidade, passou a juventude estudando em bons<br />

colégios da França. Quando voltou ao Caribe, herdou dinheiro dos pais e arranjou um<br />

bom casamento, com uma viúva de seu nível social. Pôde assim comprar três fazendas e<br />

cerca de cem escravos – um número expressivo tendo em vista que a maioria dos<br />

produtores tinha até dez desses trabalhadores. A produção era quase toda vendida por<br />

contrabando, afinal naquele tempo a Coroa francesa, como as demais cortes com<br />

territórios na América, impunha às colônias do Caribe um monopólio do comércio: os<br />

produtores só podiam vender seus produtos para mercadores franceses e comprar<br />

mercadorias vindas da França. Comerciantes holandeses e ingleses pagavam mais, por<br />

isso Julien agia no tradicional mercado paralelo do Caribe. Com o aumento da produção


de roupas por causa da Revolução Industrial, o índigo sofreu sucessivas altas no mercado<br />

– entre 1749 e 1790 o preço aumentou 150%. Foi assim, misturando exploração<br />

escravista e contrabando de um produto em ascensão, que Julien Raimond juntou uma boa<br />

fortuna.<br />

Na década de 1780, aquele senhor se viu cada vez mais ausente de sua propriedade.<br />

Enquanto os escravos trabalhavam para torná-lo mais rico, ele se mudou para a França,<br />

onde integrou um grupo que resultaria na Sociedade dos Amigos dos Negros. Julien se<br />

tornou um dos principais ativistas contra o racismo na Europa. Ele próprio sentia-se<br />

vítima de discriminação racial, pois era mulato, filho do casamento legítimo entre um<br />

colonizador francês e uma “mulher de cor”. Na corte de Versalhes, o fazendeiro e seus<br />

colegas pressionavam as autoridades reais para que não houvesse mais distinção entre<br />

brancos, negros e mulatos nas colônias do Caribe. Em 1789, quando a Revolução<br />

Francesa estourou e a Assembleia Nacional aprovou a Declaração dos Direitos do<br />

Homem, Raimond estava lá. Junto de outros mulatos do Caribe, lançou um manifesto<br />

sobre os cidadãos livres de cor, lembrando aos franceses que, como afirmava a<br />

Declaração dos Direitos do Homem aprovada semanas antes, “todos os homens nascem<br />

livres e iguais em dignidade e direitos”.<br />

São Domingos tinha cerca de 600 mil habitantes: 500 mil escravos e 100 mil cidadãos livres, entre eles brancos, mulatos<br />

e negros alforriados.<br />

Havia em São Domingos uma classe de brancos pobres, chamados petit blancs (“pequenos brancos”), que tinham<br />

pequenas propriedades ou trabalhavam como gerentes de fazendas, caixeiros-viajantes ou artesãos. Num duplo<br />

preconceito, eram chamados pelos livres de cor de “brancos negros”.<br />

O objetivo de Raimond era acabar com a discriminação racial entre brancos e os<br />

cidadãos ricos com alguma ascendência negra, como ele. O preconceito com os mulatos<br />

era cada vez mais comum em São Domingos. Em quase todo o século 18, mais de 70%<br />

dos casamentos eram inter-raciais, geralmente de colonizadores franceses que migravam<br />

sozinhos ao Caribe e acabavam casando com ex-escravas ou suas filhas nascidas<br />

livres. 202 Por causa desses matrimônios, 47% dos cidadãos livres de 1790 eram<br />

descendentes tanto de europeus quanto de negros, os chamados livres de cor ou mulatos.<br />

Muitos deles eram filhos legítimos, que cresciam num ambiente tão próspero quanto o<br />

das crianças brancas mais ricas. Quando adultos, tornavam-se mais ricos e bemeducados<br />

que muitos brancos que não haviam estudado fora. Entre os filhos não<br />

reconhecidos, acontecia com frequência de, com a morte do pai, herdarem terras e<br />

escravos. Personagens assim foram comuns em quase todas as sociedades escravistas da<br />

América, desde o Brasil, passando pela Jamaica, até o sul dos Estados Unidos. De todos<br />

esses, o grupo mais próspero de livres de cor era o de São Domingos. 203 Juntos, eles<br />

possuíam de 20% a um terço dos 500 mil escravos da colônia e eram donos de cerca de<br />

2 mil fazendas de café. 204<br />

A partir da década de 1770, quando essa parcela da população cresceu a ponto de<br />

intimidar os brancos, os livres de cor começaram a perder direitos políticos. O censo<br />

passou a classificar as pessoas segundo o grau de descendência africana; novas leis<br />

provinciais proibiram os livres de cor de eleger representantes, ocupar cargos públicos<br />

ou trabalhar como médicos ou farmacêuticos. A lei chegava até os cuidados pessoais:<br />

eles não podiam vestir-se como os brancos nem mesmo ter penteados à moda europeia.<br />

No imponente teatro de Le Cap, mulatos e negros livres eram obrigados a se sentar nos


piores lugares. Para aqueles que haviam estudado fora e estavam acostumados a um<br />

tratamento mais digno, essa segregação era inconcebível.<br />

Além dos livres de cor, havia em São Domingos um grupo menor, mas ainda assim expressivo, de negros livres,<br />

geralmente ex-escravos que compraram ou ganharam a liberdade e se estabeleceram como artesãos ou pequenos<br />

agricultores donos de poucos escravos.<br />

A luta de Raimond passava longe da abolição dos escravos ou da ampliação dos<br />

direitos para os negros alforriados. 205 Na verdade, para ter suas exigências aceitas,<br />

Julien e outros ativistas mulatos, como Vincent Ogé, deixavam claro não compactuar com<br />

as causas dos escravos. O envolvimento com a abolição tornaria ainda mais difícil atrair<br />

adeptos para a sua causa. Os mulatos não só defendiam a continuidade da escravidão<br />

como propagavam a teoria de que o maior controle sobre as senzalas só seria possível<br />

com a igualdade racial dos cidadãos livres. Boa parte dos brancos, porém, acreditava<br />

que, se cidadãos negros tivessem direitos iguais, não haveria mais justificativa para<br />

manter outros negros como escravos, e a instituição moral da escravidão ruiria.<br />

Diante desse impasse e das seguidas derrotas políticas, os mulatos decidiram pegar em<br />

armas. Em 1790, o líder mulato Vincent Ogé, o principal representante dos livres de cor<br />

em Paris, viajou para São Domingos convencido a conquistar à força o direito dos<br />

mulatos de votar. Ele e cerca de 300 rebeldes tomaram uma cidade no norte da colônia e<br />

mandaram mensagens para a Assembleia Provincial ameaçando vingança caso não fosse<br />

aprovado o direito de os mulatos participarem das eleições. Depois de vitórias iniciais,<br />

a tropa de Ogé acabou sendo derrotada – ele foi executado de modo cruel, tendo os ossos<br />

lentamente quebrados em público.<br />

Um ano depois, porém, a situação dos livres de cor se inverteu. Com a repentina<br />

revolta dos escravos por toda a colônia, os brancos, principalmente os do sul de São<br />

Domingos, se viram numa posição mais frágil. Precisavam se defender não só dos<br />

escravos rebeldes, mas dos mulatos. Aproveitando o bom momento, esses últimos tinham<br />

reunido grandes tropas de escravos de suas próprias fazendas e das dos brancos.<br />

Convenceram os negros prometendo liberdade aos que participassem das tropas ou uma<br />

jornada mais leve. Os brancos, diante desse maior poder militar, e precisando do apoio<br />

dos mulatos para manter a ordem da colônia, acataram com mais facilidade as exigências<br />

deles.<br />

Enquanto os companheiros se batiam contra os brancos em São Domingos, Julien<br />

Raimond enfrentava batalhas políticas do outro lado do Atlântico. Publicou ao todo 12<br />

panfletos expondo aos cidadãos como era contraditório defender a igualdade dos homens<br />

e ao mesmo tempo manter leis de discriminação racial. Com o ambiente político da<br />

França cada vez mais revolucionário e abolicionista, seu grande desafio passou a ser<br />

conciliar a emancipação dos escravos com a prudência de não acabar com a economia de<br />

São Domingos. Por isso, Raimond aderiu à causa dos negros bem lentamente. Num<br />

panfleto de 1793, defende que os escravos rebeldes só poderiam ter o direito à liberdade<br />

se quitassem a dívida que tinham com a França, comprando a própria liberdade por um<br />

preço estipulado pelo governo. “O insano projeto de liberar os escravos de repente<br />

levaria à ruína total da colônia”, afirma ele.<br />

Mas Raimond terminaria sua vida trabalhando sob o comando de ex-escravos. Em<br />

1800, velho e bem menos endinheirado que décadas antes, ele conseguiu enfim se firmar<br />

em Paris como uma figura confiável quanto aos assuntos da colônia de São Domingos.


Foi nomeado comissário francês por Napoleão Bonaparte. Na colônia, para onde viajou<br />

a serviço, Raimond acabou se alinhando a Toussaint L’Ouverture, o principal líder negro<br />

da revolução naquela época. Tornou-se um dos subordinados do líder dos escravos,<br />

responsável pelo grupo que criaria a Constituição de São Domingos. O imperador<br />

Napoleão, contrariado com as decisões de seu funcionário, ao enviar tropas para retomar<br />

o poder de São Domingos deu ordens expressas para que os oficiais franceses<br />

prendessem o comissário. Julien Raimond morreu de causas naturais, com quase 80 anos,<br />

duas semanas antes de as fragatas francesas chegarem aos portos da ilha para prendê-lo.<br />

Jean Kina, de escravo a coronel britânico<br />

No sul de São Domingos, as revoltas escravas não foram tão expressivas quanto no<br />

norte, mas os fazendeiros brancos enfrentaram os ataques dos fazendeiros mulatos. Para<br />

se defender, montaram tropas com seus próprios trabalhadores. Muitos escravos se<br />

alistavam animados, pois, ao se tornarem soldados, recebiam uniforme de guerra – um<br />

tremendo símbolo de status – comiam carne quase todo dia (um luxo até mesmo para os<br />

ricos) e vislumbravam a possibilidade de conquistar a liberdade em recompensa a seus<br />

feitos heroicos. Foi nesse cenário que o escravo negro Jean Kina passou, em menos de<br />

sete anos, de mero escravo de uma fazenda de algodão para coronel do exército<br />

britânico, dono de terras e de dezenas de escravos.<br />

Jean Kina foi provavelmente trazido da África quando criança. Em 1791, tinha ao<br />

redor de 40 anos. Era uma espécie de líder informal dos escravos de uma fazenda de<br />

algodão, onde trabalhava como carpinteiro. Já nessa época devia inspirar confiança em<br />

seu dono, pois foi dado a ele o comando de uma tropa de 60 homens e a responsabilidade<br />

de vigiar a comunidade de Tiburón, onde sua fazenda se localizava. A habilidade tática e<br />

o carisma que exercia sobre os escravos impressionaram os brancos – em pouco tempo<br />

Jean Kina já liderava uma tropa de 200 soldados. Seu maior feito ocorreu no verão de<br />

1792. Cerca de 700 escravos rebeldes tinham fugido de suas senzalas e se escondido na<br />

fortaleza de Les Platons. Tropas do governo tentaram invadir o forte, sem sucesso. Foi<br />

Jean Kina e seus homens que realizaram uma heroica invasão à fortaleza e devolveram os<br />

rebeldes às senzalas. Como prêmio, Jean ganhou medalhas, uma pensão mensal e mais<br />

centenas de escravos para seu comando.<br />

O mais impressionante em Jean Kina é que ele lutava em defesa do sistema escravista<br />

por convicção, não só porque era obrigado a cumprir ordens. Ardoroso defensor da<br />

escravidão, tentava convencer seus colegas quanto aos perigos da liberdade. Em 1793,<br />

mandou cartas para amigos de fazendas vizinhas. Pedia ajuda para lutar contra “o erro<br />

que hoje em dia cega um bom número de negros, que acreditam na liberdade, crianças<br />

gananciosas tomadas pelo fanatismo republicano”. “Você lembra quantas vezes era mais<br />

feliz quando tinha um rei?”, perguntou a um conhecido. E teorizou:<br />

Infelizes escravos! Vocês foram levados a acreditar que eram homens livres, quando isso é apenas uma ilusão. É<br />

cumprindo seus deveres com seus donos que vocês se tornarão livres. 206<br />

Alguns historiadores explicam essa simpatia com o cativeiro por meio do tipo de


trabalho que ele experimentou. Jean viveu numa fazenda que produzia principalmente<br />

algodão, cultura que não exige mão de obra tão intensa quanto a produção de café ou<br />

cana-de-açúcar. Por isso se pode supor que a escravidão vivida por ele foi de “pequena<br />

escala, patriarcal, onde a carga de trabalho era relativamente pequena”. 207 Nesse tipo de<br />

convivência quase familiar, não era raro os negros tomarem para si os objetivos e os<br />

desejos dos brancos.<br />

Com o desenrolar das revoltas e as guerras civis de São Domingos, os fazendeiros<br />

passaram a depender tanto de Jean Kina para se manter vivos que o escravo poderia<br />

muito bem mudar de lado e empreender um ataque repentino aos brancos. Mas ficou<br />

muito longe disso. Quando os fazendeiros, agradecidos pelo seu esforço, anunciaram que<br />

lhe concederiam a liberdade, Jean Kina prontamente recusou: queria continuar sendo<br />

escravo. Aceitou só dois anos depois. Sua crença nas vantagens da escravidão o<br />

motivava até mesmo a desrespeitar os brancos adeptos de alguma igualdade racial.<br />

Convidado para jantar com o governador local, Jean Kina recusou. O governador tentava<br />

aproximar os fazendeiros negros dos mulatos – o que indignava os brancos racistas. Por<br />

esse motivo Jean Kina fez a desfeita: disse não ao convite, pois não gostaria de encontrar<br />

um homem que deixou seus patrões tão contrariados.<br />

Em 1793, assim como diversos colonos franceses do norte passaram para o lado<br />

espanhol, muitos fazendeiros do sul, como o dono de Jean Kina, pularam para o barco da<br />

Inglaterra, que havia invadido aquela parte da colônia. Os soldados negros passaram<br />

então a integrar as forças britânicas. Jean Kina e seus homens foram bem recomendados<br />

ao exército real pelos proprietários franceses. “Os comandantes britânicos foram<br />

generosos em tratá-lo com respeito. Ele foi nomeado coronel, recebeu uma espada, um<br />

cinto de espada, assim como presentes e dinheiro”, conta o historiador Geggus. 208 Não<br />

demorou para a lealdade do guerreiro negro surpreender os ingleses. Líder militar<br />

relevante, Jean logo teve dinheiro suficiente para comprar terras e escravos – costumava<br />

viajar para a Jamaica para adquirir dezenas de negros para sua tropa. O auge de sua<br />

carreira militar aconteceu em 1798, quando ele passou a ganhar o salário integral de<br />

coronel do exército britânico. Para os ingleses, não havia nada de estranho na promoção<br />

do ex-escravo. “O rei não tem melhor amigo que Jean Kina, cujo comprometimento com a<br />

Realeza é tão notável quando sua honra e integridade”, escreveu na época um coronel<br />

inglês. 209<br />

A difícil tarefa de Toussaint L’Ouverture<br />

O maior clássico da história da Revolução do Haiti é o livro Os Jacobinos Negros, do<br />

historiador marxista C. L. R. James. A obra defende que os guerreiros negros do Haiti<br />

estavam imbuídos das mesmas ideias que motivavam os jacobinos, os revolucionários<br />

franceses mais radicais. Apesar dos elogios exagerados aos protagonistas da revolta e do<br />

declarado posicionamento político, Os Jacobinos Negros teve o mérito de mostrar, em<br />

1938, os líderes negros como agentes de sua própria história, capazes de articular<br />

manobras políticas e negociações diplomáticas de acordo com planos e estratégias. O<br />

herói desse clássico é Toussaint L’Ouverture, talvez o principal personagem de toda a


história do Haiti. “Entre 1789 e 1815, com a única exceção do próprio Napoleão<br />

Bonaparte, nenhuma outra figura isoladamente foi, no cenário da história, tão bem dotada<br />

quanto esse negro que havia sido escravo até os 45 anos de idade”, afirma James. 210<br />

Toussaint foi escravo até a década de 1770, quando ganhou de seu dono a liberdade. Como acontecia com diversos<br />

escravos alforriados em toda a América, ele logo conseguiu juntar posses. Na época da revolução tinha uma pequena<br />

fortuna, dono de uma fazenda e 15 escravos. 211<br />

Ex-escravo e ex-dono de escravos, Toussaint começou a carreira militar como<br />

subordinado dos primeiros líderes negros, Jean-François e Biassou. Com eles, integrou o<br />

exército espanhol, praticando ataques contra os franceses no norte da ilha. Até que, em<br />

1794, fez a grande jogada: depois de trocar cartas com oficiais franceses, mudou de lado<br />

e passou a apoiar a recém-criada República da França. Nessa época, deu a si próprio um<br />

sobrenome: L’Ouverture, “a abertura”, pois provavelmente sabia como ninguém ganhar<br />

espaço por meio de ataques militares. Com a mudança de lado na guerra entre os<br />

impérios, os antigos chefes e aliados se tornaram seus grandes adversários. Em poucos<br />

anos, Toussaint conseguiu eliminar os rivais, conter a invasão britânica no sul da ilha,<br />

mandar embora o representante do governo francês para a colônia e até invadir a colônia<br />

vizinha, a espanhola Santo Domingo. Conciliador e avesso a represálias, reuniu sob seu<br />

comando aliados de todas as etnias e classes. “Foi um brilhante líder político e militar<br />

que, no curso de sua carreira, conseguiu reunir o apoio de indivíduos de todos os tipos,<br />

desde fazendeiros e oficiais brancos a escravos”, afirma o historiador Laurent Dubois. 212<br />

Toussaint contava com uma equipe de assistentes brancos, mulatos e negros que<br />

escreviam cartas e conjuntos de leis e ajudavam nas decisões administrativas. Depois de<br />

derrotar rebeldes e impérios, ele, enfim, pôde organizar o país do modo que preferia e<br />

que fosse melhor aos escravos tão cansados de brigas. Sua grande atitude, porém, foi<br />

levar de volta à ilha os trabalhos forçados impostos aos negros nas plantations de canade-açúcar.<br />

Na tentativa de recuperar a economia em ruínas da colônia, Toussaint incentivou o<br />

retorno dos fazendeiros brancos à ilha – milhares deles confiaram no novo líder negro e<br />

voltaram. Mas havia o problema da mão de obra. A maior parte dos escravos tinha<br />

ocupado terras abandonadas por seus antigos donos e estavam satisfeitos em levar uma<br />

vida de subsistência, cultivando alimentos e criando animais. Para devolvê-los às<br />

plantations, Toussaint criou uma espécie de militarização do campo. No decreto que<br />

ordenou o retorno às fazendas, afirmava:<br />

Para assegurar nossas liberdades, o que é indispensável para nossa felicidade, todo indivíduo precisa ser utilmente<br />

empregado para contribuir com o bem comum. [...] Todos os trabalhadores do campo, homens e mulheres, atualmente<br />

em estado de ociosidade, vivendo em cidades, vilas e em outras plantations às quais não pertencem devem retornar<br />

imediatamente para suas respectivas plantations.<br />

Católico, Toussaint ainda praticou perseguições culturais, reprimindo rituais de vodu e de crenças africanas. 213<br />

Era um sistema de trabalhos forçados bem parecido com a escravidão. É verdade que<br />

os negros recebiam parte da produção como salário, já não eram propriedade de algum<br />

senhor, e seus chefes não tinham poder total sobre eles. Mas ainda estavam presos nas<br />

fazendas e eram obrigados a trabalhar por ali. Se anos antes tinham arriscado a vida para<br />

reivindicar só quatro dias de trabalho por semana, no novo regime ainda tinham que


cumprir seis dias, realizando exatamente as mesmas tarefas de antes. “Os escravos, é<br />

preciso observar, tinham apenas mudado de nome sob a ditadura de Toussaint”, escreveu<br />

na época um jovem oficial francês chamado Norvins. “Ele passou a chamá-los de<br />

cultivadores, mas os negros estavam todos presos ao solo, sob pena de morte se<br />

abandonassem seus postos.” 214<br />

MUSÉE DE L’ARMÉE, PARIS<br />

Toussaint L’Ouverture em retrato de autor anônimo do século 19.<br />

Muitos escravos, claro, se revoltaram de novo – e de forma bem parecida à de 1791.<br />

Brancos e gerentes de fazendas foram mortos, plantações foram queimadas e aumentaram<br />

as fugas para florestas. Toussaint foi acusado de reavivar a escravidão e agir em<br />

benefício dos brancos. Em fevereiro de 1796, quando escravos rebeldes mataram<br />

diversos europeus, o próprio Toussaint foi falar com eles para convencê-los a desistir da<br />

revolta. Em outras ocasiões, ordenou a seus generais que prendessem os rebeldes e<br />

mandassem os demais de volta às plantations. O que os generais deveriam fazer com<br />

gosto, afinal eles próprios haviam se tornado donos de grandes fazendas. 215<br />

Volumes da Enciclopédia de Diderot e D’Alembert, trazidos por senhores iluministas escravistas, foram usados como<br />

lenha depois da revolução.<br />

Há diversas tentativas de explicar por que Toussaint reavivou os trabalhos forçados.<br />

Certamente não era uma tarefa fácil criar do zero um sistema de trocas de mercadorias<br />

que por tanto tempo se baseou na escravidão. A tradição financeira da colônia tinha se


ompido e as riquezas salvas das guerras aos poucos desapareciam. O historiador<br />

Laurent Dubois vê semelhanças nas práticas de Toussaint com as dos governadores<br />

brancos que administraram a transição entre escravidão e trabalho livre, décadas depois,<br />

no Caribe britânico, nos Estados Unidos e em Cuba. “Ainda que Toussaint se<br />

diferenciasse desses por um ponto crucial – ele próprio tinha sido escravo – suas<br />

políticas de pós-emancipação foram similares àquelas dos governadores que vieram<br />

depois. Tentando manter e reconstruir a produção de açúcar e café, procurou limitar a<br />

liberdade dos ex-escravos, respondendo com uma ordem coercitiva à tentativa deles de<br />

andar livremente, adquirir terra e escapar do trabalho forçado”. 216<br />

197 Laurent Dubois e John D. Garrigus, página 105.<br />

198 <strong>Da</strong>vid Patrick Geggus, Haitian Revolutionary Studies, Indiana University Press, 2002, páginas 18 e 129.<br />

199 <strong>Da</strong>vid Patrick Geggus, página 129.<br />

200 <strong>Da</strong>vid Patrick Geggus, página 197 a 199.<br />

201 John D. Garrigus, “Blue and brown: contraband indigo and the rise of a free colored planter class in French Saint-<br />

Domingue”, The Americas, volume 50, número 2, outubro de 1993, página 234.<br />

202 John D. Garrigus, “Opportunist or patriot?”, Slavery and Abolition, volume 28, número 1, abril de 2007, páginas 1 a 21.<br />

203 John D. Garrigus, “Blue and brown: contraband indigo and the rise of a free colored planter class in French Saint-<br />

Domingue”.<br />

204 Robin Blackburn, A Queda do Escravismo Colonial, Record, 2002, página 187.<br />

205 Laurent Dubois, localização 1172.<br />

206 <strong>Da</strong>vid Patrick Geggus, página 141.<br />

207 <strong>Da</strong>vid Patrick Geggus, página 137.<br />

208 <strong>Da</strong>vid Patrick Geggus, página 14<br />

209 <strong>Da</strong>vid Patrick Geggus, página 141.<br />

210 C. L. R. James, página 16.<br />

211 Pierre Pluchon, página 61.<br />

212 Laurent Dubois, localização 2274.<br />

213 Pierre Pluchon, página 59.<br />

214 Pierre Pluchon, página 392.<br />

215 Laurent Dubois, localização 2549.<br />

216 Laurent Dubois, localização 2288.


Em diversas guerras e invasões que o imperador Napoleão Bonaparte armou no começo<br />

do século 19, legiões polonesas ajudaram a engrossar suas tropas. Os polacos<br />

esperavam obter ajuda da França para bater a Prússia e a Rússia e se tornar<br />

independentes. Em 1802, nos 50 navios que Napoleão mandou para o Haiti com o<br />

objetivo de destituir o líder negro Toussaint L’Ouverture, havia 5.200 poloneses. Muitos<br />

desses legionários se identificaram com os haitianos e mudaram de<br />

lado, passando a lutar contra os franceses. 217<br />

OS POLACOS QUE AJUDARAM A FUNDAR O<br />

HAITI<br />

Quando a guerra acabou e as derrotadas tropas francesas foram embora, 4 mil poloneses<br />

haviam morrido em batalhas ou vítimas de doenças tropicais. Dos sobreviventes, cerca<br />

de 200 ficaram no Haiti. Ainda hoje existe uma pequena comunidade de seus<br />

descendentes, já miscigenados, na cidade de Cazale, a 70 quilômetros de Porto Príncipe.<br />

Como acontece no candomblé brasileiro (em que há orixás equivalentes a santos<br />

católicos), uma das entidades do vodu haitiano, Ezili <strong>Da</strong>ntor, corresponde à Nossa<br />

Senhora de Czestochowa, a padroeira da Polônia.<br />

217 Laurent Dubois, localizações 3862-72.


Toussaint dizia que a liberdade dos escravos só seria garantida com a prosperidade da<br />

agricultura. É verdade, assim como o fato de que os negros poderiam continuar em<br />

pequenas propriedades, vendendo a produção de cana para engenhos controlados pelo<br />

governo. As grandes fazendas, porém, traziam vantagens militares – e preocupar-se com<br />

o poder militar não era demais naquela época. “Toussaint precisava da renda das grandes<br />

plantations para manter seu exército. Para assegurar a lealdade de seus oficiais, deu<br />

grandes terras a muitos deles. Começou assim a criar uma sociedade dominada por<br />

negros, mas ainda com uma grande desigualdade entre a elite e a massa da população”,<br />

afirma o historiador americano Jeremy Popkin. 218<br />

De qualquer modo, o sistema semiescravista de Toussaint era leve se comparado aos<br />

que viriam depois. Em 1802, o imperador francês Napoleão Bonaparte, temendo o poder<br />

excessivo de Toussaint em São Domingos, invadiu a colônia para destituí-lo do cargo.<br />

Entre os mais de 30 mil soldados enviados ao Caribe, havia até mesmo legionários<br />

poloneses (veja quadro na página anterior). Toussaint, enfraquecido depois que seus<br />

generais Jean-Jacques Dessalines e Henry Christophe passaram a apoiar os franceses,<br />

acabou capturado e enviado a uma prisão num castelo em Doubs, na fronteira com a<br />

Suíça, onde morreu de pneumonia.<br />

Enquanto isso, no Caribe, seus generais romperiam a aliança com a França para voltar<br />

a lutar contra ela. Em 1803, Dessalines conseguiu expulsar os franceses, declarando<br />

independência da colônia um ano depois. Deu a ela o nome de “Haiti”, um antigo termo<br />

com que os índios chamavam a ilha. Dessalines, porém, seria logo vítima de uma<br />

conspiração de seus próprios seguidores: morreu em 1806 tentando reprimir uma revolta.<br />

Depois dele, o Haiti se dividiria em dois: ao sul e a oeste, o mulato Alexandre Pétion<br />

manteria a República; ao norte, Henri Christophe, antigo general rebelde, criaria um<br />

reino independente. Foi com ele que a tragédia da Revolução do Haiti, já tão cheia de<br />

episódios estranhos, chegaria a seu ponto mais extravagante.<br />

Henri Christophe e o ápice da loucura<br />

Henri, pela graça de Deus e a Lei Constitucional do Estado, Rei do Haiti, Soberanos das Ilhas da Tortuga, Gonave e<br />

outras adjacentes, Destruidor da Tirania, Regenerador e Benfeitor na Nação Haitiana, Criador de Instituições Morais,<br />

Políticas e Guerreiras, Primeiro Monarca Coroado no Novo Mundo, Defensor da Fé, Fundador da Ordem Real e Militar<br />

de Saint-Henri.<br />

O título que o general Henri Christophe deu a si próprio é o bastante para imaginar<br />

como foi o seu governo. Autonomeado rei Henri I em 1811, ele ultrapassou os líderes<br />

brancos, negros e mulatos do país tanto em tirania quanto em loucura.<br />

As leis que Henri I promulgou chegavam à intimidade dos cidadãos. O “Código Henri”<br />

proibia casais de morar ou dormir juntos sem se casar, mandava prender casais de<br />

solteiros surpreendidos à noite na mesma casa e vetava o divórcio. O rei ainda estipulou<br />

pena de morte a ladrões e chicotadas aos que eram flagrados em mau comportamento.<br />

Para reavivar a produção de café e cana-de-açúcar em grandes fazendas, praticou uma<br />

perseguição ainda mais brutal aos cidadãos que preferiam permanecer isolados do<br />

mundo em pequenas propriedades. 219 Ao passear pelo reino, mandava prender ou surrar


quem tivesse o azar de parecer preguiçoso.<br />

Por causa desse curioso dispositivo monetário, até hoje a moeda do Haiti se chama gourdes, “cabaça” em francês.<br />

Para recriar o sistema monetário do Haiti, Henri bolou um método curioso. Mandou<br />

confiscar do campo todas as cabaças (fruta amadeirada com que até hoje se faz moringas<br />

e vasilhas de água), transformando-as na moeda nacional. O governo passou a pagar os<br />

produtores de café com unidades de cabaças. Depois, vendia a produção para<br />

mercadores ingleses em libras. Por incrível que pareça, o sistema funcionou – e o norte<br />

do Haiti viveu um princípio de prosperidade, enquanto o sul, dividido em pequenas<br />

fazendas, ficou estancado na agricultura de subsistência. Com uma parte do dinheiro<br />

arrecado na exportação de cana e café, Henri construiu hospitais e cinco escolas de<br />

período integral. Contratou até mesmo professores estrangeiros para aulas de inglês,<br />

francês, espanhol e latim. 220 Outra parte do dinheiro vindo da exportação ia para seu<br />

próprio bolso – pouco antes de seu governo acabar, Henri depositou fortunas em moedas<br />

de ouro em bancos ingleses.<br />

THE GRANGER COLLECTION/OTHER IMAGES<br />

Henri Christophe, rei do Haiti.<br />

Em dias claros, a Cidadela Laferrière pode ser vista de Cuba, a quase 150 quilômetros.<br />

Assim como outros generais negros da Revolução do Haiti, Henri Christophe tinha<br />

sido escravo. Depois de ganhar a alforria, trabalhou como pedreiro e construtor de mesas<br />

de bilhar, até montar um restaurante, na cidade de Cap-Français, que atendia aos mais<br />

ricos fazendeiros brancos. Depois da revolução e da tomada do poder, ele ficou<br />

obcecado com os símbolos reais e em sua própria homenagem. Mudou o nome da cidade<br />

de Cap-Français para Cap-Henri e criou uma nobreza que incluía príncipes, duques,<br />

condes e cavaleiros. Esses nobres tinham que seguir regras rígidas de vestimentas para


frequentar a corte. Henri mandou ainda construir 14 palácios e castelos e uma catedral,<br />

todos feitos com trabalho forçado. Seu grande legado foi a Cidadela Laferrière, ainda<br />

hoje uma das maiores fortalezas da América e uma das principais atrações turísticas do<br />

Haiti. Durante 15 anos, cerca de 20 mil negros levaram pedras e tijolos nas costas até o<br />

topo da montanha onde a fortaleza foi construída. Em caso de um novo ataque de tropas<br />

francesas, ela poderia abrigar cerca de 5 mil soldados, além da família real, para a qual<br />

foram construídos quartos especiais, salas de jantar e de jogos.<br />

O rei excêntrico não teria condições de se refugiar naquela incrível fortaleza. Em<br />

1820, quando as obras do monumento terminavam, ele sofreu um derrame que deixou<br />

metade de seu corpo paralisado. Ameaçado por insurreições populares e por tropas<br />

republicanas do sul, suicidou-se com um tiro.<br />

Tão irreal foi o governo de Henri Christophe que ele inspirou duas grandes obras da<br />

literatura: O Imperador Jones, de Eugene O’Neill, e O Reino deste Mundo, de Alejo<br />

Carpentier, sem dúvida o melhor livro inspirado na Revolução do Haiti. O livro de<br />

Carpentier traz uma memorável suposição dos últimos momentos do rei Henri I, ao<br />

perceber-se sozinho e isolado em seu castelo:<br />

Christophe se pôs a andar por seu palácio, apoiando-se em corrimões, cortinas e espaldares de cadeiras. A ausência de<br />

cortesãos, de lacaios, de guardas criava um terrível vazio nos corredores e nos cômodos. As paredes pareciam mais<br />

altas, os ladrilhos, mais largos. O salão dos espelhos não refletiu outra figura senão a do rei, até o além-mundo de seus<br />

cristais mais longínquos. E depois, esses zumbidos, essas roçaduras, esses grilos do forro, que nunca se escutaram antes,<br />

e que agora, com suas intermitências e pausas, davam ao silêncio toda uma escala de profundidade. [...] O grande salão<br />

de recepções, com suas janelas abertas nas duas fachadas, fez que Christophe escutasse o som dos saltos de suas<br />

próprias botas, aumentando sua impressão de solidão absoluta. 221<br />

Uma bala de prata foi especialmente fabricada para o suicídio do Regenerador e<br />

Benfeitor na Nação Haitiana.<br />

218 Jeremy Popkin, The Haitian Revolution (1791-1804): A Different Route to Emancipation, Universidade de Kentucky, 2003,<br />

disponível em www.uky.edu/~popkin/Haitian%20Revolution%20Lecture.htm.<br />

219 Carole Boyce <strong>Da</strong>vies, Encyclopedia of the African Diaspora, volume 1, ABC-Clio, 2008, página 306.<br />

220 Hubert Cole, Christophe, King of Haiti, Viking Press, 1970, página 241.<br />

221 Alejo Carpentier, O Reino deste Mundo, Martins Fontes, 2010, página 105.


PERÓN E EVITA


UM GRANDE PASSADO PELA FRENTE<br />

Ah, Argentina... que país maravilhoso! Vinhos Malbec, boa comida, bife de chorizo,<br />

café expresso e alfajor em todos os restaurantes. A capital é imponente, cheia de parques<br />

e belos edifícios. Seus habitantes criaram uma música erudita e sofisticada, o tango. E<br />

ainda jogam um futebol que já viveu dias de Brasil (há 25 anos, é verdade). O esbelto<br />

prédio do Museu de Arte Latino-Americano de Buenos Aires (Malba), além de uma<br />

cafeteria deliciosa, expõe o Abaporu, de Tarsila do Amaral, ícone do modernismo<br />

brasileiro. Tudo é perfeito lá. Ou quase isso. O país só peca, e feio, no manejo político e<br />

econômico. Seus governantes teimam em ignorar as regras básicas da economia, como a<br />

lei da oferta e da demanda, maquiam os dados de inflação, criam inimigos imaginários e<br />

dependem do apoio de sindicatos vendidos. Por que nossos hermanos argentinos até<br />

agora não alcançaram a estabilidade, a exemplo dos vizinhos Brasil, Chile e Uruguai?<br />

Por que teimam em permanecer congelados no tempo?<br />

A culpa é quase toda de um único homem: Juan Domingo Perón, o militar que<br />

comandou o país entre 1946 e 1955 e também entre 1973 e 1974. Desde o dia em que<br />

assumiu o posto de secretário do Trabalho em um golpe de Estado, em 1943, ele alterou<br />

irremediavelmente a mente dos argentinos. Foi como se um material radioativo<br />

contaminasse os habitantes da época e os do futuro, fazendo-os acreditar religiosamente<br />

que as chances de sucesso de seu país dependem de uma guerra contra oligarquias<br />

imaginárias e os capitalistas estrangeiros. As palavras de Perón ainda hoje são uma<br />

bíblia para muitos políticos que se autodenominam orgulhosamente peronistas. Nas<br />

últimas duas décadas, eles só não governaram a Argentina durante dois tumultuados anos.<br />

O legado de Perón é lastimoso. Em três mandatos presidenciais, acuou a iniciativa<br />

privada, produziu inflação, agrediu opositores, atacou a imprensa, recebeu nazistas<br />

alemães, aliciou sindicalistas e colocou os seus para repreender manifestações<br />

contrárias. Isso sem falar na sedução de meninas menores de idade. Seu populismo foi<br />

cultivado com a ajuda de sua esposa Eva Duarte, a Evita, que dava notas de dinheiro aos<br />

pobres e criou escolas e fundações com seu nome. Perón ainda hoje é capaz de mobilizar<br />

milhares de argentinos em manifestações com muito choro, desmaios, quebra-quebra e<br />

porrada. Nas disputas campais entre os grupos que disputam seu legado, é raro não<br />

morrer alguém. Mesmo para um brasileiro que cresceu com a rivalidade entre as<br />

seleções de futebol, a situação é de dar pena. Ao assistir a uma típica mobilização<br />

popular peronista, é impossível discordar do erudito Jorge Luis Borges, para quem “o<br />

argentino, individualmente, não é inferior a ninguém, mas, coletivamente, é como se não<br />

existisse”. 222<br />

No início do século 20, até que Perón aparecesse em cena, o país tinha tudo para dar<br />

muito certo. Uma população escolarizada e empreendedora, terras férteis, um sistema de<br />

transportes desenvolvido, uma Constituição liberal. Perón entrou em cena, frustrou tudo<br />

e, quase um século depois, a promessa não se realizou. Por conta dele e de seus<br />

seguidores, a Argentina é um país com um grande passado pela frente. O país virou até<br />

case mundial. Basta que uma nação de primeiro mundo comece a patinar e logo alguém já


a chama de “Nova Argentina”.<br />

Rainha do Prata<br />

A Argentina alcançou a independência em 1816 e, como outros países da região, não<br />

teve sorte no começo. O fazendeiro e militar Juan Manuel de Rosas foi proclamado<br />

governador e capitão-geral da província de Buenos Aires em 1829. Governou até 1832,<br />

exercendo influência em todo o país, e voltou três anos depois, para ficar até 1852.<br />

Caudilho típico, Rosas censurou a imprensa, negligenciou a educação e desencorajou a<br />

imigração. Só após sua saída o país acertou o eixo. A chegada de europeus,<br />

principalmente espanhóis e italianos, foi estimulada. Para unir as regiões e escoar a<br />

produção do campo pelo mar, foram construídas estradas e ferrovias. A Constituição de<br />

1853, inspirada nos Federalist Papers, escritos para promover a primeira Constituição<br />

dos Estados Unidos, imprimiu ideias liberais como o livre comércio entre as províncias<br />

e a inviolabilidade da propriedade privada. A Carta garantia a todo habitante o “direito<br />

de trabalhar e exercer qualquer negócio lícito, viajar e se engajar no comércio, cobrar<br />

das autoridades, para entrar, permanecer, atravessar ou deixar o território argentino,<br />

publicar suas ideias na imprensa sem censura prévia, usar e dispor de sua propriedade,<br />

associar-se com outro para propósitos úteis, professar sua fé livremente, a ensinar e a<br />

aprender”. 223<br />

Tão ricos eram os argentinos nessa época que os franceses, para falar de alguém com dinheiro demais, usavam a<br />

expressão “rico como um argentino”.<br />

O termo “portenho”, usado para designar os habitantes de Buenos Aires, existe porque a cidade tinha três portos, por<br />

onde escoava a carne e o couro para a Inglaterra. Outra explicação é que o município foi fundado com o nome de<br />

Cidade da Santíssima Trindade e Porto de Santa Maria de Buenos Aires.<br />

Cedo, o país se beneficiou das suas condições naturais excepcionais. Com clima<br />

temperado, vastas áreas de solo fértil e fácil acesso ao mar, a Argentina tornou-se um dos<br />

maiores exportadores de carne, trigo, milho e linhaça e uma das nações mais ricas do<br />

planeta. Tinha um dos portos mais movimentados do mundo, os quais ajudaram a<br />

posicionar o país em oitavo lugar entre as nações em valor das exportações, décimo em<br />

valor das importações e nono em comércio total.<br />

Em 1907, descobriu-se petróleo na Patagônia. O Teatro Colón, fundado em 1908, após<br />

20 anos de obras, tem 2.500 lugares. É ainda hoje considerado um dos cinco melhores do<br />

mundo (o Teatro Municipal em São Paulo tem 1.580 lugares). O metrô, primeiro em toda<br />

a América Latina, começou a funcionar em 1913 (mais de 50 anos antes do metrô de São<br />

Paulo ou da Cidade do México).<br />

Assim descreveu a cidade o escritor inglês James Bryce, que publicou um relato de<br />

viagem após sua passagem pela capital no início do século 20: 224<br />

Buenos Aires é algo entre Paris e Nova York. Tem o agito econômico e o luxo do primeiro, a alegria e o prazer da boa<br />

vida do outro. Todo mundo parece ter dinheiro e gostar de gastá-lo, deixando todo mundo saber como faz isso.<br />

A cidade conhecida por ele era cosmopolita e repleta de prédios imponentes,<br />

exposições de arte, carruagens e carros caros, parques espaçosos e praças com


esculturas equestres, restaurantes e lojas. A Avenida de Mayo era mais “impressionante<br />

que a Picadilly em Londres, a Unter Linden em Berlim ou a Avenida Pensilvânia, em<br />

Washington”. E ainda: “Em nenhum outro lugar do mundo uma pessoa pode ter uma<br />

impressão mais forte de riqueza e extravagância”. 225<br />

Em 1920, Buenos Aires já era a maior cidade da América Latina e a terceira do<br />

continente, atrás apenas de Nova York e Chicago. 226 Em termos de renda per capita e<br />

reservas de ouro, a Argentina ficava à frente dos Estados Unidos, da Inglaterra e só um<br />

pouquinho atrás da França. 227<br />

Em 2010, pela primeira vez, os alunos argentinos ficaram atrás dos brasileiros no exame internacional Pisa, que<br />

compara o desempenho de estudantes de diversos países nas áreas de matemática, ciências e leitura de textos.<br />

A educação, principal meio de ascensão social, se desenvolveu ao ponto de, no final<br />

do século 19, o país ter o sistema mais avançado de escolas públicas da América<br />

Latina. O índice de analfabetismo era de 6,64% − menor do que o do Brasil de hoje, em<br />

torno de 10%. Tratava-se de um enorme público leitor, o que motivou a criação de<br />

diversos jornais e revistas. Conceituadas publicações literárias disputavam leitores. Uma<br />

delas era a Sur, em que o escritor Jorge Luis Borges, um bibliotecário, publicou seus<br />

textos.<br />

A chegada dos europeus trouxe gente com vontade de trabalhar e tino empreendedor. A<br />

Argentina foi o segundo país do mundo que mais recebeu imigração europeia entre a<br />

metade do século 19 e a década de 1950. 228 Um em cada três habitantes era estrangeiro. 229<br />

O escocês Robert Fraser abriu uma filial da Alpargatas argentina no Brasil em 1907. Dois anos depois, uma fábrica na<br />

Mooca, em São Paulo, iniciou a produção de calçados. As sandálias mostraram-se perfeitas para colher café, porque não<br />

machucavam os grãos. Hoje a empresa é conhecida pela marca Havaianas, símbolo do Brasil no exterior.<br />

Graças à liberdade econômica e à boa formação que possuíam, alguns se tornaram<br />

empresários. Perto do ano de 1900, cerca de 80% dos donos de estabelecimentos<br />

comerciais e industriais eram imigrantes ou cidadãos naturalizados. 230 Filhos e netos de<br />

imigrantes criaram grandes companhias e conglomerados. Surgiram as empresas SIAM,<br />

uma fábrica de lambretas e automóveis, Alpargatas e Molinos Río de la Plata. O<br />

viajante inglês James Bryce não deixou de notar a atmosfera de oportunidades que havia<br />

por ali. “A sociedade é algo como as cidades da América do Norte, linhas entre as<br />

classes não são bem definidas, e o espírito da igualdade foi além da França e, claro, mais<br />

que na Alemanha e na Espanha.” 231<br />

O país entra na década de 1940 com tudo para decolar. Durante a guerra mundial, a<br />

Argentina vendeu alimentos para os países europeus devastados sob empréstimo e<br />

tornou-se um dos maiores credores do mundo. A ingestão de calorias pelo povo argentino<br />

era a mais adequada do mundo nos anos após a Segunda Guerra Mundial e maior que a<br />

dos Estados Unidos. 232 O país estava pronto assim para se destacar no ranking mundial<br />

das nações ricas do pós-guerra. Mas Perón não deixou.<br />

As considerações de Perón sobre o fascismo<br />

É só Perón aparecer para que a Argentina comece a apontar para baixo. Antes, em<br />

1930, como capitão do Colégio Militar, ele participara do golpe contra o presidente


constitucionalmente eleito Hipólito Yrigoyen, que estava em seu segundo mandato. A<br />

política então passou a ser dominada pelos militares, que se consideravam os salvadores<br />

da pátria. Perón, aos 34 anos e casado com a professora Aurélia “Potota” Tizón (ela<br />

morreu em 1938, vítima de câncer no útero), foi chamado para ser o secretário privado<br />

do ministro da Guerra. Mas outro militar, o tenente-general José Félix Uriburu, assumiu o<br />

governo e imediatamente dissolveu o Parlamento. Perón foi removido e enviado para<br />

patrulhar a fronteira com a Bolívia. 233 Depois seguiu para ser agregado militar no Chile e<br />

virou adido na Europa, quando a Segunda Guerra Mundial estava começando. A missão<br />

dada a ele pelo general Carlos Márquez se constituía em estudar a situação. “Queremos<br />

saber quem vai ganhar a guerra e qual você acha que deve ser a atitude da Argentina”,<br />

disse o chefe. 234<br />

Ao retornar em 1940 de sua viagem europeia, Perón trouxe uma impressão poderosa<br />

sobre o fascismo. Seu relatório não deixava dúvidas sobre que país a Argentina deveria<br />

apoiar. Do país de Benito Mussolini, disse:<br />

O fascismo italiano conquistou uma efetiva participação das organizações populares na vida do país: uma coisa que<br />

sempre foi negada ao povo. Até Mussolini chegar ao poder, a nação estava de um lado, e o povo do outro. O último não<br />

tinha participação no primeiro. 235<br />

Manipular homens é uma técnica, a técnica do líder. Uma técnica, uma arte de precisão militar. Aprendi-a na Itália em<br />

1940. 236


AP PHOTO/GLOWIMAGES<br />

Bandeiras nazistas enfeitam a fachada do Banco Germânico, em Buenos Aires, 1943.<br />

<strong>Da</strong> Alemanha de Adolf Hitler, trouxe a seguinte consideração:<br />

Um Estado organizado dedicado a uma comunidade perfeitamente organizada e também um povo perfeitamente<br />

organizado: uma comunidade em que o Estado era um instrumento do povo e onde a sua representação era, no meu<br />

julgamento, efetiva. Eu pensei que essa poderia ser a fórmula política do futuro – em outras palavras, uma democracia<br />

realmente popular, uma democracia verdadeiramente social. 237<br />

Em sua terra natal, Perón se uniu a uma turma de jovens coronéis nacionalistas e<br />

admiradores do fascismo, o Grupo de Oficiais Unidos (GOU). Em 1943, esse grupo deu<br />

um golpe de Estado (o segundo de que ele participou). Perón então ganhou um posto<br />

como secretário do Trabalho e colocou em prática suas ideias inspiradas no fascismo<br />

italiano.<br />

Entre 1945 e 1950, chegaram ao país entre 6 mil e 8 mil criminosos de guerra nazistas, fascistas e membros da<br />

Ustasha, partido croata fascista que colaborou com os nazistas. Outras fontes falam que, em 1947, 90 mil alemães<br />

gozavam de bons dias na Argentina. Entre eles estavam membros da Luftwaffe, aos quais Perón chamava de “os<br />

justicialistas do ar”. Eles receberam passaportes e cédulas de identidade em branco para preencher como achassem<br />

melhor. 238<br />

No entanto, os países do Eixo (Alemanha, Itália e Japão) perderam a guerra para os<br />

Aliados em 1945. Como integrante do governo, Perón mostrou-se solidário aos<br />

derrotados, e a Argentina se tornou um porto seguro para nazistas. Em julho desse ano,<br />

os primeiros fugitivos nazistas chegaram a Buenos Aires dentro de um submarino, o U-<br />

530. Às 7h30 da manhã do dia 10 de julho, duas lanchas de pescadores perto de Mar del<br />

Plata avistaram a torreta de um submarino. Em seguida, uma porção de loiros que<br />

“falavam um idioma complicado” saiu da água. O comandante, então, colocou em<br />

formação no convés os 53 tripulantes e os entregou às autoridades argentinas. 239 Um mês<br />

mais tarde, apareceu o U-977. Provavelmente, ao menos outros três atracaram nas costas<br />

do país sem se anunciar, tendo sido dois deles avistados com binóculos por pelo menos<br />

duas dúzias de moradores no balneário San Clemente del Tuyú. 240 Como os ingleses e os<br />

americanos chiaram, uma comissão governamental foi nomeada para analisar o caso.<br />

Quem a presidiu foi o próprio Perón. Ele recomendou que o submarino U-530 fosse<br />

colocado “à disposição dos Estados Unidos e da Inglaterra”, mas sugeriu que a<br />

tripulação e as perícias fossem feitas pelas forças navais argentinas. 241<br />

Perón sempre odiou o Brasil, até mais do que a Inglaterra: “sempre fui contra ao que fosse britânico e, depois do<br />

Brasil, a ninguém nem a nada tenho tanta repulsão”, disse. 242<br />

No caminho que o levou às praias portenhas, o submarino U-977 pode ter realizado<br />

outras missões. Segundo um estudo de dois jornalistas argentinos, Juan Salinas e Carlos<br />

de Nápoli, o U-977 é o culpado pelo afundamento do cruzador brasileiro Bahia, que<br />

estava perto dos rochedos de São Pedro e São Paulo no dia 4 de julho de 1945. Dos 357<br />

tripulantes (incluindo quatro americanos) do barco brasileiro, apenas 36 sobreviveram.<br />

A maioria morreu de sede e desidratação após enfrentar quatro dias de sol forte em pleno<br />

oceano. Os autores argentinos acreditam que a causa do desastre foi um torpedo lançado<br />

pelos alemães. Mas a tese está longe de ter consenso, pois contrasta com o relato dos<br />

náufragos brasileiros e com as investigações da marinha do Brasil, para os quais o


motivo do acidente foi o disparo de um canhão automático do próprio navio, que atingiu<br />

cargas na popa e provocou uma explosão. 243<br />

222 “Jorge Luis Borges (1889−1986)”, revista Veja, Abril, edição 929, 25 de junho de 1986, página 97.<br />

223 Paul H. Lewis, The Crisis of Argentine Capitalism, University of North Carolina Press, 1992, localizações 341-45 (edição<br />

Kindle).<br />

224 Paul H. Lewis, localizações 277-85.<br />

225 Paul H. Lewis, localizações 301-8.<br />

226 Alicia Dujovne Ortiz, Eva Perón, a Madona dos Descamisados, Record, 1996, página 34.<br />

227 Paul H. Lewis, localização 276.<br />

228 Beatriz Sarlo, Modernidade Periférica: Buenos Aires 1920 e 1930, Cosac Naify, 2010, página 36.<br />

229 Beatriz Sarlo, página 38.<br />

230 Tomás Roberto Fillol, Social Factors in Economic Development, The MIT Press, 1961, página 28.<br />

231 Paul H. Lewis, localização 321.<br />

232 Tomás Roberto Fillol, página 77.<br />

233 Felipe Pigna, Los Mitos de la Historia Argentina, volume 4, Planeta, 2008, página 25.<br />

234 Felipe Pigna, página 27.<br />

235 Paul H. Lewis, localização 1940.<br />

236 Alicia Dujovne Ortiz, página 99.<br />

237 Paul H. Lewis, localização 1944.<br />

238 Felipe Pigna, página 234; e Alicia Dujovne Ortiz, página 132.<br />

239 Juan Salinas e Carlo de Nápoli, Ultramar Sul: A Última Operação Secreta do Terceiro Reich, Civilização Brasileira, 2010,<br />

página 312.<br />

240 Juan Salinas e Carlo de Nápoli, página 329.<br />

241 Juan Salinas e Carlo de Nápoli, página 322.<br />

242 Felipe Pigna, página 21.<br />

243 Ricardo Bonalume Neto, “Livro retoma teoria conspiratória de que Hitler fugiu para a Patagônia”, Folha de S. Paulo, 8 de<br />

maio de 2011.


Um dos líderes nazistas que chegaram à Argentina nessa época foi Josef Mengele. Era<br />

conhecido como o “anjo da morte”, pois acabou com a vida de 400 mil judeus, gays e<br />

ciganos, enviados para os campos de concentração de Auschwitz, na atual Polônia.<br />

Também realizou experimentos genéticos em que dissecava pessoas vivas, amputava<br />

membros, jogava homens em caldeiras de água fervente e fazia trocas de sangue para ver<br />

o que acontecia. Mengele chegou a Buenos Aires em 1949 com um passaporte emitido<br />

pela Cruz Vermelha, usando o nome Helmut Gregor. Conheceu Perón pessoalmente. O<br />

argentino relatou assim o encontro com um “especialista em genética”:<br />

O homem veio se despedir porque um pecuarista paraguaio o havia contratado para que melhorasse seu gado. Iam pagar<br />

uma fortuna a ele. Me mostrou as fotos de um estábulo que tinha por ali, perto de Olivos, onde todas as vacas pariam<br />

gêmeos. 244 O ENCONTRO DE PERÓN COM MENGELE<br />

Mengele viajou para o Brasil no final da década de 1960 e passou a viver em um sítio<br />

nos arredores de São Paulo, onde era conhecido como “Seu Pedro”. 245 Morreu afogado<br />

em uma praia de Bertioga, São Paulo, em 1979.<br />

244 Felipe Pigna, página 243.<br />

245 Álvaro Oppermann, “Quem Foi Josef Mengele?”, revista Superinteressante, Abril, edição 223, fevereiro de 2006.


Ao mesmo tempo em que acariciava os nazistas alemães, Perón presenteava os<br />

trabalhadores com diversos direitos. Construiu com eles uma relação de dependência e<br />

adoração. Como Getúlio Vargas e outros líderes latino-americanos da época, incorporou<br />

o 13o salário, estabeleceu as folgas semanais, aperfeiçoou o sistema de assistência<br />

social, aumentou salários e reduziu as jornadas de trabalho. Eram propostas que já<br />

vinham sendo defendidas por socialistas e comunistas, mas que empacaram e depois<br />

retornaram com o carimbo do novo líder.<br />

Por que Perón fez tudo isso? Seria porque tinha como objetivo legítimo o bem do<br />

povo? Era um socialista sonhador, sensibilizado com a exploração capitalista do homem<br />

pelo homem, como acreditam ainda hoje muitos argentinos? Foi assim que ele justificou<br />

sua ajuda aos trabalhadores em um discurso proferido em agosto de 1944, em frente à<br />

Bolsa de Valores de Buenos Aires:<br />

Essas classes trabalhadoras que estão melhor organizadas são, sem dúvida, as que são mais facilmente lideradas.<br />

É bom ter essas forças orgânicas que se pode controlar e dirigir, em vez das inorgânicas que escapam à direção e ao<br />

controle.<br />

Meus queridos capitalistas! Não se assustem com o movimento trabalhista! O capitalismo nunca esteve tão seguro,<br />

porque eu também sou capitalista. Eu tenho um rancho, e há trabalhadores nele. O que eu quero é organizar os<br />

trabalhadores para que o Estado possa controlá-los e determinar regras para eles, neutralizando em seus corações as<br />

paixões ideológicas e revolucionárias que podem colocar em perigo nossa sociedade capitalista pós-guerra. Mas os<br />

trabalhadores só serão facilmente manipulados se nós dermos a eles alguns benefícios. 246<br />

A Revolução Francesa patenteou o termo sans-culotte (sem calção). Os argentinos criaram os descamisados. Em<br />

1945, diante da Casa Rosada, onde Perón era mantido preso, os homens, suados, tiraram suas camisas. Surgiram, assim,<br />

os “descamisados”, palavra que depois se tornaria sinônimo dos peronistas. O ex-presidente brasileiro Fernando Collor<br />

aproveitou a ideia em 1989, quando se declarou o candidato dos descamisados.<br />

Em 1945, quando também assumiu a vice-presidência e o Ministério da Guerra, Perón<br />

criou uma lei semelhante ao código do trabalho de Mussolini, estabelecendo que nenhum<br />

sindicato que não tivesse o reconhecimento oficial poderia existir. Cada ramo industrial<br />

só poderia ter um sindicato. O governo passou então a reconhecer uma única<br />

organização, peronista, por setor. Greves e paralisações foram proibidas. Se um<br />

sindicalista se desviasse no meio do caminho, perderia o reconhecimento do governo e<br />

teria as finanças cortadas. Nesse mesmo ano, o embaixador americano Spruille Braden,<br />

revoltado com o namoro da Argentina com os nazistas, iniciou uma campanha contra<br />

Perón, unindo liberais, comunistas, conservadores, socialistas, fazendeiros e<br />

empresários. 247 No dia 19 de setembro, centenas de milhares de pessoas foram às ruas<br />

para exigir o fim do governo militar, que tomara o poder com um golpe, e pedir novas<br />

eleições. No dia 10 de outubro, Perón renunciou a todos os cargos e foi detido pelos<br />

militares, que também estavam temerosos de sua alta popularidade. Líderes sindicalistas<br />

se mobilizaram para exigir a sua libertação e planejaram uma greve geral. Aconteceu<br />

então o episódio que marcaria a história argentina do século 20. No dia 17, Perón foi<br />

levado a um hospital. Ao saber da notícia, entre 300 mil e 1 milhão de pessoas cercaram<br />

a Casa Rosada para pedir a volta do líder. Após negociar com os militares, Perón<br />

conseguiu sua libertação e apareceu na sacada da Casa Rosada para pronunciar o<br />

discurso que o eternizou:<br />

Dou também meu primeiro abraço a essa massa grandiosa, que representa a síntese de um sentimento que havia morrido


na República: a verdadeira civilidade do povo argentino. Isto é o povo. Este é o povo sofredor que representa a dor da<br />

terra mãe, que vamos reivindicar. É o povo da Pátria. É o mesmo povo que nesta histórica praça pediu em frente ao<br />

Congresso que se respeitasse sua vontade e seu direito. É o mesmo povo que há de ser imortal.<br />

O dia 17 de outubro passou, então, a ser a data oficial do peronismo. O “irmão mais<br />

velho” do povo, como ele se autoproclamava, foi então reconduzido ao cargo de vicepresidente<br />

e, dias depois, casou-se com Eva Duarte, até então uma atriz desprovida de<br />

fama. O magnetismo que Perón estabeleceu com as massas o levou a ganhar as eleições<br />

de 1946, com 52,4% dos votos. Empossado presidente, ele começou então a aplicar seu<br />

plano econômico, desenvolvido com o conceito de “nação em armas”. Em resumo, um<br />

país deveria estar sempre preparado para uma guerra no limite de sua capacidade, o que<br />

requeria a mobilização de toda a população e dos recursos nacionais.<br />

246 Paul Lewis, localização 2046.<br />

247 Juan Salinas e Carlo de Nápoli, página 360.


Eva Duarte era uma atriz desconhecida que atuou no rádio e no teatro. Em 1938,<br />

não estava nem entre as 38 candidatas a Miss Rádio, título dado durante o Grande<br />

Concurso de Popularidade de Sintonia. 248 Quando conheceu Perón durante um ato em<br />

Buenos Aires para ajudar as vítimas de um terremoto em San Juan, em janeiro de 1944,<br />

sua vida mudou completamente. Casou-se com o general logo que ele foi<br />

libertado pelos militares e tornou-se parte indissolúvel do peronismo.<br />

A MADONA DOS<br />

DESCAMISADOS<br />

Evita criou uma fundação com seu nome, por meio da qual construía escolas, hospitais,<br />

orfanatos e moradias para mulheres que chegavam em busca de emprego nas cidades.<br />

Atendia aos pobres em um escritório, presenteando-os com bens diversos. Em alguns<br />

encontros, distribuía notas de dinheiro. O culto à sua personalidade tinha<br />

patrocínio governamental. Em uma escola de enfermagem fundada por ela, as<br />

moças tinham de desfilar todos os anos no dia 17 de outubro com uniforme azul, que<br />

trazia o nome e o rosto de Evita bordados. 249 Nos campeonatos de futebol entre<br />

estudantes, os ganhadores levavam uma medalha de ouro com seu sorriso. 250<br />

O dinheiro que ela usava para essas aventuras vinha do governo<br />

e de companhias que eram extorquidas. Aquelas que se recusavam a<br />

ajudar a instituição filantrópica de Eva Perón corriam o risco de ser estatizadas. Foi o<br />

que aconteceu com a Massone Química e a Chocolates Mu-Mu. Suspeita-se ainda que,<br />

entre seus bens, havia peças do tesouro nazista, oriundas de famílias judias ricas<br />

assassinadas em campos de concentração. 251 O próprio Perón chegou a falar de bens de<br />

“origem alemã e japonesa” de que o governo argentino teria se apropriado. 252<br />

Evita morreu aos 33 anos, de câncer no colo do útero (assim como a primeira mulher de<br />

Perón), deixando uma fortuna superior a 8,5 milhões de dólares.<br />

Era também proprietária de uma casa na Rua Teodoro García, que lhe fora presenteada<br />

pelo milionário Ludwing Freud, o testa de ferro dos capitais nazistas que Perón<br />

conhecera na Itália. O monumento a ela, que não chegou a ser construído, tinha três<br />

vezes o tamanho do Cristo Redentor e a imagem de um homem com a<br />

camisa aberta, um “descamisado” – com a face de Perón. 253<br />

248 Beatriz Sarlo, A Paixão e a Exceção, Companhia das Letras/UFMG, 2005, página 40.<br />

249 Alicia Dujovne Ortiz, página 288.


250 Alicia Dujovne Ortiz, página 291.<br />

251 Alicia Dujovne Ortiz, página 138.<br />

252 Alicia Dujovne Ortiz, página 142.<br />

253 Hugo Gambini, Historia del Peronismo: La Obsecuencia (1952-1955), Vergara, 2007, página 81.


Tudo deveria girar em torno dos militares e da preparação para a guerra iminente. A<br />

participação dos gastos bélicos no orçamento sobe de 27,8% em 1942 para 50,7% em<br />

1946. A Constituição foi alterada para que a propriedade não fosse mais inviolável. A<br />

posse agora teria obrigações sociais, e a falha em cumpri-las poderia provocar sua<br />

perda. Na visão dos militares, toda companhia deveria servir à economia nacional. Perón<br />

começou assim a tomar as atitudes infalíveis para acabar com o desenvolvimento de seu<br />

país. O Estado poderia “intervir na economia e monopolizar qualquer atividade<br />

particular” pelo interesse geral. Também podia estatizar qualquer empresa que tentasse<br />

“dominar o mercado nacional, eliminar a competição ou obter lucros excessivos”.<br />

Estatais passaram a ser administradas por militares. O Banco Central, que tinha a<br />

participação de bancos privados, foi nacionalizado em março de 1946.<br />

Fracasso na indústria e no campo<br />

Ao juntar o controle da economia com benefícios desmedidos para os trabalhadores,<br />

Perón deixou os empresários sem saída. Entre 1946 e 1950, o salário mínimo subiu<br />

33%. 254 Levando em conta outros benefícios, foi um aumento de 70%. Perón também<br />

alterou a lei trabalhista e dificultou as demissões. Sentindo-se imunes à perda do<br />

emprego, os empregados começaram a faltar como nunca. Muitos arrumaram um segundo<br />

emprego, que desempenhavam no mesmo horário do primeiro. Com apoio do governo,<br />

sindicatos de vários setores começaram a criar suas próprias folgas “em celebração à<br />

contribuição daquela indústria para a nação”. Nesses dias, realizavam diversos atos<br />

públicos. Mas não foi suficiente. Também passaram a declarar o dia seguinte às folgas<br />

como feriado, para que os funcionários pudessem descansar. Em 1951, o argentino médio<br />

descansava um dia para cada dois trabalhados. 255<br />

Tentativas do governo de disciplinar funcionários e manter a produção levaram a<br />

greves e a conflitos violentos. Como a polícia e a justiça ficavam sempre do lado do<br />

empregado, diretores e donos de empresas viviam com medo. Tito Casera, diretor de<br />

pessoal da SIAM, foi preso acusado de atividades “antiperonistas”. Seu erro foi tentar<br />

impedir funcionários de colocar bustos de Eva Perón dentro da fábrica. Como resultado<br />

das disputas com empregados, empresários reduziram atividades e procuravam, ao<br />

máximo, mecanizar as linhas de produção. Funcionário passou a ser visto como<br />

problema. Em 1950 havia menos 14.500 operários do que em 1946. O total de fábricas<br />

foi reduzido em 3.316. Sem conseguir produzir o suficiente para abastecer o mercado<br />

consumidor, a inflação aumentou. Em 1949, o custo de vida cresceu 68% em um único<br />

ano. 256 Um ano depois, a economia do Brasil, cada vez mais industrializada, ultrapassaria<br />

pela primeira vez o tamanho da economia argentina e nunca mais perderia a<br />

superioridade. 257<br />

Quem também sofreu nas mãos de Perón foram os fazendeiros e os pecuaristas. Em<br />

1946 o governo criou o IAPI, uma empresa para monopolizar todas as compras de<br />

produtos agrícolas para exportação. Os negociadores privados foram isolados do<br />

processo, e o governo tornou-se o único mediador. Mas o IAPI pagava pouco para donos<br />

de terras e arrendatários. Enquanto o preço de cada 100 quilos do trigo estava em 18,2


pesos no mercado internacional, o governo pagava apenas 15 pesos. A linhaça, que<br />

custava entre 90 e 100 pesos, era avaliada na Argentina por 35 pesos em 1946. Com<br />

custos e salários aumentando, fazendeiros cancelaram investimentos e reduziram a<br />

produção.<br />

254 Paul H. Lewis, localizações 2532-35.<br />

255 Paul H. Lewis, localizações 2548-52.<br />

256 Paul H. Lewis, localizações 2552-56.<br />

257 Angus Maddison, Historical Statistics of the World Economy: 1-2008 AD, disponível em<br />

www.ggdc.net/maddison/Historical_Statistics/horizontal-file_02-2010.xls.


Os discursos da primeira-dama peronista eram extremamente simples. Ela se<br />

limitava a enaltecer o marido e atacar inimigos imaginários, como<br />

neste discurso de 1948:<br />

O capitalismo estrangeiro, o capitalismo estrangeiro e seus serventes oligárquicos e entreguistas comprovaram que não<br />

há força capaz de submeter o povo que tem consciência de seus direitos. Uma vez mais, meus queridos descamisados,<br />

unindo-nos ao líder e condutor, reafirmamos que na vida argentina já não há lugar para o colonialismo econômico, para a<br />

injustiça social, nem para os traficantes de nossa soberania e nosso futuro.<br />

O GUARDA-ROUPA DE EVITA<br />

Contudo, ao escolher as peças de seu armário, a raiva xenófoba se esvaía. Evita era<br />

fã dos vestidos do francês Christian Dior e dos sapatos do também<br />

francês Perugia. Ao morrer, os bens de Evita contavam “756 objetos de prataria e<br />

ourivesaria, 144 peças de marfim, colares e broches de platina, diamantes e pedras<br />

preciosas avaliadas em 19 milhões de pesos”. 258<br />

258 Tomás Eloy Martínez, Santa Evita, Companhia das Letras, 1996, página 120.


Compradores internacionais também tinham de se submeter aos preços do IAPI e, por<br />

isso, se sentiram desencorajados. O IAPI vendia um quintal de trigo por 45 pesos, mas o<br />

produto era cotado a 28 pesos em Chicago. Cobrava 23,5 pesos pelo milho, quando o<br />

preço internacional era de 17,5 pesos. No início, como não havia concorrência com os<br />

produtos argentinos, países como a Inglaterra foram obrigados a comprar da Argentina<br />

mesmo assim. Mas foi por pouco tempo. O país que estava prestes a saciar a fome do<br />

mundo viu sua participação no comércio mundial despencar. Entre 1946 e 1954, as<br />

exportações de carne caíram de 296.440 toneladas para 167.635. Quedas semelhantes<br />

ocorreram entre os grãos, como o trigo. A fatia argentina sobre o comércio de carne caiu<br />

de 40% para 19%. Em trigo, caiu de 19% para 9%. Linhaça, de 68% para 44%.<br />

As ações benevolentes de Perón para com os trabalhadores foram um tiro no pé. Ao<br />

aumentar o salário mínimo, o presidente estimulou as compras. Contudo, não se<br />

preocupou com expandir os investimentos nas áreas de indústria pesada, de energia e<br />

mecanização do campo. 259 O país, então, foi forçado a importar bens de capital,<br />

necessários para que a produção conseguisse abastecer o mercado interno. Contudo,<br />

como as exportações agrícolas caíram vertiginosamente, não havia dinheiro para tanto. E<br />

os investidores estrangeiros não ousavam se aventurar no país com uma retórica<br />

nacionalista, estatizante e sem respeito pela propriedade privada. O capital estrangeiro,<br />

que antes da Primeira Guerra Mundial representava metade dos investimentos no país,<br />

passou para 5% em 1949. Com Perón, aquele dinheiro que estava guardado no Banco<br />

Central, que poderia ser usado para a indústria pesada, foi todo usado na nacionalização<br />

de companhias já existentes que possuíam donos estrangeiros. Pagou caro, até o triplo,<br />

por companhias de transporte e comunicação. Algumas, como as ferrovias, estavam<br />

bastante deterioradas e necessitavam de reparos urgentes.<br />

Sem conseguir exportar produtos agrícolas e com a indústria em decadência, a balança<br />

comercial argentina foi para o vermelho. Em 1945, o país importava 1,8 bilhão de pesos<br />

e exportava 6,7 bilhões, resultando num saldo positivo de 4,9 bilhões. As reservas de<br />

ouro eram de 1,6 bilhão de dólares. Dez anos depois, importava 5,3 bilhões de pesos e<br />

exportava 4,4 bilhões de pesos, o que deixava o país com saldo negativo de 900 milhões<br />

de pesos. As reservas encolheram para 402 milhões de dólares. Os argentinos gostaram e<br />

pediram mais. 260<br />

Em 1928, a União Soviética tinha lançado a moda de planos quinquenais, de cinco anos, que inspiram governantes<br />

latino-americanos até hoje.<br />

Perón alterou a Constituição em 1949 para permitir a reeleição, prática conhecida<br />

entre políticos latino-americanos. Em 1952, obteve a maioria dos votos e mais cinco<br />

anos de governo. Lançou então seu segundo plano quinquenal. Nada mudou de<br />

importante. O governo continuou empregando mais gente do que devia. Entre 1945 e<br />

1955, o número de empregados na administração central do governo federal subiu de<br />

203.300 para 394.900. 261 Os preços seguiram aumentando com os salários agora<br />

congelados. Os erros provocaram um declínio de 32% no valor dos salários reais entre<br />

1949 e 1953. Em maio de 1954, trabalhadores metalúrgicos revoltaram-se contra seus<br />

líderes peronistas e iniciaram greves que afetaram ainda mais a produção.<br />

Nessa época, Evita convocou a cúpula da CGT e pediu a compra de 5 mil pistolas automáticas e 1.500 metralhadoras<br />

para formar milícias de trabalhadores. Todos os gastos correriam por conta da Fundação Eva Perón, segundo o


historiador argentino Felipe Pigna. 262<br />

Com trabalhadores criticando o governo e a economia no limbo, o governo assumiu<br />

uma nova posição. Em 1951, tropas de choque leais a Perón recrutadas para reprimir<br />

greves entraram em ação. Perón nessa época fez vários discursos contra grevistas e<br />

mandou demiti-los aos milhares. Também ordenou a prisão de centenas de comunistas ou<br />

socialistas que o incomodavam. Era também uma batalha ideológica. Preocupado em<br />

moldar a mente da população, o peronismo também alterou os livros didáticos. Após a<br />

morte de Evita, o país de Borges, que se orgulhava de ter uma população bem-educada e<br />

com baixíssima taxa de analfabetismo, passou a aprender a ler com a seguinte cartilha:<br />

Perón. Pe rón. Eva. E vi ta.<br />

Evita olha o nenê. O nenê olha Evita.<br />

Eu vi Eva. Ave. Uva. Viva. Vivo. Vejo. Via. Eva. E va. Evita. Perón. Pe rón. Sara e seu marido são peronistas.<br />

Votaram em Perón. Essa mulher é Evita [desenho]. Era terna e dadivosa. Ajudou a todos. Ninguém a esquecerá. Perón<br />

nos deu muitas coisas e nos dará ainda mais. O Libertador General San Martín [desenho]. O Libertador General Perón<br />

[desenho].<br />

Perón nos ama. Ama a todos. Por isso, o amamos. Viva Perón! Esta é Evita [desenho]. Amou-nos tanto! 263<br />

259 Paul H. Lewis, localizações 2517-21.<br />

260 Paul H. Lewis, localizações 2641-47.<br />

261 Paul H. Lewis, localizações 2244-47.<br />

262 Felipe Pigna, página 260.<br />

263 Hugo Gambini, páginas 177 e 178.


Os argentinos insistem que as ilhas Malvinas são deles. Tudo bem,<br />

não fosse o fato de serem habitadas pelos kelpers, descendentes de ingleses que há mais<br />

de sete gerações vivem por lá. Em 1982, os militares argentinos invadiram a ilha com<br />

poucas armas e jovens soldados inexperientes recrutados compulsoriamente. A reação<br />

inglesa foi brutal e encerrou a desavença em apenas 74 dias.<br />

EM DEFESA DOS VENCEDORES<br />

O principal argumento dos argentinos para justificar o direito sobre as<br />

Falklands (o nome correto desse arquipélago no oceano Atlântico) é que as ilhas<br />

estão muito próximas de seu país. Se o argumento valesse, o<br />

Brasil poderia invadir o Uruguai, e os Estados Unidos entrariam em Cuba<br />

amanhã. A reação inglesa foi melhor fundamentada. Eles usaram princípios básicos,<br />

como a autodeterminação dos kelpers e o direito de eles se defenderem. Uma resolução<br />

do Conselho de Segurança das Nações Unidas, com dez votos a favor e apenas um contra<br />

(do Panamá), ordenou a imediata retirada argentina. A favor da Inglaterra, estavam<br />

Estados Unidos, França, Alemanha Ocidental, Japão, Canadá, Austrália e Nova Zelândia,<br />

sendo que essa última até ofereceu uma fragata para ajudar os ingleses. 264<br />

O curioso é que as recordações da “Falklands War” seguem o mesmo padrão de outros<br />

dois confrontos regionais, a Guerra do Pacífico entre Chile, Bolívia e Peru (1879 a<br />

1883) e a Guerra do Paraguai, entre Paraguai, Brasil, Argentina e Uruguai (1864-1870).<br />

Em todos os casos, a opinião se inclina para a defesa dos mais fracos<br />

e derrotados: Paraguai, Bolívia e Peru. Mesmo tendo sido eles a iniciar os<br />

conflitos com alegações vagas ou improcedentes.<br />

Brasil e Argentina foram obrigados a revidar o Paraguai, cujas tropas do ditador<br />

Francisco Solano López invadiram seus territórios. Na Guerra do Pacífico, o governo<br />

boliviano abusou da boa vontade do vizinho ao sobretaxar as empresas chilenas que<br />

exploravam minerais no Atacama – uma medida que tinha combinado não<br />

fazer após uma guerra em que Chile e Peru expulsaram tropas espanholas, em 1864.<br />

Essa região, que tinha uma população majoritariamente chilena e ficava distante do<br />

centro de poder em La Paz, era o litoral boliviano. 265266 Quando o governo de La Paz<br />

rasgou o acordo já assinado sobre as taxas, o chileno saiu em defesa de sua população.<br />

Como punição ao vizinho, pegou para si aquele naco de praia e de deserto.<br />

264 Lawrence Freedman, “The Falklands conflict in History”, em The Falklands Conflict Twenty Years On: Lessons for the<br />

Future, Frank Cass, 2005, localizações 754-65.


265 William F. Sater, Andean Tragedy, localizações 251-55 (edição Kindle).<br />

266 William F. Sater, localizações 259-63.


Em 1948, o Congresso, de maioria peronista, aprovou a lei do desacato, tornando<br />

crime para qualquer cidadão, mesmo um congressista, falar mal de uma autoridade.<br />

Todas as rádios passaram a ser controladas pelo governo. A maior parte dos jornais de<br />

oposição foi fechada. Em 1951, Perón expropriou o jornal La Prensa. No ano seguinte,<br />

todos os jornais, com exceção do La Nación, estavam em mãos peronistas. Jorge Luis<br />

Borges, o maior escritor argentino, para quem Evita não passava de uma prostituta,<br />

perdeu seu emprego como bibliotecário. A mando de Mussolini, ops! de Perón, as<br />

autoridades nomearam o escritor para o cargo de inspetor de aves e ovos nos mercados<br />

da capital.<br />

Enquanto o país quebrava, Perón se divertia com estudantes<br />

Perón sempre teve um gosto particular por meninas. Quando era jovem, ganhou de presente de um camponês de<br />

Mendoza sua filha, uma amante-criança carinhosamente apelidada de “Piranha”. A menina viveu com ele até ser<br />

enxotada por Evita.<br />

A esculhambação geral da nação veio logo após a morte de Evita, em 1952. Assim que<br />

ela faleceu, o ministro da Educação, Armando Méndez San Martín, foi incumbido de<br />

encontrar uma forma de entreter o melancólico presidente. 267 Sua ideia brilhante foi criar<br />

uma organização estudantil “para proporcionar interesse ao presidente, que acabava de<br />

perder sua esposa”. Criou-se, assim, a União de Estudantes Secundaristas (UES), com<br />

duas alas, a feminina e a masculina. Informado da ideia, Perón rapidamente saiu com uma<br />

piadinha. “Até que se construam as sedes esportivas, a UES pode funcionar na quinta<br />

presidencial. A ala feminina, claro...” Que sacada! As jovens estudantes ficaram na<br />

residência presidencial de Olivos, enquanto os homens ficaram bem longe dali. Na<br />

inauguração das moradias femininas, com 50 camas, em julho de 1953, Perón fez um<br />

longo discurso. Deu um conselho maroto às animadas moças:<br />

Queremos uma juventude que comece a administrar a si própria, queremos uma juventude livre de preconceitos, porque<br />

geralmente a virtude não estriba em ignorar os vícios senão em conhecê-los e dominá-los. E, como sempre, as mulheres<br />

devem ir à frente. Decidiu-se habilitar essa residência presidencial que era demasiado grande para um homem só como<br />

eu. 268<br />

Recado dado? O prédio tinha garagem para motos e lambretas, sala de estar e ginásio<br />

de esportes. Governar tornou-se menos importante. Perón passava tardes inteiras<br />

conversando com as adolescentes. As más-línguas diziam que o presidente escondia um<br />

bilhetinho no casaco de uma das moças. Aquela que o encontrava permanecia na casa<br />

presidencial à noite.


BETTMANN/CORBIS/LATINSTOCK<br />

Perón passeia de lambreta ao lado de seguranças e estudantes secundaristas em Buenos Aires.<br />

Uma das meninas, Nelly Rivas, chamou a atenção de Perón. Era a delegada de sua<br />

escola dentro da UES. Tinha 13 anos. Quando Perón foi repreendido por relacionar-se<br />

com uma menina tão nova, respondeu: “Ah é? Ela tinha 13 anos? Não faz mal, não sou<br />

supersticioso”. 269 A jovem Nelly “era uma moreninha de grandes olhos negros e<br />

sobrancelhas pronunciadas”, contou a jornalista Alicia Dujovne Ortiz. Divertia-se<br />

experimentando os vestidos de Evita sob o olhar enternecido do “velho general”. 270


AP PHOTO/GLOWIMAGES<br />

O general na companhia da jovem Nelly Rivas, durante o Festival de Cinema de Mar del Plata, em 1955.<br />

A publicação dos artigos de Nelly Rivas no Clarín foi suspensa após o segundo artigo, por ordem de um juiz de<br />

menores. 271<br />

De início, o presidente marcou reuniões com Nelly para discutir grandes temas, mas<br />

aconteceu que, em uma delas, o papo se prolongou e ficou tarde demais para que ela<br />

voltasse para a casa de seus pais. O namoro foi narrado por ela mesma em artigos<br />

publicados em 1957 no jornal americano New York Herald Tribune, no uruguaio El<br />

Diario e no argentino Clarín. Conta Nelly:<br />

Existia o costume de que cada menina nova [da UES] almoçasse com Perón. Eu jamais havia sentado em uma mesa<br />

com um personagem tão importante como o Presidente da República, nem sonhava com algo parecido, quando se<br />

aproximou o senhor Renzi para me avisar que ao meio-dia eu comeria com o general. A princípio, minhas pernas<br />

tremeram, mas depois pensei que seria interessante estar sentada ali. 272<br />

Nelly então é convidada para uma reunião na residência oficial da Avenida Alvear:<br />

[Perón] me recebeu como sempre. Nós nos sentamos em uma sala ampla e cheia de luz, onde falamos longamente,<br />

primeiro sobre a União de Estudantes Secundaristas, depois sobre os meus problemas. Passei toda a tarde com ele até<br />

que anoiteceu, e, como eu era muito jovenzinha para voltar sozinha, não me deixou retornar para minha casa. “Está<br />

bem”, eu disse ao general aquela noite, ”por essa vez eu fico para dormir aqui”. E chamei por telefone os meus pais para


avisá-los de que eu não regressaria, que não deviam se preocupar e que não era preciso me enviar uma camisola porque<br />

já tinham me oferecido uma.<br />

Foi a primeira noite em que passaram juntos. Ela então estava com 14 anos. Uma<br />

semana depois, Perón a convidou para assistir a uma luta no Parque Luna Park, em<br />

Buenos Aires, quando os dois apareceram juntos em público. Depois...<br />

Como tudo terminou muito tarde, voltei a dormir na casa do presidente. A terceira vez que fiquei foi por uma causa<br />

fortuita, a chuva, que me obrigou a reincidir. Mas essa foi a definitiva, pois não voltei a dormir na minha casa. Fiquei<br />

vivendo com o general até que ele me abandonou para se refugiar em uma canhoneira paraguaia (1955).<br />

A festa com as secundaristas teve seu preço. Bem alto. Para agradar as jovens, Perón<br />

as presenteou com motos, bicicletas, lambretas e automóveis. Em três anos, a UES<br />

consumiu 10 milhões de dólares, segundo o historiador argentino Hugo Gambini. 273<br />

Com tanta fanfarronice e a economia indo para o buraco, as críticas a Perón<br />

aumentaram. Em 1955, o presidente declarou que “qualquer um, em qualquer lugar, que<br />

tente mudar o sistema contra as autoridades constituídas, ou contra as leis ou a<br />

Constituição, deverá ser morto por qualquer argentino”. E continuou: “Qualquer<br />

peronista deve aplicar essa regra, não apenas contra aqueles que cometem esses atos,<br />

mas também contra aqueles que os inspiram e os incitam”.<br />

Perón prometeu que, para cada peronista que caísse pela causa, outros cinco inimigos<br />

deveriam morrer. 274 Era o desespero de um presidente que já não encontrava conserto<br />

para os problemas que ele mesmo tinha criado. Milícias de esquerda e de direita<br />

ganharam espaço e começaram a vitimar a população civil. Uma delas era baseada na<br />

CGT, a Confederação Geral do Trabalho, centro do peronismo ainda hoje. Logo após a<br />

morte de Evita, a entidade passou a usar o dinheiro dos fundos de ajuda social para<br />

comprar armas.<br />

A situação ficou insustentável, e os militares deram um golpe, obrigando Perón a<br />

viajar para o Paraguai. Depois, foi para Panamá, Venezuela e, por fim, Espanha. Mas as<br />

ideias do presidente deposto seguiram fortes na Argentina. Quase 20 anos depois, nas<br />

eleições de 1973, o peronista Héctor Cámpora foi eleito com 49% dos votos e colocou<br />

em ação um plano para trazer de volta o general de forma definitiva. Nessa época, Perón<br />

vivia em Madri com uma dançarina de cabaré, María Estela Martínez de Perón, ou<br />

Isabelita. O corpo de Evita, embalsamado, dormia no sótão da casa, onde foi montado um<br />

pequeno altar. Dessa maneira, o casal absorvia as energias emanadas pela defunta.<br />

Tratava-se de uma invenção de José López Rega, guarda-costas de Isabelita. Após viajar<br />

a Madri, Rega tornou-se influente na vida dos dois e virou secretário pessoal de Perón.<br />

Conhecido como “el Brujo”, Rega unia astrologia e umbanda com a maçonaria Rosa-<br />

Cruz. Contradizia o chefe em público, interrompia suas conversas e controlava o acesso<br />

ao general. Quando Perón retornou a seu país, López Rega preparou uma recepção nas<br />

proximidades do aeroporto de Ezeiza, para onde acudiram milhares de pessoas. Sob o<br />

comando do secretário de Perón, membros da Juventude Sindical Peronista (JSP)<br />

atiraram contra os montoneros, de esquerda. Treze morreram, baleados ou enforcados nas<br />

árvores. O conflito ficou conhecido como o Massacre de Ezeiza.<br />

267 Hugo Gambini, página 167.


268 Hugo Gambini, página 168.<br />

269 Alicia Dujovne Ortiz, página 384.<br />

270 Alicia Dujovne Ortiz, página 384.<br />

271 Hugo Gambini, página 174.<br />

272 Hugo Gambini, página 175.<br />

273 Hugo Gambini, página 173.<br />

274 Paul H. Lewis, localizações 3021-25.


Em Madri, para onde viajou na companhia de Isabelita, o presidente deposto conviveu<br />

diariamente com López Rega. Afeito à maçonaria, à umbanda e à<br />

astrologia – e também à picaretagem –, ele passou a ser o cérebro por trás das<br />

decisões do chefe.<br />

No livro O Romance de Perón, que une pesquisa com ficção, o jornalista Tomás Eloy<br />

Martínez narrou dois momentos curiosos na convivência de Rega com Perón. No<br />

primeiro, Rega solta um peido e coloca a culpa em Perón: “Eu não tenho nada a ver com<br />

isso. Esses gases são os que se infiltram por sua boca e depois usam meu corpo como<br />

válvula de escape”, argumentou. 275 Em outro, Rega monta guarda sentado no<br />

braço da poltrona do avião em que Perón dorme. Faz isso para ajudálo<br />

a respirar, “empurrando o ar com sua força de vontade”. 276 É melhor acreditar que<br />

tudo isso é ficção.<br />

PERÓN E O MORDOMO ESOTÉRICO<br />

López Rega escreveu livros sobre suas teses malucas. Em Zodíaco Multicor, publicado<br />

em português pela Livraria Freitas Bastos em 1965, ele apresenta uma curiosa teoria com<br />

o propósito de servir à humanidade. Faz relações entre as cores, suas vibrações, o corpo<br />

humano, planetas, países, signos do zodíaco e os sentimentos. A cor índigo está<br />

“compreendida entre 4.490 e 4.340 unidades angstrom. Atua sobre os corpúsculos do<br />

sangue, no fluido nervoso e no dinamismo que regula o movimento. Apazigua o ânimo,<br />

inspira ideia de nostalgia, modéstia, singeleza, dignidade, altura de visão e grandeza<br />

moral; é um poderoso estimulante das funções intelectuais”. 277 Cento e vinte e<br />

duas páginas de puro besteirol.<br />

275 Tomás Eloy Martínez, O Romance de Perón, Companhia das Letras, 1998, página 61.<br />

276 Tomás Eloy Martínez, página 13.<br />

277 José López Rega, Zodíaco Multicor, Livraria Freitas Bastos, 1965, página 43.


Quando Perón e sua trupe retornaram a Buenos Aires, novas eleições foram<br />

convocadas e – adivinhe? – os argentinos tornaram a votar em peso no homem. Ele<br />

ganhou, assim, outra chance para destruir seu país. Destilou a mesma receita já<br />

fracassada em seus dois mandatos anteriores: controle da indústria, congelamento de<br />

preços e salários, regulação das exportações agrícolas, centralização, inchaço do<br />

funcionalismo, estatizações e xenofobia. Uma lei de 1973 proibiu o investimento exterior<br />

em áreas como alumínio, química industrial, petróleo, bancos, seguros, agricultura,<br />

imprensa, publicidade e pesca. Diretores de empresas estrangeiras foram obrigados a se<br />

registrar como agentes estrangeiros. Claro, nenhum investimento de fora foi registrado no<br />

país nos três anos seguintes. O número de funcionários públicos subiu de 1,4 milhão para<br />

1,7 milhão em apenas três anos. Um aumento de 339 mil. Com tanta gente, prefeituras se<br />

viram incapazes de pagar as folhas de pagamento e, assim, tiveram de cortar serviços<br />

como coleta de lixo, limpeza e iluminação das ruas. Mesmo assim, nenhum empregado<br />

público foi demitido. 278 Sindicalistas peronistas ganharam força, e uma lei passou a<br />

proibir que fossem acusados de crimes, a menos que pegos em flagrante. A<br />

insubordinação aumentou. O investimento na indústria caiu 30% em 1973 e mais 38% no<br />

ano seguinte. 279 O gasto público elevado obrigou a emissão de moeda, aumentando a<br />

inflação, que chegou a 74% anuais em 1974. Nos dois anos seguintes, chegaria a<br />

assustadores 954%. 280<br />

A tragédia se assemelhava com a de 20 anos antes, mas com um diferencial: a<br />

guerrilha urbana estava muito mais atuante nos anos 70. Grupos terroristas como os<br />

montoneros, com 250 mil homens, e o Exército Revolucionário do Povo (ERP), ambos de<br />

esquerda, e a Juventude Sindical Peronista (JSP, de direita) enfrentavam-se nas ruas,<br />

roubavam bancos, sequestravam empresários e atacavam policiais. O ERP, cansado de<br />

tentar convencer o proletariado a entrar na revolução, decidiu que a faria “com as<br />

massas, sem as massas ou contra as massas”. O país mergulhou na desordem. “Ninguém<br />

vai me dizer que esses que assaltam bancos estão fazendo isso por um motivo ideológico<br />

superior: eles estão fazendo essas coisas para roubar”, disse o presidente. O bruxo López<br />

Rega, nomeado ministro do Bem-Estar Social, distribuiu armas aos terroristas da direita,<br />

como a JSP e a Concentração Nacional Universitária. Outra que ganhou força foi a<br />

Aliança Anticomunista Argentina (AAA), criada por López Rega. Seus membros<br />

enviavam cartas para os esquerdistas ordenando que deixassem o país. Caso não o<br />

fizessem, eram geralmente assassinados dias depois.<br />

No dia 1o de julho de 1974, Perón morreu, aos 78 anos. O “abacaxi” passou para as<br />

mãos de Isabelita, sua esposa e vice-presidente. Do dia em que ele morreu até setembro<br />

de 1975, 248 esquerdistas morreram nas mãos da AAA. Outros 131 foram mortos pela<br />

polícia e 132 corpos não identificados foram encontrados. 281 Isabelita iniciou um governo<br />

desastroso e deixou a Casa Rosada após um golpe militar em março de 1976, dando<br />

início à ditadura mais sangrenta da América Latina.<br />

278 Paul H. Lewis, localizações 5778-82.<br />

279 Paul H. Lewis, localizações 5852-56.<br />

280 Paul H. Lewis, localizações 5869-73.


281 Paul H. Lewis, localizações 5961-65.


PANCHO VILLA


O LATIFUNDIÁRIO MAIS FAMOSO DE<br />

HOLLYWOOD<br />

O sombreiro, o taco, o molho de carne com chocolate e pimenta, o apreço por<br />

música ruim e o hábito de comer ovos crus no café da manhã são coisas que em nenhum<br />

lugar se vê tanto quanto no México. É um país singular. No Dia dos Mortos, 2 de<br />

novembro, seus habitantes montam altares dentro de casa, servem comida aos parentes<br />

falecidos e saem às ruas se divertindo com esqueletos (dica: para comprar um nas<br />

lojinhas, é só perguntar pelas calaveras). Eles fazem até pequenas caveiras de açúcar.<br />

Todas comestíveis, claro. E dá para colocar o próprio nome nelas também. Pitoresco.<br />

Exótico. Assim também foi a Revolução Mexicana, que derrubou o ditador Porfirio Díaz<br />

e sacudiu o país inteiro entre 1910 e 1920. O movimento lutou por reforma agrária antes<br />

mesmo da Revolução Russa, de 1917. Sua marca registrada são os rebeldes de bigode<br />

pontudo, chapelão, cartucheira com balas no peito e muita maconha dentro do pulmão. Ao<br />

percorrer milhares de quilômetros para lutar contra as tropas federais, os revoltosos<br />

entoavam um hino curioso:<br />

La cucaracha, la cucaracha, ya no puede caminar. Porque no tiene, porque le falta, marijuana pa’ fumar<br />

Traduzindo:<br />

A barata, a barata já não pode caminhar. Porque não tem, porque lhe falta maconha para fumar<br />

Desse estado mexicano veio o nome da raça dos menores cachorros do mundo. Não se sabe se a raça teve origem por<br />

ali, mas é certo que a região abrigou os criadores que durante o século 19 popularizaram o cãozinho nos Estados Unidos,<br />

com o qual o estado de Chihuahua faz fronteira.<br />

Viva México! Entre os protagonistas da revolução contra o ditador Porfirio Díaz<br />

estava Doroteo Arango, que adotou a alcunha de Francisco “Pancho” Villa. Nasceu em<br />

Durango, no norte do México – sua família morava na propriedade de um fazendeiro. Aos<br />

16 anos, após discutir com o proprietário da terra onde morava, fugiu. Passou algum<br />

tempo escondido nas montanhas e depois foi para o estado vizinho, Chihuahua. Lá,<br />

tornou-se líder de bandidos armados, uma espécie de cangaceiro. Por essa época, não<br />

tinha qualquer discurso político ou ideológico. Quando a revolução contra Porfirio Díaz,<br />

que pedia o fim da ditadura e a reforma agrária, chegou ao seu estado, Pancho foi<br />

integrado ao exército rebelde, por razões ainda não bem compreendidas. Aos poucos,<br />

ganhou confiança dos líderes da revolução e dirigiu a Divisão do Norte, o maior exército<br />

revolucionário da América Latina da época, com 40 mil a 100 mil homens. 282 “É possível<br />

que, de todos os bandidos profissionais do mundo ocidental, tenha sido ele [Pancho]<br />

quem fez a melhor carreira revolucionária”, escreveu o historiador marxista Eric<br />

Hobsbawm. 283 Pancho foi “o mais eminente de todos os bandidos transformados em<br />

revolucionários”, segundo Hobsbawm. 284<br />

Na Divisão do Norte, Pancho recrutou milhares de homens que tinham perdido suas


terras por conta de decretos de Porfirio Díaz. O presidente havia proibido que terrenos<br />

baldios e áreas do estado fossem usados pelos camponeses. Até então, eles cruzavam<br />

livremente esses espaços com seus pequenos rebanhos. A esses homens, juntaram-se exprisioneiros,<br />

peões de fazenda, bandoleiros, mineiros, vaqueiros desempregados e<br />

jovens de 14 a 16 anos, os quais ainda não tinham formado a própria família e podiam<br />

ser facilmente convocados. 285 Todos queriam ganhar um pedaço de terra, seguindo a<br />

tradição medieval de dividir o território como recompensa aos vencedores. Aos<br />

muchachos, juntaram-se também suas mulheres, amantes, prostitutas e seus filhos, que os<br />

acompanhavam pelo país, andando ou viajando de trem. Elas trabalhavam como<br />

enfermeiras e até mesmo entravam na luta com armas em punho. Eram as soldaderas. 286<br />

282 Friedrich Katz, Pancho Villa, tomo II, Ediciones Era, 1998, página 410.<br />

283 Eric Hobsbawm, Bandidos, Paz e Terra, 2010, página 137.<br />

284 Eric Hobsbawm, página 190.<br />

285 Friedrich Katz, tomo I, página 334.<br />

286 Friedrich Katz, tomo I, página 335.


Não há provas de que Pancho Villa fumava a erva. Mas é certo que seus<br />

subordinados puxavam um. Essa era a forma preferida de relaxamento após as<br />

batalhas. 287 O termo marijuana, aliás, foi criado intencionalmente para fazer referência<br />

aos mexicanos. Em 1915, quando os homens de Pancho Villa tomaram a fazenda<br />

Babicora do magnata da imprensa americana William Randolph Hearst, a represália veio<br />

nas páginas de seus 20 jornais. 288 As palavras cannabis e hemp, usadas até então, foram<br />

proibidas e teve início uma campanha contra uma tal marijuana. O<br />

neologismo fundia propositadamente duas palavras que soavam bem hispânicas, “Maria”<br />

y “Juana”. 289 Pegou. Desde essa época, a maconha nos Estados Unidos é<br />

relacionada aos imigrantes que cruzavam a fronteira.<br />

A MARCHA DA MACONHA HÁ 100 ANOS<br />

A erva também era usada tradicionalmente pelos índios yaquis,<br />

que integraram a divisão de Pancho no estado de Sonora. Em uma noite de<br />

1915, quando dançavam alegremente influenciados pela erva, foram atacados. Em fuga<br />

desesperada, depararam-se com cercas de arame farpado e foram seriamente feridos. 290<br />

Soldados das tropas federais mexicanas que perseguiram Pancho também eram adeptos.<br />

Tanto que as autoridades acharam que deveriam acabar com a festa. 291 Jovens<br />

americanos do outro lado da fronteira também se interessavam pelos poderes<br />

da planta, e assim a polêmica começou.<br />

287 Curtis Marez, Drug Wars, Minnesota, 2004, página 142.<br />

288 Julie Holland, The Pot Book: A Complete Guide to Cannabis: Its Role in Medicine, Politics, Science and Culture, Rochester,<br />

2010, página 31.<br />

289 Denis Russo Burgierman e Alceu Nunes, “A verdade sobre a maconha”, Superinteressante, Abril, edição 179, agosto de<br />

2002.<br />

290 James Hurst, Pancho Villa and Black Jack Pershing, Praeger Publishers, 2008, localização 175 (edição Kindle).<br />

291 <strong>Da</strong>le H. Gieringer, “The origins of cannabis prohibition in California”, Contemporary Drug Problems, volume 26, Federal<br />

Legal Publications, 1999, páginas 14 e 15.


Mas, acredite, Pancho mantinha sua divisão na mais perfeita ordem. Para controlar<br />

essa turba composta de ex-prisioneiros, bandoleiros, mulheres e adolescentes chapados,<br />

ele empregou uma estratégia infalível: vacilou, tomou bala. Qualquer um dos seus<br />

subordinados podia ir para o paredón sem qualquer direito à defesa. Bastava beber além<br />

da conta ou suscitar uma leve suspeita de que tinha passado informações ao inimigo. 292<br />

As sentenças de morte também eram aplicadas aos que se recusavam voluntariamente a<br />

entrar na Divisão ou aos que desertavam e se juntavam às fileiras de outros<br />

revolucionários. O método deu tão certo que o mexicano ficou famoso pela disciplina<br />

que impôs à tropa.<br />

FOTO DE OTIS AULTMAN. FONTE: MIGUEL ÁNGEL BERUMEN, PANCHO VILLA: LA CONSTRUCCIÓN DEL MITO, CUADRO<br />

POR CUADRO, IMAGEN Y PALABRA/OCÉANO, 2009<br />

Pancho vestido com o uniforme militar que usou nas gravações do filme feito pela Mutual Films.<br />

O sombreiro foi adotado por vaqueiros americanos, no Texas, ainda em meados do século 19. Como caía muito para a<br />

frente e atrapalhava a visão, foi adaptado e se transformou no chapéu do caubói americano. 293<br />

Sua popularidade atingiu o auge nas telas dos cinemas americanos. O filme The Life of<br />

Pancho Villa (“A Vida de Pancho Villa”) contava a sua história, com várias mudanças<br />

para agradar ao público americano, acostumado a valorizar o empreendedorismo<br />

individual e a desconfiar de tudo o que vem do governo. Assim, a família de Pancho, que<br />

vivia nas terras de um fazendeiro, foi retratada como a de um pequeno sitiante que<br />

entrava em disputas com oficiais federais. Na trama, os vilões do governo perseguiam<br />

duas irmãs de Pancho. Dois deles sequestram a menor, a violentam e a abandonam. Ao<br />

voltar para casa, o herói descobre o que aconteceu e segue no encalço deles até matar um


dos responsáveis. É perseguido e foge para as montanhas, jurando pegar o segundo. Em<br />

uma batalha, ele o encontra e o mata. Era o clímax do filme. 294 As cenas de Pancho<br />

quando jovem foram interpretadas por um ator famoso de Hollywood, Raoul Walsh.<br />

Aquelas em que Pancho já era adulto foram protagonizadas, acredite se quiser, pelo<br />

próprio herói. Ele interpretou a si próprio e seguiu o roteiro adaptado sem reclamações.<br />

Pelo contrato assinado com a Mutual Film Company, Pancho ganhou 20% da arrecadação<br />

com as bilheterias, dinheiro que o ajudou a comprar armas nos Estados Unidos. 295 Quatro<br />

cinegrafistas da empresa o acompanhavam nas aventuras militares pelo México. Por<br />

insistência deles, Pancho realizou diversas manobras com seu cavalo antes das batalhas.<br />

Para não espantar o público, ainda aceitou trocar o sombreiro flácido por um uniforme<br />

militar. Gostou tanto do personagem que adotou a nova vestimenta em definitivo.<br />

Aconteceu assim um estranho fenômeno. Pancho Villa se tornou um personagem real<br />

baseado em fatos ficcionais. 296<br />

Pancho morreu vítima de uma emboscada em 1923, quando seu carro foi alvejado por<br />

40 tiros. Desde então, sua fama só cresceu, até que se tornou o mexicano mais conhecido<br />

nos Estados Unidos. Seu nome está em restaurantes de tacos, nachos e burritos no mundo<br />

tudo: em Glasgow, Ottawa, Moscou, Tóquio, Anchorage (Alasca) e Cascavel, no Paraná<br />

(com direito a bandinha de mariachis cantando La Bamba). Também ganhou direito a um<br />

retrato na Galeria dos Patriotas Latino-Americanos na Casa Rosada, a sede do poder<br />

executivo na Argentina (está no mesmo salão com imagens de Simón Bolívar, Salvador<br />

Allende, Perón e Che Guevara).<br />

Leis promulgadas por Díaz em 1893 e 1894 expropriaram 50 milhões de hectares e deixaram milhares de pessoas<br />

repentinamente sem ter com o que viver. A demanda por redistribuição de terras, portanto, era legítima . 297<br />

O fôlego dessa adoração prolongada se deve a duas crenças principais. A primeira é a<br />

ideia de que Pancho era um antiamericano. Em 1916 ele comandou um ataque com quatro<br />

centenas de homens armados à cidade fronteiriça de Columbus, nos Estados Unidos.<br />

Morreram dez americanos – a maioria civis – e mais de cem “villistas”, como eram<br />

chamados seus seguidores. “Os salteadores [de Pancho Villa] produziram um caudilho<br />

em potencial e uma lenda – a do único líder mexicano que tentou invadir a terra dos<br />

gringos neste século 20”, escreveu Hobsbawm ainda no século passado. 298 A segunda<br />

crença é a de que ele foi o Robin Hood latino-americano: roubava dos ricos para dar aos<br />

pobres. Criou escolas, cuidou dos órfãos, confiscou latifúndios e defendeu a reforma<br />

agrária.<br />

As duas crenças, porém, são dois mitos. Pancho amava os Estados Unidos. Queria que<br />

um de seus filhos estudasse lá. 299 Se é verdade que profetizou a reforma agrária, ele a<br />

adiou o quanto pôde. Depois, esqueceu completamente o assunto e viveu seus últimos<br />

anos como um latifundiário conservador. Por fim, atacava os ricos tanto quanto os<br />

pobres. Fuzilou a todos indistintamente.<br />

292 John Reed, Insurgent Mexico: with Pancho Villa in the Mexican Revolution, Red and Black Publishers, 1914, localizações<br />

1720 e 3283 (edição Kindle).<br />

293 “A heads-up on the history of cowboy headgear”, The American Cowboy, volume 6, número 5, janeiro/fevereiro de 2000,<br />

página 55.<br />

294 Friedrich Katz, tomo I, página 373.


295 Friedrich Katz, tomo I, página 373.<br />

296 Friedrich Katz, tomo I, página 373.<br />

297 Marco Antonio Villa, A Revolução Mexicana, Ática, 1993, página 11.<br />

298 Eric Hobsbawm, página 142.<br />

299 John Reed, localizações 1715-26.


Pancho Villa costumava explicar sua rebeldia contando uma história sofrida de sua<br />

adolescência. Aos 16 anos, voltava para casa em Durango quando encontrou o dono da<br />

fazenda onde ele morava, Don Agustín López, discutindo com sua mãe. “Vá embora da<br />

minha casa! Por que quer levar minha filha?”, gritava ela. Pancho pegou um rifle e atirou<br />

contra Don Agustín, sem o ferir gravemente. Na fuga, matou alguns de seus<br />

perseguidores. Desde então, só lhe restou a vida louca de banditismo. 300 Porém, enquanto<br />

não há como saber se o relato de violação de sua irmã é verdadeiro, o disparo contra o<br />

fazendeiro e seus empregados mais parece uma farsa. Pancho só foi preso por roubar<br />

mulas e um rifle. Foi solto em seguida.<br />

OS FALSOS COITADINHOS<br />

Alterar a própria história para fazer-se de coitado é uma<br />

obsessão entre muitos heróis da América Latina. Segundo diplomatas<br />

americanos que viviam no México, os pais de Pancho “tinham um rancho e desfrutavam<br />

certa abundância. Sua educação se limitou à escola primária, mas ao menos chegou até<br />

aí, não é o analfabeto que descrevem os jornais; suas cartas estão bem redigidas”. 301<br />

Fenômeno parecido ocorreu com o brasileiro Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião. O<br />

famoso bandido dizia ter entrado no cangaço para vingar o assassinato do pai, morto em<br />

1920 por um policial, o tenente Lucena. Essa é só meia verdade. Lampião não<br />

contava a ninguém que o pai morreu justamente por causa dos<br />

roubos e dos saques que ele mesmo praticava. Quando o tenente Lucena<br />

invadiu a casa da família, estava à procura do filho – Lampião e uns amigos tinham<br />

matado um rapaz de 15 anos e cometido assaltos em Alagoas. O tenente entrou na casa<br />

atirando e matou o pacato pai do cangaceiro. 302<br />

Outro caso semelhante é o da índia guatemalteca Rigoberta Menchú. Sua biografia causou<br />

impacto em 1983 e rendeu a ela o Prêmio Nobel da Paz. O livro contava a triste história<br />

de Rigoberta, que fora proibida de frequentar a escola, cresceu em miseráveis vilas<br />

maias e conviveu com esquadrões da morte patrocinados pelos Estados Unidos contra os<br />

índios e o movimento de guerrilha que resistia ao governo. Rigoberta foi uma<br />

unanimidade até 1999, quando o antropólogo americano <strong>Da</strong>vid Stoll revelou os exageros<br />

e as mentiras da obra. Stoll descobriu que a família de Rigoberta não era tão<br />

pobre quanto ela dizia, nem precisava se sujeitar a trabalhos de semiescravidão. Seu<br />

pai era dono de terras que foram distribuídas pelo governo, e ela havia estudado até o<br />

oitavo ano em instituições católicas privadas. O antropólogo provou também que os<br />

conflitos entre os índios e o governo foram deflagrados pelo movimento


de guerrilha do qual Rigoberta fazia parte, e não por grupos de<br />

extermínio. 303<br />

300 Friedrich Katz, tomo I, página 16.<br />

301 Friedrich Katz, tomo I, página 358.<br />

302 Frederico Pernambucano de Melo, Quem Foi Lampião, Stahli, página 68.<br />

303 <strong>Da</strong>vid Stoll, Rigoberta Menchú and the Story of All Poor Guatemalans, Westview Press, 1999.


Pancho Villa adorava os Estados Unidos<br />

A crença de que Pancho era um antiamericano esbarra nos elogios desmesurados que<br />

ele fez na década de 1910 aos Estados Unidos, na época governado por Woodrow<br />

Wilson. A um jornalista americano, disse:<br />

O que eu quero é a paz do México. Não o tipo de paz que tínhamos com Díaz, quando uns poucos tinham tudo e os<br />

muitos outros eram escravos, mas a paz que têm vocês nos Estados Unidos, onde todos os homens são iguais perante a<br />

lei e onde qualquer um que deseje trabalhar pode conseguir para ele e para a sua família meios de vida que só os muito<br />

ricos podem desfrutar no México. 304<br />

Sobre Woodrow Wilson, o presidente americano, Pancho afirmou:<br />

[Wilson] era o homem mais justo do mundo. Todos os mexicanos o adoram. Nós consideraremos os Estados Unidos<br />

como nosso amigo. 305<br />

FOTO DE OTIS AULTMAN. FONTE: MIGUEL ÁNGEL BERUMEN, PANCHO VILLA: LA CONSTRUCCIÓN DEL MITO, CUADRO<br />

POR CUADRO, IMAGEN Y PALABRA/OCÉANO, 2009<br />

Pancho brinca com câmera fotográfica de jornalista americano.<br />

O entusiasmo de Pancho com os vizinhos do Norte se explica pela estreita relação que<br />

manteve com eles em sua vida, desde cedo. Às vésperas da revolução, os estados de<br />

Durango e Chihuahua estavam repletos de fazendas de gado e minas de prata, as quais<br />

tinham proprietários estrangeiros, principalmente americanos. Muitos deles contrataram<br />

os serviços de Pancho, que também atuava como segurança na época. Um de seus chefes<br />

foi um empresário inglês chamado Furber, que comprou minas de prata em Durango. Para<br />

ele, Pancho trabalhava como capataz e como segurança. Cuidava das quadrilhas de<br />

bandoleiros que apareciam pelo caminho e tentavam assaltar os vagões de trem ou os


comboios de mula que levavam o pagamento dos funcionários da firma de Furber. 306<br />

Em retribuição, Pancho manteve praticamente intactas as propriedades de estrangeiros<br />

depois que teve início a revolução. Preferiu armar briga com fazendeiros mexicanos e<br />

espanhóis. Nunca com seus ex-patrões e seus conterrâneos. A imunidade dos estrangeiros<br />

era tão evidente que muitos proprietários mexicanos venderam suas terras a preço de<br />

banana aos de fora, os quais podiam usá-las como pasto para gado ou cultivá-las sem<br />

dores de cabeça. 307<br />

Os Estados Unidos mandaram até um cônsul especial para funcionar como um representante diplomático<br />

acompanhando Pancho Villa. Seu nome era George Carothers.<br />

Com os donos de minas de prata americanos, a relação também era de cordialidade.<br />

Uma vez que o país, convulsionado pela guerra, e o mundo estavam sofrendo uma<br />

redução na demanda de minerais, muitos estrangeiros desistiram de investir no país e<br />

interromperam a produção. Pancho conversou com eles para que reatassem os trabalhos.<br />

Como garantia, deu sua palavra de que não teriam as minas confiscadas se atendessem a<br />

seus pedidos. Também lhes assegurou que os trens, fundamentais para o transporte das<br />

tropas revolucionárias, estariam sempre à disposição dos mineradores para levar seus<br />

produtos aos Estados Unidos. Pancho ainda prometeu que permitiria a presença de<br />

sindicalistas americanos, principalmente de membros da IWW, a Industrial Workers of<br />

the World (Trabalhadores Industriais do Mundo, em inglês), sindicato americano com<br />

sede em Chicago e ligado a partidos socialistas. Seus integrantes não conseguiriam agitar<br />

os trabalhadores nem fariam greves. 308 Confiando nesse autêntico socialista, muitos<br />

donos dos meios de produção retornaram às suas atividades.<br />

Para os empresários industriais, a mão firme de Pancho, que manteve a disciplina<br />

mesmo entre seus chapados comandados da Divisão do Norte e impediu greves nas minas<br />

e nas fábricas, era a chave que poderia abrir um futuro ordeiro para o México. 309 O<br />

presidente americano Woodrow Wilson gostava disso. Uma vez, ao falar de Pancho em<br />

uma conversa com um militar francês, o presidente americano:<br />

Expressou a admiração que lhe causava que este bandido de caminhos tivesse conseguido gradualmente instilar em suas<br />

tropas disciplina suficiente para convertê-las em um exército. Talvez, disse, este homem representa hoje o único<br />

instrumento de civilização que existe no México. Sua firme autoridade permite colocar ordem e educar a turbulenta<br />

massa de peões, tão inclinada à pilhagem. 310<br />

Em 1914, quando virou estrela de Hollywood, Pancho também se tornou um dos<br />

personagens preferidos de revistas e jornais americanos. Para um jornalista ianque, era<br />

só cruzar a fronteira para a tentadora aventura de entrevistar um exótico revolucionário.<br />

O assédio a Pancho pelos gringos imperialistas era intenso, e ele chegou até mesmo a<br />

sair na capa de revistas. Era hype. A propaganda de um dos filmes sobre ele dizia que se<br />

publicava sobre Pancho o triplo do que sobre qualquer outro ser vivo. 311


FOTO DE JOHN DAVIDSON WHEELAN. FONTE: MIGUEL ÁNGEL BERUMEN, PANCHO VILLA: LA CONSTRUCCIÓN DEL MITO,<br />

CUADRO POR CUADRO, IMAGEN Y PALABRA/OCÉANO, 2009<br />

Cinematografistas que foram ao México fazer filme de Pancho.<br />

Um dos méritos do ditador Porfirio Díaz foi integrar o território mexicano com ferrovias e ligá-las aos mercados<br />

consumidores nos Estados Unidos. Díaz fez a economia crescer a uma taxa de 8% ao ano e atraiu investimentos<br />

estrangeiros. Durante a revolução, os rebeldes fizeram intenso e inteligente uso dos trens, com os quais recebiam<br />

suprimentos e deslocavam as tropas.<br />

O jornalista que mais adulou Pancho foi John Reed, o mesmo que depois se mandou<br />

para a Europa para escrever o livro Dez Dias Que Abalaram o Mundo, sobre a<br />

Revolução Russa. Reed tinha 26 anos quando entrou no México, e suas matérias para a<br />

revista Metropolitan tiveram grande repercussão nos Estados Unidos, a ponto de ter sido<br />

convidado para um encontro com o presidente Woodrow Wilson na Casa Branca. Para<br />

Reed, o México estava experimentando a alvorada de uma sociedade socialista. Pancho<br />

era “um peão ignorante. Nunca foi para a escola. Nunca teve a mais leve noção da<br />

complexidade da civilização”. 312 O Pancho de Reed, nas épocas de fome, “alimentou<br />

distritos inteiros, e tomou conta de vilas inteiras que foram expulsas pela ultrajante lei de<br />

terra de Porfirio Díaz. Em todo lugar ele era conhecido como o amigo dos pobres, o<br />

Robin Hood Mexicano”. Tanta bajulação era recompensada, segundo o próprio Reed,<br />

por uma calorosa acolhida em terras estranhas. Para se locomoverem com conforto e não<br />

perder uma batalha, correspondentes e fotógrafos ocupavam um vagão exclusivo no trem<br />

revolucionário de Pancho, totalmente adaptado. “Tínhamos nossas camas, cobertores e<br />

Fong, nosso querido cozinheiro chinês”, escreveu Reed. 313 Os cinegrafistas da Mutual<br />

Film iam no mesmo vagão. Pancho sabia muito bem da importância de cultivar uma boa<br />

imagem no mundo. Garantir uma imprensa dócil e favorável era o primeiro passo.<br />

Outros correspondentes foram mais longe que Reed e até mesmo tentaram justificar as<br />

execuções sumárias do patrono. Foi o caso de Walter Durborough, que cobriu a


campanha militar do mexicano para o jornal Santa Fe New American. Ele escreveu:<br />

Não creio que [Pancho Villa] jamais tenha condenado à morte um homem que não merecia. Penso que sempre que<br />

ordenou uma execução o fez com a crença patriótica de que estava se desfazendo de um traidor para este país.<br />

Devemos lembrar que há uma verdadeira guerra sendo levada a cabo no México e que os julgamentos marciais são<br />

parte do inferno da guerra. 314<br />

Os vínculos entre Pancho e os Estados Unidos pioraram ainda em 1914. Em fevereiro<br />

desse ano, o mexicano matou um fazendeiro inglês, William Benton. A imprensa<br />

internacional e os americanos, então, viraram-se contra ele, em solidariedade às vítimas<br />

inocentes que começaram a se acumular. Entre outubro de 1914 e abril de 1915, quando o<br />

país passou a ser disputado por forças rebeldes, a Cidade do México permaneceu sob<br />

domínio de Pancho. Nesse ínterim, ele e seus comandados instauraram o pânico na<br />

cidade. Promoveram fuzilamentos, sequestros e extorsões. A campanha de terror villista<br />

resultou em 150 mortos, 315 principalmente entre partidários do governo deposto e<br />

generais do exército federal, que lutaram contra os rebeldes.<br />

Preocupado em encerrar o conflito mexicano e assim se concentrar melhor na Primeira<br />

Guerra Mundial, Woodrow Wilson tomou partido na Revolução Mexicana e apoiou o<br />

revolucionário Venustiano Carranza para a presidência do país, em maio de 1915.<br />

Pancho ficou furioso como um garoto mimado preterido pelos pais. Imediatamente,<br />

voltou-se contra seus antigos protetores: os americanos. Começou a acusá-los de querer<br />

transformar o México em uma colônia e a percorrer seu país como um louco enfurecido.<br />

“Seu caminho é o de um cão raivoso, um mulá enlouquecido”, escreveu o vice-cônsul<br />

inglês Patrick O’Hea. 316 Nesse mesmo ano, moradores do povoado de San Pedro de<br />

Cuevas tiveram o azar de estar no caminho de Pancho. Ao se aproximarem do povoado,<br />

os comandados de Pancho foram recebidos à bala por uma milícia de moradores, que<br />

estavam fartos dos ataques de bandoleiros. Os habitantes da cidade, ao perceber o<br />

engano, pediram perdão ao comandante de Pancho, Macario Bracamontes, que se<br />

mostrou compreensivo. Mas o chefe não aceitou as desculpas e ordenou que todos os<br />

homens adultos fossem presos. No dia seguinte, mandou fuzilar todos. O padre da cidade<br />

pediu clemência e conseguiu que alguns fossem perdoados. Pancho pediu que o padre não<br />

insistisse mais. Como esse não o obedeceu, o revolucionário sacou a pistola e o matou<br />

ali mesmo. No total, foram 69 mortos. 317<br />

304 Friedrich Katz, tomo I, página 357.<br />

305 Friedrich Katz, tomo I, página 406.<br />

306 Friedrich Katz, tomo I, página 91.<br />

307 Friedrich Katz, tomo II, página 26.<br />

308 Friedrich Katz, tomo I, páginas 471-472.<br />

309 Friedrich Katz, tomo I, página 359.<br />

310 Friedrich Katz, tomo I, página 358.<br />

311 Miguel Ángel Berumen, Pancho Villa: La Construcción del Mito, Cuadro por Cuadro, Imagen y Palabra/Océano de<br />

México, 2009, página 29.


312 John Reed, localização 1590.<br />

313 John Reed, localizações 3284-95.<br />

314 Miguel Ángel Berumen, páginas 74 e 109.<br />

315 Friedrich Katz, tomo II, página 34.<br />

316 Friedrich Katz, tomo II, página 224.<br />

317 Friedrich Katz, tomo II, página 117.


O herói da Revolução Mexicana tem diversas afinidades com os criminosos que atuam<br />

perto da fronteira com os Estados Unidos atualmente. A mais óbvia é o uso da<br />

violência e dos sequestros para financiar suas atividades. Outra<br />

semelhança é que todos eles adquiriam armas nos Estados Unidos, onde a venda é<br />

liberada, e portar uma pistola é considerado um direito do cidadão. Um dos motivos para<br />

que Pancho não entrasse em atrito com os americanos, aliás, era o temor de que<br />

pudessem proibir a importação de munições.<br />

PANCHO VILLA E OS TRAFICANTES DE<br />

DROGAS<br />

A mais cruel semelhança, contudo, é o recrutamento forçado de jovens. Sem<br />

apoio popular, Pancho obrigava adolescentes a entrar para seu grupo. Caso se<br />

recusassem, eram fuzilados. Por esse motivo, quando chegava a notícia em um povoado<br />

de que Pancho estava se aproximando, os homens jovens fugiam em desespero para se<br />

esconder. No México de hoje, o recrutamento forçado leva o nome de levantones, que é<br />

o sequestro simultâneo de um grupo de garotos para obrigá-los a trabalhar para<br />

o narcotráfico. Intimidados pelo poderoso arsenal exibido pelos colegas e pelos<br />

mais velhos, a maioria aceita compulsoriamente a tarefa. A minoria que se recusa<br />

morre.


No ano seguinte, Pancho tentou sua medida mais desesperada. Na tentativa de<br />

reconquistar adeptos e sabotar o apoio americano ao presidente Carranza, recémempossado,<br />

planejou uma ofensiva aos Estados Unidos. Para isso, escolheu uma cidade<br />

pouco guarnecida, Columbus. Em março de 1916, comandou de longe a invasão do<br />

município com 485 homens, de madrugada. Seus subordinados atacaram um posto<br />

policial, incendiaram um armazém, e as chamas se espalharam pelo hotel vizinho. Dez<br />

civis morreram. Quatro deles estavam no hotel. O proprietário do estabelecimento foi<br />

retirado de seu quarto e assassinado. Um hóspede que estava com sua noiva foi levado<br />

para baixo das escadas e morto. Um veterinário foi assassinado na rua. 318 Ao retornar na<br />

mesma manhã em debandada, o grupo não obtivera nenhum resultado prático. Não levou<br />

consigo nem dinheiro, nem armas. Foi um fracasso. Do grupo de Pancho, 105 padeceram<br />

no ataque, o que representava 22% dos invasores. 319 Três anos depois, ao reconhecer que<br />

a estratégia de arrumar um inimigo externo não surtira qualquer efeito, Pancho fez<br />

voluntariamente as pazes com os Estados Unidos. 320<br />

Não ultrapasse a cerca. Latifundiário raivoso<br />

Seus subordinados no exército também tomaram casas elegantes que a oligarquia tinha abandonado na região.<br />

Pancho não fez a reforma agrária porque não quis. Durante os dez anos de revolução,<br />

ele confiscou muitas terras, mas não deu nada aos mais necessitados. Quando assumiu<br />

provisoriamente o governo do estado de Chihuahua, até baixou um decreto para<br />

redistribuir a terra. Contudo, não citou como beneficiários de suas medidas os<br />

trabalhadores que perderam seus sítios ou os peões das fazendas – os pobres e<br />

explorados que o apoiavam. Na reforma agrária de Pancho, quem se beneficiava eram<br />

apenas os soldados de alta patente de seu exército. Seu objetivo era colocar o exército<br />

para trabalhar no campo, criando regimes de três dias de trabalho na lavoura e três de<br />

instrução militar. O projeto atendia ainda a um desejo antigo do revolucionário. “Minha<br />

ambição é viver a vida em uma dessas colônias militares entre meus companheiros de<br />

que eu gosto, que sofreram tanto tempo e tão profundamente comigo”, disse Pancho para<br />

o jornalista John Reed. 321


AP PHOTO/GLOWIMAGES<br />

Pancho em sua fazenda em Canutillo, como latifundiário.<br />

Ao entregar as terras confiscadas a seus amigos militares, Pancho Villa não fez nada muito estranho. Foi assim<br />

também com a Revolução Cubana e com as terras tomadas dos espanhóis pelo venezuelano Simón Bolívar.<br />

Algumas das fazendas confiscadas por Pancho nessa época ficaram sob controle<br />

estatal. Outras tantas passaram a ser administradas por militares. Um general de armas<br />

administrava cinco fazendas. Sete ficaram sob responsabilidade de generais da Divisão<br />

do Norte. Duas com o próprio Pancho. O que eles faziam com o lucro da produção? Em<br />

uma dessas fazendas, sabe-se que metade era entregue ao Estado. A outra, ninguém<br />

sabe. 322<br />

Existe uma única notícia de uma terra que foi dada a camponeses pobres que antes<br />

tinham perdido suas terras. A fazenda chamava-se El Rancho de Matachines. 323 De resto,<br />

os trabalhadores rurais não eram sequer citados nos dois jornais publicados em<br />

Chihuahua pelo governo de Pancho, o Vida Nueva e o Periódico Oficial. 324 Quando, em<br />

1915, Pancho finalmente publicou uma lei agrária, ele já estava enfraquecido e sem<br />

qualquer meio para executá-la. Um ano depois, o herói já esquecera completamente o<br />

assunto.<br />

Se fosse submetida a uma reforma agrária seguindo os critérios do chileno Salvador Allende, Canutillo poderia gerar<br />

800 lotes. Caso se considere o limite de 20 hectares, usado pelo Movimento dos Trabalhadores (Rurais) Sem Terra<br />

(MST), o latifúndio de Villa renderia 3.200 lotes.<br />

Após a morte de Carranza – o líder revolucionário que se tornou presidente com o<br />

apoio dos Estados Unidos –, Pancho fez um acordo com o recém-instalado governo<br />

mexicano. Prometeu não mais se intrometer nos interesses nacionais e, em troca, ganhou<br />

uma fazenda para cuidar: Canutillo. Tratava-se de uma rica propriedade no estado de<br />

Durango, com 64 mil hectares. Nesse espaço enorme, era possível pastar 24 mil<br />

ovelhas, 3 mil cabeças de gado e 4 mil cavalos. A casa-grande tinha 500 pés de lado,<br />

cerca de 150 metros – a largura de um quarteirão. 325


Ao tomar posse da propriedade, Pancho encontrou empregados vivendo e trabalhando<br />

na fazenda. Não pensou em aplicar alguma utopia socialista ou coisa que o valha.<br />

Manteve todos os funcionários em suas antigas posições e ainda os submeteu a sua velha<br />

amiga, a disciplina militar. Todos tinham que começar a labuta às quatro horas da manhã.<br />

Como sempre fora muito rígido com seus subordinados, é bem provável que tenha<br />

perdido a paciência e executado alguns. Ao contratar professores para a escola que<br />

montou na fazenda, tentou acalmá-los dizendo: “Olha, aqui não se perde nada, porque ao<br />

que rouba alguma coisa eu fuzilo”. 326 Definitivamente, não era um patrão camarada.<br />

Depois da morte de Pancho, em 1923, alguns trabalhadores disseram que o antigo chefe<br />

pagava muito pouco e ameaçava matá-los se reclamassem. 327<br />

No auge de sua maturidade intelectual, Pancho deu discursos à altura de um<br />

conservador esclarecido:<br />

Os líderes bolcheviques, no México como no estrangeiro, perseguem uma igualdade de classes impossível de conseguir.<br />

A igualdade não existe, nem pode existir. É mentira que todos podemos ser iguais. A sociedade, para mim, é uma grande<br />

escada, na qual há gente para baixo, outros no meio, subindo, e outros muito altos... É uma escada perfeitamente bem<br />

mais marcada pela natureza, e contra a natureza não se pode lutar, amigo... O que seria do mundo se todos fôssemos<br />

generais, ou todos fôssemos capitalistas, ou todos fôssemos pobres? Tem que ter gente de todas as qualidades. O mundo,<br />

amigo, é uma loja de comércio, onde há proprietários, dependentes, consumidores e fabricantes. Eu nunca lutaria pela<br />

igualdade de classes sociais. 328<br />

Para completar, o homem ainda impediu que uma reforma agrária ocorresse nas terras<br />

em torno de sua fazenda. Em 1921, a comissão agrária de Chihuahua deu alguns terrenos<br />

para 240 moradores do povo de Vila Coronado. No ano seguinte, quando chegaram para<br />

tomar posse das terras, foram recebidos por homens armados que não os deixaram entrar.<br />

Disseram que seguiam ordens de Pancho Villa. Um Robin Hood assim só mesmo o<br />

México seria capaz de produzir.<br />

318 James Hurst, localização 536.<br />

319 James Hurst, localização 569.<br />

320 Friedrich Katz, tomo II, página 300.<br />

321 Friedrich Katz, tomo I, página 292.<br />

322 Friedrich Katz, tomo I, páginas 459-460.<br />

323 Friedrich Katz, tomo I, página 460.<br />

324 Friedrich Katz, tomo I, página 464.<br />

325 Friedrich Katz, tomo II, página 331.<br />

326 Friedrich Katz, tomo II, página 335.<br />

327 Idem.<br />

328 Friedrich Katz, tomo II, página 345.


SALVADOR ALLENDE


JOGOS, TRAPAÇAS E CANOS FUMEGANTES<br />

Às sete horas da manhã do dia 11 de setembro de 1973, a marinha chilena tomou o<br />

porto de Valparaíso e prendeu 3 mil pessoas, o equivalente a 1% de toda a população da<br />

cidade. 329 Os detidos, que ficaram em navios ancorados, eram simpatizantes do governo<br />

de Salvador Allende. Quinze minutos depois, o presidente, avisado do golpe em<br />

andamento por um telefonema, correu para o Palácio de La Moneda, a sede do Poder<br />

Executivo, no centro da capital, Santiago. O prédio logo foi cercado por tropas e tanques,<br />

que começaram a disparar. Perto do meio-dia, aviões da força aérea chilena deram<br />

rasantes no prédio e bombardearam as torres, criando labaredas de fogo nas janelas.<br />

Dentro do edifício, Allende proferiu discursos pelo rádio, usando os três telefones de seu<br />

escritório que tinham conexão direta com estações que apoiavam o governo. “Neste<br />

momento definitivo, o último em que eu posso me dirigir a vocês, quero que aproveitem a<br />

lição: o capital estrangeiro, o imperialismo, unidos aos reacionários, criaram um clima<br />

para que as forças armadas rompessem a tradição”, disse ele. Ladeado por um pequeno<br />

grupo de militantes e agentes cubanos, o presidente suicidou-se às duas horas da tarde<br />

com um tiro de fuzil AK-47 na cabeça. “Foi com propósito e premonição que nós lhe<br />

oferecemos esse fuzil automático. Nunca um fuzil foi empunhado por mãos tão heroicas”,<br />

diria mais tarde o ditador cubano Fidel Castro, que dera a arma de presente para<br />

Allende.<br />

A atitude extrema de Allende, eleito presidente do Chile em 1970 pela coligação de<br />

partidos Unidade Popular, celebrizou-o como um mártir da esquerda na América Latina e<br />

no mundo. O fato de ter sido substituído pela cruel ditadura de Augusto Pinochet, que<br />

durou 17 anos, fez com que ganhasse a aura de defensor heroico da democracia, dos<br />

menos favorecidos, da liberdade de expressão.<br />

Mas o primeiro presidente marxista eleito democraticamente em todo o mundo<br />

(Rússia, China, Cuba e os demais se tornaram socialistas pelas armas) foi também o<br />

pioneiro em destruir a democracia de dentro dela mesma. Eleito com apenas um terço<br />

dos votos para se tornar o líder máximo da sua nação, Allende atropelou o Congresso, a<br />

Suprema Corte, a Controladoria Geral e a Constituição, que naquela época já vigorava<br />

havia 45 anos. Na sua proposta de abrir uma “via chilena ao socialismo” – segundo ele<br />

“irmã mais nova da Revolução Soviética” –, apoiou grupos paramilitares que recebiam<br />

ajuda de Cuba. Nacionalizou fazendas e indústrias, promovendo desabastecimento e<br />

inflação. Allende também reprimiu a imprensa e fez um projeto de doutrinação socialista<br />

nas escolas. Quando o caos não deixava mais saída para o seu país, planejou com seus<br />

companheiros políticos um autogolpe, que instalaria a ditadura do proletariado e<br />

sepultaria de vez a oposição democrática. O desfecho só não foi esse porque, uma<br />

semana antes da data, os militares se anteciparam e bombardearam o Palácio de La<br />

Moneda.<br />

Só entre os políticos e intelectuais brasileiros que foram para o Chile, estavam o ex-presidente brasileiro Fernando<br />

Henrique Cardoso, José Serra, Plínio de Arruda Sampaio, Francisco Weffort, <strong>Da</strong>rcy Ribeiro, Betinho, Fernando Gabeira<br />

e Alfredo Sirkis.


Nossa percepção equivocada de Allende – que faz o parágrafo acima soar tão estranho<br />

– deve-se em grande parte aos relatos e às vivências dos políticos e intelectuais que<br />

fugiram da ditadura militar de outros países na mesma época e encontraram um paraíso<br />

socialista em gestação no Chile. Entre 10 e 15 mil extremistas estrangeiros viajaram ao<br />

país com a ideia de defender o governo de Allende, deixando para trás o Brasil, a<br />

Argentina, o Peru, a União Soviética, a Alemanha Oriental, a Checoslováquia, Cuba e o<br />

Uruguai. 330 De modo geral, esses jovens idealistas ignoraram as atitudes antidemocráticas<br />

do presidente chileno e supervalorizaram a maldade de seus opositores, entre eles<br />

políticos, juízes e jornalistas, muitos deles simpatizantes da própria esquerda.<br />

O antropólogo brasileiro <strong>Da</strong>rcy Ribeiro tornou-se assessor especial de Allende e<br />

redigiu algumas de suas falas. No discurso que o presidente proferiu em 5 de maio de<br />

1971, escrito pelo brasileiro, havia citações explícitas a clássicos do marxismo e se<br />

enfatizava que o caminho chileno seria percorrido “dentro dos marcos do sufrágio, em<br />

democracia, pluralismo e liberdade”. 331332 Era assim que os demais brasileiros também<br />

interpretavam o que ocorria no país. Allende, ninguém duvidava, era um democrata que<br />

poderia enviar uma mensagem poderosa ao seu extremo oposto: a ditadura militar<br />

brasileira. O Chile era, assim, a terra prometida.<br />

No livro Roleta Chilena, no qual narrou sua experiência nessa época, Alfredo Sirkis,<br />

hoje do Partido Verde, escreveu que o Chile era “o país onde a esquerda tinha povo”.<br />

Sirkis assumiu como seus inimigos todos aqueles que criticavam o governo de Allende.<br />

Mulheres protestavam nas ruas batendo panelas contra a escassez de comida? Eram<br />

dondocas de direita. “Há um importante componente popular, atrasado, nestas marchas de<br />

panelas vazias”, escreveu. 333 Jornais denunciavam as violações de direitos humanos<br />

praticados pelos militares no Brasil? Não importa. Eram veículos de direita, “pasquins<br />

fascistas”. 334 Sirkis chamou os eleitores da Democracia Cristã, o partido que governava o<br />

Chile até Allende assumir o poder, de momios, gíria que ele traduziu como “múmias,<br />

reacionários”. Logo após o golpe, ele se deparou com uma família comemorando a<br />

destituição de Allende. Escreveu ele: “Nas portas de alguns edifícios aparecem grupos<br />

eufóricos, de rádio e bandeira chilena na mão, como se fosse decisão de campeonato. É a<br />

classe média marchadeira que vibra e torce, lembranças [do golpe militar] de 1º de abril<br />

de 1964”. 335<br />

Para evidenciar as armadilhas em que muitos já caíram e ainda caem, nós faremos aqui<br />

um pequeno teste, com perguntas espalhadas ao longo deste capítulo. Marque a<br />

alternativa que achar correta e confira o resultado no final do capítulo.<br />

Questão 1<br />

Quem derrubou Salvador Allende?<br />

a) A CIA<br />

b) Os Estados Unidos<br />

c) O presidente americano Richard Nixon<br />

d) Nenhuma das alternativas anteriores<br />

Apesar do discurso radical, Allende vivia como riquinho. Praticava equitação, natação, tiro ao alvo e comprou um<br />

pequeno veleiro, no qual levava as filhas para passear. Nos anos 60, Allende foi diretor-geral e acionista da Sociedade<br />

Anônima e Comercial Pelegrino Carioca, uma firma de exportação e importação com sedes em Valparaíso e


Santiago. 336<br />

O brigadeiro Marmaduke Grove, sabe-se hoje, foi pago regularmente pelo Ministério de Assuntos Exteriores nazista.<br />

“Mesmo os ministros socialistas da Frente Popular de Pedro Aguirre Cerda (1938 a 1941) foram subornados diretamente<br />

pela embaixada nazista em Santiago”. 337<br />

Ao mesmo tempo em que entrou na universidade, em 1926, também ingressou na maçonaria seguindo o exemplo de<br />

seu pai e de seu avô paterno, que portava o título de Gran Mestre da Maçonaria. 338<br />

Salvador Allende Gossens, filho de uma abastada família de Valparaíso, inclinou-se<br />

para o socialismo por influência de um sapateiro anarquista de origem italiana.<br />

Declarava-se marxista-leninista e chamava às próprias filhas “companheira” Carmen,<br />

“companheira” Isabel, “companheira” Beatriz. 339 Na Faculdade de Medicina, em que<br />

ingressou em 1926, participou de um grupo de estudos marxistas. Em 1932, com 24<br />

anos, integrou um grupo comandado pelo brigadeiro Marmaduke Grove, que deu um<br />

golpe militar e criou a Junta da República Socialista do Chile. A empreitada durou<br />

apenas duas semanas, e Allende chegou a ser preso por fazer um discurso na Faculdade<br />

de Direito. No ano seguinte, tornou-se um dos fundadores do Partido Socialista de<br />

Valparaíso. Como parte de uma coalizão chamada Frente Popular, os socialistas<br />

conquistaram a presidência em 1938, e Allende, com seus óculos de aros grossos, foi<br />

empossado ministro da Saúde. Ficou no cargo até 1942.<br />

Em seguida, Allende foi senador por 25 anos e tentou três vezes a presidência, sem<br />

sucesso. Em 1970, concorreu pela quarta vez pela Unidade Popular, que incluía o Partido<br />

Comunista, fiel a Moscou, o Partido Socialista, o Partido Radical e outros grupos, que<br />

pensavam de maneira mais radical que o Partido da Democracia Cristã (PDC), no poder<br />

até então. A missão expressa nos documentos do Partido Socialista deixava clara sua<br />

intenção: “estabelecer um Estado revolucionário que possa libertar o Chile da<br />

dependência e do atraso econômico e cultural e iniciar um processo de socialismo. A<br />

violência revolucionária é inevitável e legítima […]. A revolução socialista só pode ser<br />

consolidada pela destruição da estrutura burocrática e militar do Estado burguês”. 340<br />

329 Les Evans, Disaster in Chile, Allende’s Strategy and Why It Failed, Pathfinder Press, página 218.<br />

330 Libro Blanco del Cambio de Gobierno en Chile, Secretaría General de Gobierno de Chile/Lord Cochrane, 1973, página<br />

69.<br />

331 Alberto Aggio, “A esquerda brasileira vai ao Chile”, revista História Viva, Duetto, edição 42, abril de 2007.<br />

332 <strong>Da</strong>rcy Ribeiro, Confissões, Companhia das Letras, 1997, página 414.<br />

333 Alfredo Sirkis, Roleta Chilena, Círculo do Livro, 1981, página 116.<br />

334 Alfredo Sirkis, páginas 26 e 108.<br />

335 Alfredo Sirkis, página 22.<br />

336 Víctor Farías, Salvador Allende, Antissemitismo e Eutanásia, Novo Século, 2005, página 26.<br />

337 Víctor Farías, página 18.<br />

338 Patricia Verdugo, Como os EUA Derrubaram Allende, Revan, 2003, página 9.<br />

339 “Os Caminhos do Chile”, revista Veja, Abril, 16 de setembro de 1970.


340 Robin Harris, A Tale of Two Chileans, Chileans Supporters Abroad, disponível em<br />

www.reocities.com/CapitolHill/Congress/1770/harris.pdf, página 9.


O poeta chileno Pablo Neruda, Nobel de Literatura, era membro do Partido<br />

Comunista do Chile. Quando Josef Stálin, um dos piores ditadores do século 20,<br />

morreu, em 1953, Neruda publicou uma Ode a Stálin na revista francesa L’Espresso:<br />

NERUDA AMAVA STÁLIN<br />

Junto a Lênin<br />

Stálin avançava<br />

e assim, com blusa branca,<br />

com gorro cinzento de operário, Stálin,<br />

com seu passo tranquilo,<br />

entrou na História acompanhado<br />

de Lênin e do vento.<br />

Stálin desde então<br />

foi construindo. Tudo<br />

fazia falta. Lênin<br />

recebeu dos czares<br />

teias de aranha e farrapos.<br />

Lênin deixou uma herança<br />

de pátria livre e vasta.<br />

Stálin a povoou<br />

com escolas e farinha,<br />

imprensas e maçãs. [...]<br />

Sua simplicidade e sua sabedoria,<br />

sua estrutura<br />

de bondoso coração e de aço inflexível<br />

nos ajuda a ser homens cada dia,<br />

diariamente nos ajuda a ser homens.


Allende ganhou o pleito com 36% dos votos. Como a maioria da população chilena<br />

não optara pelo candidato, foi preciso validar o resultado no Congresso. Cientes das<br />

credenciais radicais de Allende, os parlamentares o obrigaram a assinar um documento,<br />

o Estatuto das Garantias Democráticas. Nesse juramento, Allende prometeu respeitar o<br />

Estado de Direito, o profissionalismo das forças armadas, a liberdade de opinião, a<br />

pluralidade sindical, a autonomia das universidades e a obrigação de indenizar as<br />

expropriações previstas no programa de governo. 341<br />

Poucos franceses fizeram tanto estrago na América Latina quanto Régis Debray. No livro Revolução na Revolução,<br />

ele desenvolveu a teoria do foco, segundo a qual pequenos grupos armados poderiam vencer grandes exércitos. Essa<br />

ideia levou milhares de jovens a perder a vida organizando guerrilhas no meio do mato. Debray foi preso com Che<br />

Guevara na Bolívia em 1967. Solto em 1970, mudou-se para o Chile e virou conselheiro de Allende. Sua mulher,<br />

Elisabeth Burgos, foi a ghost-writer da biografia de Rigoberta Menchú.<br />

Foi um ato de puro cinismo, pois mais tarde Allende debochou do acordo e ignorou<br />

todas as promessas. Em entrevista ao jornalista francês Régis Debray, em 1971, Allende<br />

disse que só assinou o documento por “necessidade tática”. Segundo ele, “o importante<br />

era tomar o poder”. 342 Na entrevista, disse ainda:<br />

Quanto ao Estado burguês do momento presente, nós estamos buscando superá-lo. Derrotá-lo.<br />

Nós devemos expropriar os meios de produção que ainda estão em mãos privadas.<br />

Camarada, o presidente da República é um socialista... Eu alcancei esse posto para trazer a transformação econômica e<br />

social do Chile, o que abrirá o caminho para o socialismo. Nosso objetivo é o total, científico, socialismo marxista. 343<br />

As políticas adotadas por Allende foram drásticas desde o princípio. Seus seguidores,<br />

armados, começaram a realizar impunemente uma série de apropriações de fazendas e<br />

fábricas, as quais eram chamadas de tomas. A queda na produção de alimentos e outros<br />

bens, decorrente disso, provocou escassez, inflação e fez o governo lançar, uma década<br />

depois de Cuba, um cartão de racionamento. Grupos irregulares de direita começaram a<br />

contra-atacar os de esquerda, gerando conflitos violentos. A média era de uma morte por<br />

semana em confrontos políticos. 344<br />

Os terroristas chilenos também aprontaram no Brasil. Com o pretexto de ajudar a guerrilha em El Salvador,<br />

integrantes do MIR sequestraram o empresário Abilio Diniz, dono do Grupo Pão de Açúcar, em 1989. O sequestro do<br />

publicitário Washington Olivetto, que ocorreu em 2002, também envolveu chilenos. Um deles, Marco Rodolfo Rodríguez<br />

Ortega, é filho de dois integrantes do MIR.<br />

O presidente também criou uma guarda pessoal para cuidar de sua segurança. Era o<br />

GAP, Grupo de Amigos Pessoais, montado logo no início do mandato. Muitos dos seus<br />

participantes também estavam no Movimiento de Izquierda Revolucionária (MIR),<br />

grupo de militantes radicais que tinha como um dos seus líderes Andrés Pascal Allende,<br />

sobrinho do presidente. Eram cerca de 200 homens pesadamente armados – tinham<br />

pistolas com silenciadores e dirigiam carros potentes para a época, como o Fiat 125. 345<br />

Corriam pelas ruas de Santiago exibindo metralhadoras do lado de fora das janelas. “Eu<br />

estava atravessando a rua com uma amiga em Santiago, e quase fomos atropeladas por<br />

eles. Com armas do lado de fora da janela, nunca paravam os carros”, diz Célia de las<br />

Mercedes Morales Ruiz, que morava no Chile na época e depois se mudou para o Brasil.<br />

Entre os seguranças que protegiam as residências de Allende, havia cubanos, argentinos<br />

radicais membros do grupo dos montoneros e uruguaios do grupo tupamaro, todos<br />

terroristas. Os treinamentos do GAP ocorriam nas propriedades do presidente com


instrutores cubanos.<br />

BETTMANN/CORBIS/LATINSTOCK<br />

Allende acena para a multidão a caminho de parada militar em Santiago, em novembro de 1970. Os guarda-costas que o<br />

acompanham são integrantes do GAP.<br />

Allende ainda tentou controlar o ensino nas escolas. Bem ao estilo de Che Guevara,<br />

seu plano era de criar uma Escola Nacional Unificada (ENU), para criar o “homem<br />

novo... livre para se desenvolver integralmente em uma sociedade não capitalista, e quem<br />

vai se expressar como uma personalidade... consciente e solidária com o processo<br />

revolucionário, que é... tecnicamente e cientificamente capaz de desenvolver a economia,<br />

a sociedade em transição para o socialismo”. 346 Lautaro Videla, coautor do projeto, disse<br />

que a Escola Nacional Unificada era a “entrada definitiva da luta de classes na<br />

educação”. O projeto revoltou pais de alunos, militares, políticos de oposição,<br />

professores, mulheres e estudantes. Até mesmo padres da Igreja Católica deram<br />

declarações indignadas contra a proposta de doutrinação.<br />

O cinema também sofreu censura. A estatal Chile Films é que ditava os filmes que deveriam ser exibidos nas salas.<br />

Mais da metade deles passou a ser de soviéticos. As salas, claro, ficaram vazias.<br />

Allende também investiu contra veículos de comunicação que não compactuavam com<br />

suas ideias. Jornais e rádios foram atacados e passaram a ter problemas para importar<br />

antenas de transmissão, tinta e óleo para as impressoras, cujas vendas passaram a ser<br />

controladas pelo governo. Diversas estações de rádio foram compradas. As que se<br />

negaram a negociar com o governo ganharam concorrentes na mesma cidade. Dez delas<br />

foram invadidas por socialistas e comunistas, que expulsavam os donos e mudavam a<br />

programação na marra. 347 Canais de televisão também foram tomados. O diretor do Canal<br />

5 e seus funcionários foram feitos prisioneiros e até mesmo chicoteados. 348 O Canal 6,<br />

criado pela Universidade do Chile, foi palco de violência. Dois dias depois de entrar no<br />

ar, em 19 de junho de 1973, um grupo de policiais civis entrou com armas nas mãos, sem


autorização judicial, destruiu os equipamentos e prendeu 31 estudantes e jornalistas. A<br />

ordem foi dada pelo governador de Santiago, o socialista Julio Stuardo. 349<br />

O governo ainda fez uma campanha contra o único fornecedor de papel de imprensa no<br />

Chile, a empresa La Papelera. Tentou comprar as ações da empresa por um preço quatro<br />

vezes maior, mas nenhum acionista aceitou a proposta. O jornal El Mercurio sofreu<br />

boicote das estatais, que deixaram de comprar anúncios. Três meses após a posse de<br />

Allende, a receita tinha caído 40%. Os bancos, que passaram para as mãos do governo,<br />

recusaram-se a dar crédito ao periódico. Por duas vezes, militantes pró-Allende tentaram<br />

incendiar as instalações. Funcionários e colaboradores recebiam cartas e chamadas<br />

telefônicas de desconhecidos dizendo que iriam colocar fogo em seus carros e prendêlos.<br />

O diretor Agustín Edwards também foi ameaçado de morte. Segundo a cientista<br />

política socialista francesa Suzanne Labin, que reconstruiu os fatos da época a partir de<br />

depoimentos de chilenos, o El Mercurio só sobreviveu graças ao apoio de seus<br />

trabalhadores, que aceitaram uma redução de salários de 20%. 350<br />

Liberdade de imprensa não era uma bandeira do presidente. Em um congresso de<br />

jornalistas no dia 18 de abril 1971, Allende deu sua opinião sobre como deveria ser o<br />

trabalho desses profissionais:<br />

Não deve haver lugar para objetividade no jornalismo. O dever supremo dos jornalistas de esquerda não é servir a<br />

verdade, mas a revolução. 351<br />

Em maio de 1973, um tribunal da cidade Rancagua determinou que uma fazenda ocupada ilegalmente fosse devolvida a<br />

seu dono. O governo, então, deu uma ordem ao chefe de polícia local para que não tirasse os invasores e mandasse<br />

embora o proprietário verdadeiro, se ele ousasse aparecer. Indignada, a Corte Suprema divulgou uma nota pública a<br />

Allende, reclamando que era a “enésima vez que ele interferia em um ato de justiça”. Não apenas tinha impedido que<br />

uma sentença fosse cumprida, como tinha ordenado o oposto. 352<br />

Em agosto de 1973, um mês antes do suicídio do presidente, o Congresso listou dez<br />

flagrantes de desrespeito à ordem constitucional e legal do país. Entre as denúncias,<br />

afirmava-se ser “um fato que o atual governo da república, desde seu início, se empenhou<br />

em conquistar o poder total, com o evidente propósito de submeter todas as pessoas ao<br />

mais estrito controle econômico por parte do Estado e conseguir desse modo a instalação<br />

de um sistema totalitário, absolutamente oposto ao sistema democrático representativo,<br />

que a Constituição estabelece”. O texto ainda acusava o governo de burlar a ação da<br />

justiça nos casos de delinquentes que pertenciam a partidos ou grupos do governo, atentar<br />

contra a liberdade de expressão, impedir grupos de adversários de fazer reuniões, tentar<br />

tornar obrigatória a conscientização marxista na escola, violar o direito de propriedade,<br />

reprimir sindicatos com meios ilegais e apoiar a formação e o desenvolvimento de<br />

grupos armados, destinados a enfrentar as forças armadas do país. A Câmara dos<br />

Deputados passou uma resolução, com 87 votos a favor e 47 contra, declarando o<br />

governo de Allende ilegal. 353 Muito pouco disso foi considerado pelos intelectuais e<br />

políticos estrangeiros que estavam refugiados no Chile.<br />

Por essa época, Allende estava longe de ter a população chilena a seu favor. Com a<br />

economia em frangalhos, grupos terroristas promovendo atentados, um projeto de<br />

doutrinação ideológica nas escolas em andamento e jornais sob ataque, o<br />

descontentamento cresceu. Mulheres protestaram nas ruas batendo panelas. Motoristas de


caminhão organizaram uma greve nacional, inviabilizando que mercadorias e matériasprimas<br />

chegassem a seus destinos. Ao protesto dos motoristas, juntaram-se estudantes<br />

universitários, donas de casa, lojistas, pilotos de companhias aéreas, donos de ônibus da<br />

capital, bancários, engenheiros civis, médicos e dentistas. 354 Seus pedidos não davam em<br />

nada. Allende, eleito por uma minoria, nunca se preocupou em conquistar o coração e a<br />

confiança dos outros chilenos. O próprio presidente assumiu: “Eu não sou presidente de<br />

todos os chilenos, mas apenas dos que apoiam a Unidade Popular”. 355 O país ficou<br />

ingovernável, e as pessoas começaram a se preparar para enfrentar uma guerra civil.<br />

O relato do chileno Ricardo García Valdés, engenheiro elétrico aposentado, hoje com<br />

65 anos, ilustra bem a situação. Em Santiago, ele trabalhava na Standard Electric, de<br />

capital americano, e simpatizava com o Partido da Democracia Cristã, o PDC:<br />

Um dia veio um cara do sindicato e disse: “Você é um fdp vendido aos americanos!”. E cuspiu na minha mesa. Eu fui<br />

então conversar com o presidente da companhia, diretamente. Contei o que aconteceu, e ele respondeu: “Ricardo, eu não<br />

mando mais na empresa. Quem comanda aqui é o sindicato, não posso fazer nada. Não tenho mais autoridade”.<br />

Outro dia, os funcionários socialistas tomaram a companhia. Colocaram tábuas de madeira em formato de cruz nas<br />

janelas e organizaram um corredor polonês, com pessoas dos dois lados, que ia afunilando até o portão da empresa.<br />

Quem não era do partido socialista teve de sair por esse caminho, sob o olhar amedrontador dos demais. Era como se<br />

dissessem: “esse vai ser o nosso forte, vamos usá-lo na revolução”.<br />

No bairro onde eu morava, todos nós que não éramos do partido socialista de Allende nos juntamos na casa de um<br />

colega para decidir o que fazer para nos defender quando viesse a revolução socialista. Sabíamos que vizinhos do outro<br />

lado estavam se preparando para um enfrentamento iminente. Também nos unimos. Um vizinho do nosso grupo<br />

trabalhava numa gráfica, outro em uma companhia telefônica. Éramos todos de classe média. Um de nós ficaria<br />

encarregado de armazenar água. Outro, remédios. Um terceiro tentaria comprar armas, revólveres. Ninguém sabia<br />

disparar ou tinha qualquer noção de guerrilha. Eram pessoas como eu, que até então viviam tranquilamente com a família<br />

e de repente entraram sem querer em uma situação absurda. Vivíamos uma neurose coletiva. Se realmente eclodisse<br />

uma guerra civil, estaríamos todos mortos.<br />

Antes que o pior acontecesse, e em sintonia com os órgãos máximos do Poder<br />

Legislativo e Judiciário, o exército, a marinha e a aeronáutica deram o golpe.<br />

Questão 2<br />

Qual era a ideologia dos soldados do exército chileno no tempo de Allende?<br />

a) Esquerda<br />

b) Direita<br />

c) Centro<br />

d) Nenhuma das anteriores<br />

Como o general Augusto Pinochet iniciou uma longa ditadura após o golpe contra<br />

Allende, muitos passaram a acreditar que o exército chileno sempre foi de direita. Mas<br />

não era essa a realidade nos tempos do governo da Unidade Popular, a coligação que<br />

sustentou Allende. Na época, o exército espelhava o pensamento do restante da<br />

população chilena e se inclinava à esquerda. Soldados e generais só mudaram de posição<br />

depois de assistir à destruição da democracia e da economia do país.<br />

Em 1969, um ano antes de Allende assumir, o embaixador brasileiro Câmara Canto,<br />

que estava em Santiago, enviou um ofício ao Itamaraty. Com base em fontes nas forças<br />

armadas, escreveu que entre 65% e 80% dos soldados, abaixo da patente de major, eram<br />

de esquerda. Era uma “notória infiltração esquerdista”, que incluía militantes do


Movimiento de Izquierda Revolucionária (MIR), comunistas e socialistas. 356 O general<br />

Carlos Prats, que se tornou comandante-chefe do exército em 1970, tinha estatísticas<br />

parecidas. Para ele, 80% dos militares eram de centro-esquerda, embora nem todos<br />

fossem marxistas. 357 O próprio Prats era a favor da reforma agrária e da nacionalização<br />

dos recursos naturais, embora afirmasse que não queria a ditadura do proletariado. 358<br />

Por dois momentos, militares de alta patente foram integrados ao gabinete do<br />

presidente Allende. No primeiro, em novembro de 1972, Prats assumiu o Ministério do<br />

Interior e a vice-presidência da República. Milicos também ocuparam as pastas do<br />

Ministério das Minas, do Ministério das Obras Públicas e Transportes. Todos<br />

renunciaram com a piora da crise econômica e depois de ouvir seguidas declarações<br />

radicais de aliados do governo. Em agosto de 1973, militares voltaram aos principais<br />

postos da nação a convite de Allende. Ocuparam o Ministério dos Transportes, o<br />

Ministério da Fazenda e o Ministério de Terras e Colonização. Prats foi para o<br />

Ministério da Defesa Nacional. Renunciou no dia 23 do mesmo mês – 19 dias antes do<br />

golpe de Estado.<br />

À medida que Allende avançava em seu projeto socialista, a população reclamava e<br />

pedia alguma ação das forças armadas. A passividade que demonstraram incomodou<br />

muita gente. Mulheres protestavam no pátio da Escola Militar, lançando grãos de milho<br />

no chão, “insinuando que os militares eram covardes, frouxos, porque não agiam contra o<br />

governo”, como relata Luiz Alberto Moniz Bandeira, historiador que foi filiado ao<br />

Partido Socialista Brasileiro. 359 Em outras palavras, as chilenas chamavam os soldados<br />

de galinhas.<br />

A mudança de postura dos militares – da esquerda para a direita – ocorreu por vários<br />

fatores. O principal é que eles e seus familiares também foram afetados por greves,<br />

tomadas de empresas, escassez de comida, inflação, violência. Até as padarias pararam<br />

de fabricar pão. 360 Também temiam a doutrinação ideológica nas escolas de seus filhos.<br />

Ainda que tímida e vagarosamente, as galinhas das forças armadas começaram a<br />

resistir às investiduras antidemocráticas de Allende. Em 1972, o presidente acusou os<br />

empresários de estocar produtos. Na visão do presidente, seriam eles os responsáveis<br />

pela inflação e pela escassez. Então, mandou prender os 63 dirigentes das principais<br />

organizações empresariais do país. O exército não deixou que o absurdo fosse adiante.<br />

Quem o estava liderando na época era um militar que, depois de reprimir com sucesso<br />

uma greve geral contra o governo, foi promovido por Allende e se tornou um dos homens<br />

de confiança do presidente. Seu nome era Augusto Pinochet. 361<br />

Questão 3<br />

Quem estava louco para dar um golpe no Chile?<br />

a) A CIA<br />

b) Os militares<br />

c) Os soviéticos<br />

d) Os terroristas cubanos e chilenos<br />

A CIA é considerada por muitos como a grande culpada pela derrocada de Salvador<br />

Allende no golpe militar do dia 11 de setembro de 1973. Mas nessa época a agência de


inteligência americana já não estava fazendo suas típicas trapalhadas no país. A CIA<br />

atuou, sim, no Chile. Mas a maior parte de suas ações aconteceu entre 1962 e 1970, bem<br />

antes do golpe. Nesses oito anos, seus integrantes cometeram uma sucessão de besteiras.<br />

Erraram feio no diagnóstico do país e, quando atuaram, produziram efeitos inversos.<br />

Em um primeiro momento, entre 1962 e 1969, o principal objetivo da CIA no Chile era<br />

evitar que o país se transformasse em uma nova Cuba, aliando-se à União Soviética. O<br />

mundo estava em plena Guerra Fria, quando as duas superpotências dividiam entre si o<br />

tabuleiro mundial. A primeira ajuda financeira da agência para o país foi durante o<br />

governo de Dwight Eisenhower, que aprovou o envio de milhares de dólares para<br />

financiar o Partido da Democracia Cristã (PDC). 362 Com o PDC, a CIA pretendia impedir<br />

que Salvador Allende, do Partido Socialista, se tornasse o presidente e “cubanizasse” o<br />

país. Aí estava o primeiro engano.<br />

O PDC propunha uma sociedade “comunitária”, um passo além do capitalismo e do<br />

socialismo. Mas claramente inclinava-se para a segunda opção. A visão de mundo da<br />

democracia cristã segundo o próprio Eduardo Frei, seu candidato nas eleições de 1964,<br />

explicou em uma conferência que deu na Universidade de <strong>Da</strong>yton, nos Estados Unidos:<br />

O regime capitalista tem aprofundado as desigualdades entre os homens e concentrado o poder em poucas mãos, então<br />

se configurou um sistema político profundamente opressivo, em que uma classe social estabelece sua dominação sobre<br />

todo o resto da sociedade. 363<br />

É evidente que está em crise a organização da empresa privada industrial de tipo capitalista clássico. Cedo ou tarde cada<br />

uma de nossas sociedades colocará o problema da organização da empresa sobre a base, não na relação capital-trabalho<br />

subordinado, mas de uma nova forma de empresa em que os trabalhadores tenham participação na direção. 364<br />

Frei era claramente favorável à reforma agrária:<br />

Acreditamos que onde não se esteja disposto a incorporar as massas camponesas ao processo político, cultural e social,<br />

se correrá o risco de desvios totalitários. Em algumas partes do continente, precisamos reconhecer, a hora dessas<br />

mudanças está passando. É urgente, pois, encará-la. 365<br />

Vitorioso nas eleições de 1964 e fiel às promessas que fizera durante a campanha, Frei<br />

tomou uma série de medidas que ia no sentido oposto ao dos interesses americanos.<br />

Promoveu a chamada chilenização da indústria de cobre, com a aquisição de 51% das<br />

ações das empresas americanas que atuavam no país. Também aprofundou a reforma<br />

agrária, já em vigor. Queria dar a terra àqueles que nela trabalhavam. 366 Mais de 1.300<br />

propriedades com mais de 80 hectares foram expropriadas. Entre um quinto e um quarto<br />

das fazendas chilenas já tinham mudado de mãos. 367 O presidente hesitou em apoiar as<br />

sanções americanas contra Cuba. 368 Foi do PDC que nasceram duas facções paramilitares<br />

de extrema-esquerda, o MAPU e a Izquierda Cristiana. <strong>Da</strong> direita mesmo era o Partido<br />

Conservador, do ex-presidente Jorge Alessandri, e alguns grupos radicais, como o Pátria<br />

e Liberdade, os quais entraram em seguidos confrontos com os comunistas e os<br />

socialistas. Se a ideia dos americanos era evitar uma nova Cuba, o apoio da CIA ao PDC<br />

saiu pela culatra.<br />

Com o valioso apoio americano, o PDC conseguiu 31% dos votos nas eleições<br />

legislativas de 1969, menos do que obtivera nas legislativas de 1965, quando ficou com<br />

43%. 369 Na eleição presidencial de 1970, o candidato do PDC, Radomiro Tomic,


apresentou-se abertamente como socialista-cristão lutando pela erradicação “do<br />

capitalismo e do neocapitalismo”. Durante essa campanha, a CIA optou por não apoiar<br />

diretamente os candidatos, limitando-se a atacar o comunismo. A fraqueza dessa<br />

estratégia, segundo o diretor da CIA, Richard Helms, foi querer “bater em alguém com<br />

ninguém”. 370 Cartazes mostravam tanques soviéticos entrando nas ruas de Santiago.<br />

Ninguém deu bola. “Eu disse duas semanas antes da eleição que nunca tinha visto uma<br />

propaganda tão terrível em lugar algum do mundo”, escreveu o embaixador americano<br />

Edward Korry, que reprovou a ação. “Eu disse que os idiotas da CIA que tinham ajudado<br />

a criar aquela campanha de terror deveriam ser demitidos imediatamente por não<br />

entender o Chile nem os chilenos.”<br />

Após as eleições presidenciais que dão a vitória a Allende, em 1970, é esse mesmo<br />

partido, o PDC (que tal chamá-lo de Partido da CIA?), que garantiu no Congresso as<br />

condições para que Allende assumisse o governo com a assinatura do Estatuto das<br />

Garantias.<br />

Embora o PDC ainda tenha se aproximado em alguns momentos iniciais do governo de<br />

Allende, o partido afastou-se quando percebeu que a democracia estava sendo destruída.<br />

Criticou a existência do GAP, Grupo de Amigos Pessoais, de Allende. Também<br />

questionou a repressão às greves e aos sindicatos não afiliados à Unidade Popular e às<br />

mobilizações de mulheres. Nessa hora, contudo, a CIA já estava fora do jogo. Era a<br />

população chilena que pressionava Allende.<br />

O acompanhamento do treinamento dos milicianos era feito com notas.<br />

Antes de apontar o dedo para os Estados Unidos, é melhor olhar o que Cuba aprontou<br />

no Chile. O melhor levantamento sobre isso está no Libro Blanco del Cambio de<br />

Gobierno en Chile, publicado pela Secretaria Geral do Governo do Chile em 1973, logo<br />

após o golpe de Estado de Pinochet, com diversos documentos e fotos da época. Na<br />

página seguinte, pode-se ver uma foto de Allende, de chapéu, sendo adestrado no uso de<br />

uma metralhadora de guerra por um cubano de boina, com o chão repleto de cartuchos<br />

vazios de bala. O local da foto é entre os montes de El Arrayán, onde se encontrava a<br />

residência presidencial, e o campo de treinamento de guerrilheiros El Cañaveral. 371 Entre<br />

os que davam aulas de tiro, defesa pessoal e manejo de explosivos estavam não apenas<br />

cubanos, mas também brasileiros e argentinos. 372 Há também fotos e registros dos<br />

arsenais encontrados no Palácio de La Moneda e na residência presidencial Tomás<br />

Moro, onde dormia Allende. A maior parte era de origem checoslovaca ou soviética. 373<br />

Havia armas para equipar 5 mil homens.<br />

Para receber Fidel Castro, estudantes chilenos tiveram até de aprender o hino cubano.<br />

Enquanto era senador, Allende ofereceu asilo na ilha de Páscoa aos seis sobreviventes<br />

do grupo de Che Guevara que lutaram na Bolívia e os acompanhou pessoalmente na<br />

viagem. 374 A filha de Allende, Beatriz, casou-se com o cubano Luis Fernández de Oña, o<br />

comunista que organizou a expedição de Che Guevara à Bolívia antes de ter se tornado<br />

um dos chefes da polícia secreta cubana. 375 Ao longo de 25 dias, entre novembro e<br />

dezembro de 1971, o cubano Fidel Castro visitou o Chile e participou de diversas<br />

reuniões de governo, fazendo discursos inflamatórios. “Agora vejam: a questão que<br />

obviamente se coloca é se acaso se cumprirá ou não a lei histórica da resistência e da<br />

violência dos exploradores”, disse Fidel em seu ato público de despedida. Não era uma


pregação pacífica, muito menos neutra. “Temos dito que não existe na história nenhum<br />

caso em que os reacionários, os exploradores, os privilegiados de um sistema social se<br />

resignem à mudança, se resignem pacificamente às mudanças”. 376<br />

FONTE: SECRETARÍA GENERAL DE GOBIERNO DE CHILE, LIBRO BLANCO DEL CAMBIO DE GOBIERNO EN CHILE, LORD<br />

COCHRANE, 1973.<br />

Allende faz aula de tiro com um terrorista cubano em uma residência oficial.<br />

Em 1971, Fidel Castro passou a enviar armas e dar treinamento para militantes<br />

chilenos na ilha. Dos seus 5 mil membros, cerca de 2 mil estavam sob ordens de cubanos.<br />

Os armamentos, encontrados após o golpe militar, incluíam 3 mil fuzis AK-47, 2 mil<br />

submetralhadoras e mais de 3 mil pistolas e armas capazes de furar blindagens, os quais<br />

sequer existiam entre os arsenais das forças armadas chilenas. O estoque bélico, que<br />

aparece em fotos no Libro Blanco, chegou por meio do contrabando de caixas que<br />

vinham de Cuba pela empresa aérea Lan Chile, com a conivência de simpatizantes<br />

socialistas que trabalhavam ali. 377


FONTE: SECRETARÍA GENERAL DE GOBIERNO DE CHILE, LIBRO BLANCO DEL CAMBIO DE GOBIERNO EN CHILE, LORD<br />

COCHRANE, 1973.<br />

Boletim com notas de uma escola de guerrilheiro na casa do presidente. O aluno se chamava “Eduardo”.<br />

Na embaixada de Cuba, em Santiago, foi montado um depósito de armamentos no<br />

subterrâneo, de 120 metros quadrados, ao lado de uma sala de operações de guerra<br />

criada para “um combate, que todos consideravam inevitável”. 378 As armas eram<br />

soviéticas e havia até um aparelho para interferir nas comunicações locais. 379


FONTE: SECRETARÍA GENERAL DE GOBIERNO DE CHILE, LIBRO BLANCO DEL CAMBIO DE GOBIERNO EN CHILE, LORD<br />

COCHRANE, 1973.<br />

Alvos em forma de figuras humanas usados em treinamentos de tiro, encontrados na residência presidencial da Rua<br />

Tomás Moro.<br />

Quando veio o golpe de Pinochet, a reação dos chilenos treinados em Cuba foi aquém<br />

do esperado de um grupo com tanto poder bélico em mãos. Com o golpe, muitos de seus<br />

líderes se refugiaram em embaixadas, o que os impediu de coordenar uma reação<br />

armada. Mas os comandos mais fanáticos, que estavam sob ordens de cubanos, foram à<br />

luta. Nos dias que se seguiram à deposição de Allende, atacaram diversos policiais e<br />

militares no caminho de casa, indo ou voltando do trabalho, ou fazendo patrulhas de<br />

rotina. Até o suicídio de Allende, eles tinham matado seis pessoas. Depois do golpe e até<br />

o fim de 1973, foram mais 87 assassinatos. 380<br />

Meses antes da mudança de governo, a ideia na cabeça dos revolucionários era<br />

promover um autogolpe no país. Uma vez que a Constituição, as forças armadas, o


Congresso e a justiça chilena impediam o presidente Allende de ir adiante com seu<br />

projeto socialista, a solução seria acabar com todo tipo de oposição. A data para isso,<br />

segundo o que se descobriu nos planos resgatados após o golpe, seria entre os dias 18 e<br />

19 de setembro, aproveitando as mobilizações pelas festas da independência. Nesses<br />

dias, os principais chefes das forças armadas, policiais, dirigentes políticos e<br />

sindicalistas seriam assassinados e teria início, assim, uma ditadura do proletariado. 381<br />

No “Plano Z”, com data de 25 de agosto de 1973, falava-se na “detenção imediata de<br />

oficiais e elementos sediciosos de oposição pré-fichados e seu translado a lugares de<br />

retenção e eliminação”, além da sabotagem de aeroportos, pontes, ferrovias, vias de<br />

comunicação e estradas de Santiago, Valparaíso, Concepción e Antofagasta para isolar<br />

as cidades e impedir um possível contragolpe.<br />

O plano de autogolpe do Partido Comunista orientava que cada um de seus membros<br />

deveria conseguir uma arma de fogo e acumular em casa garrafas de vidro (para<br />

coquetéis Molotov), lanternas, parafinas e água potável. Esse último item se deve ao fato<br />

de que sistemas de água e de luz seriam destruídos pelos terroristas. O texto também<br />

orienta que, “em caso de enfrentamento, jamais se deve atuar contra policiais<br />

uniformizados, sem se certificar antes de que possam ser militantes do PC com uniformes<br />

de policiais”.<br />

Um outro plano do Partido Socialista afirmava que “no Chile se deverá produzir um<br />

enfrentamento armado entre as classes, que irá adquirir grandes proporções”. 382 Em caso<br />

de emergência, os principais líderes do partido, como o próprio Allende, circulariam<br />

com outros nomes (o presidente passaria a se chamar Reinaldo Ángulo Aldunate). Todos<br />

deveriam se reunir em uma casa batizada de “Filadélfia” sempre que escutassem pelo<br />

rádio o tango Mi Buenos Aires Querido, interpretada por Carlos Gardel. A música seria<br />

tocada a cada 30 minutos na Rádio Corporación, e os participantes deveriam chegar a pé<br />

ao local e dizer a senha: “Sou professor”. Se o porteiro respondesse afirmativamente, é<br />

porque haveria reunião. 383 Outra estratégia encontrada pelos militares falava que “a<br />

aplicação do plano requer como condição a destruição ou pelo menos a neutralização das<br />

forças inimigas [burguesia e possivelmente policiais] no interior de nossas linhas”.


FONTE: SECRETARÍA GENERAL DE GOBIERNO DE CHILE, LIBRO BLANCO DEL CAMBIO DE GOBIERNO EN CHILE, LORD<br />

COCHRANE, 1973.<br />

Extremista brasileiro dirige uma empilhadeira transformada em tanque de guerra na fábrica estatizada Mademsa, no<br />

Chile. Os militares encontraram 24 veículos iguais a esses após o golpe. 384<br />

O antropólogo brasileiro <strong>Da</strong>rcy Ribeiro explica a situação em seu livro Confissões.<br />

Ele deixa claro que um golpe de esquerda estava sendo preparado:<br />

As esquerdas radicais entraram a conspirar, querendo elas próprias dar o golpe para cubanizar o processo chileno. 385<br />

Não se pode ter certeza de que esses grupos realmente tentariam colocar seus planos<br />

em prática. A história não deu espaço para que isso acontecesse. Mas que eles estavam<br />

loucos para dar um golpe no Chile, não há como negar.<br />

Questão 4<br />

Qual foi o país que recusou um empréstimo de 500 milhões de dólares, solicitado por<br />

Allende?<br />

a) Estados Unidos<br />

b) Cuba<br />

c) União Soviética<br />

d) Brasil<br />

No poder, Allende seguiu as três atitudes infalíveis da ruína econômica. Dentro dessa<br />

cartilha de destruição financeira, que funciona em todos os lugares onde é implantada, fez<br />

ataques a multinacionais que levaram à fuga de investidores estrangeiros.<br />

Nacionalizações resultaram na queda da capacidade empreendedora e da produção de


ens. Com menos arrecadação e mais gastos, o governo teve de imprimir mais dinheiro e,<br />

assim, provocou inflação. Em três anos, suas conquistas foram:<br />

• a produção industrial caiu 12%;<br />

• a produção agrícola caiu 30%;<br />

• a produção de carne bovina caiu 20%;<br />

• os preços subiram 1.000%;<br />

• as reservas internacionais caíram de 400 milhões de dólares para 0. 386<br />

Com a aceleração da reforma agrária, mesmo os fazendeiros que não foram<br />

expropriados passaram a temer a ação dos militantes armados e deixaram de plantar.<br />

Venderam as máquinas, abateram seus animais ou os enviaram para a Argentina. A área<br />

de terra cultivada diminuiu em um quinto. A colheita de trigo diminuiu em um terço, e a<br />

de arroz, em 20%. 387 Alimentos sumiram dos mercados, a inflação subiu, e o mercado<br />

negro prosperou.<br />

Outra política desastrosa foi a nacionalização das minas de cobre. O metal que<br />

respondia por 70% das receitas externas do país era, na visão de Allende, o “salário do<br />

Chile”. Para ele, a propriedade estrangeira das mineradoras era a “causa básica do nosso<br />

subdesenvolvimento... do nosso magro crescimento industrial, da nossa agricultura<br />

primitiva, do desemprego, dos baixos salários, do nosso baixo padrão de vida, da alta<br />

taxa de mortalidade infantil e... da pobreza, do atraso”. 388 Se antes de Allende o Estado<br />

chileno tinha assumido participação de 51% nas mineradoras, o novo governo as tomou<br />

por completo. Com isso, muitos técnicos que entendiam do trabalho pediram demissão.<br />

Eles se recusaram a ganhar em moeda nacional (até então, recebiam em dólares, o que os<br />

protegia da inflação) e não aceitavam a contratação de psicólogos, profissionais de<br />

relações públicas e sociólogos sem conhecimento na área para diversos cargos. Nas<br />

minas estatizadas, o mais importante para conseguir um cargo era a filiação ideológica.<br />

As empresas viraram cabides de emprego para os amigos camaradas. O número de<br />

funcionários na companhia Chuquicamata, que atuava na maior mina do Chile, aumentou<br />

em um terço. A empresa ficou quase toda sob o comando do Partido Comunista. 389 Quanto<br />

mais gente incompetente era convocada, mais a produção despencava. Entre 1969 e<br />

1973, o número de empregados nas diversas empresas de mineração aumentou em 45%,<br />

enquanto a produção por funcionário diminuiu 19%. Em Chuquicamata, caiu 29%. 390 Os<br />

salários também diminuíram, e o número de greves aumentou. Entre 1971 e 1972, foram<br />

85 paralisações. 391 Insatisfeitas pelas compensações oferecidas arbitrariamente pelo<br />

governo de Allende, duas empresas americanas que foram expropriadas, a Anaconda e a<br />

Kenecott Copper, iniciaram um lobby para que companhias estrangeiras deixassem de<br />

comprar o cobre chileno. O esforço levou ao boicote americano que impediu a venda de<br />

peças de reposição para indústrias do país, embora os chilenos ainda estivessem livres<br />

para comprar tais materiais de outros países, como o Japão.<br />

341 Luiz Alberto Moniz Bandeira, Fórmula para o Caos, Civilização Brasileira, 2008, página 176.<br />

342 Luiz Alberto Moniz Bandeira, página 177.<br />

343 Robin Harris, páginas 10 e 11.


344 Libro Blanco del Cambio de Gobierno en Chile, página 13.<br />

345 Libro Blanco del Cambio de Gobierno en Chile, página 21.<br />

346 Simon Collier e William F. Sater, A History of Chile, 1808-2002, Cambridge Latin American Studies, 2004, página 354.<br />

347 Suzanne Labin, Chile: The Crime of Resistance, Richmond, 1982, página 52.<br />

348 Suzanne Labin, página 53.<br />

349 Suzanne Labin, página 54.<br />

350 Suzanne Labin, página 59.<br />

351 Suzanne Labin, página 180.<br />

352 Suzanne Labin, páginas 150-151.<br />

353 Suzanne Labin, página 162.<br />

354 Simon Collier e William F. Sater, páginas 126-127.<br />

355 Suzanne Labin, página 28.<br />

356 Luiz Alberto Moniz Bandeira, página 132.<br />

357 Luiz Alberto Moniz Bandeira, página 133.<br />

358 Luiz Alberto Moniz Bandeira, página 369.<br />

359 Luiz Alberto Moniz Bandeira, página 378.<br />

360 Entrevista com M. G., dona de casa em Valparaíso, realizada em 8 de novembro de 2011.<br />

361 Luiz Alberto Moniz Bandeira, página 446.; e Carlos Alberto Sardenberg, Neoliberal, Não. Liberal, Globo, 2009, página<br />

86.<br />

362 Luiz Alberto Moniz Bandeira, página 95.<br />

363 Eduardo Frei, “A Resposta Política: Marxismo – Democracia Cristã”, conferência dada na Universidade de <strong>Da</strong>yton em<br />

novembro de 1971, Archivo Chile, página 16.<br />

364 Eduardo Frei, página 20.<br />

365 Eduardo Frei, página 19.<br />

366 Luiz Alberto Moniz Bandeira, página 111.<br />

367 Simon Collier e William F. Sater, página 314.<br />

368 Luiz Alberto Moniz Bandeira, página 113.<br />

369 Luiz Alberto Moniz Bandeira, página 124.<br />

370 Luiz Alberto Moniz Bandeira, página 143.<br />

371 Libro Blanco del Cambio de Gobierno en Chile, página 8.<br />

372 Libro Blanco del Cambio de Gobierno en Chile, página 21.<br />

373 Libro Blanco del Cambio de Gobierno en Chile, página 21.


374 Suzanne Labin, página 27.<br />

375 Idem.<br />

376 Luiz Alberto Moniz Bandeira, página 295.<br />

377 Libro Blanco del Cambio de Gobierno en Chile, página 42.<br />

378 Pero Varas Lonfat, Chile: Objectivo del Terrorismo, edição do autor, 1988, capítulo 5.<br />

379 Luiz Alberto Moniz Bandeira, página 551.<br />

380 Idem.<br />

381 Libro Blanco del Cambio de Gobierno en Chile, página 47.<br />

382 Libro Blanco del Cambio de Gobierno en Chile, página 49.<br />

383 Libro Blanco del Cambio de Gobierno en Chile, página 182.<br />

384 Libro Blanco del Cambio de Gobierno en Chile, página 26.<br />

385 <strong>Da</strong>rcy Ribeiro, página 415.<br />

386 Suzanne Labin, página 104.<br />

387 Simon Collier e William F. Sater, página 340.<br />

388 Simon Collier e William F. Sater, página 334.<br />

389 Robin Harris, página 14.<br />

390 Simon Collier e William F. Sater, página 335.<br />

391 Simon Collier e William F. Sater, páginas 335 e 336.


O embaixador americano no Chile, Edward Korry, tentou explicar regras<br />

básicas de economia para Allende quando viu que o país sob a sua tutela estava<br />

indo por um mau caminho, logo no início do mandato. Ficou impressionado ao ver o<br />

quanto o seu aluno não entendia do assunto:<br />

UMA AULA DE ECONOMIA PARA ALLENDE<br />

“Allende não entendia o problema. Desde o ponto de vista da economia moderna,<br />

era um analfabeto. Eu digo com muita seriedade, não faço brincadeira. Me<br />

dei conta de que não entendia o uso moderno da palavra ‘capital’; não entendia quando<br />

eu me referia a ‘acesso ao capital’... Havia duas, três, cinco gerações de<br />

diferença entre a minha linguagem e a sua. Assim, ao explicar a ele o<br />

acesso à tecnologia, o acesso ao capital, o acesso aos mercados, ele não tinha onde<br />

se apoiar. Mais do que isso, estava seguro de que tinha descoberto a pedra mágica e,<br />

na sua opinião, o Chile gozava em 1971 de uma grande prosperidade.<br />

Não podia entender do que eu estava falando. Não podia imaginar que a situação em<br />

1971 se devia simplesmente à impressão de notas. Allende não tinha ideia de<br />

que essa prosperidade era falsa, de que os agricultores estavam descapitalizando o<br />

campo o mais rápido que podiam – quando eu tratei de lhe explicar isso, uhn! –, [...] e<br />

assim outras coisas”. 392<br />

392 “El Embajador Edward M. Korry en el CEP”, revista Estudios Publicos, número 72, 1998.


Allende nacionalizou 90 grandes indústrias. Em 1973, o governo possuía 80% da<br />

produção industrial do país. Em todas elas, socialistas e comunistas assumiram os cargos<br />

de direção. 393 Contrataram amigos e inflaram as folhas de pagamento. Nas empresas que<br />

permaneceram privadas, o problema passou a ser o preço congelado de muitos produtos.<br />

Para vários empresários, produzir deixou de ser lucrativo, e muitos deixaram de investir<br />

na produção. 394 A única fábrica que funcionava bem no Chile era a de bandeiras. Sempre<br />

que havia uma invasão de terra ou de fábrica, fincavam uma do lado de fora.<br />

A escassez de produtos básicos começou já em 1971, atingindo, sobretudo, os pobres.<br />

Primeiro, começou a faltar óleo. Depois manteiga. E, por fim, tudo. No ápice da crise,<br />

faltava gás, cigarro, pasta de dente, pão, gasolina e óleo de cozinha. Para controlar o que<br />

cada pessoa podia comprar, o governo criou as Juntas de Abastecimentos e Preço (JAP),<br />

para distribuir produtos à população a preços fixos. As Juntas eram formadas por<br />

pessoas afinadas com a ideologia socialista. Nas cidades pequenas, os integrantes das<br />

Juntas sabiam exatamente quantas pessoas havia em cada casa e distribuíam a comida em<br />

conformidade com isso. Em alguns casos, uma Junta cuidava de apenas 40 famílias. Nas<br />

cidades ou nos bairros maiores, o controle passou a ser feito com cartões de<br />

racionamento. Um dos produtos que desapareceram foram os cigarros. Para comprar uma<br />

caixa, era preciso enfrentar filas de mais de cem pessoas em uma banca de jornal. “Só os<br />

comunistas e os socialistas, aliados ao governo, conseguiam cigarros. Estocavam vários<br />

pacotes de maços, os quais eles fumavam ou trocavam por comida ou detergente”, diz a<br />

dona de casa chilena M. G., que mora na região de Valparaíso e pediu anonimato. 395<br />

A bióloga chilena Celia de las Mercedes Morales Ruiz emigrou para o Brasil em 1973<br />

e hoje dá aulas de espanhol em São Paulo. Veja o que ela conta:<br />

Era preciso fazer fila para comprar tudo, papel higiênico, sabonete. Na padaria, não tinha pão. Meu sogro precisava<br />

fazer fila na banca de jornal para comprar cigarro. Quando eu casei, em junho de 1973, uma amiga minha me deu<br />

tamancos de madeira, porque não havia sapatos à venda. Uma conhecida de minha mãe fez para mim dois jogos de<br />

lençóis, porque não havia onde comprá-los. E fui eu que comprei a última geladeira da cidade. Tudo desapareceu das<br />

gôndolas.<br />

Nós ganhamos um cartão de racionamento que regulava quanto cada pessoa podia comprar. Um dia, fui ao açougue e<br />

teve o maior problema. Como meu marido tinha direito a comprar 250 gramas de carne e eu, mais 250 gramas, eu<br />

poderia comprar meio quilo de carne. Na prateleira, vi um rim muito bonito, mas que pesava 750 gramas. Perguntei ao<br />

açougueiro se ele poderia vendê-lo inteiro para mim. Então, o pessoal da Junta de Abastecimento e Preços convocou<br />

uma reunião. Enquanto isso, do lado de fora, havia um monte de gente esperando na fila, com chuva e frio. Era um<br />

sábado à tarde. Foi muita humilhação. Ao final, consegui comprar, porque o açougueiro ficou muito bravo. Ele sabia que,<br />

se ficasse com apenas 250 gramas de rim, ninguém iria comprar dele.<br />

Com tanta dificuldade, o jeito normalmente era comprar tudo no mercado negro, de forma escondida e pagando um<br />

preço bem elevado. Os funcionários das fábricas nacionalizadas, que passaram a ser donos das empresas onde<br />

trabalhavam, levavam peças e produtos para suas casas. Como não havia mais hierarquia nas indústrias, e todos eram<br />

companheiros, não havia mais quem pudesse censurar os desvios do outro. Então, eles anunciavam os seus produtos nos<br />

jornais. Quem queria comprar uma geladeira ou um aspirador, por exemplo, tinha de ir até a casa desses funcionários<br />

que estavam vendendo os produtos, em conjuntos habitacionais e favelas longe do centro.<br />

O chileno Ricardo García Valdés, engenheiro elétrico da Standard Electric em<br />

Santiago na época, tinha um problema a mais, arranjar comida para os filhos pequenos:<br />

Eu trabalhava sempre com um rádio de pilha ligado em cima da minha mesa. Quando se anunciava que tinha chegado<br />

um carregamento de leite em pó Nan (eu tinha três bebês) em algum ponto da cidade, eu pedia licença para o meu chefe<br />

e ia fazer fila para comprar.


Para comprar alimento, era preciso fazer fila nas JAPs. Cada um tinha o seu cartão de racionamento. Havia uma coluna<br />

com o nome dos produtos (carne, sal, óleo etc.) e outras nas quais as pessoas faziam um “x”. De tempos em tempos, era<br />

preciso trocar o cartão. Isso era para pessoas como eu. A grande maioria dos socialistas tinha acesso especial à comida.<br />

Enquanto eu pegava fila para comprar um pedacinho de carne pequeno para fazer sopa para minhas crianças, meu<br />

vizinho do lado fazia churrasco. Ele era do governo, do partido.<br />

Meu chefe me ofereceu um emprego no Rio de Janeiro, e minha mulher aceitou a ideia na hora. Pegamos os três nenês<br />

e embarcamos para o Brasil em 1973. Quando chegamos, eu e minha mulher ficamos meia hora olhando aquele prédio<br />

da Sears, em Botafogo, com andares cheios de produtos. Tinha bateria de carro. No Chile, não tinha nada, e eu tinha<br />

ficado oito meses para conseguir comprar uma bateria pro meu carro pequenininho. E tinha mais um monte de coisas.<br />

Tinha pneu. Uma beleza. Geladeira. Máquina de lavar roupa. Ferro de passar. No Brasil tinha de tudo. No Chile não<br />

tinha nada.<br />

No desespero de tentar salvar a casa, Allende viajou para Moscou e pediu um<br />

empréstimo de 500 milhões de dólares aos soviéticos. Imitou, assim, o mesmo trajeto que<br />

fez Che Guevara. Logo depois da revolução de 1959, o argentino foi para a União<br />

Soviética pedir ajuda financeira e a compra de açúcar subsidiado. Che conseguiu o que<br />

queria. Mas Allende não contava com o mesmo fator surpresa. Os soviéticos negaram a<br />

ajuda, pois não queriam arcar com os custos de uma segunda Cuba. 396 Já fazia uma<br />

década que, mesmo com todos os recursos enviados, a ilha caribenha não conseguia se<br />

desenvolver economicamente e continuava dependente da mesada soviética. Allende teve<br />

de voltar de mãos abanando.<br />

Questão 5<br />

A Reforma Agrária começou a ser implantada no Chile por pressão de qual país?<br />

a) União Soviética<br />

b) Cuba<br />

c) Estados Unidos<br />

d) Brasil<br />

Foi o maior tremor já medido por instrumentos na história. Na escala Richter, que vai de 0 a 9, o terremoto registrou<br />

9,5. Com epicentro na cidade chilena de Valdivia, a 700 quilômetros ao sul de Santiago, gerou um tsunami que chegou<br />

até o Havaí, onde ondas de dez metros mataram 61 pessoas.<br />

Allende não foi o pioneiro da reforma agrária no Chile. O confisco e a distribuição de<br />

terras foram iniciados no país logo após o terremoto de 1960. Foi uma iniciativa do<br />

presidente americano Dwight Eisenhower, um republicano, que condicionou a ajuda para<br />

a reconstrução à realização de uma reforma no campo. Eisenhower estava sob forte<br />

influência de seu irmão Milton, metido em assuntos sociais na América Latina. Quem não<br />

teve outra opção, senão promovê-la, foi o então presidente chileno Jorge Alessandri,<br />

ligado aos americanos. 397<br />

Allende só aprofundou o que estava em curso, mas usando técnicas de terrorismo. Com<br />

ele, as invasões passaram a ser feitas por grupos de guerrilheiros armados,<br />

principalmente do Movimiento de Izquierda Revolucionária (MIR). Os participantes<br />

desse movimento que estavam detidos por terem praticado atos de violência no governo<br />

anterior foram anistiados por Allende: o presidente os considerava “jovens idealistas”.<br />

Livres de punições, praticavam as tomas de terras sem dar oportunidade aos<br />

proprietários de contestar a decisão na justiça ou arranjar um novo lugar para viver.<br />

Homens armados entravam de surpresa nas propriedades rurais e ordenavam ao


proprietário e à sua família que fizessem as malas e pegassem a estrada. A polícia nada<br />

fazia. O bando então colocava uma faixa nos portões dizendo: “Essa propriedade foi<br />

tomada pelo povo”. Horas depois, chegava um interventor do governo, anunciando que a<br />

propriedade passara ao controle do governo. Essa presença deixava evidente que os<br />

burocratas do governo quase sempre tinham prévio conhecimento da invasão.<br />

Não raro, proprietários eram assassinados nas disputas. Outros cometeram suicídio ou<br />

morreram de ataques cardíacos. 398 Uma das mortes mais famosas foi a do fazendeiro<br />

Jorge Baraona Puelma, deputado do Partido Conservador. Puelma trabalhava havia 40<br />

anos em um rancho em Nilahue, com seus 11 filhos. Dois deles eram deficientes.<br />

Ameaçados pela “justiça revolucionária”, a família teve de deixar a casa principal e<br />

mudou-se para uma apertada cabana no rancho, onde ficou vivendo por meses. Mas os<br />

revolucionários não admitiram tal ousadia. Em uma manhã de fevereiro de 1971, Puelma<br />

e seus filhos foram expulsos por homens armados. Enquanto Puelma, de 68 anos,<br />

caminhava para longe, carregando alguns porta-retratos embaixo do braço, sofreu um<br />

infarto fulminante. 399<br />

Com Allende, quase todas as propriedades com mais de 80 hectares foram<br />

expropriadas. Mas essa regra não era seguida sempre. Dependendo do ânimo dos<br />

invasores, até algumas de 15 hectares entraram na mira. 400 Entre novembro de 1970 e<br />

abril de 1972, 1.767 fazendas foram tomadas por bandos armados. 401<br />

Questão 6<br />

Quando era estudante de medicina, Allende:<br />

a) criou avançadas propostas de reforma de saúde pública.<br />

b) formou sua visão de um mundo mais humano após tomar contato com pacientes pobres.<br />

c) propôs esterilizar doentes mentais e alcoólatras.<br />

d) As alternativas A e B estão corretas<br />

Allende não foi um aluno brilhante na faculdade. Seu trabalho Higiene Mental e Delinquência foi aprovado com um<br />

singelo “distinção média”. As páginas estão povoadas de erros de espanhol. Só na primeira, são oito. É um erro para<br />

cada três linhas. Um examinador criterioso mandaria reescrever a tese. Se a primeira página da introdução fosse<br />

considerada uma redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), ele não tiraria mais do que nota 6.<br />

Outro equívoco comum na biografia de Allende é quando se fala da contribuição de<br />

seu trabalho como médico para seus ideais socialistas. Historiadores disseminaram a<br />

ideia de que Allende, ao estudar na Universidade do Chile, “descobriu em primeira mão<br />

as condições estarrecedoras dos pobres, e em particular a sua situação médica – má<br />

nutrição, mortalidade infantil, doenças congênitas”. 402 O contato com pacientes humildes,<br />

assim, seria uma das explicações para sua retórica em defesa dos desafortunados. O<br />

próprio Allende ajudou a construir esse mito: “Fiz 1.500 autópsias. Sei o que é o drama<br />

da vida e quais são as causas da morte”, dizia.<br />

É um ponto de vista frequente ainda hoje no Chile. O documentário Grandes Chilenos<br />

de Nuestra História, exibido pela televisão estatal TVN no Chile em 2008, dá um bom<br />

destaque à tese de conclusão de curso de Allende, Higiene Mental e Delinquência,<br />

apresentada no final de sua vida acadêmica, em 1933. Conforme o documentário, o<br />

estudo inclui “avançadas propostas de reforma de saúde pública e uma análise da<br />

desigualdade social”. “Ele compartilhou da miséria e da amargura desses delinquentes”,


diz o historiador César Leyton no documentário. “De certa forma, para mim, essa é a<br />

plataforma que mais tarde será o Allende político, o Allende que pede pela solução da<br />

necessidade dos setores populares. A medicina social nesse sentido é fundamental para a<br />

formação ou para a visão que mais tarde ele terá sobre a sociedade e a miséria.”<br />

Uma avaliação do mesmo trabalho de Allende mostra uma conclusão completamente<br />

diferente. Para o filósofo chileno Víctor Farías, autor de Salvador Allende,<br />

Antissemitismo e Eutanásia, o estudante e, mais tarde, ministro da Saúde expôs ideias<br />

que nada têm de compaixão social, como a esterilização em massa e forçada de doentes<br />

mentais. Aos 25 anos, Allende enfatizava que muitos distúrbios estavam relacionados à<br />

herança biológica, e não à condição social. Na sua tese, faz uma tipificação das raças e<br />

descreve a propensão de cada uma delas ao crime. Cita, então, o polêmico médico<br />

italiano Cesare Lombroso (1835 a 1909), para quem um criminoso podia ser denunciado<br />

por seus traços físicos ou por sua origem étnica:<br />

Entre os árabes há algumas tribos honradas e trabalhadoras, e outras aventureiras, imprevidentes, ociosas e com<br />

tendência ao furto.<br />

Os ciganos constituem habitualmente agrupações delituosas, onde impera o descuido, a ira e a vaidade.<br />

Os hebreus se caracterizam por determinadas formas de delito: fraude, falsidade, calúnia e, sobretudo, a usura.<br />

Allende não aceita todas as ideias de Lombroso – nem as rejeita. “Esses dados nos<br />

fazem suspeitar que a raça influencia na delinquência. Não obstante, carecemos de dados<br />

precisos para demonstrar essa influência no mundo civilizado”, afirma. O vínculo entre<br />

raça e comportamento reaparece na tese quatro páginas depois. Citando outros autores,<br />

divide os vagabundos (errantes) em três tipos. No primeiro deles, estariam os de origem<br />

étnica – “judeus, ciganos, alguns boêmios etc.”.<br />

Com suas próprias palavras, Allende afirma que “o homossexual orgânico é um<br />

enfermo que, em consequência, deve merecer a consideração de tal”. Logo depois,<br />

descreve uma peculiar cirurgia de inversão sexual:<br />

Por outra parte, os trabalhos de Steinach, Lipschutz, Pézard e outros nos fazem senão corroborar o que foi exposto<br />

antes. Além disso, os autores conseguiram curar um homossexual, em cuja família havia outros pederastas, que<br />

apresentava um grande número de características sexuais secundárias femininas, injetando pedaços de testículo no<br />

abdômen. Depois da operação, segundo os autores mencionados, se modificaram aquelas características femininas, que<br />

foram substituídas por outras masculinas, e o doente abandonou seus hábitos homossexuais.<br />

Em todo o resto da tese, Allende não faz qualquer crítica, ponderação ou rejeição à<br />

ideia de curar gays com o bisturi.<br />

O problema ficou maior quando Allende passou, já com 31 anos e no cargo de ministro<br />

da Saúde, a defender um programa de esterilização em massa para evitar que algumas<br />

características humanas não desejáveis fossem transmitidas às gerações seguintes. Em<br />

1939, propôs o Projeto de Lei para Esterilização dos Alienados, sugerindo medidas<br />

“eugenésicas negativas”: a esterilização em massa e forçada dos doentes mentais. Em seu<br />

primeiro artigo, o programa diz que:<br />

Toda pessoa que sofra de uma enfermidade mental que, de acordo com conhecimentos médicos, possa transmitir a sua<br />

descendência, poderá ser esterilizada, em conformidade às disposições desta lei. 403


“O único projeto comparável ao que emanara do Ministério da Saúde é o que se<br />

implementou em 1933, na Alemanha nazista”, afirma o filósofo Víctor Farías. “Com a<br />

diferença de que ali a iniciativa foi levada até as últimas consequências criminais,<br />

afetando mais de 350 mil seres humanos e integrando-a diretamente aos programas de<br />

extermínio massivo, incluindo crianças de ‘vida inservível’”. 404 Na Alemanha, depois<br />

que os programas de esterilização começaram, os nazistas entenderam que muito mais<br />

prático era matar os ditos “doentes” em vez de impedir que se reproduzissem. “Logo,<br />

essas campanhas de limpeza étnica se estenderam aos adultos e, por fim, ao extermínio<br />

nas primeiras câmaras de gás [os caminhões de gás] e nos campos de extermínio.” 405<br />

O projeto de lei de Allende, aliás, era cópia do alemão. Entre os candidatos à<br />

esterilização, listava:<br />

a) esquizofrenia (demência precoce);<br />

b) psicose maníaco-depressiva;<br />

c) epilepsia essencial;<br />

d) coreia de Huntington;<br />

e) idiotice, imbecilidade e debilidade mental profunda;<br />

f) loucura moral constitucional;<br />

g) alcoolismo crônico.<br />

A lei alemã, empregada até 1939, era quase idêntica:<br />

a) imbecilidade congênita;<br />

b) esquizofrenia;<br />

c) folia circular (mania depressiva);<br />

d) epilepsia hereditária;<br />

e) coreia de Huntington (dança de são vito);<br />

f) cegueira hereditária;<br />

g) surdez hereditária;<br />

h) graves deformidades físicas e hereditárias.<br />

Nos sonhos de Allende para um mundo melhor, a escolha das pessoas que seriam<br />

submetidas ao tratamento seria feita por Tribunais de Esterilização, que funcionariam nas<br />

capitais das províncias e em Santiago, a capital. Após feita uma solicitação de<br />

esterilização, a sentença deveria ocorrer em 30 dias. Sem possibilidade de recurso. Caso<br />

houvesse resistência, a decisão seria executada com o auxílio da polícia:<br />

Artigo 23: Todas as resoluções ditadas pelos Tribunais de Esterilização serão obrigatórias para toda pessoa ou<br />

autoridade, e se levarão a efeito, em caso de resistência, com auxílio da força pública. 406<br />

Parece a Alemanha nazista? Era só o Chile segundo as ideias de Salvador Allende.<br />

Por sorte, o projeto contou com a oposição de médicos de renome na época e foi<br />

abandonado mesmo antes de ter sido apresentado ao Parlamento sob acusação de que<br />

poderia levar a medidas mais drásticas, como efetivamente já tinha ocorrido na Europa.<br />

A identificação do presidente marxista com ideias nazistas, contudo, retorna décadas<br />

depois quando Allende se negou, em 1972, a extraditar Walter Rauff, criador dos<br />

caminhões de gás que exterminaram meio milhão de seres humanos. O presidente alegou<br />

que as acusações contra Rauff já haviam expirado. Crimes contra a humanidade, porém,


são imprescritíveis.<br />

Gabarito<br />

Questão 1 – D. Se alguém pode ser responsabilizado pelo golpe militar, foi o próprio<br />

Salvador Allende, que deixou seu país ingovernável.<br />

Questão 2 – A. O exército chileno estava sintonizado com a esquerda.<br />

Questão 3 – D. Quem queria dar um golpe no Chile eram os comparsas radicais do<br />

presidente Salvador Allende.<br />

Questão 4 – C. Foi a União Soviética que negou empréstimos a Allende. Os soviéticos<br />

temiam que o Chile se transformasse em um poço de dinheiro sem fundo, como Cuba.<br />

Questão 5 – C. Quem estimulou a execução de uma reforma agrária no Chile foram os<br />

Estados Unidos.<br />

Questão 6 – C. Allende queria esterilizar doentes mentais e alcoólatras.<br />

393 Simon Collier e William F. Sater, página 342.<br />

394 Simon Collier e William F. Sater, página 340.<br />

395 Entrevista com M. G., Limache, Chile.<br />

396 Revista Estudios Publicos, página 107.<br />

397 Revista Estudios Publicos, página 76.<br />

398 Suzanne Labin, página 75.<br />

399 Site da Biblioteca do Congresso Nacional do Chile, seção Biografias, disponível em<br />

http://biografias.bcn.cl/wiki/Jorge_Baraona_Puelma.<br />

400 Suzanne Labin, página 73.<br />

401 Libro Blanco del Cambio de Gobierno en Chile, página 92.<br />

402 Simon Collier e William F. Sater, página 330.<br />

403 Víctor Farías, página 110.<br />

404 Víctor Farías, página 104.<br />

405 Víctor Farías, página 29.<br />

406 Víctor Farías, página 114.


EPÍLOGO


O FIM QUE NINGUÉM QUERIA<br />

Todos os personagens que dão nome aos capítulos deste livro passaram por maus<br />

bocados após a morte. Foram embalsamados, decapitados, mutilados ou exumados com<br />

objetivos diversos: pedir resgates milionários, sustentar teses históricas absurdas,<br />

promover cultos personalistas ou realizar rituais de magia negra.<br />

Os restos do libertador venezuelano Simón Bolívar foram transferidos para o Panteão<br />

Nacional, em Caracas, em 1876. Por lá permaneceram até 2010, quando o presidente<br />

Hugo Chávez ordenou a exumação do defunto. No dia 16 de julho daquele ano, um grupo<br />

vestido de branco, com tocas no cabelo, máscaras e marchando como soldados, abriu o<br />

sarcófago e retirou os vestígios para análise. Bolívar morreu de tuberculose, a mesma<br />

doença que afligira seu pai e sua mãe. Para Chávez, contudo, ele foi envenenado com<br />

arsênico ou baleado pela oligarquia colombiana. “Morreu chorando, morreu solitário”,<br />

afirmou o presidente em cadeia de televisão.<br />

Há quem acredite que o espetáculo com os restos do Bolívar não teve motivação<br />

científica e histórica, mas foi realizado para cumprir um ritual de bruxaria, ou santería, a<br />

religião de origem africana praticada em Cuba. Vestidos sempre de branco, os feiticeiros<br />

cubanos (“babalaôs”) são presença recorrente no Palácio de Miraflores, a sede do poder<br />

executivo da Venezuela. O entra e sai desses religiosos no Congresso, em Caracas,<br />

também é comum. De acordo com a jornalista Angélica Mora, do Diário de América, os<br />

babalaôs estariam entre os cientistas vestidos de branco que profanaram o sarcófago. A<br />

data de 16 de julho foi escolhida porque é o dia da Virgem de Carmem que, no<br />

sincretismo religioso, representa Oyá, a dona das chaves do cemitério. Antes de fuçar<br />

nos túmulos, é necessário sempre pedir uma autorização de Oyá, na data certa. Por isso a<br />

cerimônia aconteceu às 3 horas da madrugada, que é quando se praticam os atos de magia<br />

negra. Essa é considerada a hora oposta à de Jesus Cristo, três da tarde. 407<br />

Já o mexicano Pancho Villa, morto em uma emboscada em Parral, foi enterrado nessa<br />

mesma cidade, no México. Em 1926, o administrador do cemitério descobriu que a tumba<br />

tinha sido violada e a cabeça havia desaparecido. 408 Cinquenta anos depois, o cadáver<br />

foi transferido para o Monumento à Revolução, na Cidade do México. Entre as<br />

especulações que tentam explicar o mistério sobre a decapitação, uma fala que a caveira<br />

estaria com um instituto científico americano. Outra, em poder de uma sociedade secreta<br />

da Universidade Yale, a Skull and Bones Society (Sociedade Caveira e Ossos), que teria<br />

tido entre seus participantes o ex-presidente George W. Bush e o político americano<br />

democrata John Kerry. 409<br />

O corpo do general Juan Domingo Perón, morto em 1974, ficou por dois anos na<br />

residência oficial de Olivos, em Buenos Aires. Mais tarde, foi enterrado no Cemitério de<br />

La Chacarita. Nos anos 1980, vândalos amputaram e roubaram suas mãos. Também<br />

sumiram com o quepe e a espada. Pediram um resgate de 8 milhões de dólares, que nunca<br />

foi pago. 410 Em 2006, Perón foi transferido para um mausoléu em uma chácara na<br />

província de San Vicente, onde peronistas da esquerda e da direita se digladiaram com


paus, pedras e tiros pelo direito de subir ao palanque.<br />

Evita Perón rodou o mundo depois de morta. Tão logo a Madona dos Descamisados<br />

faleceu, em 1952, teve início seu embalsamento. O encarregado foi o médico anatomista<br />

espanhol Pedro Ara, que desempenhou a tarefa em um laboratório improvisado dentro da<br />

Confederação Geral do Trabalho (CGT), a central sindical peronista. Quando os<br />

militares depuseram Perón, em 1955, o exército, sob a liderança do tenente-coronel<br />

Carlos Eugenio Moori Koenig, invadiu o prédio para pegar o corpo e escondê-lo,<br />

evitando que se tornasse um objeto de culto. A cena dos homens entrando no laboratório<br />

para levar Evita é relatada pelo escritor Rodolfo Walsh, no livro Esa Mujer:<br />

Ela estava nua no caixão e parecia uma Virgem Santa. Sua pele tornara-se transparente. Podiam ser vistas as<br />

metástases do câncer, como pequenos desenhos sobre um vidro molhado. Nua. Éramos quatro ou cinco, incapazes de<br />

nos olharmos. Havia um capitão de navio, o galego [sinônimo de espanhol, para os argentinos], que a embalsamou, e não<br />

sei mais quem. E, quando a tiramos dali, aquele galego asqueroso atirou-se sobre ela. Estava apaixonado pelo cadáver,<br />

tocava-a, mexendo discretamente nos bicos dos seios. 411<br />

Evita em seguida habitou diversos prédios militares até ser colocada dentro de uma<br />

caixa de madeira no gabinete do tenente-coronel Koenig. 412 Saiu de lá para uma cova<br />

anônima na Itália, onde permaneceu até ser devolvida a Perón, que então estava exilado<br />

na Espanha. Foram 21 anos de percalços até que Evita repousasse no Cemitério de La<br />

Recoleta, em Buenos Aires, a seis metros de profundidade. Seu túmulo foi construído por<br />

uma empresa especializada em caixas de bancos, para evitar outro sequestro. Só a irmã<br />

de Evita ganhou uma chave. 413<br />

Também deram notícia os restos mortais de Salvador Allende. O presidente chileno<br />

cometeu suicídio em 1973 no Palácio de La Moneda, em Santiago, com uma AK-47 que<br />

Fidel Castro lhe dera de presente. Em diversas ocasiões, Allende admitiu a possibilidade<br />

de colocar sua vida em jogo em nome da causa que defendia. No discurso que proferiu<br />

pelo rádio dentro de La Moneda, cercado por militares, disse: “Colocado em um transe<br />

histórico, pagarei com minha vida a lealdade do povo”. 414 Fidel Castro, que conhecera<br />

Allende e ficou três semanas no Chile fazendo discursos em todas as cidades que<br />

passava, afirmou após a morte de Allende: “Ele tinha aquela disposição de ânimo, aquela<br />

disposição de defender o processo ao custo de sua própria vida”. Ao antropólogo<br />

brasileiro <strong>Da</strong>rcy Ribeiro, Allende disse: “Só sairei de La Moneda coberto de balas”. 415<br />

A tese do suicídio é defendida também pela família do ex-presidente.<br />

O corpo de Allende foi exumado em maio de 2011 para testar outra hipótese,<br />

defendida por um grupo de legistas. Eles afirmam que o presidente teria recebido tiros de<br />

armas de calibres diferentes: uma pistola automática e um fuzil. A primeira explicação é<br />

a de que ele cometeu um suicídio assistido: depois de dar um tiro em si próprio, sem<br />

conseguir pôr fim à vida, recebeu outro, do militante de esquerda Enrique Huerta, que<br />

teria completado a execução para cumprir uma promessa feita ao presidente de não<br />

deixá-lo sair vivo de La Moneda. 416 A segunda explicação é a de que Allende foi<br />

assassinado pelos militares, que depois ocultaram o fato. Tudo besteira. A perícia,<br />

finalizada em julho de 2011, concluiu que o presidente se matou.<br />

O argentino Che Guevara teve as mãos amputadas a pedido do exército boliviano, logo<br />

depois de morto em 1967, para que servisse como prova incontestável de sua morte. 417


Foi enterrado na cidade de Vallegrande, na Bolívia. Segundo a história oficial, divulgada<br />

pelo governo cubano, os restos do guerrilheiro foram desenterrados de uma cova na<br />

Bolívia em 1997, e levados para um mausoléu na cidade de Santa Clara, em Cuba, onde<br />

um museu foi construído em sua homenagem. O corpo de Che foi encontrado em uma<br />

cova com outros seis guerrilheiros e portava a sua jaqueta verde, o que ajudou na<br />

identificação.<br />

Todavia, a probabilidade de que as autoridades cubanas tenham pegado o corpo de um<br />

guerrilheiro qualquer para fazê-lo de Che é enorme. Segundo os militares que estavam<br />

presentes na Bolívia em 1967, o argentino foi enterrado sozinho. 418 Para Félix Rodríguez,<br />

exilado cubano que ajudou na captura de Che, ele foi enterrado com três outros homens,<br />

não mais que isso. Gustavo Villoldo, um oficial americano de alta patente que estava em<br />

Vallegrande e participou da operação, conta:<br />

Eu enterrei Che Guevara. Ele não foi cremado; não o permiti, assim como me opus terminantemente à mutilação de seu<br />

corpo. Na madrugada do dia seguinte, transportei um cadáver numa caminhonete, junto com os de mais dois<br />

guerrilheiros. Eu estava acompanhado de um motorista boliviano e de um tenente chamado Barrientos, se não me<br />

engano. Fomos até o campo de pouso e ali enterramos os corpos. 419<br />

A cova com sete homens, onde os especialistas cubanos acreditam ter encontrado os<br />

restos de Che Guevara, é outra. Ele tampouco foi enterrado com sua jaqueta verde.<br />

Depois de morto, seu corpo foi lavado, e a peça ficou com o correspondente do jornal<br />

Presencia, Edwin Chacón, de acordo com os jornalistas Maite Rico e Bertrand de La<br />

Grange, que fizeram um extenso estudo sobre o caso e o publicaram na revista mexicana<br />

Letras Libres. As mãos de Che, conservadas em um pote com formol, foram levadas para<br />

Budapeste, depois Moscou e, em 1970, aterrissaram em Havana. São o único resto<br />

genuíno de Che em Cuba atualmente.<br />

Na ilha arrasada pelas mãos de Che, elas são o único resto genuíno do herói.<br />

407 Angélica Mora, “Chávez, el Babalao”, Diário de América, 21 de julho de 2010.<br />

408 Friedrich Katz, Pancho Villa, tomo II, Ediciones Era, 1998, página 389.<br />

409 Friedrich Katz, página 390.<br />

410 Duda Teixeira, “Os três enterros de Perón”, revista Veja, Abril, edição 1979, 25 de outubro de 2006, páginas 102-104.<br />

411 Dujovne Ortiz, Eva Perón, a Madona dos Descamisados, Record, 1996, página 378.<br />

412 Dujovne Ortiz, página 379.<br />

413 Site Howstuffworks, “Why did it take more than 20 years to bury Eva Peron?”, disponível em<br />

http://history.howstuffworks.com/south-american-history/eva-peron-body.htm.<br />

414 Patricia Verdugo, Como os EUA Derrubaram Allende, Revan, 2003, página 132.<br />

415 <strong>Da</strong>rcy Ribeiro, Confissões, Companhia das Letras, 1997, página 417.<br />

416 Blog El Mercúrio, “Escritor asegura que médicos de Allende conspiraron para ocultar la verdad de su muerte”, 1º de junho<br />

de 2011, disponível em http://blogs.elmercurio.com/cronica/2011/06/01/escritor-asegura-que-medicos-d.asp.<br />

417 Maite Rico e Bertrand de la Grange, “Operación Che: Historia de uma mentira de Estado”, revista Letras Libres, fevereiro<br />

de 2007.


418 Idem.<br />

419 Jorge Castañeda, Che Guevara: A Vida em Vermelho, Companhia de Bolso, 2009, página 522.


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Índice<br />

CAPA<br />

Ficha Técnica<br />

INTRODUÇÃO<br />

COMO DEIXAR DE SER LATINO-AMERICANO<br />

CHEGUEVARA<br />

UM OLHAR MATADOR<br />

Che e a liberdade artística e sexual<br />

Che, a paz e o amor<br />

Che e os direitos humanos<br />

Che e os trabalhadores<br />

Che e a liberdade artística e sexual<br />

Che, a paz e o amor<br />

Che e os direitos humanos<br />

Che e os trabalhadores<br />

ASTECAS, INCAS, MAIAS<br />

OS ÍNDIOS CONQUISTADORES<br />

Boa parte dos andinos comemorou a chegada dos espanhóis<br />

Viviam os incas em 1984?<br />

Antes dos espanhóis, muito mais sangue era derramado na América Latina<br />

A descoberta do índio conquistador<br />

Os índios não foram excluídos das decisões políticas<br />

Boa parte dos andinos comemorou a chegada dos espanhóis<br />

Viviam os incas em 1984?<br />

Antes dos espanhóis, muito mais sangue era derramado na América Latina<br />

A descoberta do índio conquistador<br />

Os índios não foram excluídos das decisões políticas<br />

SIMÓN BOLÍVAR<br />

DA DIREITA PARA A ESQUERDA<br />

Um rei para a América Latina<br />

Bolívar participou da luta de classes – só que na parte de cima<br />

Bolívar contra os bolivarianos<br />

Ídolo de Mussolini, cultuado por Chávez<br />

Um rei para a América Latina<br />

Bolívar participou da luta de classes – só que na parte de cima<br />

Bolívar contra os bolivarianos<br />

Ídolo de Mussolini, cultuado por Chávez<br />

HAITI<br />

OS REVOLUCIONÁRIOS REACIONÁRIOS<br />

A estranha revolta de Jean-François<br />

Julien Raimond, carrasco e vítima<br />

Jean Kina, de escravo a coronel britânico<br />

A difícil tarefa de Toussaint L’Ouverture


Henri Christophe e o ápice da loucura<br />

A estranha revolta de Jean-François<br />

Julien Raimond, carrasco e vítima<br />

Jean Kina, de escravo a coronel britânico<br />

A difícil tarefa de Toussaint L’Ouverture<br />

Henri Christophe e o ápice da loucura<br />

PERÓN E EVITA<br />

UM GRANDE PASSADO PELA FRENTE<br />

Rainha do Prata<br />

As considerações de Perón sobre o fascismo<br />

Fracasso na indústria e no campo<br />

Enquanto o país quebrava, Perón se divertia com estudantes<br />

Rainha do Prata<br />

As considerações de Perón sobre o fascismo<br />

Fracasso na indústria e no campo<br />

Enquanto o país quebrava, Perón se divertia com estudantes<br />

PANCHO VILLA<br />

O LATIFUNDIÁRIO MAIS FAMOSO DE HOLLYWOOD<br />

Pancho Villa adorava os Estados Unidos<br />

Não ultrapasse a cerca. Latifundiário raivoso<br />

Pancho Villa adorava os Estados Unidos<br />

Não ultrapasse a cerca. Latifundiário raivoso<br />

SALVADOR ALLENDE<br />

JOGOS, TRAPAÇAS E CANOS FUMEGANTES<br />

Gabarito<br />

Gabarito<br />

EPÍLOGO<br />

O FIM QUE NINGUÉM QUERIA<br />

BIBLIOGRAFIA<br />

LIVROS E EDISSERTAÇÕES<br />

ARTIGOS DE JORNAIS, REVISTAS E PUBLICAÇÕES CIENTÍFICAS<br />

SITES<br />

CONTEÚDO AUDIOVISUAL

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