Guia Politicamente Incorreto Da - Leandro Narloch
You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
DADOS DE COPYRIGHT<br />
Sobre a obra:<br />
A presente obra é disponibilizada pela equipe Le Livros e seus diversos parceiros, com o<br />
objetivo de oferecer conteúdo para uso parcial em pesquisas e estudos acadêmicos, bem como<br />
o simples teste da qualidade da obra, com o fim exclusivo de compra futura.<br />
É expressamente proibida e totalmente repudíavel a venda, aluguel, ou quaisquer uso<br />
comercial do presente conteúdo<br />
Sobre nós:<br />
O Le Livros e seus parceiros disponibilizam conteúdo de dominio publico e propriedade<br />
intelectual de forma totalmente gratuita, por acreditar que o conhecimento e a educação devem<br />
ser acessíveis e livres a toda e qualquer pessoa. Você pode encontrar mais obras em nosso<br />
site: LeLivros.Net ou em qualquer um dos sites parceiros apresentados neste link.<br />
Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por<br />
dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível.
Ficha Técnica<br />
Copyright © <strong>Leandro</strong> <strong>Narloch</strong> e Duda Teixeira, 2011<br />
Diretor Editorial Pascoal Soto<br />
Coordenação Editorial Tainã Bispo<br />
Coordenação de Produção Carochinha Editorial<br />
Edição Diego Rodrigues<br />
Revisão Técnica Marco Antonio Villa<br />
Preparação de Textos Débora Tamayose<br />
Checagem de Informações Simone Costa<br />
Revisão de Provas Solange Lemos e Cecília Madarás<br />
Índice Cecília Madarás<br />
Capa Ana Carolina Mesquita<br />
Ilustrações de Capa Gilmar Fraga<br />
<strong>Da</strong>dos Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)<br />
Ficha catalográfica elaborada por Oficina Miríade, RJ, Brasil.<br />
N231 <strong>Narloch</strong>, <strong>Leandro</strong>, 1978–<br />
<strong>Guia</strong> politicamente incorreto da América Latina /<br />
<strong>Leandro</strong> <strong>Narloch</strong>, Duda Teixeira. – São Paulo: Leya, 2011.<br />
336 p. : il.<br />
Inclui bibliografia e índice.<br />
ISBN 9788580445855.<br />
1. América Latina – História – Miscelânea. I. Teixeira,<br />
Duda. II. Título.<br />
11-0133 CDD980<br />
Entre em contato com os autores:<br />
leandron@uol.com.br / @lnarloch<br />
duda.teixeira.guia@gmail.com / @DudaTeixeira<br />
2011<br />
Todos os direitos desta edição reservados à<br />
Texto Editores Ltda.<br />
[Uma editora do Grupo Leya]<br />
Rua Desembargador Paulo Passaláqua, 86<br />
01248-010 – Pacaembu – São Paulo, SP – Brasil<br />
www.leya.com.br
À Larinha e<br />
ao Luisinho.
A melhor coisa a fazer na América [Latina] é ir embora.<br />
SIMÓN BOLÍVAR
INTRODUÇÃO
COMO DEIXAR DE SER LATINO-<br />
AMERICANO<br />
Foram os franceses os primeiros a usar a expressão “América Latina”. Por volta de<br />
1860, o imperador Napoleão III tentava aumentar sua influência no México, na época um<br />
país tumultuado por revoltas e guerras entre políticos liberais e conservadores. Um bom<br />
jeito de aproximar culturalmente os dois países era destacando o que eles tinham em<br />
comum, como a mesma origem do idioma. Tanto o francês quanto o espanhol e o<br />
português são línguas derivadas do latim – essa semelhança não só deixava a influência<br />
francesa mais natural como isolava os imperialistas britânicos e seu idioma anglo-saxão. 1<br />
“América Latina” se tornou assim uma ideia tão vazia quanto abrangente. Reúne<br />
sujeitos e povos dos mais diversos: o que há em comum entre ribeirinhos amazônicos,<br />
vaqueiros gaúchos, executivos da Cidade do México, índios das ilhas flutuantes do lago<br />
Titicaca e haitianos praticantes de vodu? Eles falam línguas derivadas do latim, mas... e<br />
daí? Colocar todos em um mesmo saco não seria o mesmo que igualar sujeitos tão<br />
diferentes quanto um xeque radical egípcio, um fazendeiro branco da África do Sul e um<br />
pigmeu do Congo? São todos africanos, é certo, mas pouca gente fala em uma única<br />
identidade para a África.<br />
Talvez a principal semelhança entre os latino-americanos não seja algo que venha de<br />
nossos longínquos antepassados, como a língua, e sim em um traço recente, forjado<br />
lentamente ao longo de séculos. Bolivianos, mexicanos, brasileiros e todos os demais,<br />
quando vislumbram o próprio passado, contam exatamente a mesma história.<br />
É como se ingredientes de sabores, cores e tamanhos diferentes entrassem todos numa<br />
grande batedeira para criar uma massa homogênea; e é como se essa massa fosse<br />
recortada por um mesmo molde de biscoito, dando origem a seres graciosos com o<br />
mesmo formato e o mesmo discurso. Tão parecidas são suas narrativas, e tão importante<br />
é a história para a identidade de um povo, que é possível tirar dessa massa algumas<br />
regras para ser um típico habitante da nossa região. Na receita para se preparar um bom<br />
latino-americano, parece ser necessário:<br />
1. Lamentar. Todo latino-americano nutre uma obsessão por episódios tristes de sua<br />
história: o massacre dos índios, os horrores da escravidão, a violência das ditaduras.<br />
Além dessas histórias de opressão, nada de bom aconteceu.<br />
2. Encarar a cultura local como uma forma de resistência. Fica proibido ligar na tomada<br />
instrumentos musicais típicos e populares e passa a ser um requisito moral usar ponchos<br />
e saias coloridas – ou pelo menos desfilar com um colar de artesanato indígena.<br />
3. Condenar o capitalismo. O latino-americano que honra o nome acredita que o<br />
comunismo foi uma ideia boa, só que mal implantada. E, se já não luta para implantar<br />
esse falido modelo por aqui, ao menos defende sistemas mais “sociais”, “solidários”,
“justos” e “comunitários”.<br />
4. Denunciar a dominação externa. Se a responsabilidade pelos problemas do continente<br />
não pode ser atribuída à Espanha, à França ou a Portugal, então certamente tem alguma<br />
mão da Inglaterra ou dos Estados Unidos. Ou, como prega o livro As Veias Abertas da<br />
América Latina, clássico desse pensamento simplista, “a cada país dá-se uma função,<br />
sempre em benefício do desenvolvimento da metrópole estrangeira do momento”.<br />
5. Cultuar heróis perversos. Quanto mais bobagens eles falarem e quanto mais sabotarem<br />
seu próprio país, mais estátuas equestres e estampas em camisetas serão feitas em sua<br />
homenagem.<br />
Tudo neste livro é contra essas regras tão batidas para se contar a história da América<br />
Latina. Não nos sentimos representados por guerrilheiros ou por indignados líderes<br />
andinos e suas roupas coloridas. Não há aqui destaque para veias abertas do continente,<br />
mas para feridas devidamente tratadas e curadas com a ajuda de grandes potências.<br />
Conhecemos bem as tragédias que nossos antepassados índios e negros sofreram, mas,<br />
honestamente, estamos cansados de falar sobre elas. E acreditamos que todos os povos<br />
passaram por desgraças semelhantes, inclusive aqueles que muitos de nós adoramos<br />
acusar. Por isso, quando vítimas da história aparecerem nesta obra, é para revelarmos<br />
que elas também mataram e escravizaram – e como elas se beneficiaram com ideias e<br />
costumes vindos de fora.<br />
Figuras ilustres da América Latina também passam neste livro, mas longe de nós<br />
mostrar somente que elas não são tão admiráveis quanto se diz. Na história de quase todo<br />
país, é comum abrilhantar as palavras de figuras públicas e até inventar virtudes de seu<br />
caráter – e não passa de chatice ficar insistindo numa realidade menos interessante.<br />
Acontece que na América Latina se vai além: escolhem-se como heróis justamente os<br />
homens que mais atrapalharam a política, mais arruinaram a economia, mais perseguiram<br />
os cidadãos. Não importam as tragédias que Salvador Allende, Che Guevara e Juan<br />
Perón tenham tornado possíveis. Importantes são o carisma, o rosto fotogênico, a morte<br />
trágica, os discursos inflamados contra estrangeiros. Por isso, não há como escapar: é<br />
ele, o falso herói latino-americano, o principal alvo deste livro.<br />
1 John Charles Chasteen, Born in Blood & and Fire: A Concise History of Latin America, W. W. Norton & Company,<br />
2011, página 156.
CHEGUEVARA
UM OLHAR MATADOR<br />
Não tem como negar: na América Latina e mesmo fora dela, Che é o cara. Seu nome e<br />
seu retrato estão em álbuns de rock, na capa de livros, no estepe externo de carros<br />
esportivos. O guerrilheiro argentino dá nome a dezenas de espaços públicos com funções<br />
bonitinhas, como o Centro Urbano de Cultura e Arte (Cuca) Che Guevara, no Ceará, ou a<br />
Cooperativa de Trabalho Ernesto Che Guevara de Córdoba, na Argentina, além de ruas e<br />
praças em todo o continente. É possível estudar na “Escola Che Guevara” tanto em Quito,<br />
no Equador, quanto na Argentina ou em Monte do Carmo, no interior do Tocantins. O<br />
guerrilheiro foi homenageado pela escola de samba Unidos da Ilha da Magia, campeã do<br />
carnaval 2011 de Florianópolis. A filha dele, Aleida, desfilou em um carro alegórico no<br />
formato de um tanque de guerra. 2 A torcida Máfia Azul, do Cruzeiro, time de Minas<br />
Gerais, já pintou a imagem de seu rosto em bandeiras e camisetas. Os nossos cineastas<br />
retratam Che como um mochileiro camarada, um jovem audacioso e sonhador. Qualquer<br />
sindicato que se preze tem uma bandeira com Che. Um livro didático para aulas de<br />
espanhol, distribuído pelo governo do Paraná em 2008, reproduz versos sobre “aquele<br />
guerrilheiro louco que mataram na Bolívia e como depois daquele dia tudo parece mais<br />
feio”. Em São Paulo, onde moram os autores deste livro, há bares com o nome de Che,<br />
postos de saúde com o nome de Che, dichavadores de maconha com o rosto de Che à<br />
venda no posto de gasolina. Se não há mais camisetas com a imagem de Che, é porque<br />
elas saíram de moda por saturação.<br />
Quem exibe a imagem ou o nome de Che tem seus motivos para admirá-lo. Dizem que,<br />
diante de um mundo tão voltado à competição, ao sucesso individual e ao dinheiro, é bom<br />
se lembrar de alguém que deu a vida por uma sociedade diferente. Se não se pode mudar<br />
o sistema por completo, pelo menos se pode fazer um pequeno ato de protesto,<br />
estampando o rosto de um jovem aventureiro que, argumentam alguns, renunciou ao<br />
próprio bem-estar em prol de uma ideia, libertou-se da vida convencional para defender<br />
os oprimidos e apostar no sonho de um mundo melhor. Che é para essas pessoas um<br />
símbolo de tudo o que dizem defender: a paz entre os povos, a tolerância, a defesa dos<br />
direitos dos mais fracos e dos trabalhadores e o fim da exploração econômica.<br />
Mas Che Guevara lutou contra as bandeiras que os seus fãs mais defendem. Como se<br />
verá a seguir, há quatro grandes contradições entre sua vida e a admiração que ela<br />
inspira. As informações a seguir vêm das principais biografias do guerrilheiro e de<br />
instituições das mais puritanas: órgãos de direitos humanos e associações de familiares<br />
de mortos e desaparecidos políticos. Mas a principal fonte é o próprio Che Guevara.<br />
Suas palavras, presentes em livros, manifestos, diários e no depoimento de seus colegas,<br />
deixam claro que, nos dias de hoje, quem nutre sentimentos politicamente corretos em<br />
favor da paz, dos direitos humanos e do bem-estar dos mais pobres precisa manter o<br />
guarda-roupa o mais longe possível do rosto de Che Guevara.<br />
Che e a liberdade artística e sexual
Antes de mergulhar nas crenças e nas ações do famoso revolucionário, é preciso fazer<br />
uma viagem à Cuba da década de 1950, pouco antes de Che e os outros guerrilheiros<br />
comandados por Fidel Castro tomarem o poder. O passeio é cheio de turbulência. Quem<br />
ainda hoje é a favor do regime comunista costuma descrever a ilha dos tempos prérevolucionários<br />
como um bordel dos americanos, um playground para marmanjos repleto<br />
de prostitutas, mafiosos e cubanos miseráveis. Já aqueles que se opõem ao regime tratam<br />
de destacar o progresso da Cuba anterior à revolução e alguns números de qualidade de<br />
vida da época bem melhores que a média latino-americana.<br />
Ao interromper o turismo para Cuba, a revolução deu impulso a outros polos turísticos, que passaram a atender aos<br />
americanos interessados no Caribe. Nos anos 70, grandes empresas hoteleiras, muitas das quais tinham sido expulsas de<br />
Havana, se instalaram a 200 quilômetros de Cuba, numa praia mexicana até então deserta – Cancún.<br />
É mais complicado que isso. Como qualquer grande cidade turística da América, Cuba<br />
tinha prostitutas, corruptos, ricos e pobres, é verdade. Havana formava com Las Vegas e<br />
Miami um triângulo de negócios de turismo que envolvia cassinos administrados por<br />
mafiosos, shows internacionais e grandes hotéis. Os mafiosos que inspiraram o filme O<br />
Poderoso Chefão tinham negócios em Cuba – não é à toa que o protagonista, Michael<br />
Corleone, visita a ilha no segundo filme da trilogia. Charles “Lucky” Luciano, líder da<br />
máfia siciliana de Nova York, se escondeu em Havana depois de ser deportado pelos<br />
Estados Unidos para a Itália; em Cuba ele se reunia com outros chefões, como o judeu<br />
Meyer Lansky e Vito Genovese. Esses figurões mantinham negócios com o ditador<br />
Fulgencio Batista, ninguém menos que o presidente e ditador de Cuba.<br />
Babalu é uma música cubana que virou hit das rádios e dos canais de TV dos Estados Unidos nos anos 40. A letra é<br />
uma homenagem a Babalu Aye, deusa da santería cubana, o equivalente ao candomblé. “Me dá 17 velas, para pôr lá na<br />
cruz, e dá um pedaço de tabaco e um jarro de aguardente”, dizia a música.<br />
No entanto, como também é de esperar de qualquer lugar com o turismo em ascensão,<br />
Cuba vivia um surto de crescimento e otimismo. Na década de 1950, a economia mundial<br />
se recuperava e o uso dos aviões a jato se difundia. O turismo de massa ganhou assim um<br />
belo impulso – e a ilha caribenha foi um dos primeiros destinos dos novos turistas<br />
americanos. “Combinado com os baixos custos da viagem depois da Segunda Guerra,<br />
Havana de repente se tornou um destino exótico de escolha de centenas de milhares de<br />
americanos excitados para ver a terra de Babalu”, afirma o historiador Peter Moruzzi no<br />
livro Havana before Castro. 3 A maior vantagem competitiva era a de ser um destino<br />
internacional a apenas 150 quilômetros dos Estados Unidos. “Excitante, exótica. Cuba:<br />
onde o passado encontra o futuro”, dizia um anúncio de 1957 da Comissão Cubana de<br />
Turismo, similar às propagandas de qualquer cidade turística que deseja atrair visitantes<br />
e movimentar a economia. Havia na época 28 voos diários entre cidades cubanas e<br />
americanas – e muitos americanos viajavam para Cuba de carro, por meio de um serviço<br />
diário de ferryboat a partir da Flórida.<br />
Se hoje os cubanos fogem de seu país, na década de 1950 acontecia o contrário: imigrantes se mudavam para Cuba.<br />
Entre 1933 e 1953, mais de 15 mil judeus, 74 mil espanhóis e 7.500 alemães se mudaram para lá. Sobre essa época, até<br />
mesmo Che Guevara afirmou que Cuba tinha um “padrão de vida relativamente elevado”. 4<br />
Essa expansão dava dinheiro não só a mafiosos, prostitutas e magnatas, mas também a<br />
donos de restaurantes, garçons, chefs de cozinha, guias de turismo, empresas de city tour,<br />
enfim, todos os trabalhadores e empresários envolvidos com o turismo. O crescimento
levava mais cubanos à classe média e aquecia outros setores da economia, como a<br />
construção civil. Prédios e casas cheios de novidades arquitetônicas se espalhavam por<br />
Havana e atraíam atenção internacional. “A recuperação da economia durante a Segunda<br />
Guerra e o crescimento do turismo tiveram um efeito estimulante no setor de construção,<br />
levando a um boom que encorajou a pesquisa de formas e novas tecnologias”, afirma o<br />
arquiteto Eduardo Luis Rodríguez. 5 As cidades, onde vivia 66% da população, 6 se<br />
beneficiavam ainda do dinheiro vindo da alta do preço da cana-de-açúcar, principal<br />
produto de exportação de Cuba. Engenheiros e arquitetos ligados ao modernismo<br />
transformavam Havana construindo arranha-céus e edifícios de linhas retas e longas<br />
curvas – os mesmos que marcariam a arquitetura modernista latino-americana. Com três<br />
revistas especializadas em arquitetura, a ilha abrigava encontros internacionais – era<br />
quando profissionais de todo o mundo visitavam obras de arquitetos formados na<br />
Universidade de Havana no começo dos anos 40, como Nicolás Arroyo e Mario<br />
Romañach. Em 1955, com um grupo de profissionais experientes, Havana criou um plano<br />
urbanístico que previa ruas só para pedestres e edifícios modernistas, espaço especial<br />
para pequenas lojas nas ruas do centro histórico, limite de altura aos prédios fora do<br />
centro financeiro, aumento de áreas verdes e recreativas pela cidade. 7<br />
Já o investimento americano em Cuba tinha o dobro do tamanho: em 1958 ultrapassou 1 bilhão de dólares. Tendo em<br />
vista o tamanho dos países, o investimeno cubano nos EUA é muito mais impressionante. 8<br />
Se Havana era um playground dos americanos, o movimento inverso também<br />
acontecia. Os cubanos ricos e da crescente classe média adoravam se divertir nos<br />
Estados Unidos. Existia entre os dois países um turismo bilateral, assim como o de<br />
brasileiros nas ruas de Buenos Aires e de argentinos nas praias brasileiras. Não eram<br />
números desprezíveis. Em meados dos anos 50, havia mais cubanos em férias nos<br />
Estados Unidos que americanos em Cuba. 9 A classe média cubana era um grupo<br />
consumidor tão importante nos Estados Unidos que “as lojas de departamento da<br />
Califórnia, de Nova York e da Flórida frequentemente anunciavam promoções nos<br />
jornais de Havana”, conforme descreve o historiador Louis A. Pérez Jr. no livro Cuba<br />
and the United States: Ties of Singular Intimacy. Assim como os americanos investiam<br />
em Cuba, empresas cubanas apostavam nos vizinhos. Pouco antes da revolução, o<br />
investimento do imperialismo cubano nos Estados Unidos ultrapassava meio bilhão de<br />
dólares. 10
CORTESIA COLEÇÃO PETER MORUZZI<br />
Antes da revolução, havia 28 voos diários entre cidades americanas e cubanas e até mesmo um serviço de ferryboat,<br />
para as famílias que quisessem viajar de carro ao país vizinho.<br />
O entretenimento era outro setor desenvolvido. “Os cubanos tinham mais televisores,<br />
telefones e jornais per capita que qualquer outro país da América Latina, e estavam em<br />
terceiro no ranking de rádios per capita (atrás do México e do Brasil)”, afirma Deborah<br />
Pacini Hernandez, no livro Rockin’ las Américas. “Em 1950, quase 90% das residências<br />
cubanas tinham um rádio que podia sintonizar mais de 140 estações.” 11 A indústria<br />
fonográfica também impressionava: havia sete gravadoras que distribuíam discos para<br />
multinacionais como a Odeon e a EMI. Além das radiolas caseiras, as músicas eram<br />
reproduzidas em cerca de 15 mil jukeboxes instaladas em cabarés e bares do país. 12<br />
A ilha vivia uma efervescência musical que daria à luz clássicos da música latinoamericana.<br />
Compositores e intérpretes de bolero, rumba, mambo e chachachá estouravam<br />
nas rádios da Argentina aos Estados Unidos, difundindo esses ritmos pelo continente.<br />
Artistas cubanos eram celebridades da Broadway e da TV americana, como Xavier<br />
Cugat, conhecido como o “Rei da Rumba”, e Desi Arnaz, que eternizou a música Babalu<br />
no seriado I Love Lucy, da década de 1950. A música cubana atraía turistas à ilha – e os<br />
turistas atraíam a música. Em 1955, o canal americano NBC transmitiu um programa ao<br />
vivo no Tropicana, o principal cabaré de Cuba. Carmen Miranda, Frank Sinatra, Nat<br />
King Cole e boa parte dos artistas mais famosos da época se apresentavam nos teatros e<br />
nos cabarés de Havana. “Éramos o que é Las Vegas hoje”, contou, muitos anos depois, a<br />
cantora Olga Guillot, a “Rainha do Bolero”. “Não, muito mais! Éramos Las Vegas e a
Broadway misturadas – e o mundo todo ia a Havana para nos assistir.” 13<br />
Na época da revolução, Cuba tinha 600 salas de cinema. O ingresso era barato e havia salas espalhadas por todos os<br />
bairros de Havana. Sob a meta de popularizar o cinema, um dos objetivos da revolução, foi construída uma sala – em<br />
cinco décadas. As que já existiam estão abandonadas.<br />
Assim como o turismo, que uniu duas populações de culturas diferentes, mas próximas<br />
geograficamente, o intercâmbio musical foi recíproco e intenso. Se os americanos se<br />
encantavam com os ritmos caribenhos, os cubanos se apaixonaram pelo rock. Os cinemas<br />
de Havana exibiam filmes como Rock Around the Clock; as rádios tocavam os sucessos<br />
de Elvis Presley, Little Richard e Chuck Berry. Cuba foi um dos primeiros países a se<br />
contagiar por esse ritmo, a ter pelas ruas jovens cabeludos com calças jeans justíssimas e<br />
também as primeiras bandas de rock fora do eixo Estados Unidos-Inglaterra, como Los<br />
Llópis, Los Armónicos e os Hot Rockers.<br />
Os cubanos também ficavam mais escolarizados. Havia a Universidade de Havana,<br />
com suas aulas de medicina, farmácia, biologia e direito (onde Fidel Castro estudou) e<br />
uma escola de belas-artes. O Colégio de Belém, inaugurado em 1854 sob o comando de<br />
padres jesuítas, era a principal referência na educação secundária. Foi lá que Raúl<br />
Castro se formou. Na década de 1920, um novo prédio foi construído, onde também<br />
passou a funcionar um colégio técnico. Em toda a ilha, havia 1.700 escolas privadas e 22<br />
mil públicas. O país dedicava 23% de seu orçamento à educação – quantia de dar inveja<br />
nos governos atuais. 14<br />
Não é o cenário que se imagina encontrar em um bordel, não?<br />
Pepín Bosch, executivo-chefe da destilaria Bacardi, deu 38 mil dólares ao grupo de Fidel (que hoje valeriam cerca de<br />
280 mil dólares). Já <strong>Da</strong>niel Bacardi, um dos donos da destilaria, liderou uma greve de empresários da cidade de Santiago<br />
contra Fulgencio Batista em 1957. 15<br />
O nome do movimento vem do dia 26 de julho de 1953, quando Fidel e outros 165 jovens tentaram tomar o quartelgeneral<br />
de Moncada, em Santiago de Cuba. O ataque não deu certo: quase todos os guerrilheiros foram ou mortos, ou<br />
presos. Fidel ficou na cadeia até 1955, quando se exilou no México, onde conheceria Che.<br />
O problema estava na política. O presidente Fulgencio Batista, depois de assumir o<br />
poder pela segunda vez, em 1952, passou a impor uma ditadura que tornou frequentes em<br />
Cuba os atos de tortura, o desaparecimento de opositores e as prisões arbitrárias. Batista<br />
proibiu em alguns momentos a circulação de jornais e o direito de greve e retaliava<br />
empresários que não o apoiavam. Em resposta, estudantes, professores, advogados,<br />
padres e pastores protestantes montavam passeatas, distribuíam panfletos e agiam como<br />
“bombistas”, nome dado às pessoas que espalhavam pequenas bombas em órgãos<br />
públicos. Entre 15 acusados de bombismo presos em agosto de 1957, havia estudantes,<br />
trabalhadores das docas, vendedores e senhoras proprietárias de apartamentos. 16 Fidel<br />
Castro, então o mais conhecido inimigo do ditador, canalizou esse clima de<br />
descontentamento. Ganhou apoio até mesmo de grandes empresários e agricultores<br />
insatisfeitos com a instabilidade política, como os Bacardi, a mais tradicional família de<br />
empresários de Cuba. “O movimento de simpatia para com Castro aumentava mesmo<br />
entre a opulenta classe média; e durante 1957 mesmo o maior barão do açúcar, Julio<br />
Lobo, entregou à oposição 50 mil dólares”, conta o historiador inglês Hugh Thomas no<br />
livro Cuba ou Os Caminhos da Liberdade, a principal referência sobre a história<br />
política da ilha. 17 Ao viajar para a cidade de Santiago, o jornalista americano Jules<br />
Dubois se espantou com o apoio de gente endinheirada aos rebeldes. “Os homens mais
icos e proeminentes de Santiago, dos quais a maioria nunca se envolveu com política,<br />
estão apoiando o rebelde Fidel Castro como um símbolo de resistência a Batista”,<br />
escreveu ele no Chicago Tribune. 18 O apoio era possível porque os rebeldes pareciam a<br />
todos uma opção pela democracia. O movimento rebelde que Fidel ajudou a fundar, o 26<br />
de Julho, tinha entre seus participantes diversos políticos moderados e mesmo<br />
anticomunistas. Fidel viajava aos Estados Unidos para arrecadar fundos para a luta<br />
política e negava veementemente ser comunista ou favorável a ditaduras (veja quadro<br />
nas páginas 34-35).<br />
No início de 1959, tanto os guerrilheiros moderados quanto os empresários e os<br />
trabalhadores comemoraram a mudança de governo. Graças à pressão exercida por<br />
estudantes revoltosos, por soldados que lutaram na cidade e no campo, por empresários<br />
que financiaram ações rebeldes e por políticos, Fulgencio Batista enfim tinha sido<br />
deposto. O ditador, depois de perder o apoio dos Estados Unidos e vendo os<br />
guerrilheiros chegarem a Havana, fugiu com sua corte de avião durante o réveillon de<br />
1959. A maior parte dos cubanos saiu às ruas para festejar. Livre da tirania de Batista, a<br />
população estava ansiosa por participar da política e confiante para construir uma<br />
democracia. A política, até então a maior pedra no caminho dos cubanos, tinha se tornado<br />
motivo de esperança. A destilaria Bacardi publicou anúncios nos jornais saudando o país<br />
por poder voltar a usar seu slogan. “Obrigado ao povo de Cuba e à Revolução Cubana.<br />
Por causa de seus esforços e de seu sacrifício, podemos dizer uma vez mais ‘Que sorte<br />
tem o cubano!’.” 19<br />
2 ”Filha de Che Guevara desfila em tanque de guerra de Carnaval”, Folha de S. Paulo, 4 de março de 2011.<br />
3 Peter Moruzzi, Havana before Castro, Gibbs Smith, 2008, página 10.<br />
4 Alberto Bustamante, “Notas y estadisticas sobre los grupos etnicos en Cuba”, revista Herencia, volume 10, 2004; e Carlos<br />
Tablada, El Pensamiento Económico de Ernesto Che Guevara, Casa de las Americas, 1987, página 66.<br />
5 Eduardo Luis Rodríguez, The Havana Guide: Modern Architecture, 1925-1965, Princeton Architectural Press, 2000,<br />
página XVII.<br />
6 Humberto Fontova, O Verdadeiro Che Guevara, Sentinel, 2007, localização 3038 (edição Kindle).<br />
7 Eduardo Luis Rodríguez, página XXII.<br />
8 Louis A. Pérez, página 219.<br />
9 Humberto Fontova, O Verdadeiro Che Guevara, Editora É, 2009, página 223.<br />
10 Louis A. Pérez, Cuba and the United States: Ties of Singular Intimacy, University of Georgia Press, 2003, página 208.<br />
11 Deborah Pacini Hernandez, Rockin’ las Américas: The Global Politics of Rock in Latin America, University of<br />
Pittsburgh Press, 2004, páginas 45 e 46.<br />
12 Deborah Pacini Hernandez, página 46.<br />
13 Rosa Lowinger e Ofelia Fox, Tropicana Nights, Harcourt, 2005, página 251.<br />
14 Pedro Corzo, Cuba: Perfiles del Poder, Ediciones Memórias, 2007, página 198.<br />
15 Tom Gjelten, páginas 195 e 197.
16 Hugh Thomas, Cuba ou Os Caminhos da Liberdade, Bertrand, 1971, página 241.<br />
17 Hugh Thomas, página 239.<br />
18 Tom Gjelten, Bacardi and the Long Fight for Cuba, Penguin Books, 2008, página 194.<br />
19 Tom Gjelten, página 206.
Um líder político organiza um golpe de Estado, toma o poder de<br />
Cuba, impõe regras trabalhistas mais severas, intervém nas indústrias e nas fazendas e<br />
ganha o apoio do Partido Comunista. Não, não estamos falando de Fidel<br />
Castro, mas de Fulgencio Batista, ele próprio, o ditador do país até a<br />
Revolução Cubana.<br />
FULGENCIO, O COMUNISTA,<br />
Duas décadas antes de ser derrubado por Che e Fidel, Fulgencio ganhou o apoio dos<br />
comunistas locais. Em 1933, participou da Revolta dos Sargentos, que derrubou<br />
o ditador da época, Gerardo Machado. Conquistou, assim, o cargo de chefe das<br />
forças armadas e passou a governar informalmente o país. Logo anunciou<br />
reformas da lei trabalhista e ações de controle estatal de produtores e<br />
empresários. “As indústrias do açúcar e do tabaco passariam a sofrer uma intervenção<br />
maior do Estado; os trabalhadores receberiam seguro, férias pagas e outras vantagens”,<br />
afirma o historiador Hugh Thomas. 20 Essas medidas à esquerda atraíram a simpatia<br />
dos comunistas. Em 1938, Fulgencio aprovou a legalidade do Partido Comunista,<br />
que tratou de elogiá-lo. “As pessoas que trabalham para afastar Batista não estão mais a<br />
atuar em defesa do povo cubano”, lia-se no principal jornal do partido naquela época. 21<br />
Quando voltou à presidência de Cuba na década de 1950, Fulgencio já tinha se<br />
afastado desses aliados. Mas ainda nessa época foi acusado de ser simpatizante dos<br />
vermelhos. Pelo próprio Fidel Castro. Em 3 de julho de 1956, o homem que seria o mais<br />
longo ditador comunista do século 20 acusa seu opositor de ser... comunista. “Qual é o<br />
direito moral que o senhor Batista tem de falar em comunismo, quando ele era o<br />
candidato presidencial do Partido Comunista nas eleições de 1940, quando seus slogans<br />
eleitorais se escondiam atrás da foice e do martelo, quando meia dúzia dos seus<br />
atuais ministros e colaboradores confidenciais são importantes membros do Partido<br />
Comunista?”, escreveu Fidel à revista Bohemia. 22<br />
E FIDEL, O CAPITALISTA<br />
Se Fulgencio começou vermelho e aos poucos mudou de cor, Fidel tomaria o rumo<br />
contrário. Até declarar que levaria Cuba para o rumo de Moscou, um ano depois de
tomar o poder, ele se dizia grande inimigo dos socialistas. Numa entrevista ao New York<br />
Times em abril de 1959, disse: “Eu não concordo com o comunismo. Nós somos<br />
democráticos. Somos contra todo tipo de ditadores. É por isso que somos contra o<br />
comunismo”. Para o cubano Huber Matos, um dos guerrilheiros da Sierra Maestra hoje<br />
exilado em Miami, Fidel não era mesmo comunista. “O irmão dele, Raúl, e Che que<br />
eram marxistas. Fidel cedeu à influência deles porque percebeu que o comunismo<br />
era um bom meio de controlar o poder de Cuba e eliminar adversários.” 23<br />
20 Hugh Thomas, página 33.<br />
21 Hugh Thomas, páginas 37 e 38.<br />
22 Hugh Thomas, páginas 187 e 188.<br />
23 Entrevista com Huber Matos realizada em 12 de maio de 2011.
Mas aquela jogada deu azar. Logo após a queda de Batista, teve início um violento<br />
embate entre a classe média e o grupo de guerrilheiros que havia conquistado uma<br />
enorme popularidade lutando contra o exército na Sierra Maestra, uma região de<br />
montanhas no sudeste da ilha. Sorrateiramente, os integrantes desse grupo, liderados por<br />
Fidel Castro, dominaram o governo provisório recém-instalado, expulsaram todos os que<br />
pensavam de forma diferente e declararam-se abertamente marxistas-leninistas. Os<br />
aliados mais moderados e democráticos foram logo presos ou expulsos do país pelo<br />
próprio governo de Fidel. Um dos principais revolucionários isolados pela nova ordem<br />
do 26 de Julho foi Huber Matos, até então amigo de Che. Por ser contra a ditadura<br />
comunista que dava as caras, ele foi capturado pelos próprios companheiros e jogado em<br />
prisões, onde permaneceria por 20 anos. Hoje com 92 anos, exilado em Miami, Huber<br />
Matos conta:<br />
O Movimento 26 de Julho não era comunista. Nós lutávamos para restaurar a democracia pluripartidária que tinha sido<br />
extinta com o golpe de Fulgencio Batista em 1952. Nos primeiros seis meses depois de tomarmos o poder, acreditávamos<br />
que os partidos e as eleições voltariam. Mas então os Castro e Che levaram a revolução para uma ditadura comunista.<br />
Logo percebemos que tínhamos caído numa ilusão. Muitos guerrilheiros que pensavam como eu ficaram quietos,<br />
acabaram ganhando cargos menores no governo e vivendo sob a chantagem de Fidel. Aqueles que, como eu, se<br />
pronunciaram contra o comunismo foram pouco a pouco eliminados. Che e os Castro ficaram cinco dias decidindo se<br />
deveriam me fuzilar ou não. Acabaram só me deixando preso, com medo do protesto dos colegas. 24<br />
Sem consultar a população ou mesmo a maioria de seus colegas, esse grupo de homens<br />
armados fez uma revolução comunista dentro da revolução democrática. Ou seria uma<br />
contrarrevolução? De qualquer forma, foi nesse momento que Che Guevara, um médico<br />
argentino que integrou o bando de rebeldes na Sierra Maestra, ganhou importância<br />
decisiva.<br />
Para aqueles cidadãos de Cuba que trabalharam, tiveram ideias empreendedoras,<br />
arriscaram seu dinheiro em novos negócios, prosperaram com o turismo e a exportação<br />
de açúcar e lutaram pela democracia, o recado de Che era claro:<br />
Jurei ante um retrato do velho camarada [Josef] Stálin não descansar até ver aniquilados estes polvos capitalistas. 25<br />
24 Entrevista com Huber Matos.<br />
25 Pedro Corzo, página 31.
Em 1957, Fidel Castro comandava 18 homens mal armados, que cuidavam de se<br />
esconder dos policiais e dos soldados de Batista na Sierra Maestra. A maioria da<br />
população cubana achava que ele sucumbira após ataques das tropas<br />
legalistas. Foi quando Herbert Matthews, repórter e editorialista do New York Times ,<br />
recebeu um convite para uma exclusiva com Castro. Os três artigos que Matthews<br />
publicou, e que foram reproduzidos em Cuba clandestinamente, diziam que Castro estava<br />
vivo.<br />
COMO O NEW YORK TIMES CRIOU FIDEL<br />
Até aí, tudo bem. Mas Matthews foi muito além. Para ele, Fidel era dono de uma<br />
personalidade irresistível. “Foi fácil perceber que seus homens o adoram e<br />
também ver por que ele seduz a imaginação da juventude cubana em toda a<br />
ilha. Ali estava um fanático instruído, dedicado, um homem de ideais, de coragem e de<br />
notáveis qualidades de liderança.”<br />
O americano escreveu ainda que o programa do “señor Castro” era “radical, democrático<br />
e, portanto, anticomunista”. “Tem ideias enérgicas sobre liberdade, democracia,<br />
justiça social, a necessidade de restaurar a Constituição, de realizar eleições”, escreveu.<br />
Disse ainda que os rebeldes estavam divididos em colunas de até 40 homens cada,<br />
armados com 50 rifles de mira telescópica – uma gigantesca mentira contada por Fidel.<br />
A propaganda gratuita do New York Times alçou Fidel à condição de herói<br />
nacional, eclipsando todos os demais grupos de oposição. Muitos jovens se uniram ao<br />
grupo “radical e democrático” depois disso. Meses depois da queda da ditadura, já com<br />
Fidel expropriando terras, fuzilando inimigos e se assumindo publicamente como<br />
marxista-leninista, Matthews virou motivo de chacota dos colegas. Pelos serviços<br />
prestados à revolução, o jornalista ganhou uma medalha “Missão de Imprensa da Sierra<br />
Maestra”, das mãos do próprio Fidel Castro. Uma foto sua está até hoje na parede do<br />
Hotel Sevilla, onde o americano se instalou antes de seguir para a entrevista. Segundo<br />
Castro disse, apontando para Matthews: “Sem a sua ajuda e a do New York Times , a<br />
revolução em Cuba jamais teria acontecido”. 26<br />
26 Anthony DePalma, O Homem Que Inventou Fidel, Companhia das Letras, página 190.
Diante de promessas como essa, não demorou para empresários, compositores,<br />
cantores de mambo, roqueiros e arquitetos irem embora de Cuba. O arquiteto Ricardo<br />
Porro, que desenhou a Escola de Belas-Artes de Havana e outros edifícios a pedido de<br />
Fidel Castro, se exilou na França nos anos 60. O compositor Osvaldo Farrés, autor do<br />
clássico bolero Quizás, Quizás, Quizás, deixou Cuba em 1962 e nunca mais pôde voltar.<br />
Frank Dominguez, famoso pela música Tú Me Acostumbraste, gravada no Brasil por<br />
Caetano Veloso e Emílio Santiago, vive hoje em Mérida, no México. Celia Cruz, a maior<br />
cantora cubana, saiu da ilha logo que Che e Fidel tomaram o poder. Expulsa do próprio<br />
país, a “Rainha da Salsa” expressou sua revolta em músicas de exílio. A famosa canção<br />
Cuando Salí de Cuba lembra composições que lamentam outras ditaduras militares da<br />
América do Sul:<br />
Nunca podré morirme,<br />
mi corazón no lo tengo aquí.<br />
Alguien me está esperando,<br />
me está aguardando que vuelva aquí.<br />
Cuando salí de Cuba,<br />
dejé mi vida dejé mi amor.<br />
Cuando salí de Cuba,<br />
dejé enterrado mi corazón.<br />
O novo governo logo limitou a liberdade artística e passou a perseguir hippies e<br />
roqueiros. Nos anos 60, o cantor e compositor Silvio Rodriguez foi demitido de seu<br />
trabalho no Instituto de Rádio e Televisão de Cuba por citar os Beatles como uma de<br />
suas influências. 27 Ele continuou no país, resignando-se a cantar apenas inofensivas<br />
músicas tradicionais. Diversos jovens cubanos, identificados como perigosos<br />
reprodutores do imperialismo cultural americano, foram enviados para campos de<br />
reabilitação por tocar em bandas de rock e cometer atos tão imorais quanto o de andar<br />
pela rua com cabelos compridos. 28
CORTESIA COLEÇÃO PETER MORUZZI<br />
Rua Netuno, em Havana: o crescimento do turismo e a alta do preço da cana-de-açúcar na década de 1950 faziam a<br />
classe média aumentar e enriqueciam as maiores cidades da ilha.<br />
Mesmo os músicos tradicionais se deram mal. Em 2007, um projeto cultural criado em parceria com a Universidade<br />
Federal de Pernambuco levou músicos cubanos da banda Los Galanes para cantar no Recife. Logo depois das<br />
apresentações, metade dos músicos se recusou a ir embora. Ao pedir asilo político ao Brasil, disseram ser perseguidos<br />
em Cuba e impedidos de tocar certas músicas. 29<br />
A mais ousada banda cubana de rock chama-se Porno Para Ricardo (procure no YouTube). É punk rock com letras<br />
anticomunistas: “Você sabe como ferrar um comunista? Ponha rock para tocar e prenda-o num porão do Buena Vista”.<br />
Assim como as orquestras e grupos de balé de inquestionável qualidade técnica que serviam como propaganda da<br />
União Soviética, a célebre banda Buena Vista Social Club espalhou a simpatia pelo regime cubano tocando as mesmas<br />
músicas por cinco décadas. O presidente Hugo Chávez, da Venezuela, usa como propaganda a Orquestra Sinfônica<br />
Jovem Simón Bolívar.<br />
Muitos jovens seguiram ouvindo rock às escondidas. Sintonizavam clandestinamente<br />
rádios americanas do Arkansas e de Miami – em volume baixo, para não causar<br />
problema. As bandas locais entraram na clandestinidade. “Sem o apoio do Estado para<br />
obter instrumentos e a instrução disponível aos músicos dos estilos aprovados pelo<br />
governo, os roqueiros de Cuba tinham que improvisar”, conta a historiadora Deborah<br />
Pacini Hernandez em seu compêndio sobre o rock na América Latina. “Ensinaram a si<br />
próprios como tocar guitarras eletrônicas e frequentemente tinham que construir seus<br />
próprios equipamentos, usando fios de telefone para cordas de baixo e montando<br />
tambores de bateria com pedaços de metal ou filmes de raio X.” 30 Oficialmente, a<br />
proibição ao rock durou pouco. Com o sucesso dos Beatles pelo mundo e o espírito de<br />
revolução associado a esse tipo de música, ficou difícil proibi-lo, a ponto de o próprio<br />
Fidel Castro homenagear John Lennon em 2000. Mas o estilo continuou marginalizado em<br />
Cuba. Ainda hoje, bandas que tocam um som digno de nota (e que corajosamente atacam<br />
a ditadura) poderiam ser contadas com os dedos de uma única mão. Já os adeptos de<br />
ritmos tradicionais cubanos rodam o mundo em shows patrocinados pelo governo. Salvo<br />
raras exceções, a cena musical cubana atual se resume aos trios folclóricos que tocam<br />
nos restaurantes para estrangeiros, inacessíveis para um cubano comum. Ao caminhar por<br />
Havana e ouvir pela centésima vez “Guantanamera, guajira guantanamera”, o turista<br />
facilmente constata: a música cubana parou no tempo.<br />
Por trás da perseguição de jovens, músicos e artistas, estava a ideia de fazer todos os<br />
cubanos se parecerem entre si como soldadinhos de chumbo. “Para construir o<br />
comunismo, tem de se fazer o homem novo”, escreveu Che. 31 A expressão, que ele repetia<br />
diversas vezes em discursos e escritos, tem uma longa história. Vem da crença dos<br />
filósofos iluministas de que a natureza humana é maleável, que o homem é uma tábula<br />
rasa em que se pode gravar diferentes comportamentos, dependendo da educação, do<br />
espírito revolucionário ou da influência da sociedade. O homem altruísta e bondoso, que<br />
deveria deixar de lado interesses individuais e colocar-se à disposição do governo, era<br />
um princípio que norteava ideias não só de Che, mas de todos os comunistas. Na prática,<br />
essa busca resultou na perseguição de todos aqueles que pareciam não se encaixar na<br />
moldura do tal homem novo.<br />
Em discursos, entrevistas e falas em reuniões, Che deixou claro esperar dos jovens<br />
disciplina e obediência. Numa das poucas vezes que falou de música, disse que as<br />
pessoas deveriam trabalhar “ao som de cânticos revolucionários”. 32 A ideia central era
desviar-se de interesses individualistas e se concentrar no trabalho, no estudo e no fuzil,<br />
além de obedecer aos mais velhos. No discurso O Que Deve Ser um Jovem Comunista,<br />
de 1962, Che pede para os jovens se acostumarem a “pensar como massa e atuar com as<br />
iniciativas que nos oferece a classe trabalhadora e as iniciativas dos nossos dirigentes<br />
supremos”. 33 Sim, ele usa mesmo a expressão “dirigentes supremos”.<br />
Rebeldia juvenil? Só se dentro do quartel. Che adorava uniformes do exército e seus símbolos. Em abril de 1959, então<br />
chefe de instrução das Forças Armadas Revolucionárias, ele fundou a revista Verde Olivo, de assuntos militares. Em<br />
1963, ajudou a aprovar a maior inimiga dos jovens: a lei do serviço militar obrigatório. Ironicamente, o próprio Che tentou<br />
escapar do serviço militar da Argentina, em 1946, quando completou 18 anos.<br />
Essas ideias foram transmitidas pelo próprio Che aos policiais e aos soldados que<br />
agiam nas ruas e nas vilas cubanas. Logo após a revolução, uma das principais missões<br />
do guerrilheiro foi capacitar as forças armadas, um dos maiores pilares do regime de<br />
Fidel Castro. Em 1959, quando Fidel ainda não havia declarado oficialmente que<br />
adotaria um governo comunista, as escolas de instrução militar de Che já doutrinavam os<br />
soldados para impor uma ditadura do proletariado. “Em pouco tempo, ele inaugura<br />
vários cursos rápidos para formação de oficiais e da tropa”, conta o biógrafo Jorge<br />
Castañeda. “Os colaboradores comunistas de Che na Sierra [Maestra] ou na invasão [da<br />
baía dos Porcos, em 1961] e outros, como o hispano-soviético Angel Ciutah, formam o<br />
núcleo dos instrutores.” 34<br />
Che montou o primeiro campo de trabalho forçado de Cuba, na região de<br />
Guanahacabibes, a mais oriental da ilha, em 1960. A ideia era reeducar pelo trabalho<br />
pessoas consideradas imorais pela revolução. “A Guanahacabibes mandamos aqueles<br />
que não devem ser presos, aqueles que cometeram faltas contra a moral revolucionária<br />
de maior ou menor grau”, disse ele numa reunião do Ministério da Indústria de 1962. O<br />
campo serviu de modelo para as Unidades Militares de Ayuda a la Producción (Umaps),<br />
que abrigaram cerca de 30 mil jovens em menos de uma década. O caso foi denunciado<br />
pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (a mesma organização que<br />
denunciava crimes de outras ditaduras da América Latina). Um relatório divulgado pela<br />
comissão em 1967 diz o seguinte:<br />
Os jovens são recrutados à força por simples disposição da polícia, sem que se faça nenhum julgamento nem seja<br />
permitido o direito de defesa. Logo depois de presos são enviados a alguma granja estatal para serem incorporados na<br />
Unidade Militar de Ajuda à Produção. Em muitas ocasiões os familiares só são notificados semanas ou meses depois da<br />
detenção. Os jovens recrutados são obrigados a trabalhar gratuitamente na granja estatal por mais de 8 horas diárias e<br />
recebem um tratamento igual ao que se dá em Cuba aos presos políticos. [...] Esse sistema cumpre dois objetivos: a)<br />
Facilitar a mão de obra gratuita do Estado. b) Castigar os jovens que se negam a participar das organizações<br />
comunistas. 35<br />
Os campos de concentração cubanos abrigaram todos aqueles que não se encaixavam<br />
na ideia de “homem novo”: gays, católicos, testemunhas de Jeová, alcoólatras, sacerdotes<br />
do candomblé cubano e, mais tarde, portadores de HIV. “Como poderia o homem novo se<br />
libertar do capitalismo? Essa era a questão central para os líderes revolucionários da<br />
época, principalmente Che Guevara, um insistente proponente da ideia de homem novo e<br />
um dos mais convictos líderes homofóbicos do período”, afirma o escritor cubano Emilio<br />
Bejel no livro Gay Cuban Nation. 36 O pensamento corrente entre os revolucionários,<br />
ideia que chegou a ser defendida num artigo de jornal pelo intelectual comunista Samuel
Feijóo, era a de que o homossexualismo em Cuba logo terminaria. Afinal, o socialismo<br />
tinha o poder de “curar comportamentos e doenças sociais”. Elementar.<br />
É verdade que, nos anos 60, eram raros os países que respeitavam os direitos dos<br />
homossexuais. Mas em poucos lugares houve uma perseguição oficial de cidadãos por<br />
causa de sua opção sexual. Até gays favoráveis ao regime se deram mal. O poeta e<br />
dramaturgo Virgilio Piñera, por exemplo, tinha sido exilado político da ditadura anterior,<br />
a de Fulgencio Batista. Em 1961, foi preso durante a “Noite dos 3 Ps”. Amigo e colega<br />
de trabalho de Virgilio, o escritor Guillermo Cabrera Infante explicou o episódio no<br />
livro Mea Cuba. “Um departamento especial da polícia, chamado de Esquadrão da<br />
Escória, se dedicara a deter, à vista de todos, na área velha da cidade, todo transeunte<br />
que tivesse um aspecto de prostituta, proxeneta ou pederasta”, escreveu Infante. 37 Virgilio<br />
conseguiria escapar da prisão, mas não do preconceito de Che Guevara. Anos depois,<br />
Che viajou para a Argélia e visitou a embaixada cubana local. Ao dar uma olhada nos<br />
livros da estante da embaixada, deparou-se com o Teatro Completo de Virgilio Piñera.<br />
“Como é que você pode ter o livro dessa bicha na embaixada?”, disse ao embaixador<br />
enquanto atirava o livro na parede. O embaixador desculpou-se e jogou a obra no lixo. 38<br />
As denúncias internacionais fizeram o governo cubano deixar, em 1968, de mandar<br />
gays para campos de trabalho forçado. Não que os problemas deles tenham sido<br />
resolvidos. Durante o Congresso de Educação e Cultura de 1971, uma resolução proibiu<br />
homossexuais de ocupar cargos públicos que pudessem converter a juventude. Só em<br />
1979 a sodomia foi retirada do código criminal cubano. Por fim, beijos homossexuais em<br />
público davam cadeia por atentado ao pudor até 1997.<br />
Completa-se assim a primeira grande contradição entre Che Guevara e seus fãs. O<br />
mesmo homem que incentivou perseguições por motivos artísticos e sexuais teve entre<br />
seus admiradores justamente artistas que criaram famosas canções de resistência e que<br />
diziam lutar pela liberdade individual. Um exemplo é a argentina Mercedes Sosa, que foi<br />
presa pelos militares durante um show de 1979. “Se o cantor se cala, a vida se cala”,<br />
advertia a cantora. Apesar daquelas roupas estranhas, quem não concordaria com ela?<br />
Talvez ela própria. Mercedes Sosa interpretou a composição Hasta Siempre<br />
Comandante, em homenagem à morte de Che, e passou a vida elogiando o compatriota.<br />
Che, a paz e o amor<br />
Logo depois de Cuba, o famoso casal de intelectuais franceses desembarcaria no Brasil. Durante dois meses, os dois<br />
foram à Amazônia, às cidades históricas mineiras e até ao interior de São Paulo. Numa palestra na cidade de<br />
Araraquara, Sartre foi recebido por um professor da USP então com 29 anos: Fernando Henrique Cardoso, décadas<br />
depois presidente do Brasil.<br />
Em 4 de março de 1960, um cargueiro com mais de 70 toneladas de armas belgas<br />
explodiu no porto de Havana. O acidente provocou a morte de 75 operários e instalou na<br />
ilha a suspeita de que o episódio teria sido fruto de sabotagem promovida pelos Estados<br />
Unidos. No dia seguinte, Fidel Castro e sua cúpula encabeçaram o cortejo fúnebre pelas<br />
ruas de Havana. Na hora de encerrar a cerimônia, o líder cubano subiu com seus colegas<br />
numa pequena varanda e, de lá, fez um discurso inflamado, acusando agentes americanos<br />
pela tragédia. Cabia ao fotógrafo oficial de Fidel, Alberto Korda, registrar o chefe ao
microfone, assim como a presença de convidados ilustres que o acompanhavam. Os<br />
entusiasmados filósofos franceses Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir passavam<br />
uns dias em Cuba conhecendo a experiência socialista. Korda tirou diversas fotos de<br />
Fidel e do casal de intelectuais, mas foi uma outra imagem daquele dia que o tornaria<br />
célebre. Entre o grupo que acompanhava Fidel, Korda conseguiu enquadrar o rosto de<br />
Che Guevara. O guerrilheiro foi fotografado de baixo para cima, olhando ao longe com<br />
uma incrível aparência de dor e determinação. Nascia ali o famoso retrato de Che, a foto<br />
mais famosa e mais reproduzida em todo o século 20.<br />
O próprio Feltrinelli se envolveria no terrorismo anti-imperialista na Itália. Em 1972, ele foi encontrado morto ao lado<br />
de uma torre de alta tensão nos arredores de Milão. Foi provavelmente vítima dos explosivos que tentava instalar na<br />
torre elétrica.<br />
O retrato de Che permaneceu pouco conhecido até 1967, quando o editor italiano<br />
Giangiacomo Feltrinelli adquiriu cópias e começou a distribuir a imagem pela Europa.<br />
Em agosto daquele ano, o retrato estaria na revista francesa Paris Match. Dois meses<br />
depois, logo após a morte de Che, um pôster com a foto foi visto pela primeira vez num<br />
protesto de rua, em Milão. A imagem então se espalhou. Pelo menos 2 milhões de<br />
pôsteres de Che Guevara foram vendidos na Europa entre 1967 e 1968. O rosto de Che<br />
estava nas barricadas do Maio de 1968 contra os generais franceses, em protestos de<br />
anarquistas holandeses, nas comunidades hippies da Califórnia, entre as passeatas contra<br />
a Guerra do Vietnã de diversas cidades dos Estados Unidos. A foto contribuiu para que<br />
Che se tornasse um ícone da paz e do amor ao lado de Gandhi e Madre Teresa de<br />
Calcutá.<br />
Pois considere as seguintes palavras escritas pelo mesmo homem daquela foto:<br />
Ícone dos pacifistas dos anos 60, Che adorava armas. Em 1959, quando o oficial da KGB Nikolai Leonov visitou Cuba,<br />
soube bem o que escolher na hora de presentear os líderes cubanos. “Para o Che, que gostava de armas, compramos<br />
duas, uma excelente pistola e uma pistola de modelo esportivo de alta precisão, com munição. Para Raúl comprei um<br />
jogo de xadrez, pois era muito bom enxadrista.” 39<br />
O ódio como fator de luta, o ódio intransigente ao inimigo, que impulsiona para além das limitações naturais do ser<br />
humano e o converte em uma efetiva, violenta, seletiva e fria máquina de matar. Nossos soldados têm de ser assim; um<br />
povo sem ódio não pode triunfar sobre um inimigo brutal.<br />
Há que levar a guerra até onde o inimigo a leve: à sua casa, a seus lugares de diversão, torná-la total. Há que impedi-lo<br />
de ter um minuto de tranquilidade, de ter um minuto de sossego fora dos quartéis, e mesmo dentro deles: atacá-lo onde<br />
quer que se encontre; fazê-lo sentir-se uma fera acossada onde quer que esteja. 40<br />
Estou imaginando o orgulho daqueles companheiros que estavam numa “quatro bocas”, por exemplo, defendendo sua<br />
pátria dos aviões ianques e de repente têm a sorte de ver que suas balas atingiram o inimigo. Evidentemente, é o<br />
momento mais feliz da vida de um homem. É uma coisa que nunca se esquece. Nunca o esquecerão os companheiros<br />
que viveram essa experiência. 41<br />
É preciso dizer mais alguma coisa?<br />
É. Che Guevara, ídolo dos jovens rebeldes e pacifistas, não só considerava o ódio um<br />
sentimento nobre como agiu para que houvesse uma guerra nuclear na América. Em 1961,<br />
ele viajou à Rússia para fechar com o líder soviético Nikita Kruschev um acordo da<br />
instalação dos mísseis com ogivas nucleares em Cuba. Em discursos e entrevistas, Che<br />
não teve pudor ao afirmar que, sim, queria armar um pesadelo atômico nos Estados
Unidos. E, sim, sabia que desencadearia uma reação americana (maior potência nuclear<br />
do mundo) no mesmo nível sobre as cidades cubanas.<br />
Essa postura ficou bem clara logo após a Crise dos Mísseis, em 1962, um dos<br />
momentos em que o mundo mais esteve perto de uma Terceira Guerra Mundial. Em<br />
outubro daquele ano, aviões de espionagem americanos fotografaram instalações<br />
militares de Cuba. Mostraram que mísseis nucleares de médio alcance (apontados para<br />
os Estados Unidos) estavam sendo instalados no oeste da ilha. Tratava-se de 42 mísseis<br />
soviéticos – 20 deles com ogivas nucleares – e mais meia dúzia de lança-mísseis também<br />
armados com ogivas. O presidente dos Estados Unidos, John Kennedy, criou um bloqueio<br />
marítimo à ilha e exigiu a retirada imediata dos armamentos. Graças à diplomacia entre<br />
as duas superpotências, os soviéticos acabaram cedendo – nem Moscou, nem Washington<br />
achavam uma boa ideia começar uma guerra de armas atômicas. Mas o governo de<br />
Havana, sim. A retirada dos mísseis foi uma decisão dos soviéticos que deixou os líderes<br />
cubanos revoltados e irritados. Fidel Castro chamou o russo Nikita Kruschev de “filho da<br />
puta, cagão e bunda-mole”. 42 “Fidel ficou puto da vida, e eu também”, disse Che ao seu<br />
amigo Ricardo Rojo. “Para descarregar a tensão que havia se acumulado, Fidel deu uma<br />
volta de 180 graus e soltou um pontapé na parede.” 43<br />
Che não conseguiu esconder sua decepção com a moderação e a prudência dos russos.<br />
Sonhava com uma guerra nuclear e disse isso em voz alta durante entrevistas que se<br />
seguiram à crise. “Se os mísseis tivessem ficado em Cuba, usaríamos todos, apontandoos<br />
para o coração dos Estados Unidos, inclusive Nova York, para nos defendermos da<br />
agressão”, disse ao London <strong>Da</strong>ily Worker, o jornal do Partido Comunista da Inglaterra.<br />
Ele sabia que os americanos revidariam o ataque, provocando um massacre nuclear em<br />
Cuba e o sacrifício de centenas de milhares de cubanos. Mas era isso mesmo que<br />
desejava, conforme escreveu meses depois:<br />
[Cuba] é o exemplo tremendo de um povo disposto ao autossacrifício nuclear, para que suas cinzas sirvam de alicerce<br />
para uma nova sociedade. 44<br />
Para quem considerava o homem não um fim em si mesmo, mas um meio para a revolução, matar ou sacrificar<br />
pessoas era perfeitamente racional e correto. Rebeldes como Che acreditavam que revoluções anteriores tinham<br />
fracassado porque seus líderes hesitaram em agir em nome de um ideal. Como em tantos casos do século 20, foi o<br />
desejo radical de mudar o mundo que nutriu a barbárie.<br />
Se um sujeito quer dedicar a vida ao autossacrifício em nome de um ideal, é seu<br />
direito. Deve ter a liberdade de fazer o que bem desejar com a própria vida. Mas não<br />
pode, por mais fotogênico que seja e por mais belo que considere seu ideal, obrigar<br />
milhões de outros indivíduos a tomar o mesmo caminho. A instalação de mísseis em<br />
Cuba havia sido decidida em sigilo por Fidel e Raúl Castro, Che e outros três líderes<br />
cubanos. Apenas seis pessoas. 45 Os milhões de cidadãos cubanos não sabiam, mas seu<br />
admirado líder Che Guevara tinha decidido levá-los a um holocausto nuclear.<br />
Prevendo ataques americanos, os líderes da revolução logo se preocuparam em<br />
perguntar ao embaixador soviético, Alexander Alexeyev, se havia espaço no abrigo<br />
antiaéreo da embaixada soviética em Cuba. 46 Não tiveram a mesma preocupação com o<br />
resto dos cubanos.
Che e os direitos humanos<br />
Continente que amargou tantas ditaduras militares, a América Latina tem hoje diversos<br />
movimentos de reparação a torturas, assassinatos e outras perseguições políticas. Na<br />
batalha para fazer os carrascos militares pagarem por seus crimes, organizações como<br />
Tortura Nunca Mais, do Brasil; Madres de La Plaza de Mayo, da Argentina; Verdade e<br />
Justiça, do Paraguai; ou as comissões de verdade e reconciliação do Chile e do Peru são<br />
geralmente as fontes mais acessadas de relatórios de mortes, dados das vítimas e<br />
depoimentos de sobreviventes. Lutam também contra a pena de morte e os abusos<br />
praticados por policiais nos dias de hoje.<br />
BETTMANN/CORBIS/LATINSTOCK<br />
Che na assembleia da ONU, em 1964: “Nosso regime é um regime à morte”.<br />
Do mesmo modo, o Projeto Verdade e Memória, da organização Arquivo Cuba, reúne<br />
dados de cubanos que foram perseguidos desde 10 de março de 1952, quando o ditador<br />
Fulgencio Batista suspendeu os direitos políticos da ilha, até hoje. Segundo essa<br />
instituição, o argentino Ernesto Guevara de la Serna se envolveu em pelo menos 144<br />
mortes entre 1957 e 1959, período que compreende a guerrilha pela tomada de poder em<br />
Cuba e o primeiro ano de governo revolucionário. Entre as vítimas, há colegas do grupo<br />
guerrilheiro, policiais mortos na frente dos filhos, menores de idade e principalmente<br />
opositores políticos executados no presídio montado dentro do Forte de La Cabaña.<br />
Nos Diários de Motocicleta, Che revela também um pouco de seu racismo. <strong>Da</strong> Venezuela, escreve que os negros<br />
“mantiveram sua pureza racional graças ao pouco apego que têm em tomar banho”. Comparando negros e portugueses,<br />
escreve que “o desprezo e a pobreza os unem na luta cotidiana, mas o diferente modo de encarar a vida os separa<br />
completamente; o negro, indolente e sonhador, gasta seu dinheiro em qualquer frivolidade, o europeu tem a tradição de<br />
trabalho e economia”. 47<br />
Mais uma vez, as palavras de Che confirmam o que se diz sobre suas ações. Bem antes
de o argentino sonhar em ser líder de uma revolução, já descrevera seu ímpeto assassino.<br />
Em 1952, quando viajou de moto pela América do Sul, registrou a viagem num diário. As<br />
anotações viraram o livro e o filme Diários de Motocicleta, em que Che aparece como<br />
um personagem mais camarada que Jesus Cristo. O filme deixou de fora passagens menos<br />
simpáticas dos escritos de Che a mostrar sua obsessão com a violência justificada em<br />
nome de um ideal. É interessante imaginar o ator mexicano Gael García Bernal, que<br />
interpreta Che no filme do brasileiro Walter Salles, dizendo estas palavras:<br />
Estarei com o povo, e sei disso porque vejo gravado na noite que eu, o eclético dissecador de doutrinas e psicanalista de<br />
dogmas, uivando como um possesso, atacarei de frente as barricadas ou trincheiras, banharei minha arma em sangue e,<br />
louco de fúria, cortarei a garganta de qualquer inimigo que me cair nas mãos. [...] Sinto minhas narinas dilatadas pelo<br />
cheiro acre da pólvora e do sangue do inimigo morto. Agora meu corpo se contorce, pronto para a luta, e eu preparo meu<br />
ser como se ele fosse um lugar sagrado, de modo que nele o uivar bestial do proletariado triunfante possa ressoar com<br />
novas vibrações e novas esperanças.<br />
Che chegou a Cuba no fim de 1956. Era um dos 81 guerrilheiros que acompanhavam<br />
Fidel Castro na travessia do México à ilha de Cuba a bordo do Granma, o iate que<br />
depois daria nome ao jornal oficial cubano. O grupo sofreu um ataque do exército,<br />
obrigando os poucos sobreviventes a se esconder na Sierra Maestra. Foi ali que Che<br />
começou a realizar seus desejos. Logo de início, revelou traços típicos dos piores<br />
ditadores comunistas: o controle extremo da conduta individual, a paranoia com a traição<br />
e o fato de considerar o ideal da revolução acima de qualquer regra de convivência.<br />
“Poucos homens estavam imunes ao olhar desconfiado de Che”, conta o biógrafo John<br />
Lee Anderson, que completa:<br />
Havia um nítido zelo calvinista na perseguição movida por ele aos que se desviavam do “caminho correto”. Che abraçara<br />
fervorosamente la Revolución como corporificação definitiva das lições da História e como o caminho correto para o<br />
futuro. Agora, convencido de que estava certo, olhava em volta com os olhos implacáveis de um inquisidor em busca<br />
daqueles que poderiam pôr em perigo a sobrevivência da Revolução. 48<br />
O primeiro cubano morto diretamente por Che Guevara foi Eutimio Guerra, um<br />
camponês que servia de guia aos guerrilheiros na Sierra Maestra. Acusado de ser<br />
informante das forças armadas, ele teve a pena de morte autorizada por Fidel em<br />
fevereiro de 1957. A identidade do executor de Eutimio ficou em segredo por 40 anos.<br />
Só em 1997, depois que o biógrafo John Lee Anderson conseguiu com a viúva de Che o<br />
original de seu diário, foi possível saber quem o matou. O guerrilheiro conta que, no<br />
momento de sua execução, um forte temporal caiu sobre a serra. Como ninguém se<br />
dispunha a cumprir a ordem, ele tomou a iniciativa. Repare na frieza da narrativa:<br />
Era uma situação incômoda para as pessoas e para [Eutimio], de modo que acabei com o problema dando-lhe um tiro<br />
com uma pistola calibre 32 no lado direito do crânio, com o orifício de saída no temporal direito. Ele arquejou um pouco e<br />
estava morto. Ao tratar de retirar seus pertences, não consegui soltar o relógio, que estava preso ao cinto por uma<br />
corrente e então ele [ainda Eutimio] me disse, numa voz firme, destituída de medo: ‘Arranque-a fora, garoto, que<br />
diferença faz...’. Assim fiz, e seus bens agora me pertenciam. Dormimos mal, molhados, e eu com um pouco de asma. 49<br />
No diário de Che, não há sinal de culpa ou de alguma inquietação quanto à execução.<br />
Horas depois da morte do camponês, seus interesses já eram outros. “Se Che ficou<br />
perturbado com o ato de executar Eutimio, no dia seguinte não havia qualquer sinal
disso”, escreve Anderson. “No diário, comentando a chegada à fazenda de uma bonita<br />
ativista do 26 de Julho, escreveu: ‘[Ela é uma] grande admiradora do Movimento, e a<br />
mim parece que quer foder mais do que qualquer outra coisa’.” 50<br />
Che também foi tirano com seus companheiros na Bolívia. Segundo o brasileiro Cláudio Gutierrez, participantes do<br />
grupo de Che “foram executados pelos próprios companheiros de esquerda incrivelmente pelo consumo escondido, e<br />
solitário, de latas de leite condensado”. Entre os mortos estaria Luís Renato Pires de Almeida, que até hoje consta na<br />
lista de vítimas da ditadura militar brasileira... 51<br />
Segundo o Arquivo Cuba, foram pelo menos 22 execuções na Sierra Maestra entre<br />
1957 e 1958. Quase todas as vítimas eram membros do próprio grupo rebelde de Fidel<br />
Castro e Che Guevara – três acusados de querer abandonar o grupo, oito considerados<br />
suspeitos de colaborar com o exército e os outros 11 mortos por cometer crimes ou por<br />
razões desconhecidas.<br />
No dia a dia de paranoias e crises de confiança entre os guerrilheiros da Sierra<br />
Maestra, Fidel Castro tinha de segurar a onda de Che Guevara. O argentino com<br />
frequência sugeria acabar com companheiros diante da menor desconfiança. Depois que<br />
os guerrilheiros ganharam comida na casa de uma família de camponeses e passaram mal,<br />
Che disse a Fidel para que voltassem lá para tirar satisfações – Fidel o deteve. A pressa<br />
em resolver as coisas à bala recaía até mesmo sobre companheiros antigos, como José<br />
Morán, “El Gallego”, um veterano do Granma. Diante da suspeita de que Morán traía o<br />
grupo, Che queria logo executá-lo. “É muito difícil saber a verdade sobre o<br />
comportamento do Gallego, mas para mim trata-se simplesmente de uma deserção<br />
frustrada”, escreveu em seu diário. “Aconselhei que ele fosse morto ali mesmo, mas<br />
Fidel descartou o assunto.” Fidel acabaria se tornando o líder do regime não democrático<br />
mais duradouro do século 20. Imagine se Che assumisse esse posto.<br />
27 Deborah Pacini Hernandez, página 43.<br />
28 Deborah Pacini Hernandez, página 47.<br />
29 Programa Fantástico, 15 de abril de 2008, disponível em http://fantastico.globo.com/Jornalismo/FANT/0,,MUL698091-<br />
15605,00.html.<br />
30 Deborah Pacini Hernandez, página 62.<br />
31 Che Guevara, Textos Políticos, Global, 2009, página 60.<br />
32 Che Guevara, página 36.<br />
33 Che Guevara, página 34.<br />
34 Jorge Castañeda, Che Guevara: A Vida em Vermelho, Companhia de Bolso, 2009, página 197.<br />
35 Arquivo da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), disponível em<br />
www.cidh.org/countryrep/cuba67sp/cap.1a.htm#_ftnref4.<br />
36 Emilio Bejel, Gay Cuban Nation, The University of Chicago Press, 2001, página 24.<br />
37 Guillermo Cabrera Infante, Mea Cuba, Companhia das Letras, página 91.<br />
38 Guillermo Cabrera Infante, página 341.<br />
39 Jorge Castañeda, página 225.
40 Che Guevara, página 82.<br />
41 Che Guevara, página 39.<br />
42 Jorge Castañeda, página 302.<br />
43 Ricardo Rojo, Meu Amigo Che, Civilização Brasileira, 1983, página 138.<br />
44 Jorge Castañeda, página 305. O artigo foi publicado postumamente, em 1968, na revista Verde Olivo.<br />
45 Jorge Castañeda, página 300.<br />
46 Humberto Fontova, Fidel: Hollywood’s Favorite Tyrant, Regnery Publishing, 2005, página 23.<br />
47 Che Guevara, Diários de Motocicleta, versão digital, página 230.<br />
48 John Lee Anderson, Che Guevara, Objetiva, 1997, página 293.<br />
49 John Lee Anderson, página 288.<br />
50 John Lee Anderson, página 289.<br />
51 José Mitchell, Segredos à Direita e à Esquerda na Ditadura Militar, RBS Publicações, 2007, página 253.
É uma história horripilante e difícil de acreditar, mas foi divulgada pela<br />
Comissão Interamericana de Direitos Humanos, a mesma entidade que denunciava os<br />
crimes das ditaduras militares da América do Sul e que até hoje pressiona os governos<br />
para punir os carrascos daquela época. No item E do relatório divulgado pela<br />
organização em 7 de abril de 1967, há a denúncia da extração de sangue de condenados à<br />
morte em Cuba. Pouco antes de fuzilar os condenados, os algozes do presídio de La<br />
Cabaña retiravam o sangue das vítimas.<br />
OS VAMPIROS REVOLUCIONÁRIOS<br />
“No dia 27 de maio, 166 cubanos civis e militares foram executados e submetidos aos<br />
processos de extração de sangue, a uma média de 7 pintas por pessoa [cerca de 3<br />
litros]”, afirma o relatório. “Este sangue é objeto de venda no Vietnã<br />
comunista por 50 dólares a pinta, com o objetivo duplo de prover-se de<br />
dólares e contribuir com o esforço do vietcongue.” Com tanto sangue extraído, as vítimas<br />
eram levadas ao paredão já desmaiadas ou inconscientes. Conforme a Comissão,<br />
hematólogos cubanos e soviéticos trabalhavam no presídio de La Cabaña para analisar o<br />
material colhido e conservar sua qualidade. Como até hoje o governo cubano não foi<br />
submetido a investigações internacionais, não se pode atestar se a denúncia é ou não<br />
fundamentada na realidade. Mas a história do mundo mostra que, em se tratando de<br />
regime comunista, tudo é possível. 52<br />
52 Arquivo da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), disponível em<br />
www.cidh.org/countryrep/cuba67sp/cap.1a.htm#_ftnref4; e Humberto Fontova, O Verdadeiro Che Guevara, Editora É,<br />
página 134.
Até então, a pena de morte era proibida. Só tinha sido praticada contra um espião alemão, capturado em Cuba durante<br />
a Segunda Guerra. A Constituição criada por Che e Fidel, em fevereiro de 1959, fez a pena capital, prática tão odiada<br />
pelos admiradores de Che, voltar à ilha.<br />
Fidel, porém, às vezes se distanciava, deixando Che sozinho com seu pelotão. Em<br />
1958, o argentino liderou a tomada da cidade de Santa Clara, o maior obstáculo entre os<br />
guerrilheiros e Havana. De acordo com a organização Arquivo Cuba e dezenas de<br />
dissidentes cubanos, a invasão foi seguida por uma onda incontrolável de execuções.<br />
Policiais da cidade e moradores acusados de colaborar com o governo de Fulgencio<br />
Batista foram mortos na rua. Che ficou dois dias e meio na cidade e logo seguiu caminho<br />
para Havana. Antes de ir embora, ordenou diversas execuções a serem cumpridas por<br />
seus subordinados. Matou ou ordenou a execução de 17 moradores. A decisão de tantas<br />
mortes não foi baseada em julgamento nem houve qualquer possibilidade real de defesa.<br />
Domingo Álvarez Martínez, do serviço de inteligência das forças armadas, cuja sentença<br />
de morte foi assinada por Che em 4 de janeiro de 1959, foi morto na frente do filho de 17<br />
anos.<br />
Logo depois, em janeiro de 1959, Che foi nomeado comandante do presídio do Forte<br />
de La Cabaña e chefe dos Tribunais Revolucionários que aconteciam ali. Eram enviados<br />
para aquele presídio militares, políticos anticomunistas, companheiros rebeldes que<br />
divergiram da cúpula da revolução, cidadãos que oferecessem resistência à nova ordem<br />
revolucionária e até mesmo parentes de opositores que haviam fugido da ilha. Os<br />
números de mortos quando La Cabaña era chefiada por Che variam muito. O Arquivo<br />
Cuba lista o nome de 104 vítimas. Já os cubanos que foram presos ou trabalharam no<br />
presídio falam em até 800 mortes até o fim de 1959. Para o cargo de juiz dos Tribunais<br />
Revolucionários, Che designou Orlando Borrego, um rapaz de 23 anos sem qualquer<br />
formação em direito. José Vilasuso, que tinha acabado de se formar advogado, virou<br />
assistente na preparação das sentenças. É bom preparar o estômago antes de ler o que<br />
Vilasuso, décadas depois, lembra daquela época:<br />
Muitas pessoas se reuniam no escritório de Che Guevara e participavam de agitadas discussões sobre a Revolução. No<br />
entanto, as falas de Che costumavam ser cheias de ironia – ele nunca mostrava nenhuma alteração de temperamento ou<br />
dava atenção a opiniões diferentes. Ele dava reprimendas em particular e em público, chamando a atenção de todos:<br />
“Não demorem com esses julgamentos. Isso é uma revolução: provas são secundárias. Temos que agir por convicção.<br />
Eles são uma gangue de criminosos e assassinos”.<br />
As execuções aconteciam nas primeiras horas da manhã. Assim que uma sentença era transmitida, os parentes e amigos<br />
caíam em prantos horríveis, suplicando piedade para seus filhos, maridos etc. Diversas mulheres tinham que ser tiradas<br />
de lá à força. Aconteciam de segunda a sábado, e em cada dia um a sete prisioneiros eram executados, às vezes mais.<br />
Casos de pena de morte tinham carta-branca de Fidel, Raúl ou Che e eram decididos pelo tribunal ou pelo Partido<br />
Comunista. Cada membro do esquadrão da morte ganhava 15 pesos por execução. Os oficiais, 20.<br />
A Fortaleza de San Carlos de La Cabaña, em Havana, pode ser facilmente visitada por turistas. Construída no século<br />
18, ela sedia todas as noites, às 20h30, o cañonazo, em que homens vestidos de soldados espanhóis simulam um tiro de<br />
canhão. Antes de Guevara, os ditadores Gerardo Machado e Fulgencio Batista também a usaram como prisão.<br />
Em frente ao paredão, cheio de buracos de balas, eram abandonados os corpos agonizantes, amarrados em paus,<br />
banhados em sangue e imóveis em posições indescritíveis, com mãos convulsivas, expressões tenebrosas de choque,<br />
mandíbulas fora do lugar, um buraco onde antes havia um olho. Alguns dos corpos, por causa do tiro de misericórdia,<br />
tinham o crânio destruído e o cérebro exposto.<br />
Testemunhar tal carnificina é um trauma que vai me acompanhar a vida toda – e é minha missão tornar esses fatos<br />
conhecidos. Durante aquelas horas as paredes daquele castelo medieval abrigavam ecos dos passos das tropas, o<br />
ruído dos rifles, as vozes de comando, o ressoar dos tiros, o gemido dos moribundos e os gritos dos oficiais e guardas<br />
depois dos tiros de misericórdia. Um silêncio macabro que consumia tudo.
Assassinos de renome internacional ajudaram Che e Fidel nos expurgos. O americano Herman Marks, condenado por<br />
assalto, roubo e estupro, virou um dos principais atiradores de La Cabaña. Os revolucionários também abrigaram o<br />
comunista espanhol Ramón Mercader – ele mesmo, o homem que em 1940 matou León Trótski, no México.<br />
Nem menores de idade ficaram de fora da pena de morte instituída por Che Guevara.<br />
No fim de 1959, um garoto de 12 ou 14 anos chegou ao presídio de La Cabaña sob a<br />
acusação de ter tentado defender o pai antes que os revolucionários o matassem. Dias<br />
depois, o garoto foi levado ao paredão com outros dez prisioneiros. “Perto do paredão<br />
onde se fuzilava, com as mãos na cintura, caminha Che Guevara de um lado para o<br />
outro”, escreveu Pierre San Martín, um dos prisioneiros de La Cabaña. “Deu a ordem<br />
para trazer antes o garoto e o mandou se ajoelhar diante do paredão. O garoto<br />
desobedeceu à ordem com uma valentia sem nome e ficou de pé. Che, caminhando por<br />
trás do garoto, disse: ‘Que garoto valente’. E deu um tiro de pistola na nuca do rapaz.”<br />
Outro jovem assassinado ali foi Ariel Lima Lago, que tinha sido colaborador da<br />
própria guerrilha de Che Guevara. Capturado pelos policiais de Fulgencio Batista em<br />
1958, foi torturado e forçado a dizer onde seus companheiros estavam. Para fazê-lo falar,<br />
os policiais levaram à prisão a mãe do rapaz, deixaram-na nua e disseram ao rapaz que<br />
iam estuprá-la caso ele não desse as respostas. Ariel não teve alternativa. Sua mãe foi<br />
liberada, mas ele seguiu preso. Quando a revolução tomou o poder, Ariel passou da<br />
prisão de Batista para a prisão comunista de La Cabaña. Sua mãe implorou com o<br />
próprio Che Guevara para que não o condenassem à morte, sem sucesso. 53<br />
Não caia na roubada de perguntar a um gari em Havana se era mesmo em La Cabaña que Che realizava seus<br />
fuzilamentos. “Che nunca matou ninguém”, gritou o funcionário para um dos autores deste livro em 2010. Logo em<br />
seguida, comentou o fato a um guarda, que ficou no encalço do arrependido jornalista.<br />
É claro que se pode questionar essas informações – talvez sejam mesmo só boatos,<br />
mentiras e intrigas daqueles cubanos que se viram em desvantagem com o golpe de Fidel<br />
Castro. Do mesmo modo, há quem considere pura invenção os relatos de mortes e<br />
torturas cometidas pelos regimes militares do Brasil ou da Argentina. Acontece que o<br />
próprio Che Guevara pregava a necessidade das execuções, dava detalhes sobre elas em<br />
seu diário e admitia as mortes em público sem o menor pudor. Além das declarações<br />
acima, há a mais evidente de todas. Anos depois da Revolução Cubana, já guerrilheiro<br />
famoso com a tomada de poder em Cuba, Che rodou o mundo propagandeando o<br />
comunismo. Participou em 1964 da Conferência das Nações Unidas, em Nova York.<br />
Durante o discurso, disse:<br />
Fuzilamentos? Sim, temos fuzilado. Fuzilamos e seguiremos fazendo isso enquanto for necessário. Nossa luta é uma luta<br />
à morte.<br />
Como se vê, os paredões e as execuções sumárias cometidas por Che Guevara não são<br />
novidade. Ele deixou claro ter diversos argumentos racionais para a violência, não sofria<br />
com dilemas morais ao matar e até se orgulhava de ter cometido assassinatos de<br />
motivação política. Essas frases e histórias estão disponíveis a qualquer pessoa que se<br />
interesse pela vida do guerrilheiro tanto em vídeos de seus discursos na internet quanto<br />
nos seus diários. Até mesmo as biografias mais adulatórias deixam passar um pouco de<br />
sua psicopatia. Por isso não dá para entender por que Che Guevara, um homem envolvido<br />
em pelo menos 144 mortes, segundo o maior banco de dados sobre as ditaduras da direita<br />
e da esquerda em Cuba, é reverenciado justamente por ativistas que fazem protestos
politicamente corretos contra a pena de morte, a tortura, a redução da maioridade penal e<br />
a perseguição política. O movimento Madres de La Plaza de Mayo, que tenta promover o<br />
julgamento e a condenação de assassinos políticos na Argentina, inclui a íntegra de textos<br />
de Che Guevara numa de suas publicações, dá cursos sobre ele e divulga livros sobre as<br />
boas intenções do guerrilheiro. O grupo Tortura Nunca Mais, que pede a punição de<br />
pessoas responsáveis por mortes e desaparecimentos durante a ditadura militar do Brasil,<br />
deu a Che Guevara, em homenagem póstuma no ano de 1997, a Medalha Chico Mendes<br />
de Resistência. Segundo o grupo, o mérito é concedido (sem ironia) a pessoas que<br />
lutaram ou lutam pelos direitos humanos. Contradições assim sugerem o seguinte: ou<br />
esses ativistas não sabem quem foi Che Guevara, ou não são realmente contrários aos<br />
assassinos e aos torturadores. São contrários apenas a assassinos e torturadores com<br />
quem não concordam.<br />
Che e os trabalhadores<br />
Seria uma cena um tanto curiosa e divertida se, durante a reunião de algum sindicato<br />
de trabalhadores na região do ABC, em São Paulo, um dos participantes pedisse a<br />
palavra e fizesse três audaciosas propostas:<br />
1. Companheiros! Não é correto aumentar o salário de quem trabalha mais. É preciso –<br />
isso sim – cortar o salário daqueles que menos produzem.<br />
2. É essencial continuarmos na fábrica durante as férias mesmo sem ganhar mais por isso.<br />
Os nossos dirigentes precisam agir com mais ênfase quando nos pedem para fazer<br />
trabalho voluntário nas férias.<br />
3. O governo, companheiros, precisa castigar aqueles trabalhadores que não cumprem<br />
seu dever. Aqueles que se mostram mais preguiçosos precisam passar por uma<br />
reeducação ideológica.<br />
São propostas tão fora de contexto que os dirigentes sindicais provavelmente nem<br />
fariam reprimendas – apenas olhariam perplexos para o estranho sujeito. “Como poderia<br />
um companheiro ter tão pouca noção e vir à sede do sindicato defender propostas tão<br />
estúpidas e contrárias aos legítimos interesses dos trabalhadores?”, alguém pensaria.<br />
Claro que aquele homem não seria aplaudido nem ganharia opiniões a favor, mesmo que<br />
tivesse barba, fumasse charutos, usasse uma boina preta e se chamasse Che Guevara.<br />
No fim de 1959, Che deixou a direção do presídio do Forte de La Cabaña. Passou a<br />
ocupar o cargo de presidente do Banco Nacional e, logo depois, o de ministro da<br />
Indústria de Cuba. Durante quatro anos, coube a ele repensar todo o sistema monetário da<br />
ilha, as recompensas aos trabalhadores e o critério para definir o preço de milhões de<br />
produtos. Durante essa experiência administrativa, o guerrilheiro produziu textos<br />
impagáveis sobre economia. Estão lá as três propostas acima. Contrário ao uso de<br />
incentivos materiais aos trabalhadores, para ele herança maldita do capitalismo, Che<br />
tentava achar um meio de incentivar os cubanos a trabalhar e desenvolver seu
conhecimento profissional. Os modos que sugere para resolver esse problema são o<br />
controle, a punição e o castigo. “O importante é destacar o dever social do trabalhador e<br />
castigá-lo economicamente quando não o cumprir”, escreveu ele na Nota sobre o Manual<br />
de Economia Política da Academia de Ciências da URSS. “O não cumprimento da<br />
norma significa o não cumprimento de um dever social; a sociedade castiga o infrator<br />
com o desconto de uma parte de seus rendimentos. Aqui é onde devem se juntar a ação do<br />
controle administrativo com o controle ideológico.”<br />
Em diversas passagens, Che atribui à educação o papel fundamental de fazer as<br />
pessoas se disciplinarem e encararem o trabalho como um sacrifício, sem se importarem<br />
com interesses individuais. Segundo ele, a sociedade socialista “deve exercer a coerção<br />
dos trabalhadores para implantar a disciplina, mas fará isso auxiliada pela educação das<br />
massas até que a disciplina seja espontânea”. 54 A disciplina deveria chegar ao ponto de<br />
fazer os trabalhadores abrirem mão das férias e voltarem à fábrica sem ganhar mais por<br />
isso. Numa reunião administrativa de outubro de 1964, o governante disse aos seus<br />
companheiros que “é necessário estabelecer uma campanha para o trabalho nas fábricas<br />
durante as férias, instrução que já foi dada aos diretores”.<br />
As regras econômicas estabelecidas por um governo não são brincadeira: determinam<br />
o poder dos cidadãos de pagar suas contas em dia e ter mais ou menos acesso a coisas<br />
que consideram seu bem-estar. Dependendo das decisões econômicas do governo, um pai<br />
de família pode levar os filhos para a primeira viagem de avião ou perder o emprego.<br />
Liderar a economia de um país, portanto, é um trabalho que exige responsabilidade.<br />
Quem não tem experiência ou conhecimento na área não deve, por respeito aos<br />
habitantes, aceitar ser ministro ou chefe de instituições financeiras. Che Guevara não teve<br />
esse cuidado. Depois de aceitar ser chefe do Banco Central de Cuba é que foi ter aulas<br />
de matemática e princípios básicos de diplomacia e economia. 55 Não deu certo.<br />
Nos 15 meses em que foi diretor do Banco Nacional, Che ia trabalhar vestido com seu<br />
uniforme militar verde-oliva e revólver na cintura. É difícil imaginar um chefe mais<br />
arrogante. Ele fazia convidados e subordinados esperarem horas para ser atendidos e os<br />
recebia com a prepotência dos pés sobre a mesa de trabalho. 56 Ignorava as tarefas de<br />
seus funcionários, reduziu os ganhos de quase todos eles e convocou espiões para<br />
perseguir as pessoas das quais desconfiava. Uma delas foi o economista José Illan, exvice<br />
ministro de Finanças do governo provisório de Cuba. “Che era um médico que tinha<br />
a presunção de saber tudo, mas não era minimamente preparado para os cargos aos quais<br />
foi nomeado”, afirma ele. Logo depois de assinar um decreto que desagradou Che, o<br />
economista Illan foi ameaçado de prisão e precisou fugir da ilha com a família. Assim<br />
como ele, mais da metade dos funcionários abandonou o banco em menos de um ano.<br />
“Não me importa, podem ir, traremos estivadores e canavieiros para fazer aqui o<br />
trabalho do campo”, disse Che ao subdiretor do banco, Ernesto Betancourt. 57<br />
Na mesma época, Che foi diretor do Departamento de Indústria do Instituto Nacional<br />
da Reforma Agrária. Teve ali a ideia de diversificar a economia cubana reduzindo a área<br />
cultivada de cana-de-açúcar. A dependência da economia cubana das exportações de<br />
açúcar incomodava os cubanos havia décadas: 80% das exportações vinham dos<br />
canaviais. O resultado da tática, porém, foi o colapso da indústria de açúcar sem o<br />
crescimento de outras atividades. A safra de cana costumava ultrapassar 6 milhões de
toneladas antes da revolução – em 1963, já tinha diminuído para 3,8 milhões. Até então,<br />
Cuba vendia açúcar com ágio para os americanos, ou seja, acima da média do preço<br />
mundial. A medida, que fazia mais dólares chegarem à ilha, vinha de um acordo com os<br />
EUA para proteger os produtores americanos de açúcar de beterraba. Levando adiante<br />
seu anti-imperialismo, Che preferiu vender mais barato, proibindo o ágio e reduzindo o<br />
volume de exportação para os americanos. Não deu certo.<br />
Seus planos de incentivo aos trabalhadores também fracassaram. Em 1961 e 1962,<br />
simplesmente metade da produção de frutas e verduras apodreceu no pé porque não havia<br />
trabalhadores no lugar certo para fazer a colheita. Como consequência, Che instituiu o<br />
documento que infernizaria a vida dos cubanos a partir de então: o carnê de racionamento<br />
para combater a escassez de alimentos. Menos de dois anos depois da revolução, já<br />
faltavam na ilha de Cuba arroz, feijão, ovos, leite, todos os tipos de carnes e óleo. Foi<br />
como se os projetos econômicos de Cuba tivessem sido traçados por alguém sem a menor<br />
noção de economia.<br />
53 Arquivo de dados do Cuba Archive, caso 206, Ariel Lima Lago, disponível em<br />
www.cubaarchive.org/database/victim_case.php?id=306.<br />
54 Carlos Tablada, página 271.<br />
55 Jorge Castañeda, página 222.<br />
56 Jorge Castañeda, página 219.<br />
57 Jorge Castañeda, página 220.
Quando alguém oferecia Coca-Cola a Che Guevara, ele costumava recusar com<br />
veemência: considerava-se diante da água negra do imperialismo. 58 Durante o<br />
tempo em que foi ministro da Indústria, Che logo tratou de estatizar a fábrica da<br />
bebida instalada em Cuba. Para sua decepção, porém, a Coca-Cola socialista que<br />
passou a ser produzida nas fábricas estatais cubanas ficava muito longe da original.<br />
Irritado com o gosto de água suja do refrigerante estatal, ele resolveu visitar a<br />
fábrica para perguntar aos administradores por que produziam algo tão ruim. A resposta<br />
foi óbvia e clara: o próprio Che tinha expulsado do país os chefes da indústria, que<br />
levaram com eles a fórmula do refrigerante. 59<br />
ÁGUA NEGRA DO IMPERALISMO<br />
Muitos anos depois, na Venezuela, o presidente Hugo Chávez foi mais precavido. No<br />
início de seu governo, diante de greves em todo o país, Chávez mandou militares à<br />
fábrica da Coca-Cola. Não para invadir a empresa e nacionalizá-la. Mas para<br />
impedir que a produção do refrigerante fosse interrompida. 60 Protestos<br />
organizados por sindicalistas chavistas nos últimos anos até podem parar a produção de<br />
vez em quando. Estão autorizados a fazer isso, contanto que não impeçam os caminhões<br />
de sair do armazém repletos de garrafas cheias.<br />
58 Jorge Castañeda, página 534.<br />
59 Humberto Fontova, O Verdadeiro Che Guevara, Editora É, página 217; e Tom Gjelten, página 286.<br />
60 Antonio Pedro Tota, Os Americanos, Contexto, 2009, página 9.
Não só Fidel e Che, mas outros líderes da América Latina tomaram o que chamamos de As Três Atitudes Infalíveis<br />
para a Ruína Econômica: 1) Estatizar empresas e atrapalhar a vida de agricultores e empresários locais, dificultando a<br />
produção de bens. 2) Confiscar propriedades, espantando investimentos nacionais e estrangeiros. 3) Com a baixa da<br />
arrecadação causada pelos itens 1 e 2, imprimir mais dinheiro para cobrir os gastos crescentes, criando inflação.<br />
Mas Che não se deu por vencido. Em 1961, chegou ao ponto máximo de poder: tornouse<br />
ministro da Indústria. Completou nesse cargo as atitudes infalíveis para provocar a<br />
ruína econômica de um país. Suas ordens passaram a influenciar 150 mil funcionários de<br />
287 empresas estatizadas, incluindo toda a indústria açucareira e as companhias elétrica<br />
e telefônica. Assumiu o cargo dando ideias e anunciando projetos: determinou uma meta<br />
de crescimento de Cuba de 15% ao ano e previu a autossuficiência do país em alimentos<br />
e matérias-primas agrícolas, a produção de 9,4 milhões de toneladas de açúcar e o<br />
aumento do consumo de alimentos em 12% ao ano. Decidiu ainda importar uma fábrica<br />
obsoleta da Checoslováquia para produzir geladeiras e cafeteiras e ordenou a produção<br />
de ferramentas, sapatos e lápis.<br />
De novo, não deu certo. Com menos dólares provenientes da exportação de açúcar, o<br />
país ficou sem dinheiro para investir na industrialização. Como os grandes<br />
empreendedores já tinham ido embora, sido expulsos ou presos pelo regime, não havia<br />
pessoal qualificado para tocar as fábricas nem matéria-prima para a produção. Mesmo as<br />
fábricas que permaneceram abertas deixaram de produzir como antes por falta de<br />
matéria-prima ou de interesse dos administradores. Che deparou-se com esse problema<br />
ao perceber que a fábrica estatizada de refrigerantes não fazia produtos tão bons quanto a<br />
Coca-Cola (veja quadro na página 65). Itens industrializados básicos, como sabão em<br />
pedra, detergente, sapatos e pasta de dente viraram raridade.<br />
Já naquela época os líderes cubanos criaram a ladainha de responsabilizar o embargo<br />
imposto pelos Estados Unidos pelo lamaçal da economia cubana. Em julho de 1960,<br />
depois de ter notícia dos fuzilamentos em La Cabaña e de assistir a refinarias de<br />
petróleo, lojas e terras de americanos serem confiscadas sem o pagamento de<br />
indenizações, o governo dos Estados Unidos rompeu relações com Cuba e deixou de<br />
fazer as habituais compras de açúcar. Nos meses seguintes, interromperia todos os<br />
acordos econômicos com a ilha. A decisão americana fragilizou ainda mais a já destruída<br />
economia cubana, mas não se pode dizer que Che e Fidel Castro não imaginassem que<br />
isso aconteceria – e que não tenham agido deliberadamente para cortar relações com os<br />
americanos. “Che provocou o embargo”, afirma o escritor cubano-americano Humberto<br />
Fontova, autor da biografia O Verdadeiro Che Guevara. 61 Em diversas passagens de<br />
seus textos, o guerrilheiro deixou evidente que não esperava manter relações com o<br />
vizinho:<br />
Os países socialistas têm o dever moral de pôr fim à sua cumplicidade tácita com os países exploradores do Ocidente. 62<br />
Ao focar a destruição do imperialismo, há que identificar sua cabeça, que outra coisa não é senão os Estados Unidos da<br />
América do Norte. 63<br />
Toda a nossa ação é um grito de guerra contra o imperialismo e um clamor pela unidade dos povos contra o grande<br />
inimigo da espécie humana: os Estados Unidos da América do Norte. 64<br />
Com o passar dos anos, a virulência e o otimismo dos discursos do ministro das
Indústrias deram lugar a explicações e pedidos de paciência ao povo cubano. Ficou claro<br />
para todos, como o próprio Che disse num discurso na TV cubana, que ele havia traçado<br />
“um plano absurdo, desligado da realidade, com metas inatingíveis e prevendo recursos<br />
que não passavam de um sonho”. 65 A partir de 1963, as divagações sobre a catástrofe da<br />
economia se tornaram frequentes. “Para um país com a economia baseada na<br />
monocultura, querer 15% de crescimento era simplesmente ridículo”, disse. “Cometemos<br />
o erro fundamental de desprezar a cana-de-açúcar.” Os problemas vinham de longe: já<br />
em 1961 ele se mostra perdido na crença de que uma pessoa poderia controlar a<br />
produção de tudo:<br />
Agora há pouco, vocês me receberam com um aplauso forte e caloroso. Não sei se foi como consumidores ou<br />
simplesmente como cúmplices. Acho que foi mais como cúmplices. Cometeram-se erros nas indústrias que resultaram<br />
em falhas consideráveis no abastecimento da população. [...] Atualmente há escassez de pasta de dentes. É preciso<br />
saber por quê. Há quatro meses, houve paralisação da produção. Mas ainda havia algum estoque. Não foram adotadas<br />
as medidas urgentes que eram necessárias justamente porque o estoque era grande. Mas logo o estoque começou a<br />
baixar, e as matérias-primas não chegaram. Até que chegou a matéria-prima, um sulfato de cálcio fora das<br />
especificações. 66<br />
Quem sustentou a ineficiente economia da ilha e ajudou a prolongar o sistema por<br />
décadas foi a União Soviética. O bloco socialista passou a comprar a produção de<br />
açúcar, criando um mercado garantido no longo prazo, e deu um crédito quase infinito<br />
para Cuba reorganizar suas contas externas – e comprar pasta de dente. Com a mesada<br />
vinda do leste, os planos de industrialização ficaram para trás. Che, que reclamava da<br />
dependência econômica dos Estados Unidos, teve de aturar a dependência econômica da<br />
URSS. Tratava os oficiais soviéticos com pavio curto – chegou a estender uma pistola a<br />
um intérprete soviético e sugerir que ele se suicidasse 67 – e insistia em acreditar que<br />
resolveria os problemas econômicos discursando aos trabalhadores nas fábricas. Isolado<br />
do governo, passou a viajar cada vez mais e, em 1965, foi para a África tentar implantar<br />
outra revolução comunista.<br />
Se a economia cubana ficou às moscas naquela época, piorou muito nos anos 90, com<br />
o fim do comunismo no Leste Europeu. A produção de açúcar, antes da revolução uma<br />
das mais dinâmicas do mundo, não conseguia mais competir com a agricultura<br />
modernizada dos vizinhos. Um detalhado estudo de 1998 mostrou que Cuba foi um dos<br />
raros países da América Latina onde o consumo de alimentos diminuiu em quatro<br />
décadas. Em 1950, de acordo com dados da Organização das Nações Unidas, Cuba<br />
estava em terceiro no ranking da América Latina de consumo per capita de calorias. A<br />
partir de então, enquanto o consumo entre os colombianos passou de 2 mil para 2.800<br />
calorias diárias, os cubanos passaram de 2.700 para 2.300 calorias. Também caiu o<br />
consumo de cereais e verduras por habitante, e o de carnes teve uma queda assustadora<br />
de 33 para 23 quilos por ano. Foi assim em toda a economia. Enquanto novos membros<br />
da classe média do resto da América Latina financiavam o primeiro carro zero, Cuba foi<br />
o único país em que o número de carros por habitantes caiu. 68<br />
Ainda hoje o problema persiste. As calorias de produtos animais caíram quase pela<br />
metade dos níveis de 1980. 69 Se na época de Che Guevara reclamava-se que Cuba tinha<br />
de importar produtos industrializados, hoje a ilha precisa comprar de fora até mesmo<br />
alimentos. Cerca de 80% do que os cubanos comem vem de fora. O grande vilão
imperialista, os Estados Unidos, fornece 30% dos alimentos que chegam à mesa dos<br />
cubanos. A despeito do embargo econômico, só em 2009 foram 490 milhões de dólares<br />
em produtos agrícolas exportados por americanos para Cuba.<br />
Para quem se preocupa com a prosperidade dos cidadãos, fazendo a opção<br />
politicamente correta de ficar do lado dos pobres, e se importa com o acesso das pessoas<br />
a comida e itens básicos de bem-estar, esses números e essas histórias mostram que é<br />
preciso se opor radicalmente a Che Guevara, suas ideias e suas ações. Países vizinhos do<br />
Caribe obtiveram avanços nas áreas da saúde e da educação e tiraram milhões de<br />
pessoas da pobreza sem que o governo precisasse manter por tantas décadas um sistema<br />
que barra a diversidade de opiniões, impede os cidadãos de sair do país e divide<br />
famílias.<br />
É claro que não se pode culpar só as trapalhadas do ministro Che Guevara pela<br />
tragédia da economia cubana. Em nenhum lugar do mundo, socialismo ou comunismo<br />
(segundo Fidel Castro, é tudo a mesma coisa) levaram a um modelo econômico eficiente,<br />
melhoraram as condições de vida da população ou levaram a um sistema político<br />
democrático. Sempre falham em seus objetivos porque têm, como princípio, acabar com<br />
os motores mais básicos da economia, como a possibilidade de ter um ganho individual e<br />
o direito de propriedade. A prosperidade de um país depende, entre outros fatores, da<br />
segurança de proprietários, geradores de riqueza e investidores de que não verão o fruto<br />
de seus esforços ameaçados ou confiscados pelo governo. Do contrário, se sentem sua<br />
riqueza em perigo, deixam de investir e poupar dentro do país. Foi o que aconteceu em<br />
todo o continente nos últimos séculos. “A persistência em violar os direitos de<br />
propriedade na América Latina, que em alguns casos dura até hoje, cria condições de<br />
insegurança permanente para a poupança e investimentos e estimula a fuga de capitais em<br />
busca do domínio da lei”, afirma o economista Jorge Domínguez no livro Ficando para<br />
Trás, uma reunião de artigos que tenta explicar as origens do atraso latino-americano em<br />
relação aos Estados Unidos. Sem segurança de direito de propriedade, rompe-se todo o<br />
caminho que leva países à riqueza: investimentos de longo prazo, lucro e aumento dos<br />
níveis de poupança, mais acesso das pessoas ao crédito barato, mais investimentos,<br />
aumento da oferta de emprego e do salário, concorrência entre as empresas que leva a<br />
reduções de preços e melhora de serviços, aumento do poder de compra dos<br />
trabalhadores, fim da pobreza.<br />
O processo é lento, mas traz ganhos duradouros e não tira a liberdade dos cidadãos.<br />
Che Guevara, no entanto, dificilmente adotaria essa regra básica de prosperidade. Ela<br />
implica reconhecer que pequenos, médios e grandes empresários e geradores de riqueza<br />
não são todos vilões – pelo contrário, eles são, em geral, peça importante para tirar os<br />
pobres da miséria. Che era orgulhoso demais para reconhecer coisas assim – e movido<br />
não tanto pelo desejo de aliviar as dores dos latino-americanos, mas pelo ódio a<br />
indivíduos e países enriquecidos. De fato, cumpriu seu objetivo: fez um estrago danado<br />
entre as famílias prósperas de Havana. Mas deu o mesmo rumo para o resto dos cubanos.<br />
É uma pena Che ter deixado Buenos Aires em 1953 para iniciar sua segunda viagem<br />
pela América (viagem que o levaria a Cuba). Se ficasse mais alguns anos na Argentina, o<br />
guerrilheiro teria a chance de ouvir uma célebre série de palestras sobre princípios<br />
básicos de economia e liberdade. No fim de 1958, o economista austríaco Ludwig von
Mises passou por Buenos Aires e fez seis conferências a centenas de jovens argentinos –<br />
conferências que se tornariam um de seus melhores livros. Se desse a sorte de estar por<br />
ali, Che descobriria, no segundo dia de palestras de Mises, como tentar melhorar o<br />
mundo sem impor um ideal de felicidade:<br />
Liberdade significa realmente liberdade para errar. Podemos ser extremamente críticos com relação ao modo como<br />
nossos concidadãos gastam seu dinheiro e vivem sua vida. Podemos considerar o que fazem absolutamente insensato e<br />
mau. Numa sociedade livre, todos têm, no entanto, as mais diversas maneiras de manifestar suas opiniões sobre como<br />
seus concidadãos deveriam mudar seu modo de vida: eles podem escrever livros; escrever artigos; fazer conferências.<br />
Podem até fazer pregações nas esquinas, se quiserem – e faz-se isso, em muitos países. Mas ninguém deve tentar<br />
policiar os outros no intuito de impedi-los de fazer determinadas coisas simplesmente porque não se quer que as pessoas<br />
tenham a liberdade de fazê-las. 70<br />
Pensando bem, na próxima vez que você se deparar com Che Guevara numa camiseta,<br />
na capa de um álbum de rock ou no biquíni de uma modelo, veja ali uma boa notícia. A<br />
imagem é uma prova de que você vive em um sistema mais livre que o defendido por<br />
Che. No bom, velho e tão criticado capitalismo democrático, as pessoas estão livres para<br />
fazer da vida o que acharem melhor, inclusive errar. Podem ver filmes ruins (não só<br />
aqueles aprovados pelo governo), deixar de pentear o cabelo ou trabalhar 16 horas por<br />
dia para comprar um carro novo. Podem até mesmo sair por aí vestindo a camiseta com a<br />
imagem de um dos assassinos mais patéticos do século 20.<br />
61 Humberto Fontova, O Verdadeiro Che Guevara, Editora É, página 227.<br />
62 Che Guevara, Textos Políticos, página 51.<br />
63 Che Guevara, Textos Políticos, página 81.<br />
64 Che Guevara, Textos Políticos, página 84.<br />
65 Jorge Castañeda, página 284.<br />
66 Jorge Castañeda, página 289.<br />
67 Jorge Castañeda, página 306.<br />
68 Kirby Smith e Hugo Lloren, “Renaissance and decay: a comparison of socioeconomic indicators in pre-Castro and currentday<br />
Cuba”, em Cuba in Transition, volume 8, ASCE, 1998.<br />
69 Foreign Agricultural Service (FAS), Cuba’s Food & Agriculture Situation Report, março de 2008, disponível em<br />
www.fas.usda.gov/itp/cuba CubaSituation0308.pdf.<br />
70 Ludwig von Mises, As Seis Lições, Instituto Ludwig von Mises Brasil, 1979, página 31.
ASTECAS, INCAS, MAIAS
OS ÍNDIOS CONQUISTADORES<br />
Repare nas seguintes afirmações:<br />
Quero dizer a vocês, sobretudo aos irmãos indígenas da América concentrados aqui na Bolívia: a campanha de 500 anos<br />
de resistência indígena, negra e popular não foi em vão. [...] Não vamos permitir mais humilhações e dores para o nosso<br />
povo. Faz mais de 500 anos que esperamos a verdadeira liberdade. 71<br />
Evo Morales, presidente da Bolívia<br />
O corpo nu dos índios não ofereceu resistência ao aço afiado dos europeus; com suas espadas a infantaria espanhola<br />
enfim conseguiu deter aquela torrente humana. 72<br />
William H. Prescott, historiador americano do século 19<br />
Depois da queda e do extermínio das sociedades nativas, veio a hora dos colonos europeus e a da apropriação das terras<br />
dos nativos e dos recursos naturais. 73<br />
BBC, rede de comunicação inglesa<br />
As frases da página anterior refletem a ideia da conquista espanhola que boa parte das<br />
pessoas tem em mente. Segundo esse modo de contar a história, os europeus agiram na<br />
América como homens a um degrau da onipotência. Seus cavalos, suas “armas, germes e<br />
aço”, como no título de um famoso livro que, entre diversos temas, fala sobre a<br />
conquista, deram a eles a capacidade de dominar hordas de nativos indefesos. Tirando<br />
proveito dos conflitos locais, os espanhóis conseguiram ajudantes e guerreiros para<br />
destruir, sem piedade, as grandes cidades indígenas e capturar seus soberanos. A partir<br />
de então, a conquista estava estabelecida; os recém-chegados trataram de escravizar,<br />
retirar o ouro e a prata, sugar os recursos naturais americanos. Aos índios, vulneráveis<br />
por terem contraído doenças trazidas pelos europeus e com armas inferiores, não houve<br />
alternativa senão obedecer aos espanhóis ou resistir em vão ao seu domínio.<br />
Com uma ou outra variação, é assim que se conta a vitória de Hernán Cortés contra o<br />
líder dos astecas, Montezuma, e a de Francisco Pizarro contra o inca Atahualpa, no Peru.<br />
A conquista aparece como uma sequência de batalhas travadas entre dois grupos bem<br />
definidos. De um lado, há os espanhóis; de outro, os índios, sempre derrotados ou<br />
subservientes.<br />
Pois experimente ver a conquista espanhola de um jeito diferente. Mais ou menos<br />
assim:<br />
Há séculos, índios do mesmo grupo étnico e linguístico lutam entre si. Uma cidade-<br />
Estado ora batalha sozinha, ora se alia a outra para derrotar inimigos que também<br />
formaram uma aliança. Todos sabem o destino dos perdedores: pagar pesados tributos<br />
em forma de mercadorias, ser obrigado a migrar para regiões inóspitas e ver familiares<br />
serem enviados para sangrentos rituais de sacrifício. Os vencedores ainda reúnem<br />
guerreiros entre os derrotados para prosseguir a conquista e construir um império. De<br />
repente, há uma novidade. Surgem indivíduos com barba, roupas estranhas, animais nunca<br />
antes vistos e armas mais ágeis – os espanhóis. As cidades que tentam escapar do
império vizinho veem nesses homens estranhos aliados potenciais. Oficializam uma união<br />
com os recém-chegados e voltam à guerra. Acontece assim uma reviravolta. Depois de<br />
combinarem juntos as rotas e as estratégias, os novos aliados dominam o poderoso<br />
império opressor e, como mandava o costume nativo, reúnem guerreiros entre os<br />
derrotados para dominar outros povos. Os índios, antes ameaçados, agora têm orgulho de<br />
serem amigos dos espanhóis e se intitularem “índios conquistadores”.<br />
Alguém poderá dizer que essa segunda versão é puro revisionismo dos dias atuais,<br />
uma tentativa politicamente incorreta de varrer fatos há tanto tempo conhecidos e atenuar<br />
as atrocidades sobre os povos nativos da América. A versão, porém, não é nova. Foi<br />
registrada há mais de 500 anos pelos próprios índios do México. Como se verá adiante,<br />
relatos como esse estão disponíveis em cânticos, altares, pedras, cartas e pinturas de<br />
tradição milenar – as mesmas obras que descrevem epopeias anteriores à chegada dos<br />
europeus.<br />
Traduzidas para cinco idiomas, as cartas de Cortés fizeram tanto sucesso que chegaram a ser proibidas pela corte<br />
espanhola, preocupada com o culto excessivo do povo ao conquistador.<br />
A ideia dos espanhóis como guerreiros épicos e dos índios como ajudantes em<br />
segundo plano nasceu com os próprios exploradores europeus, no século 16. Para prestar<br />
contas de seus serviços de colonização, os conquistadores escreviam longas cartas para<br />
o rei espanhol. As Relaciones ou Probanzas de Mérito detalhavam as batalhas e as<br />
descobertas com o objetivo disfarçado de fazer o rei conceder títulos de posse das terras<br />
conquistadas, cargos ou pensões reais. Havia ainda a expectativa de ver as cartas<br />
publicadas por alguma gráfica europeia, o que tiraria o autor do anonimato. Era preciso,<br />
portanto, ser fiel ao estilo de epopeia, atribuir a conquista à genialidade dos próprios<br />
atos e à ajuda divina; enfim, era preciso tornar o cotidiano mais heroico (tarefa nada<br />
difícil em se tratando da descoberta de um continente e de um novo tipo de ser humano).<br />
Os relatos de Hernán Cortés dirigidos ao rei Carlos V se tornaram sucessos editoriais.<br />
Esses textos, ao lado das cartas de Bernal Díaz del Castillo e Francisco López de<br />
Gómara, no caso do México, e de Francisco de Xerez, secretário pessoal de Pizarro, e<br />
Pedro Cieza de León, no Peru, criaram a ideia da conquista como uma sequência de<br />
grandiosas vitórias militares vencidas por um punhado de espanhóis cheios de bravura e<br />
fé. “Quantos dos homens do universo demonstraram tanta audácia?”, escreveu sobre si<br />
mesmo o conquistador Bernal Díaz del Castillo. 74<br />
Enquanto os relatos dos conquistadores destacavam seus atos de coragem, os frades<br />
dominicanos que vieram à América mostraram outro lado da história: o da morte dos<br />
índios. A conquista ganhou, nos relatos dos religiosos, a forma de uma sucessão de<br />
episódios de massacre e escravização dos nativos. Em tratados como a Brevísima<br />
Relación de la Destrucción de las Indias, o frade Bartolomé de las Casas conseguiu<br />
convencer o imperador espanhol Carlos V de que era urgente garantir direitos aos índios.<br />
Não sem sua dose de exagero, o frade descreveu os habitantes locais como partes de um<br />
rebanho pacífico e ingênuo. “Entre essas ovelhas mansas, dotadas de qualidades divinas,<br />
entraram os espanhóis, cruéis como lobos, tigres e leões há muitos dias famintos”,<br />
escreveu Las Casas. “E outra coisa não fizeram os espanhóis senão despedaçá-las, matálas,<br />
angustiá-las, afligi-las, atormentá-las e destruí-las.”<br />
Unido a Portugal, o reino espanhol tinha poderes sobre terras do Chile à Califórnia, do Brasil, das ilhas do Caribe, além<br />
de representações na África, na Índia, no Oriente Médio e nas ilhas que hoje formam as Filipinas e a Indonésia. Seu
domínio ainda abrangia terras na Holanda, na Bélgica e no sul da Itália.<br />
As denúncias do frade dominicano foram reproduzidas com gosto pelos maiores<br />
adversários do reino espanhol – os protestantes. Com a conquista da América e a<br />
unificação a Portugal, em 1580, a Espanha teve em mãos um dos maiores impérios da<br />
história – um império católico. Entre os intelectuais europeus, se tornou estimulante falar<br />
mal de um império tão poderoso e dar uma exageradinha na crueldade dos<br />
conquistadores católicos. Protestantes holandeses, ingleses, franceses e germânicos<br />
trataram de destacar as mortes durante a conquista com o objetivo de invalidar o direito<br />
dos espanhóis sobre os territórios americanos. Como escreveu o historiador francês<br />
Pierre Chaunu, as denúncias dos padres se tornaram “armas de uma guerra psicológica<br />
das nações hostis”. 75<br />
Surgiu, assim, o que o escritor espanhol Julián Juderías chamou, em 1914, de “lenda<br />
negra”. Trata-se do costume de demonizar os conquistadores e exagerar a crueldade de<br />
suas ações, como se a conquista espanhola fosse um episódio dos mais lamentáveis da<br />
história. Desde que os pesquisadores se deram conta dessa lenda, o debate tem evoluído<br />
para uma visão mais equilibrada, segundo a qual nem os europeus eram lobos tão<br />
famintos, nem os índios ovelhas tão mansas. “É claro que a descoberta da América e a<br />
sua conquista estiveram repletas de horrores, mas também de gestas gloriosas que não<br />
podemos deixar de lado”, afirmou o escritor mexicano Octavio Paz, Prêmio Nobel de<br />
Literatura de 1990. “Aqueles que definem a conquista como um genocídio dos povos<br />
americanos cometem um erro grave.”<br />
Túpac Katari foi um líder aimará que montou um cerco a La Paz em 1781. Seu grupo costumava incluir espanhóis,<br />
índios e mestiços que vestiam roupas à moda europeia. Nos dias de hoje, o líder indígena inspira o Exército Guerrilheiro<br />
Túpac Katari.<br />
Apesar dessa moderação intelectual, durante o século 20 o relato-denúncia da<br />
conquista seguiu fazendo sucesso na América Latina. Autores locais, aplicando a luta de<br />
classes à história, trataram de ressaltar o martírio e a resistência dos heroicos índios e<br />
camponeses perante a elite colonial ou republicana. Com essa inspiração, surgiu o<br />
katarismo, movimento dos índios bolivianos inspirado no revolucionário Túpac Katari.<br />
“Durante os tempos coloniais, nossa cultura não foi nem respeitada, nem reconhecida –<br />
foi esmagada e subordinada”, diz o Manifesto de Tiwanaku, um dos primeiros<br />
documentos kataristas, de 1973. 76 Ainda hoje, a narrativa dos cruéis conquistadores<br />
alimenta discursos indignados, emociona e revolta o público no cinema. E elege<br />
presidentes.<br />
Entre tantos relatos de tantas épocas, algumas semelhanças se mantiveram através dos<br />
séculos. Nas histórias dos conquistadores, dos jesuítas e dos marxistas do século 20, os<br />
personagens e a estrutura da história pouco mudaram: os espanhóis eram fortes; os índios<br />
raramente eram protagonistas de uma ação e quase sempre apareciam acompanhados de<br />
um verbo na voz passiva. O melhor exemplo disso são as declarações do presidente da<br />
Bolívia, Evo Morales. Só em seu discurso de posse, em 2006, ele se referiu aos índios<br />
usando os seguintes termos: “marginalizados”, “humilhados”, “odiados”, “depreciados”,<br />
“condenados à extinção”, “submetidos à opressão”, “jamais reconhecidos”.<br />
É isso o que agora está mudando. Nos últimos anos, com a análise mais atenta dos<br />
relatos espanhóis e a consulta a obras e documentos indígenas, os historiadores passaram<br />
a dar papéis muito mais relevantes aos índios. Sob essa nova ótica, diversos episódios
do México, da Guatemala ou do Peru parecem agora resultado tanto da vontade e da<br />
influência dos índios quanto dos europeus. Entram nesse conjunto até mesmo grandes<br />
atrocidades que ocorreram durante a conquista. Essas novas interpretações corroem<br />
ideias que estruturam a historiografia tradicional. Como a noção da onipotência dos<br />
espanhóis; de sua aparência de deuses; dos índios como excluídos das decisões políticas;<br />
dos estrangeiros e dos nativos como grupos coesos e donos de objetivos contrários; e até<br />
mesmo a ideia da conquista espanhola como uma sequência de batalhas.“Não houve ‘nós’<br />
contra ‘eles’”, escreveu o pesquisador argentino Gonzalo Lamana, da Universidade de<br />
Pittsburgh, num livro cujo título diz tudo: Domination without Dominance (“Dominação<br />
sem Domínio”). “Quase não houve episódio em que as tensões internas dos espanhóis e<br />
dos povos nativos não se desenrolassem e se sobrepusessem, frequentemente em direções<br />
ambíguas.” 77 As descobertas mais desagradáveis dessa nova historiografia estão a seguir.<br />
Começando pelo básico: o ódio que os índios nutriam entre si antes de os conquistadores<br />
chegarem.<br />
Boa parte dos andinos comemorou a chegada dos espanhóis<br />
Conta-se que, pouco antes da batalha, alguns dos 168 espanhóis urinaram nas calças, tamanho o temor ao passar com<br />
seus cavalos pelas dezenas de milhares de guerreiros incas.<br />
Em 1545, com a descoberta da mina de Potosí, na Bolívia, a prata se tornaria a maior fonte de riquezas da América.<br />
Em menos de 30 anos, Potosí chegou a 120 mil habitantes, população maior que a de Lisboa, Roma ou Sevilha. O<br />
dinheiro que circulava pela cidade atraía de professoras de balé a vendedores indianos. 78<br />
Um dos episódios mais tristes da conquista espanhola é a execução de Atahualpa, o<br />
líder dos incas, senhor de milhões de índios, soberano de um território com 4 mil<br />
quilômetros de fronteiras entre a Argentina e a Colômbia. Não há, em toda a história<br />
tradicional da conquista, um caso em que se atribui tanta baixeza aos europeus. Em 1532,<br />
depois de meses de espera para conhecer o imperador inca, a tropa do espanhol<br />
Francisco Pizarro chegou a Cajamarca, nos Andes peruanos. O encontro amigável logo se<br />
transformou em batalha: em poucas horas, os 168 espanhóis afugentaram dezenas de<br />
milhares de guerreiros, tomaram a cidade e prenderam o líder Atahualpa. Para escapar<br />
da morte, o soberano inca prometeu entregar aos conquistadores um aposento de seu<br />
palácio repleto de metais preciosos. Cumpriu a promessa, entregando 6.035 quilos de<br />
ouro e 11.740 quilos de prata. 79 Mesmo assim foi barbaramente estrangulado, em julho de<br />
1533, na praça principal de Cajamarca.<br />
As doenças europeias chegaram ao Peru antes dos europeus. O imperador inca Huayna Cápac morreu<br />
provavelmente de varíola pouco antes de Pizarro aparecer por ali. A morte provocou a disputa de poder entre dois de<br />
seus filhos: Atahualpa e Huáscar. O primeiro conseguiu tomar o poder de Cuzco, a capital do império, meses antes de os<br />
espanhóis chegarem.<br />
Os soldados do imperador Atahualpa tentaram queimar a cidade invadida e<br />
organizaram uma resistência desesperada nas proximidades; há relatos de que mulheres e<br />
irmãs do líder se mataram. Para um leitor moderno, o relato é de arrepiar. Mas os índios<br />
já estavam acostumados com batalhas e quedas de líderes como aquela. Na verdade, a<br />
prisão e a execução de líderes era um fato corriqueiro na história andina. Se os espanhóis<br />
praticaram crueldades contra o povo e a cultura inca, o mesmo se pode dizer dos incas<br />
em relação a tradicionais povos andinos sob seu domínio. O próprio Atahualpa, meses
antes de morrer, ordenou, da prisão em que os espanhóis o mantinham, o assassinato de<br />
seu irmão, Huáscar, na cidade de Cuzco. O imperador temia que o irmão se aliasse aos<br />
espanhóis e lhes oferecesse mais ouro e prata para matá-lo. A fúria do imperador inca<br />
não poupou as mulheres, alguns parentes e assessores de Huáscar, que também foram<br />
executados.<br />
Quando os europeus chegaram ao Peru, o Império Inca estava em pé havia pouco mais<br />
de cem anos. Até o século 14, os incas eram apenas uma entre diversas etnias a brigar<br />
por espaço nos Andes. Aos poucos sua força se estabeleceu nos povoados ao redor da<br />
cidade de Cuzco. No século 15, durante os reinos de Pachacútec e Túpac Yupanqui,<br />
houve uma expansão tão avassaladora quanto a de Alexandre, o Grande, pelo Oriente<br />
Médio. O exército inca chegou ao lago Titicaca e firmou alianças políticas com povos<br />
aimarás, como os lupacas, e partiu para a guerra contra aqueles aimarás que não<br />
aceitaram uma dominação consensual. No norte do Peru, os incas derrotaram a<br />
civilização chimu – cujo líder, Minchançaman, também foi levado como refém a Cuzco.<br />
Em terras onde hoje estão a Argentina e o Chile, travaram batalhas com os povos<br />
omaguacas, atacamas e diaguitas. Os derrotados foram expulsos de suas casas e enviados<br />
ao norte do império.<br />
Outra execução bem parecida com a de Atahualpa foi a de Chunqui Cápac, líder do<br />
reino qolla. Em 1438, a tropa do inca Pachacútec chegou a Hatunqolla, nas margens do<br />
lago Titicaca. Os conquistadores incas esperavam havia meses para dominar aquele<br />
reino, um dos mais avançados dos povos aimarás, donos de grandes cidades e<br />
fortificações ao redor do lago. Depois de ocupar um forte e erguer no lugar dele uma<br />
guarnição militar, os invasores conseguiram atingir a capital do reino e capturar seu<br />
líder, que foi levado a Cuzco. Nos meses seguintes, o soberano qolla, exatamente como<br />
aconteceria com Atahualpa, foi estrangulado na praça principal da cidade.<br />
Como as revoltas locais e o assassinato dos representantes incas eram frequentes nas<br />
terras conquistadas, a dominação inca nunca era completa. Até o começo do século 16,<br />
era preciso realizar novas expedições militares para assegurar a unidade do império e<br />
abafar revoltas locais. Foi por isso que, quando o imperador Atahualpa foi executado<br />
pelos espanhóis em 1533, nem todos os índios lamentaram sua morte. Boa parte dos<br />
povos andinos ficou aliviada com a execução e comemorou a queda dos incas.<br />
71 Discurso presidencial de Evo Morales e revista Zoom, 11 de dezembro de 2009, disponível em http://revistazoom.com.ar/articulo3498.html.<br />
72 William Prescott, The History of the Conquest of Mexico, Barnes & Noble, 2004, página 170.<br />
73 Michael Wood, “Story of the Conquistadors”, BBC History, disponível em<br />
www.bbc.co.uk/history/british/tudors/conquistadors_01.shtml#four.<br />
74 Bernal Díaz del Castillo, Historia Verdadera de la Conquista de la Nueva España, Biblioteca Virtual Universal, página<br />
52, disponível em www.biblioteca.org.ar/zip22.asp?texto=10011374.<br />
75 Benjamin Keen, “The black legend revisited”, em The Hispanic American Historical Review, novembro de 1969, página<br />
714.<br />
76 Manifesto de Tiwanaku, disponível em http://www.nativeweb.org/papers/statements/identity/tiwanaku.php.<br />
77 Gonzalo Lamana, Domination without Dominance, Duke University Press, 2008, página 19.
78 Jorge Caldeira, Mulheres no Caminho da Prata, volume 1 de O Banqueiro do Sertão, Mameluco, 2006, página 47.<br />
79 Gonzalo Lamana, página 94.
Os espanhóis são frequentemente acusados de atropelar a língua, os<br />
modos de vida e, sobretudo, a religião dos povos nativos dos Andes. Os padres<br />
que acompanharam os conquistadores trataram as crenças indígenas como<br />
pagãs e logo impuseram o catolicismo, destruindo templos e proibindo<br />
rituais nativos. Uma prova frequentente citada dessa imposição religiosa é a<br />
Igreja de São Domingo, em Cuzco. Na base do edifício, há paredes do<br />
Coricancha, o Templo do Sol, edifício que foi destruído pelos<br />
espanhóis para dar lugar à igreja.<br />
OS INCAS TAMBÉM IMPUSERAM SUA<br />
RELIGIÃO<br />
Pouco se fala, porém, que os incas praticavam a mesma imposição cultural<br />
com os povoados sob seu domínio. Quando derrotavam um povo, obrigavam-no a<br />
aceitar sua língua, o quéchua, suas leis e sua religião. 80 No lugar de templos e<br />
símbolos de deuses locais, as autoridades incas erguiam santuários a seus<br />
próprios deuses, o Sol e a Lua. Símbolos de divindades locais davam lugar às<br />
múmias reais, à ideologia do Estado e à adoração do soberano inca,<br />
considerado<br />
um semideus. Quando os espanhóis chegaram, esses povos não<br />
precisaram mais adorar os deuses incas. “Em muitas regiões, a religião inca era um<br />
estrangeiro malvisto pelos moradores”, conta o arqueólogo americano Terence D’Altroy.<br />
“Assim que o Império Inca se desintegrou, o louvor ao Sol e o uso do calendário<br />
solar só permaneceram em Cuzco. Os templos do Sol e as terras que serviam<br />
aos deuses foram logo abandonados.”<br />
80 Padre Bernabe Cobo, History of Inca Empire, University of Texas Press, 1979, página 190.
As punições incas incluíam torturas, apedrejamentos e castigos físicos dos mais inventivos. Aqueles azarados que<br />
fossem acusados de traição ao soberano do império eram jogados em calabouços cheios de cobras e onças. Esses<br />
animais eram encomendados por Cuzco das províncias a leste dos Andes, onde havia florestas e fauna amazônicas.<br />
Quem conseguisse sobreviver por três dias nos calabouços ganhava a liberdade. 81<br />
Entre aqueles que haviam sido dominados por Atahualpa ou que tinham se aliado ao<br />
irmão dele, Huáscar, na disputa pela soberania do império, a morte de Atahualpa os<br />
salvou de anos de trabalhos forçados, de punições e até mesmo da morte. “Os aliados de<br />
Huáscar e inúmeros grupos étnicos ficaram radiantes com a notícia, enquanto os<br />
partidários de Atahualpa ficaram irritados e inconsolados. Os nativos Xauxa e Wanka,<br />
que estavam do lado de Huáscar, comemoraram a morte nas ruas. A população local<br />
imediatamente se aliou aos espanhóis e começou a abastecê-los com os estoques reais de<br />
comida”, conta o arqueólogo Terence D’Altroy, um dos maiores especialistas em<br />
Império Inca dos dias de hoje. “Talvez metade das pessoas dos Andes estivesse disposta<br />
a se aliar aos espanhóis para se salvar da sangrenta vingança que as forças de Atahualpa<br />
já vinham promovendo com muitos partidários de Huáscar.” 82 A historiadora peruana<br />
María Rostworowski, também uma grande referência no assunto, tem a mesma opinião:<br />
Os senhores locais se aliaram aos espanhóis e os ajudaram a realizar a conquista. Desse ponto de vista, não foi um<br />
punhado de aventureiros que derrubou o Império Inca, mas os próprios nativos andinos, infelizes com a situação e<br />
acreditando estar em circunstâncias favoráveis para voltar a viver em liberdade. 83<br />
Viviam os incas em 1984?<br />
No começo do século 20, os incas caíram no gosto dos historiadores marxistas por<br />
causa da forma coletiva com que organizavam a terra e pela simplicidade e disciplina<br />
com que se dedicavam ao trabalho. Essa semelhança inspirou alguns intelectuais que<br />
lutavam pela implantação do comunismo nos Andes. O jornalista José Carlos Mariátegui,<br />
um dos fundadores do Partido Comunista Peruano, considerava os incas “a mais<br />
avançada organização comunista primitiva que a história registra”. Conforme o que ele<br />
pregou no livro Sete Ensaios de Interpretação da Realidade Peruana, era preciso ir<br />
além do comunismo rural dos incas, pois “uma nova ordem não pode renunciar a nenhum<br />
dos progressos morais das sociedades modernas”.<br />
Os incas foram mais um povo a mumificar seus mortos ilustres. A diferença é que as múmias incas participavam da<br />
vida social do império. Carregadas em liteiras e vestidas em roupas finas, integravam de reuniões políticas a conselhos de<br />
guerra. Seus parentes ainda as levavam para visitar umas às outras e davam-lhes comida e chicha (a tradicional bebida<br />
andina à base de mandioca ou milho). 84<br />
O que os incas tinham de mais próximo da escrita eram os quipos, um misterioso sistema de guardar informações por<br />
meio de nós em emaranhados de fios de lã. A posição e o número de nós indicavam quantidades. E a cor dos fios<br />
representava o tema do registro: população, quantidade de grãos estocados, impostos recolhidos.<br />
Obviamente é impreciso chamar os incas de comunistas. A visão de mundo e as<br />
motivações dos índios andinos eram de outra galáxia – basta lembrar que as múmias dos<br />
líderes pregressos participavam das reuniões de Estado. No entanto, alguns traços da<br />
vida inca lembram, sim, o comunismo. O Estado inca controlava quase todos os meios de<br />
produção: as fazendas, os rebanhos de lhamas e vicunhas, os armazéns de comida.<br />
Regiões agrícolas eram abastecidas com ferramentas e roupas produzidas pelo Estado em
outras províncias e vice-versa. Oficiais do Estado supervisionavam a contribuição de<br />
cada província com base em censos e registros contábeis detalhados, organizavam<br />
grupos de trabalho e cuidavam da manutenção de estradas (que cortavam os Andes,<br />
apesar de os andinos não conhecerem a roda). Como a autoridade do Estado prevalecia<br />
diante de valores e vontades individuais, cidadãos comuns eram recrutados para<br />
trabalhar desde a infância, com a humildade e a disciplina de soldadinhos de chumbo, em<br />
campos, pastos, minas, oficinas de ferramentas e objetos de ouro e prata. A organização<br />
estatal até funcionava, mas ao custo de transformar os incas em formigas. Essa falta de<br />
individualidade ainda hoje decepciona alguns peruanos, como o escritor Mario Vargas<br />
Llosa:<br />
Os incas dominaram dezenas de povos, construíram estradas, canais de irrigação, fortalezas, cidadelas e estabeleceram<br />
um sistema administrativo que lhes permitiu produzir o suficiente para alimentar todos os peruanos, o que nenhum regime<br />
conseguiu, a partir de então. Apesar disso, nunca simpatizei com os incas. Embora os monumentos que eles deixaram me<br />
deixem extasiado, sempre achei que a tristeza peruana – característica marcante da nossa personalidade – é originária,<br />
talvez, dos incas: uma sociedade com uma disciplina militar e burocrática de homens-formiga, na qual um rolo<br />
compressor todo-poderoso anulava qualquer personalidade individual.<br />
O que os historiadores marxistas não contaram – ou não puderam prever – é que os<br />
incas se pareciam com os comunistas até mesmo na opressão promovida pelo governo e<br />
nas tragédias comuns a todos os governos socialistas. O melhor exemplo são as<br />
migrações forçadas. Na União Soviética, entre 1920 e 1950, a transferência de população<br />
atingiu pelo menos 6 milhões de pessoas, a maioria membros de etnias que incomodavam<br />
o regime (como os chechenos, os curdos, os cossacos e os ucranianos). Também eram<br />
removidos os kulaks, camponeses mais ricos, considerados inimigos do povo. Essas<br />
pessoas foram enviadas a zonas de fronteiras, campos agrícolas e regiões pouco<br />
povoadas, como a Sibéria. Pelo menos um quarto dos migrantes morreu de fome e frio em<br />
consequência da mudança. Os que sobreviviam passavam a morar em residências<br />
supervisionadas pela NKVD, a polícia soviética para assuntos internos.<br />
Os incas praticavam uma atrocidade semelhante com os povos que dominavam.<br />
Quando conquistavam uma nova região, os oficiais obrigavam boa parte dos moradores a<br />
migrar para outras partes do império. A ação era chamada de mitmaquna, palavra que<br />
em quéchua deriva de “espalhar”. Suas vítimas eram os denominados mitimaes. Os<br />
arqueólogos estimam que as migrações atingiram entre 20% e 30% da população – por<br />
conta dessa política, um quarto de todos povos andinos morava em terras estrangeiras. 85<br />
O padre jesuíta Barnabé Cobo, que escreveu sobre o modo de vida inca no comecinho do<br />
século 17, ouviu de seus entrevistados que até 7 mil famílias se mudavam de uma vez,<br />
travando caminhadas pelos Andes que ultrapassavam centenas de quilômetros. No<br />
começo do século 16, o rei Huayna Cápac, logo depois de conquistar povoados da região<br />
de Cochabamba, na Bolívia, ordenou que quase todos os moradores fossem removidos de<br />
lá. No lugar deles, 14 mil pessoas de povoados vizinhos habitaram a região e passaram a<br />
cultivar as fazendas estatais.<br />
As migrações aconteciam com mais frequência entre os povos que resistiram ao<br />
domínio inca, e não com os que fizeram acordos com Cuzco. Os lupacas, índios próximos<br />
ao lago Titicaca, se aliaram aos imperialistas e permaneceram em suas terras. Já os<br />
ayaviris resistiram: foram quase todos solicitados a se mudar. 86 “O imperador obrigava
[os mitimaes] a aprender a língua da nação para onde eles se mudavam, sem esquecer a<br />
língua geral, o quéchua, que todos das províncias conquistadas deveriam aprender e<br />
saber”, escreveu o navegador Pedro Sarmiento de Gamboa. 87 O objetivo da mudança era<br />
evitar resistências regionais, dispersar rebeldes e consolidar o controle de territórios tão<br />
distantes de Cuzco, a capital do império. Os migrantes deixavam de obedecer ao cacique<br />
habitual com os quais estavam familiarizados para seguir os chefes dos povoados que<br />
passavam a habitar, indicados pelo governo. “Com essa transferência de vassalos de um<br />
lugar para outro, os incas tentavam conseguir similaridade e uniformidade na religião e<br />
na política”, escreveu o padre Cobo. “Esperavam ainda que todas as nações dominadas<br />
falassem a língua de Cuzco, que se tornou assim a língua de todo o Peru.” 88<br />
As autoridades incas tinham certos cuidados na hora de remover a população.<br />
Provavelmente para evitar doenças e revoltas, quem vivia em ambientes frios do<br />
altiplano se mudava para um lugar de clima semelhante, onde poderia desenvolver<br />
atividades costumeiras. Mas é difícil pensar que a viagem não fosse um horror. Os<br />
mitimaes podiam percorrer mais de mil quilômetros até chegar à nova morada. No século<br />
14, quando forças incas invadiram o sul do Equador, povos locais foram trocados por<br />
povos da região do lago Titicaca, a cerca de 1.500 quilômetros de distância. 89<br />
Assim como nos povoados vigiados pela polícia soviética, as residências andinas<br />
podiam ser inspecionadas, a qualquer momento, pelos oficiais do Estado e pelos novos<br />
moradores. Esse costume impressionou o navegador Pedro Sarmiento de Gamboa.<br />
Segundo ele, o imperador inca dava aos colonos “autoridade e poder para entrar nas<br />
casas dos nativos a qualquer hora, noite e dia, para inspecionar o que eles falavam,<br />
faziam ou organizavam, com ordens para relatar ao governo mais próximo se alguma<br />
coisa era armada contra o inca”. 90 Quando os espanhóis chegaram e derrubaram o<br />
império, muitos migrantes forçados deram graças. “Alguns dos povos estabelecidos<br />
pelos incas voltaram para suas comunidades, deixando para trás uma vida de estrangeiros<br />
entre povos ressentidos”, diz o historiador Steve J. Stern. 91<br />
Outro traço do comunismo que passa perto dos incas é a prática de mudar a história.<br />
Em Cuba, na China do século 21, na União Soviética de Stálin ou em qualquer governo<br />
comunista do século 20, o passado foi uma mercadoria política a ser alterada sem<br />
hesitação. O exemplo mais acabado desse comportamento são as fotografias históricas<br />
alteradas pelos censores de Stálin. Entre muitas outras, a famosa foto de um discurso de<br />
Lênin em 1920 teve a imagem de León Trótski, inimigo de Stálin, retirada e trocada por<br />
um fundo negro. 92<br />
Por costumes como esse, o escritor Mario Vargas Llosa comparou os incas às piores ditaduras do século 20: “Cinco<br />
séculos antes da Grande Enciclopédia soviética e do romance 1984, de George Orwell, os incas praticaram a<br />
manipulação do passado em função das necessidades políticas do presente”.<br />
Os incas iam além. Pois, como afirmam os historiadores franceses Serge Gruzinski e<br />
Carmen Bernand, eles “não faziam distinção entre o mito e a narrativa histórica”. Um tipo<br />
especial de profissionais, os amautas, espécie de filósofos-oradores, se encarregava de<br />
manipular a história do soberano, criando para ele um passado cheio de proezas e<br />
conquistas, e de fazer circular histórias constrangedoras sobre seus adversários. As sagas<br />
criadas pelos amautas eram declamadas em público aos caciques, aos oficiais e aos<br />
cidadãos comuns. Esse estranho costume inca embaralhou os espanhóis interessados em
ecompor a história pré-hispânica dos Andes. Os descendentes de cada família indígena,<br />
quando entrevistados, reproduziam versões que favoreciam seu próprio ancestral. 93<br />
Os incas chamavam seu império de Tawantinsuyo, o “Reino dos Quatro Cantos”. O Collasuyo era a parte oeste desse<br />
território, mais ou menos onde fica a Bolívia.<br />
Apesar desse passado sombrio, um saudosismo de tempos pré-hispânicos impera nos<br />
Andes, principalmente na Bolívia. Nas praças de La Paz, nas ruas de Cochabamba,<br />
descendentes de índios chegam a pregar o retorno ao Collasuyo. O mesmo sentimento<br />
move documentários indigenistas, como o brasileiro Pachamama, lançado em 2010 com<br />
patrocínio da Petrobras. Conforme a sinopse, o filme trata dos “povos historicamente<br />
excluídos do processo político de seus países que, pela primeira vez na história, buscam<br />
uma participação efetiva no seu próprio destino”. Lá pela metade da obra, um dos<br />
entrevistados, um ativista aimará, diz o seguinte:<br />
Nós queremos resgatar nossa nação originária. O Estado originário. Somos uma nação aimará, espalhada hoje em dia<br />
nas repúblicas de Peru, Bolívia, Argentina e Chile. Há 514 anos estamos dominados e humilhados. Os espanhóis<br />
chegaram aqui e mataram nosso grande líder, chamado Atahualpa.<br />
Sem querer, o documentário Pachamama traz um grande ensinamento. Mostra que boa<br />
parte dos ativistas indígenas não sabe patavina sobre a própria história, aquela que<br />
querem resgatar. Ora, Atahualpa não foi líder dos aimarás, mas dos incas. Apesar das<br />
alianças de alguns povos aimarás com os incas, outros resistiram e foram subjugados em<br />
batalhas. É bem provável que povos aimarás tenham estado entre aqueles que não<br />
choraram – e até comemoraram – a morte de Atahualpa. Se os índios atuais pudessem<br />
voltar à sua nação originária, seriam obrigados a abandonar a própria casa, viajar a pé<br />
para terras desconhecidas e aceitar o trabalho que lhes fosse imposto. Uma situação<br />
ainda mais degradante do que viver hoje na Bolívia.<br />
Antes dos espanhóis, muito mais sangue era derramado na América<br />
Latina<br />
Se o bicho já pegava no Peru, as guerras entre nações indígenas eram muito mais<br />
sangrentas na Mesoamérica. Em 1519, quando a expedição de Hernán Cortés saiu de<br />
Cuba e chegou à costa mexicana, centenas de cidades independentes ocupavam o<br />
território onde hoje fica o México, a Guatemala e Belize. Nos vales do México central,<br />
viviam os nahuas – nome que engloba os povos que falavam náuatle, como os astecas<br />
(também chamados de mexicas), os tlaxcaltecas, os acolhuas, os tepanecas, entre muitos<br />
outros. Esses povos construíram diversas cidades no meio ou na margem dos grandes<br />
lagos da região. Tenochtitlán, a capital dos astecas e hoje capital do México, foi erguida<br />
numa ilha do lago de Texcoco. A cidade era cortada por imensos canais, aquedutos, vias<br />
elevadas e contava ainda com palácios e jardins.<br />
81 Paul Steele, Handbook of Inca Mythology, ABC-Clio, 2004, página 96.<br />
82 Terence D’Altroy, The Incas, Blackwell, 2002, páginas 316 e 319.<br />
83 María Rostworowski, History of the Inca Realm, Cambridge University Press, 1999, página 226.
84 Terence D’Altroy, páginas 115 e 317.<br />
85 Terence D’Altroy, página 248.<br />
86 Terence D’Altroy, página 256.<br />
87 Pedro Sarmiento de Gamboa, History of the Incas, Dover, 1999, página 121.<br />
88 Padre Bernabe Cobo, página 190.<br />
89 Dennis Edward Ogburn, The Inca Occupation and Forced Resettlement in Saraguro, dissertação apresentada na<br />
Universidade da Califórnia em Santa Barbara, 2001, página 382.<br />
90 Pedro Sarmiento de Gamboa, página 121.<br />
91 Steve J. Stern, Peru’s Indian Peoples and the Challenge of Spanish Conquest: Huamanga to 1640, The University of<br />
Wisconsin Press, 1993, página 30.<br />
92 Veja outras imagens alteradas pelos censores de Stálin no site:<br />
www.newseum.org/berlinwall/commissar_vanishes/vanishes.htm.<br />
93 Terence D’Altroy, página 5.
Em cidades como Cuzco ou La Paz, o chá de coca é um fantástico remédio<br />
contra os enjoos e dores de cabeça provocados pela elevada altitude. Mineiros também<br />
colocam folhas de coca dentro da bochecha para suportar melhor o esforço braçal e<br />
não sentir fome. Sacerdotes indígenas deixam cair folhas no chão para entender as<br />
mensagens dos deuses, assim como em um jogo de búzios.<br />
TÃO SAUDÁVEL QUANTO ORÉGANO<br />
Na Bolívia, a folha de coca tornou-se objeto de culto oficial. O artigo 384 da<br />
Constituição é apoteótico: “o Estado protege a coca originária e ancestral como<br />
patrimônio cultural, recurso natural renovável da biodiversidade da Bolívia, e<br />
como fator de coesão social”. O consumo da folha de coca é promovido por causa<br />
de seus pretensos valores nutricionais. 94 Em 2006, o ministro de Relações Exteriores,<br />
<strong>Da</strong>vid Choquehuanca, propôs substituir o leite por folhas de coca no café<br />
da manhã escolar. Segundo ele, a planta teria mais cálcio que o leite e mais fósforo<br />
que o peixe. 95<br />
O estudo mais abrangente sobre os poderes da coca, publicado em 2009, mostra<br />
que não é bem assim. Mascar folhas de coca dá no mesmo que mastigar folhas de<br />
salsa, orégano ou coentro, concluiu a pesquisa. 96 Se a coca for consumida em<br />
grandes quantidades, ao redor de 100 gramas diárias, o único efeito possível seria<br />
o provocado pelo alcaloide cocaína – aquele mesmo que ajuda os mineiros a disfarçar a<br />
fome e aguentar firme o trabalho forçado. Só um governante muito sem<br />
coração poderia querer algo assim para as pobres criancinhas bolivianas.
Fique tranquilo: essa sequência de nomes esquisitos já vai acabar.<br />
Em 1428, os astecas se uniram a duas cidades nahuas vizinhas, Texcoco, dos índios<br />
acolhuas, e Tlacopan, a maior cidade dos tepanecas. Formou-se assim uma tríplice<br />
aliança que em menos de cem anos incluiu em seu domínio 450 cidades, espalhadas entre<br />
a costa do Pacífico e o golfo do México. Os primeiros conquistados foram os nahuas que<br />
viviam perto de lagos menores, como as cidades de Chalco, Xochimilco e Huexotzinco.<br />
As campanhas militares continuaram para o sul, onde hoje fica a cidade de Oaxaca,<br />
atingindo índios de outros troncos linguísticos, como os mixtecas e os zapotecas, e<br />
chegaram até mesmo aos maias, na península de Yucatán. Entre todos esses povos, os<br />
poucos que resistiam ao domínio asteca estavam em Tlaxcala (no meio do caminho entre<br />
o golfo do México e Tenochtitlán), e em Michoacán, próxima à costa do Pacífico. Esses<br />
grupos estavam a ponto de serem dominados quando os espanhóis chegaram para salvar<br />
sua pele.<br />
Os códices astecas são documentos pictóricos que os índios criavam em peles de animais ou papéis feitos com cascas<br />
de árvores. Assim como os lienzos, retratava as dinastias e o dia a dia do império. Muitos códices foram reproduzidos<br />
pelos índios a pedido dos missionários europeus. O Códice Mendoza, por exemplo, foi terminado às pressas para ser<br />
enviado ao rei espanhol. Ao cruzar o Atlântico, porém, o navio que o transportava foi atacado por piratas franceses.<br />
Como o papagaio para o Brasil, o quetzal era o pássaro que identificava os astecas. Suas penas eram essenciais na<br />
arte e nos rituais indígenas.<br />
O principal objetivo das conquistas militares astecas era fazer as cidades derrotadas<br />
pagarem impostos e, assim, assegurar a boa vida dos nobres na capital. Ao contrário dos<br />
incas, os astecas não estabeleciam um império direto – costumavam manter os líderes<br />
derrotados no poder desde que cumprissem com os tributos. Graças aos códices<br />
indígenas, sabemos quanto cada cidade conquistada pagava de imposto a Tenochtitlán.<br />
Um exemplo: o pequeno vilarejo de Coaixtlahuacán (melhor nem tentar pronunciar)<br />
fornecia por ano 4 mil peças de roupa, 800 asas de quetzal, 40 sacolas de corante de<br />
cochonilhas, 20 quantidades de ouro, entre outros produtos. 97 Segundo o Códice<br />
Mendoza, Tenochtitlán arrecadava anualmente, de todas as suas províncias, mais de 150<br />
mil peças de roupa, 32 mil instrumentos de guerra (como escudos e flechas), mais de 30<br />
mil penas coloridas, além de centenas de ornamentos para guerreiros, peles de jaguar e<br />
veados, jarras e potes, carregamentos de sal, cacau, mel, pimenta, objetos de ouro e<br />
bronze.<br />
A arma mais usada pelos astecas era o macauitl, um tacape com cacos de vidro<br />
vulcânico encrustrados. Era usado não tanto para matar os inimigos, mas para feri-los e<br />
capturá-los vivos. Isso porque o segundo objetivo das guerras nahuas era arrecadar<br />
vítimas para a maior obsessão dos povos da Mesoamérica: os rituais de sacrifício<br />
humano.<br />
É difícil encontrar, entre todos os continentes, entre todas as épocas, uma civilização<br />
mais obcecada por cerimônias de morte que os astecas. As estimativas de mortos durante<br />
o domínio desse império variam muito: mesmo as mais baixas são assustadoras. Relatos<br />
espanhóis do século 16, com base em histórias contadas pelos índios, falam em 80.400<br />
mortes em 1487, durante a inauguração do Templo Maior de Tenochtitlán. Trata-se<br />
certamente de um exagero: nem as máquinas de morte em série do Holocausto<br />
conseguiriam matar tanta gente em tão pouco tempo. Provavelmente os astecas, para<br />
realçar sua majestade e espalhar o temor entre os vizinhos; e os espanhóis, para destacar
a selvageria dos índios, extrapolavam a quantidade de pessoas mortas em sacrifícios. Já<br />
o Códice Telleriano-Remensis, uma reunião de pinturas narrativas dos astecas criada no<br />
século 16, fala de uma matança menor, ainda assim impressionante: 4 mil pessoas<br />
sacrificadas na inauguração do templo.<br />
ALBUM/ORONOZ/LATINSTOCK – BIBLIOTECA NACIONALCENTRAL, FLORENÇA<br />
Quando os espanhóis chegaram ao México, espantaram-se com as escadarias das pirâmides astecas repletas de sangue<br />
seco. Na imagem do Códice Magliabechiano, o tipo mais comum de sacrifício humano: arrancar o coração das vítimas e<br />
jogá-las escada abaixo.<br />
O mesmo acontece com os povos ancestrais de maias e astecas. Em Teotihuacán, cidade habitada até o século 7º<br />
(cujas ruínas são passeio obrigatório para quem vai à Cidade do México), só a equipe do arqueólogo japonês Saburo<br />
Sugiyama encontrou 174 restos mortais.<br />
Até mesmo a arquitetura das pirâmides da Mesoamérica foi pensada para servir de<br />
cenário de sacrifícios: pedaços dos corpos de guerreiros eram atirados do alto das<br />
pirâmides e cambaleavam pelas escadarias, para deleite do público. As marcas desses<br />
rituais deixaram os espanhóis perplexos. Quando se depararam com os edifícios, eles<br />
perceberam que as escadas dos templos estavam manchadas de um marrom-avermelhado<br />
por causa do sangue seco das vítimas de sacrifício. 98 Vestígios dos rituais de morte dos<br />
astecas, de seus vizinhos e de seus ancestrais aparecem às dezenas ainda hoje. Em<br />
Tenochtitlán, desde as primeiras escavações do século 20, 126 pessoas já foram<br />
classificadas como resultados de sacrifícios.<br />
Duas antropólogas físicas do México analisaram 153 corpos encontrados no santuário<br />
de Tlatelolco, ao norte de Tenochtitlán. Comparando as fraturas de ossos do tórax, elas<br />
concluíram que aquelas pessoas morreram por cardioectomia (extração do coração).<br />
Essa era a execução ritual mais comum entre os astecas – é aconselhável preparar o<br />
estômago antes de descobrir como as mortes aconteciam.
Os astecas viam 1.001 utilidades nos restos mortais dos sacrificados. Caveiras decoravam edifícios, serviam de base<br />
para máscaras ou iam para os tzompantlis, espécie de varais paralelos cheios de crânios que “adornavam” as grandes<br />
cidades e impunham respeito aos que se metiam a visitá-las.<br />
Primeiro, a vítima – ainda viva – era presa, de barriga para cima, numa pequena mesa<br />
no alto da pirâmide. Para arrancar o órgão vital, os algozes astecas tinham pelo menos<br />
duas técnicas. Uma delas era através do osso esterno: com a ajuda de uma faca de pedra,<br />
bastava um impacto para dividi-lo em dois e – com a vítima ainda viva – enfiar a mão até<br />
chegar ao coração. Na outra opção, os astecas “introduziam a faca entre duas costelas e,<br />
para abrir espaço, empurravam o osso esterno de dentro para fora”. 99 Com a vítima ainda<br />
viva.<br />
As crianças não estavam a salvo dessas crueldades. O sangue delas era requerido em<br />
ocasiões especiais, geralmente para saciar a fúria de deuses relacionados a secas e<br />
inundações, como Tláloc. No Templo Maior de Tenochtitlán foram encontradas ossadas<br />
de 42 crianças mortas como oferenda a essa divindade. Em geral, eram filhos de<br />
prisioneiros de guerra, pequenos escravos ou crianças compradas fora da cidade. Há<br />
ainda menções de que os reis e senhores, por se sentirem mais responsáveis pelo bom<br />
funcionamento do clima, ofereciam os próprios filhos para os rituais, com o objetivo de<br />
obter boas colheitas. Nos sítios arqueológicos mexicanos, há dezenas de esqueletos<br />
infantis sepultados junto de esculturas de pedra e madeira, conchas, sementes e areia do<br />
mar. Um garoto de 5 anos, cujos restos mortais foram encontrados em 2005 numa base da<br />
parte sul do Templo Maior de Tenochtitlán, teve os braços colados às asas de um gavião.<br />
Baseados nas diversas marcas na parte interna das costelas, arqueólogos concluíram que<br />
o elemento cortante, provavelmente uma faca de sílex, “entrou na cavidade torácica a<br />
partir do abdômen”, rasgando os músculos para chegar ao coração. 100<br />
Carnificinas similares aconteciam entre os maias, ainda que eles não gostem de falar<br />
sobre isso. Em 2006, o cineasta Mel Gibson ergueu uma pirâmide de polêmica ao lançar<br />
o filme Apocalypto, inspirado na vida dos índios de Yucatán antes da conquista<br />
espanhola. Na Guatemala, onde vive a maior parte das pessoas que se dizem<br />
descendentes daquela civilização, houve uma gritaria generalizada de representantes<br />
indígenas e autoridades públicas. Ricardo Cajas, diretor da comissão contra o racismo<br />
no país, afirmou que o filme ignorava 50 anos de avanços na arqueologia, pois mostrava<br />
“os maias como bárbaros, assassinos de pessoas que só poderiam ser salvas pela<br />
chegada dos espanhóis”. Ignacio Ochoa, diretor da Fundação Nahual, que divulga a<br />
cultura indígena da região, gritou mais alto – disse que o filme era baseado numa “visão<br />
ofensiva e racista de que o povo maia era brutal contra si próprio e por isso precisava de<br />
ajuda externa”. As cenas mais violentas – e que mais irritaram os ativistas – são as que<br />
reconstroem os sacrifícios humanos no alto das pirâmides. 101 O filme mostra fanáticos<br />
maias arrancando o coração de guerreiros capturados, para logo depois os degolarem e<br />
os atirarem em série pelas escadarias dos edifícios. Apocalypto, de fato, é repleto de<br />
tropeços históricos e episódios de injustiça extrema típicos dos filmes de Mel Gibson.<br />
Apesar dessas limitações e da reclamação dos ativistas, pode-se dizer que o cineasta<br />
tinha material para retratar a vida na América Central com ainda mais fanatismo, mais<br />
crueldade, mais esguichos de sangue.<br />
Os maias tinham até um termo próprio – cuculeb – para a expressão “rolar escada abaixo”.
Os estudos recentes de arqueologia e antropologia física dão detalhes asquerosos dos<br />
rituais maias. Mel Gibson poderia, por exemplo, mostrar a tortura ritual que antecedia os<br />
sacrifícios humanos. Essa prática é bem documentada em pinturas do período clássico<br />
maia, como as das paredes de templos de Chiapas, onde os homens a caminho da morte<br />
aparecem com os dedos sangrando e feridas por todo o corpo. Também seria possível<br />
retratar outros tipos de execução, como o desentranhamento – a retirada das vísceras da<br />
vítima ainda viva, tipo de morte provavelmente reservada a prisioneiros de guerra.<br />
Resume a antropóloga austríaca Estella Weiss-Krejci: “Cenas de decapitação e<br />
desentranhamento em cerâmicas funerárias, totens, altares e murais parecem completar<br />
alguns dos corpos encontrados sem cabeça e os membros em tumbas individuais e<br />
coletivas”. 102<br />
A cardioectomia, retratada no filme Apocalypto, também aparece em pinturas e<br />
registros que os padres espanhóis obtiveram dos índios no século 16. Quando esse tipo<br />
de morte surge na iconografia maia, diz o antropólogo <strong>Da</strong>vid Stuart, “os sacrificados<br />
quase sempre eram crianças”. Duas outras antropólogas, Vera Tiesler e Andrea Cucina,<br />
analisaram sete ossadas (a maioria de adolescentes homens e mulheres) encontradas ao<br />
redor de ruínas dos estados mexicanos de Chiapas e Campeche. Notaram que os<br />
esqueletos tinham marcas de impacto no lado esquerdo das vértebras e nas costelas. As<br />
marcas sugerem que o sacerdote se aproximava com uma faca de pedra e fazia um corte<br />
profundo no lado esquerdo do ventre, logo abaixo das costelas. O algoz tinha de enfiar<br />
um bom pedaço do braço através do diafragma até sentir os batimentos cardíacos.<br />
“Depois disso, ele entregava o coração ao sacerdote para sua consagração e<br />
apresentação aos deuses”, contam as antropólogas. 103<br />
Se os sacrifícios astecas e maias são bem registrados e conhecidos, não acontece o<br />
mesmo com aqueles praticados pelos incas. O Peru hoje é um país com uma elite<br />
progressista e ótima gastronomia, onde o turista pode se aventurar com a certeza de que<br />
será bem tratado. Exceto se perguntar numa livraria se há algum livro com sacrifícios dos<br />
incas, como fez um dos autores deste livro. Será impelido a pedir desculpas no ato,<br />
baixar a cabeça e fugir para o hotel. Se, por pura insistência, repetir a pergunta para um<br />
político, vai ouvir um sermão pela segunda vez.<br />
Na opinião de muitos peruanos, quem fazia sacrifícios humanos por lá eram somente<br />
os mochicas, povo que viveu ao norte do Peru até o século 8º e adorava um deus<br />
sacrificador – chamado de “El Degollador”. Uma pirâmide na cidade de Trujillo permite<br />
um passeio por várias salas internas, em que as pessoas eram presas e depois<br />
sacrificadas. Mas esses eram os mochicas, ou “moches”. Os incas, vários séculos depois,<br />
não faziam esse tipo de coisa. Jamais. E coitado de quem perguntar.<br />
Mas vamos às pesquisas arqueológicas. O sacrifício de pessoas e animais fazia parte<br />
de quase todas as ocasiões importantes dos incas: funerais, comemorações religiosas,<br />
dias de cultivo e colheita, momentos de preparação para batalhas. Além do calendário de<br />
cerimônias, qualquer evento extraordinário era motivo de sacrifícios, como terremotos,<br />
eclipses e inundações. As mortes rituais ainda eram oferecidas ao deus Sol como prece<br />
pelo sucesso do imperador inca, após o seu falecimento e em louvor aos seus<br />
ascendentes. O inca Atahualpa, por exemplo, executou centenas de pessoas somente para<br />
se preparar para o encontro com Pizarro em Cajamarca, de acordo com o conquistador e
cronista Pedro de Cieza de León. 104 Durante a cerimônia chamada de capacocha, as<br />
vítimas, os meninos e as meninas mais bonitos entre todas as terras do império, eram<br />
mortos com pancadas na cabeça ou enterrados vivos lado a lado, como casais. 105<br />
Prisioneiros de guerra também eram executados como agradecimento ao Sol e como<br />
símbolo do poder inca. Em mais de 50 santuários instalados a pelo menos 5 mil metros<br />
de altitude, arqueólogos encontraram ossos de lhamas sacrificadas, cabelo humano, peças<br />
de cerâmica e madeira e corpos de crianças, adolescentes e adultos bem conservados<br />
pela neve. Alguns locais guardavam até vestígios de cercas usadas para encarcerar as<br />
vítimas. 106 Em 1995, o derretimento da neve do monte Ampato, no sul do Peru, expôs um<br />
antigo santuário inca, onde o arqueólogo Johan Reinhard encontrou o corpo mumificado<br />
de uma garota que tinha entre 11 e 14 anos. Juanita, a “dama do gelo”, como passou a ser<br />
chamada, estava vestida com um xale branco e vermelho preso no corpo com botões de<br />
prata.<br />
Nem todo ritual de morte dependia de atos de extrema violência. Os índios<br />
acreditavam tanto no poder trágico de seus deuses que muitos se mutilavam, ofereciam os<br />
próprios filhos e a si mesmos para acalmar os céus. Há diversos relatos, em toda a<br />
América Latina pré-colombiana, de pessoas que caminharam contentes rumo ao seu ritual<br />
de morte. O autossacrifício parece ter sido mais comum entre os incas, como descreveu o<br />
conquistador Pedro de Cieza de León:<br />
Antes que as pessoas fossem levadas à morte, o sacerdote pronunciava um discurso, explicando a eles que iriam servir o<br />
deus que estava sendo celebrado e que habitariam o mesmo lugar glorioso que ele habitava. Aqueles que estavam para<br />
ser sacrificados acreditavam nisso e se vestiam com roupas finas e peças de ouro, braceletes e objetos dourados nas<br />
sandálias. Depois de ouvir o discurso, os sacrificados ganhavam muita chicha para beber, em grandes vasos de ouro. O<br />
sacrifício era celebrado com músicas, e as vítimas se consideravam agraciadas por chegar à morte daquele modo. 107<br />
O pulque é o que os astecas tinham de mais próximo da cerveja: uma bebida alcoólica feita a partir da fermentação do<br />
agave. Plantas da família do agave, quando destiladas, dão origem à tequila.<br />
É certo que o sacrifício humano era um costume aceito pela tradição e pelo modo<br />
como os índios enxergavam o mundo: não é correto condená-los com os olhos de hoje.<br />
Para quem atribuía ao humor de seus deuses a boa sorte em batalhas ou a chegada de<br />
chuvas, derramar sangue funcionava como o pagamento de uma dívida, uma atitude<br />
necessária para manter a ordem do mundo. Além disso, os índios, tanto da Mesoamérica<br />
quanto dos Andes, não consideravam errado o ato de matar alguém de outro povo. Os<br />
astecas, por exemplo, tinham um tremendo orgulho dos seus assassinos. Como acontecia<br />
entre os índios tupis do Brasil, um jovem só ganhava permissão para se casar depois de<br />
capturar seu primeiro homem. Quem matava mais era mais reconhecido – tinha roupas<br />
melhores, entrada garantida em festas e mais mulheres. “Um guerreiro com quatro mortes<br />
nas costas, por exemplo, podia dançar em importantes cerimônias e vestir finos<br />
ornamentos nos lábios, além de tiaras com penas de águia”, conta o antropólogo<br />
americano Michael Smith. “Já os guerreiros águia e jaguar podiam jantar no palácio real,<br />
beber pulque e ter amantes. A escalada de um jovem na carreira militar era fonte de<br />
grande orgulho para sua família.” 108<br />
Os “encomendeiros” ganhavam permissão real para cobrar impostos de um grupo de índios em forma de trabalho ou<br />
produtos. Em troca, tinham de ajudar a protegê-los contra inimigos e iniciá-los na língua espanhola.<br />
É certo também que os conquistadores espanhóis protagonizaram episódios de
crueldade máxima na América. Francisco Pizarro, semanas antes de encontrar o inca<br />
Atahualpa, queimou vivos índios que haviam atacado seus homens; decapitações<br />
aconteceram com frequência; no México, o conquistador Nuño de Gusmán era famoso<br />
por torturar caciques e atirá-los a cães. Esses atos, no entanto, não eram em geral<br />
considerados corretos: a morte dos índios e a degradação das comunidades locais<br />
provocaram denúncias indignadas de padres e conquistadores, além de uma intensa<br />
discussão ética entre os espanhóis. A ponto de o imperador Carlos V, em 1550,<br />
interromper as ações de colonização para debater a moralidade da conquista espanhola.<br />
O debate de Valladolid, travado entre os frades Bartolomé de las Casas e Juan<br />
Sepúlveda naquele ano, marca um dos primeiros momentos da história em que um povo<br />
levantou questões humanitárias e se preocupou com o outro. Também pela primeira vez<br />
na história um império parou para refletir sobre as consequências éticas de seus atos. O<br />
debate de Valladolid ratificou as “novas leis” que tinham proibido, oito anos antes, a<br />
exploração do trabalho dos índios pelo sistema de encomienda. As leis provocaram<br />
revoltas entre os conquistadores – basta lembrar que um dos irmãos de Pizarro, Gonzalo,<br />
foi executado pelo reino espanhol depois de ameaçar proclamar-se rei do Peru em<br />
protesto à proibição de explorar o trabalho dos índios por meio do sistema de<br />
encomiendas. Como sua morte atesta, o valor da vida humana, noção que tantos ativistas<br />
usam para tentar corrigir injustiças históricas, não chegaria à América não fosse a bordo<br />
das caravelas.<br />
Quando Hernán Cortés e seus aliados conquistaram Tenochtitlán, uma de suas<br />
primeiras ações foi mandar lavar as escadarias astecas para retirar as manchas de sangue<br />
seco e envelhecido que vertia dos corpos atirados por ali. Hoje, cinco séculos depois,<br />
ainda há crianças nas escadarias das pirâmides indígenas. Elas brincam, correm e contam<br />
alegremente quantos degraus cada monumento possui.<br />
A descoberta do índio conquistador<br />
Um antigo costume dos índios nahuas era o de registrar a história em grandes pinturas<br />
em tecido, como os astecas e seus vizinhos. Os lienzos, como os espanhóis chamaram<br />
essas peças, retratam os feitos dos soberanos, as conquistas militares e as migrações que<br />
os povos empreenderam. Como peças de comunicação interna, eram expostos em muros<br />
durante cerimônias das grandes cidades do México pré-colombiano, para que os<br />
moradores se lembrassem da história de seu povo e da importância de seus líderes. Essa<br />
tradição avançou pelo século 16: para deleite dos pesquisadores, há telas com registros<br />
preciosos de episódios da conquista espanhola da América. Algumas dessas raridades<br />
foram decifradas recentemente por historiadores, que ficaram estupefatos com o que<br />
descobriram ali.<br />
A história que aqueles pictogramas contavam não parecia em nada com os relatos<br />
tradicionais da Conquista Espanhola propagados hoje em dia nas escolas, nos palanques<br />
de campanha eleitoral ou nos manifestos de ativistas. Não havia destaque aos episódios<br />
de violência praticada pelos europeus ou para a resistência indígena. Na verdade, as<br />
imagens tinham pouca diferença daquelas criadas antes da chegada das caravelas. Os
espanhóis aparecem nas pinturas como mais um povo com quem os índios se uniram para<br />
guerrear, retratados com os mesmos padrões das narrativas anteriores.<br />
A historiadora holandesa Florine Asselbergs analisou três peças feitas por índios que<br />
se aliaram aos espanhóis: o Lenço de Tlaxcala, cujo original foi criado no ano de 1550, o<br />
de Analco, também pintado pelos tlaxcaltecas, e o de Quauhquecholán, um tecido de 2,35<br />
por 3,25 metros com pinturas sobre as campanhas militares na Guatemala sob a liderança<br />
do espanhol Jorge de Alvarado, entre 1527 e 1530. Asselbergs concluiu que as imagens<br />
têm pelo menos três grandes ensinamentos:<br />
1. O episódio mais significativo dos registros é a aliança com os recém-chegados, e não<br />
as lutas travadas contra eles. Os tlaxcaltecas, por exemplo, guerrearam três vezes com os<br />
espanhóis antes de se aliar aos inimigos. Nos registros oficiais, essas batalhas foram<br />
omitidas – no lugar delas, entraram imagens dos “senhores indígenas em encontros<br />
amigáveis com os espanhóis, abraçando-os e dando-lhes presentes, sem nenhum sinal de<br />
hostilidade”, conta a historiadora.<br />
UNIVERSIDAD FRANCISCO MARROQUÍN, GUATEMALA/MUSEO CASA DEL ALFEÑIQUE, PUEBLA, MÉXICO<br />
Lenço de Quauhquecholán, criado por índios nahuas no século 16: a águia de duas cabeças, portando um tacape indígena<br />
e uma espada espanhola, representa a união militar entre os dois povos. Conforme o relato dos índios, o encontro com os<br />
espanhóis foi fraterno e teve até troca de presentes.<br />
2. Mesmo sendo obra de índios que se aliaram aos espanhóis, é espantosa a ausência de<br />
um episódio de conquista, de sub-jugação à ordem europeia. “As alianças dos senhores<br />
indígenas com os espanhóis são percebidas como igualitárias, e não alianças compelidas<br />
pela dominação espanhola. As comunidades estavam subjugadas à Coroa espanhola, é<br />
verdade, mas não de um jeito humilhante”, conta a historiadora. O pictograma principal<br />
do Lenço de Quauhquecholán é o símbolo da cidade (uma águia com duas cabeças) unida<br />
à Coroa espanhola. A águia carrega, em um dos lados, uma espada espanhola; do outro,<br />
um tacape nahua. “Essas alianças e conquistas foram entendidas como parte da rotina<br />
pré-hispânica e assim foram comunicadas.”<br />
3. Muitos dos índios do século 16 festejaram a chegada dos espanhóis e se orgulhavam<br />
de tê-los ajudado a exterminar nativos inimigos. Identificavam-se mais com os espanhóis<br />
do que com outros povos indígenas. “O lenço quauhquecholteca retrata tanto os espanhóis<br />
quanto os índios com a mesma cor de pele, enquanto os inimigos têm pele marrom ou<br />
vermelha”, conta a historiadora.
“Muitos astecas que sobreviveram à queda de Tenochtitlán participaram de outras conquistas pela Mesoamérica, até<br />
mesmo na Guatemala”, diz a historiadora americana Laura Matthew. “Eram mais bem treinados para a guerra e ainda<br />
politicamente importantes. Por causa desse enorme poder, tiveram provavelmente um status mais alto nas alianças que<br />
os outros povos.” 109<br />
O apoio de parte dos índios da América aos europeus já é bem conhecido e aceito<br />
pelos historiadores. Desde o século 16 sabe-se que, no caso do México, os índios<br />
tlaxcaltecas ajudaram os europeus a impor sua vontade, e que o mesmo aconteceu entre<br />
caciques andinos. No entanto, a participação dos índios aparecia sempre em segundo<br />
plano. O exemplo mais típico é o quadro A Conquista do México por Cortés, do século<br />
17. Na frente da batalha contra os astecas, estão os capitães e guerreiros espanhóis – já<br />
os índios aliados estão à margem dos acontecimentos. 110 Como afirma o pesquisador<br />
Gonzalo Lamana, “os atores nativos, no máximo, são marionetes no palco dos espanhóis<br />
– eles são punidos, coroados, enviados a batalhas”. O que está se descobrindo agora é<br />
que as alianças travadas com os espanhóis foram, primeiro, mais numerosas. No México,<br />
além dos tlaxcaltecas, muitos outros povos aderiram às ações de conquista – até mesmo<br />
os astecas, depois de serem derrotados em Tenochtitlán. Segundo, as alianças parecem<br />
agora mais igualitárias do que se pensava. Tanto os índios como os espanhóis tinham de<br />
se adequar às necessidades do aliado para manter a união. <strong>Guia</strong>s, tradutores, mulheres,<br />
chefes militares indígenas não atuaram só como marionetes, mas em diversos momentos<br />
impuseram os seus desejos (entre os quais estava o de exterminar vizinhos inimigos).<br />
COLEÇÃO JAY I. KISLAK/BIBLIOTECA DO CONGRESSO, WASHINGTON<br />
Quadro A Conquista do México por Cortés: índios como personagens secundários.<br />
Só é possível entender aquelas alianças reconstituindo o cenário dos primeiros<br />
europeus que chegaram à América. Ao contrário do que muita gente imagina, os<br />
conquistadores não eram seres com todo o poder sobre os índios. Não eram guerreiros
especiais contratados pelo reino espanhol nem soldados de algum exército. Na maioria<br />
jovens artesãos (alfaiates, ferreiros, pedreiros) ou pequenos proprietários, eles vieram à<br />
América por conta própria. <strong>Da</strong> Coroa espanhola ganhavam somente a autorização para se<br />
apossar de terras que viessem a ser descobertas. Investindo o próprio dinheiro, eles<br />
arranjavam sócios para o investimento e persuadiam vizinhos, amigos e parentes a fazer<br />
parte da companhia. Não eram treinados nem organizados: a hierarquia dividia-se<br />
somente em capitão do navio, cavaleiros (aqueles que tiveram dinheiro para embarcar<br />
nos navios com um cavalo) e peões. 111 Sequer podiam contar com as armas de fogo para<br />
espantar os índios. Os arcabuzes do século 16 demoravam preciosos minutos para serem<br />
carregados e exigiam pólvora seca, uma raridade depois de tantos dias cruzando o<br />
oceano. E ainda não tinham sido criadas, naquela época, técnicas de artilharia que<br />
permitissem um ataque contínuo de fogo contra os inimigos.<br />
Sem tanta preparação e superioridade militar, os conquistadores da América<br />
frequentemente passavam da expectativa de riquezas à esperança de voltar para casa, da<br />
esperança de voltar para casa à desilusão, da desilusão ao desespero. O fracasso era o<br />
destino mais comum. Em 1510, por exemplo, 69 dos 70 espanhóis instalados no Caribe<br />
colombiano foram mortos por índios. Juan de la Cosa, o chefe da expedição, foi<br />
encontrado “desfigurado e inchado, recoberto de flechas envenenadas e de espantosas<br />
chagas vermelhas”. 112 Dos 800 homens que, em 1536, acompanharam Gonzalo Jiménez de<br />
Quesada numa expedição ao interior da Colômbia, só 179 sobreviveram. Mesmo<br />
Francisco Pizarro, quando conseguiu chegar ao Peru, em 1532, tentava se levantar de<br />
dois grandes fiascos. A primeira expedição de Pizarro, entre 1523 e 1524, foi posta para<br />
correr por poderosos inimigos: os mosquitos.<br />
Nas cartas para a corte espanhola, os conquistadores costumavam deixar papelões<br />
como esse de lado. Mas relatos menos comprometidos mostram o sofrimento dos<br />
navegadores quando não encontravam índios dispostos a ajudá-los. “As pessoas não<br />
tinham o que comer e se morria de fome e padecia de grande escassez”, escreveu o<br />
alemão Ulrich Schmidl, participante da expedição de Pedro Mendoza que desembarcou<br />
no rio da Prata em 1535. “Foram tais a pena e o desastre da fome que não bastaram ratos<br />
nem ratazanas, víboras ou insetos; até os sapatos e couros, tudo teve que ser comido.”<br />
Dos 2.500 participantes dessa companhia, quase 2 mil morreram de fome ou atacados por<br />
índios. 113 Duas décadas antes, o navegador português João Diaz de Solis, que sucedeu<br />
Américo Vespúcio no cargo de piloto-mor da expedição, foi morto logo depois de<br />
descobrir o rio da Prata, entre a Argentina e o Uruguai. Solis e muitos de seus homens<br />
foram atacados na praia, após desembarcarem para entrar em contato com os índios.<br />
“Tomando às costas os mortos, os índios se afastaram da margem, até onde os navios<br />
podiam ver”, escreveu um dos sobreviventes, o navegador espanhol Antônio de Herrera.<br />
“Então assaram os corpos inteiros e os comeram.” 114<br />
Dos quatro irmãos Pizarro que vieram à América, três foram mortos em combates. Só um deles, Hernando (o único<br />
filho legítimo), morreu de velhice na Espanha.<br />
Outro inimigo a enfraquecer os conquistadores eram os conflitos internos. Como<br />
acontecia com os índios, cada companhia e cada conquistador tinham objetivos nem<br />
sempre convergentes. Os capitães competiam entre si para obter títulos e encomendas –<br />
nessa disputa valia até espalhar fofocas na corte para que o inimigo perdesse benefícios.
Também valia partir para a batalha. Diversos espanhóis foram atacados por outros<br />
espanhóis. Diego de Almagro, que havia passado de melhor amigo de Francisco Pizarro<br />
a seu grande adversário, foi decapitado em Cuzco, em 1538, por ordem de Hernando<br />
Pizarro, um dos três irmãos de Francisco a explorar a América. Três anos depois, Diego<br />
de Almagro, o filho, vingou-se da morte do pai executando Francisco Pizarro em Lima.<br />
Malinche teve um filho com Cortés, que ganhou o nome do avô, Martín. A índia chegou a morar com Cortés na<br />
mesma casa em que ele vivia com sua mulher espanhola.<br />
A precariedade e os perigos diminuíam tão logo os recém-chegados conseguissem<br />
fazer amizade com índios. Por isso, não demoravam a fazer concessões aos povos locais<br />
e se adaptar ao modo local de viver e guerrear. Ao pisar na América e perceber os<br />
conflitos entre as nações, logo se colocavam de um lado da briga. Como mandava o<br />
costume indígena, em que alianças políticas são alianças familiares, de sangue, os<br />
espanhóis casaram com diversas mulheres com o objetivo de obter o apoio local.<br />
“Apesar das mudanças trazidas pelo colonialismo, as cacicas continuaram a ter posições<br />
de autoridade e poder em suas comunidades”, conta o historiador Robinson Herrera. 115<br />
Formava-se assim uma elite de índios aliados que tinha tanto poder quanto alguns dos<br />
exploradores europeus. No México, a famosa índia Malinche, amante e tradutora de<br />
Cortés, trabalhou como braço-direito e conselheira do conquistador, ganhando o respeito<br />
dos outros espanhóis, que logo passaram a chamá-la de “Doña Marina”. Também havia<br />
nativas poderosas no Peru, como mostra um curioso episódio ocorrido em Cuzco no ano<br />
de 1536. Índias nobres reclamaram com Hernando Pizarro que algumas de suas roupas<br />
tinham sido roubadas por dois espanhóis. O conquistador agiu imediatamente. Mandou<br />
prender os dois suspeitos, homens subordinados a seu irmão, Juan Pizarro. Os acusados<br />
tiveram de armar uma pequena revolta para não serem presos, mas devolveram as peças<br />
roubadas. 116<br />
Os espanhóis costumavam manter líderes locais como reféns para evitar ataques. Como contou Gaspar de Marquina,<br />
um dos homens de Pizarro, numa carta ao pai, com a captura do senhor local, “um homem pode percorrer sozinho 500<br />
léguas sem ser morto”. 117<br />
Até mesmo a execução do imperador Atahualpa, em 1533, teve uma oculta influência<br />
desses aliados e familiares indígenas. O que raramente se conta sobre esse episódio tão<br />
lamentado é que houve um debate entre os exploradores sobre o que fazer: deveriam<br />
mesmo matar o imperador inca? O conquistador Francisco Pizarro era contra – preferia<br />
mantê-lo refém na longa viagem de Cajamarca até Cuzco, para facilitar a tomada de<br />
controle da capital dos incas. O imperador espanhol, Carlos V, tinha a mesma opinião.<br />
Seu tesoureiro, Pedro Riquelme, preocupado com a segurança do tesouro que havia sido<br />
arrecadado, mandou um funcionário escrever a Pizarro pedindo para que mantivesse<br />
Atahualpa vivo. Depois que a execução aconteceu, o rei considerou um ultraje a morte de<br />
um soberano e seu sepultamento terem ocorrido sem a cerimônia que ele merecia.<br />
A vontade real valeu menos que a de alguns índios e exploradores. Nos oito meses<br />
entre a captura e a execução de Atahualpa, os espanhóis estabeleceram uma boa<br />
convivência com os índios de Cajamarca. Os huancas, nativos que até então viviam sob<br />
domínio inca, não demoraram a se aliar aos espanhóis em represália a seus antigos<br />
senhores. Mulheres da corte, oficiais de elite inca (os “orejones”) e até parentes do<br />
imperador Atahualpa fizeram o mesmo. No meio de um território e de uma cultura pouco
conhecidos, os europeus tinham que confiar nos nativos como informantes. Esses índios,<br />
inclusive um sobrinho de Atahualpa, alertavam frequentemente os espanhóis quanto à<br />
possibilidade de uma tropa fiel ao imperador inca atacar a cidade com o objetivo de<br />
libertá-lo, o que poderia resultar no extermínio dos espanhóis. Como prova de que<br />
Atahualpa mantinha seu poder mesmo na prisão, havia o fato de ter ordenado a morte do<br />
irmão, Huáscar, que estava preso em Cuzco. Casos de matança geral dos espanhóis eram<br />
bem comuns naqueles anos, por isso o boato de uma revanche inca fez o grupo de<br />
espanhóis tremer. Quem mais atemorizou os espanhóis foi o índio Felipillo, principal<br />
tradutor entre Pizarro e Atahualpa. “As fontes nativas sugerem que Felipillo teve ou<br />
tentou fazer sexo com uma das mulheres de Atahualpa”, conta Gonzalo Lamana. “Usando<br />
sua posição-chave, ele traduziu tendenciosamente as respostas do inca e de outras<br />
testemunhas sobre o provável ataque.” O medo de uma batalha para livrar Atahualpa foi<br />
crucial na decisão de executá-lo.<br />
94 Mary E. Penny, “Can coca leaves contribute to improving the nutritional status of the Andean population?”, Food and<br />
Nutrition Bulletin, volume 30, número 3, The United Nations University, 2009.<br />
95 “Canciller propone sustituir leche por coca en desayuno escolar”, disponível em www.bolpress.com.<br />
96 Mary E. Penny, página 214.<br />
97 Michael E. Smith, The Aztecs, Blackwell, 2003, localização 2469 (edição Kindle).<br />
98 Michael E. Smith, localização 1953.<br />
99 Carmen María Pijoan Aguadé e Josefina Mansilla Lory, em Guilhem Olivier e Leonardo López Luján (org.), El Sacrificio<br />
Humano en la Tradición Religiosa Mesoamericana, Instituto Nacional de Antropología e Historia/Universidad Nacional<br />
Autónoma de México – Instituto de Investigaciones Históricas, 2010, página 29.<br />
100 Leonardo López Luján, Ximena Chávez Balderas, Norma Valentín e Aurora Montúfar, Huitzilopochtli y el Sacrificio de<br />
Niños en el Templo Mayor de Tenochtitlán, disponível em www.mesoweb.com/about/articles/Huitzilopochtli.pdf.<br />
101 “‘Racist’ Apocalypto accused of denigrating Mayan culture”, The Guardian, 10 de janeiro de 2007, disponível em<br />
www.guardian.co.uk/film/2007/jan/10/news.melgibson.<br />
102 Estella Weiss-Krejci, “Victims of human sacrifice in multiple tombs of the ancient Maya: a critical review”, em Andrés<br />
Ciudad Ruíz (org.), Antropología de la Eternidad: la Muerte en la Cultura Maya, volume 1, parte 1, Sociedad Española de<br />
Estudios Mayas, 2005, página 356.<br />
103 Vera Tiesler e Andrea Cucina, “El sacrificio humano por extracción de corazón: una evaluación osteotafonómica de<br />
violencia ritual entre los mayas del clasico”, Estudios de Cultura Maya, volume 30, páginas 57-78, Universidad Autónoma de<br />
Yucatán, disponível em www.iifl.unam.mx/html-docs/cult-maya/vera-cucci.pdf.<br />
104 Gonzalo Lamana, página 55.<br />
105 Sabine MacCormack, Religion in the Andes: Vision and Imagination in Early Colonial Peru, Princeton University<br />
Press, 1991, páginas 198 a 201.<br />
106 Terence D’Altroy, páginas 170 e 171.<br />
107 Pedro de Cieza de León, The Second Part of the Chronicle of Peru, Adamant, 2005, páginas 87 e 88.<br />
108 Michael E. Smith, localização 1881.
109 Entrevista com a historiadora americana Laura Matthew, em 6 de maio de 2011.<br />
110 É possível baixar a sequência de pinturas da conquista no site:<br />
http://myloc.gov/Exhibitions/EarlyAmericas/ExplorationsandEncounters/ConquestPaintings/ExhibitObjects/EntranceofCort%C3%A9s<br />
LaConquistadeMexico.aspx.<br />
111 Matthew Restall, Sete Mitos da Conquista Espanhola, Civilização Brasileira, 2006, página 75.<br />
112 Eduardo Bueno, Náufragos, Traficantes e Degredados, Objetiva, 1998, página 114.<br />
113 Jorge Caldeira, página 19.<br />
114 Eduardo Bueno, página 124.<br />
115 Robinson Herrera, “Concumbines and wives”, em Laura Matthew (org.), Indian Conquistadors, University of Oklahoma<br />
Press, 2007, página 130.<br />
116 Gonzalo Lamana, página 150.<br />
117 Matthew Restall, páginas 62 e 63.
É comum se afirmar que durante a conquista europeia “os índios homens foram<br />
mortos e as mulheres, emprenhadas”. A sentença reproduz a ideia de que os europeus<br />
tiveram pleno controle de suas ações da América. Na verdade, a própria relação dos<br />
recém-chegados com as índias mostra como eles precisaram mergulhar na<br />
cultura local para realizar seus objetivos. Tanto entre índios guaranis do<br />
Brasil e do Paraguai como entre os andinos e os nahuas do México, o<br />
casamento era muito mais que um evento particular: determinava alianças<br />
militares e posições sociais.<br />
O ADÃO PERNAMBUCANO<br />
Em toda a América Latina, índios só se aliavam depois que mulheres de seu clã se<br />
casassem com os europeus. Dois casos mostram isso muito bem. Um deles é o do<br />
português Jerônimo de Albuquerque, fundador do primeiro engenho de cana-de-açúcar de<br />
Pernambuco e cunhado de Duarte Coelho, o primeiro donatário daquela região. Ao<br />
chegar ao Brasil, eles não se entenderam com os índios tabajaras. Precisavam do<br />
trabalho dos índios para mover seu engenho, mas os nativos preferiam derrubar paubrasil<br />
para outros europeus. O problema se resolveu quando Jerônimo de Albuquerque se<br />
casou com Tabira, a filha do cacique dos Tabajaras. Teve tantos filhos com ela e outras<br />
mulheres que ganhou o nome de “Adão Pernambucano”. 118<br />
No México, há um correspondente feminino. Diversas índias nobres procuraram se casar<br />
com os espanhóis para manter o status de sua linhagem. O caso mais famoso é o de<br />
uma das filhas do imperador Montezuma, batizada como Doña Isabel Moctezuma. Antes<br />
de os espanhóis chegarem, ela já havia casado com três líderes vizinhos, com o objetivo<br />
de selar alianças entre os povos.<br />
E A EVA MEXICANA<br />
Depois da conquista, foi morar na casa do próprio Hernán Cortés, com quem teve um<br />
filho. Ainda se casou com outros três exploradores espanhóis: Alonso de Grado, Pedro<br />
Gallego e Juan Cano. Ninguém a considerava uma mulher promíscua – e sim uma<br />
respeitável representante da nobreza, dona de encomiendas e preocupada em construir<br />
alianças de sangue com os espanhóis mais proeminentes. 119<br />
118 Maria do Carmo Andrade, “Jerônimo de Albuquerque”, Fundação Joaquim Nabuco, disponível em www.fundaj.gov.br.
119 Michel Oudijk e Matthew Restall, “Mesoamerican conquistadors in the 16th century”, em Laura Matthew (org.), página 45.
No México, até o avanço militar dos espanhóis teve influência indígena. Como<br />
sugerem os lienzos nahuas, as batalhas de conquista foram decididas tanto pelos<br />
espanhóis quanto pelos índios aliados. Há outros vestígios dessa convergência de<br />
objetivos. Logo depois de a colônia espanhola se estabelecer, descendentes de índios<br />
aliados enviaram à corte na Europa pedidos de pensões e isenção de impostos.<br />
Justificavam o pedido destacando seus próprios feitos em prol da conquista, como faziam<br />
os exploradores nas probanzas de mérito. Em 1584, por exemplo, Don Joachin de San<br />
Francisco Moctezuma, cacique da região de Puebla, solicitou que sua comunidade ficasse<br />
livre da cobrança de impostos. A isenção seria uma retribuição em reconhecimento aos<br />
esforços de seu avô, Matzatzin, ao receber Hernán Cortés e conquistar povos da região<br />
de Mixteca e Oaxaca. O cacique ainda se dizia tataraneto do próprio Montezuma, o<br />
imperador asteca. O mais notável é que, segundo o relatório do cacique, a conquista<br />
desses territórios aconteceu sem nenhum guerreiro espanhol. “Enquanto Cortés voltou<br />
para o norte para reconquistar e punir Tenochtitlán por sua revolta, Matzatzin foi para o<br />
sul e conquistou cerca de 20 cidades”, dizem os historiadores Michel R. Oudijk e<br />
Matthew Restall num dos estudos do livro Indian Conquistadors (“Índios<br />
Conquistadores”). Apesar dos interesses do cacique em exagerar os feitos do avô, sua<br />
história converge com o que contam outras fontes nativas. 120 O cacique Joachin acabou<br />
obtendo a isenção de impostos que solicitava.<br />
Há diversos casos assim. Como o dos índios mexicas (astecas), tlaxcaltecas e<br />
zapotecas que partiram com o espanhol Pedro de Alvarado para a Guatemala, em 1524,<br />
com o objetivo de conquistar povos maias. Quarenta anos depois de assentados em terras<br />
guatemaltecas, esses índios protocolaram um pedido de isenção de impostos que incluía<br />
relatórios de campanhas militares, testemunhos de vizinhos e de guerreiros indígenas.<br />
Todo o processo, incluindo ofícios reais e interrogatórios, chegou a 800 páginas. Entre<br />
as pessoas que apoiavam o pedido havia até mesmo conquistadores europeus, como<br />
Gonzalo Ortíz, conselheiro de uma cidade próxima. 121 De acordo com seu testemunho,<br />
“depois de conquistada esta terra os ditos índios conquistadores da Nova Espanha<br />
ficaram, muitos deles, povoados na cidade velha de Almolonga, onde agora estão e<br />
vivem com seus filhos e descendentes”.<br />
O número tão alto de “índios conquistadores”, entre tão poucos espanhóis, fez as<br />
guerras da conquista espanhola ganhar a cara das guerras anteriores à chegada dos<br />
espanhóis. Repare neste trecho do livro Aztec Warfare (“Guerra Asteca”), sobre as<br />
batalhas pré-hispânicas:<br />
As cidades frequentemente eram atacadas em sequência, com os recursos, a inteligência e, algumas vezes, os guerreiros<br />
da última conquista auxiliando a próxima. A expansão sem precedentes dos astecas os levou a regiões onde foram<br />
capazes de explorar antagonismos locais aliando-se com um adversário contra o outro. Também faziam campanhas de<br />
intimidação contra cidades que não atacavam diretamente. Mensageiros iam a essas cidades para perguntar, geralmente<br />
oferecendo vantagens, se os moradores se tornariam súditos do Império Asteca. 122<br />
Basta trocar a palavra “asteca” por “espanhóis” para descrever boa parte do modo de<br />
guerrear dos europeus na América. Mais uma amostra de que, no dia a dia de longas<br />
caminhadas, pousos, negociações e batalhas, os costumes indígenas não foram totalmente<br />
reprimidos. “A Conquista da América Central foi, desde o começo, uma parceria
hispano-americana: planejada, coordenada, guiada e guerreada por milhares de índios<br />
nahuas, zapotecas e mixtecas, e algumas centenas de espanhóis, em nome de suas cidades,<br />
dos deuses mesoamericanos, de Cristo e da Coroa espanhola”, afirma a historiadora<br />
Laura Matthew. 123 Diante desse protagonismo indígena ao exterminar seus conterrâneos, é<br />
fácil entender o que quis dizer o conquistador espanhol Francisco de Bracamonte, em<br />
1576, quando escreveu a seguinte frase:<br />
Posso dizer com toda a honestidade que sem os índios nós nunca teríamos conquistado esta terra. 124<br />
Os índios não foram excluídos das decisões políticas<br />
Não é correto, é claro, cometer o equívoco oposto e acreditar que os espanhóis não<br />
protagonizaram ação alguma, só acompanharam os índios em seus conflitos internos. Ou<br />
que não provocaram uma tremenda reorganização da vida dos índios. Mas a ideia do<br />
índio conquistador mostra como é exagerado e simplista dizer que os povos locais da<br />
América Latina foram marginalizados e excluídos de suas decisões políticas. Líderes e<br />
guerreiros locais não só estabeleceram alianças estratégicas para impor sua vontade<br />
como, muito depois de a conquista espanhola se estabelecer, continuaram participando da<br />
elite política.<br />
No dia a dia colonial, as famílias de nobres indígenas se adaptaram às novas<br />
instituições criadas pelos espanhóis. Chefes de clãs e das cidades indígenas se tornaram<br />
governadores, chefes dos cabildos (os conselhos municipais) e caciques, ao mesmo<br />
tempo senhores dos índios locais e donos de terras. Bem ao costume pré-hispânico, o<br />
cacique cedia terra aos índios em troca de impostos em mercadorias. Além dos cargos de<br />
representação política, os índios fizeram parte da administração burocrática da colônia<br />
como juízes, fiscais ou tesoureiros. “Desde o século 16 se generalizou a prática de<br />
utilizar índios nobres como comissários, representantes do governo para resolver<br />
diferenças, levar a cabo auditorias e às vezes exercer a máxima autoridade em povos<br />
distantes de sua residência”, conta o historiador mexicano Tomás Jalpa Flores. 125 É<br />
verdade que, durante a conquista, houve uma diminuição do número de famílias indígenas<br />
nobres e que a influência delas mudava de acordo com as ordens reais e a relação de<br />
cada região com o reino. No entanto, como afirma Flores sobre as famílias da região de<br />
Chalco:<br />
É preciso reconhecer que, na prática, durante os séculos 16 e 17, as linhagens indígenas seguiram participando da vida<br />
política da província; ocuparam os principais postos e, como consequência, administraram, como parte dos cacicados, as<br />
terras das comunidades e o seu patrimônio particular. Sua posição na sociedade permitiu a eles explorar a força do<br />
trabalho e continuar se beneficiando dos tributos e outros serviços que exigiam dos povoados. 126<br />
Esses índios logo deixaram os seus costumes de lado para entrar na sociedade<br />
espanhola. Não demoraram a adotar nomes europeus, vestirem-se como aristocratas<br />
espanhóis, criar rebanhos de ovelhas, morar em casas coloniais com camas, colchões,<br />
mesas e cadeiras, ter cavalos, espadas e armas de fogo. Alguns viraram até mesmo<br />
senhores escravistas. “Os testamentos e inventários de suas posses mostram uma adoção
progressiva dos artigos da civilização espanhola, incluindo algumas vezes escravos<br />
negros”, conta o historiador americano Charles Gibson no clássico The Aztecs under<br />
Spanish Rule (“Os Astecas sob o Domínio Europeu”). 127 O cacique Juán de Galicia é um<br />
bom exemplo de índio europeizado. Como governador da região mexicana de<br />
Tlalmanalco no século 17, cobrava impostos das cidades e dividia a quantia arrecadada<br />
entre a Coroa espanhola e o Hospital Real dos Índios. Amigo de outros fazendeiros da<br />
região, criava cavalos, bois, vendia madeira, plantava milho e portava armas de fogo. 128<br />
De geração em geração, esses índios tão europeizados deixaram de se considerar índios.<br />
Os incas davam enorme importância à linhagem dos jovens nobres. Quem aspirava a um cargo real ou mesmo ao posto<br />
de soberano inca deveria ter a ascendência de nobres então no poder. Essa preocupação foi tão grande que há relatos de<br />
um jovem se casar com sua irmã (provavelmente meia-irmã) para que tivessem filhos “mais puros”. 129<br />
Uma parcela do poder indígena também continuou existindo nos Andes. Os curacas<br />
exerceram papéis essenciais na administração colonial. Arregimentavam índios para<br />
montar grupos de trabalho, coletavam impostos e também forneciam comida e<br />
ferramentas ao redor das minas de prata. Em troca ganhavam armas, apoio contra<br />
agressões de índios inimigos e o título honorífico de “Don”. No século 18, 250 anos<br />
depois da “queda do Império Inca” ainda havia índios disputando poder com base em sua<br />
ascendência nobre. Em 1785, um em cada dez índios de Cuzco fazia parte da nobreza<br />
colonial. Na eleição para conselheiro municipal, alguns candidatos se diziam “netos de<br />
imperadores incas”. 130 Há registros do século 17 de índios nobres que apelaram à corte<br />
de Lima para que só descendentes de Huayna Cápac, como eles, pudessem ser eleitos em<br />
seu cabildo. 131 “Em alguns casos, as elites locais eram descendentes de elites dos tempos<br />
anteriores à conquista – entre eles, a nobreza de Cuzco e as dinastias de caciques da<br />
bacia do Titicaca”, escreveu o historiador americano <strong>Da</strong>vid T. Garrett. 132<br />
Entre os lagos que formam a bacia do Titicaca está a região onde nasceu aquele que é<br />
considerado o primeiro presidente indígena de um certo país andino, um certo país<br />
conhecido por ser campeão do mundo em golpes de Estado. Para evitar mais convulsões<br />
políticas, os autores deste livro preferem não afirmar que o tal presidente talvez não seja<br />
descendente de índios marginalizados, mas de opressoras dinastias andinas que se<br />
perpetuaram no poder. Em nome da paz, já basta por aqui.<br />
120 Michel Oudijk e Matthew Restall, página 35 e 36.<br />
121 Laura Matthew (org.), Indian Conquistadors, University of Oklahoma Press, 2007, página 117.<br />
122 Ross Hassig, Aztec Warfare, University of Oklahoma Press, 1995, página 21, citado em Laura Matthew (org.), página 42.<br />
123 Laura Matthew (org.), páginas 111 e 112.<br />
124 Laura Matthew (org.), página 175.<br />
125 Tomás Jalpa Flores, La Sociedad Indígena em la Región de Chalco durante los Siglos 16 e 17, Instituto Nacional de<br />
Antropologia e Historia de México, 2009, página 371.<br />
126 Tomás Jalpa Flores, página 292.<br />
127 Charles Gibson, Los Aztecas Bajo el Dominio Español (1519-1810), FCE, 2003, página 158.<br />
128 Tomás Jalpa Flores, páginas 303 a 305.
129 Terence D’Altroy, página 104 e entrevista com o autor em 5 de maio de 2011.<br />
130 <strong>Da</strong>vid T. Garrett, Shadows of Empire: The Indian Nobility of Cusco, 1750-1825, Cambridge University Press, 2005,<br />
página 58.<br />
131 <strong>Da</strong>vid T. Garrett, página 59.<br />
132 <strong>Da</strong>vid T. Garrett, página 42.
SIMÓN BOLÍVAR
DA DIREITA PARA A ESQUERDA<br />
Na Venezuela, entre bater aquela vontade e sentar no vaso sanitário, é preciso pedir<br />
licença ao “Libertador” Simón Bolívar pelo menos duas vezes. O herói da independência<br />
nacional, conquistada depois de 11 anos de luta em 1821, está em todos os lugares. No<br />
nome do país, a República Bolivariana da Venezuela, nas ruas, nos muros, nos cartazes e<br />
nas notas de dinheiro – a moeda nacional é o Bolívar Forte. Nas livrarias de Caracas,<br />
não há uma estante sobre a História da Venezuela, assim como há uma de História da<br />
Argentina nas livrarias de Buenos Aires ou uma de História do Brasil nas de São Paulo.<br />
Há, sim, uma sobre Temas Bolivarianos. É como se a trajetória de um país inteiro ao<br />
longo dos séculos pudesse ser resumida à vida de um único homem.<br />
Bolívar, que nasceu na Venezuela, foi o protagonista de momentos decisivos na<br />
história desse e de outros cinco países. No fim do século 18 e início do 19, período em<br />
que ele viveu, as colônias espanholas na América nutriam enorme ressentimento com a<br />
metrópole. Durante a dinastia dos Bourbon, que governou a Espanha até 1808, o controle<br />
comercial foi restringido, e os impostos, elevados. Intendentes espanhóis foram<br />
nomeados para substituir os criollos, ou seja, os nativos americanos descendentes de<br />
europeus, nos principais cargos da burocracia do Estado. 133 Sob o reinado Bourbon, os<br />
oficiais de patentes mais elevadas no exército também passaram a ser, obrigatoriamente,<br />
espanhóis. 134 As colônias eram obrigadas a importar produtos como fumo, pólvora e<br />
tecidos apenas da Espanha e era apenas para lá que deveriam exportar seus metais e seus<br />
produtos agrícolas. “Os proprietários rurais criollos procuravam mercados de<br />
exportação maiores do que a Espanha poderia oferecer. Na Venezuela, os grandes<br />
latifundiários, produtores de cacau, de anil, de fumo, de café, de algodão e de couros<br />
viam-se permanentemente frustrados pelo controle espanhol do comércio de importaçãoexportação”,<br />
escreveu o historiador inglês Leslie Bethell. 135<br />
O Panamá foi parte da Colômbia até 1903 quando seus habitantes, apoiados pelos americanos, declararam<br />
independência. O suporte dos Estados Unidos se deveu ao interesse estratégico no Canal do Panamá, em construção na<br />
época.<br />
Um dos mais ricos desses proprietários, Simón Bolívar, uniu-se aos demais criollos<br />
venezuelanos para declarar a independência e iniciar uma série de batalhas contra a<br />
Espanha. Ele atravessou os Andes com uma tropa de venezuelanos e de mercenários<br />
ingleses até a atual Colômbia. Contando sempre com a ajuda dos criollos locais,<br />
começou uma luta vitoriosa no país vizinho. Enquanto isso, Equador e Panamá<br />
declararam sua independência. Depois, Bolívar viajou rumo ao sul, para o Peru, e repetiu<br />
o feito. Subiu até o Alto Peru, atacou novamente os espanhóis e assim contribuiu para a<br />
criação de uma nova nação, batizada em sua homenagem: Bolívia. Em 1821, seguindo<br />
suas ambições, Venezuela, Colômbia e Equador se uniram em um mesmo país, a Grande<br />
Colômbia, que tinha Bolívar como presidente e ainda incluía o Panamá.
ALBUM/ORONOZ/LATINSTOCK – CASA MUSEO QUINTA DE BOLÍVAR, BOGOTÁ<br />
Mural pintado pelo colombiano Jose Ignacio Castillo Cervantes mostra a entrada triunfal de Bolívar em Bogotá.<br />
Quase 200 anos após sua morte, todos esses países guardam uma dívida para com<br />
Bolívar, mas em nenhum deles a adoração é tão intensa quanto na Venezuela. Graças ao<br />
empurrãozinho do presidente Hugo Chávez, eleito em 1998, Bolívar é um herói<br />
internacional. Com ele, o bolivarianismo expandiu-se e ganhou o coração de muitos<br />
presidentes de esquerda (até da Argentina, onde o Libertador jamais esteve!), ansiosos<br />
por confessar sua “pegada bolivariana” e ganhar como recompensa alguns petrodólares<br />
venezuelanos.<br />
Sendo Bolívar hoje um ícone dos marxistas, emprestemos o centro do auditório para<br />
que o alemão Karl Marx, o pai intelectual da esquerda, nos introduza às particularidades<br />
desse personagem tão importante na América Latina. Por um capricho da história, em<br />
1857, Marx foi contratado pelo diretor do jornal New York <strong>Da</strong>ily Tribune para escrever<br />
alguns verbetes para uma tal New American Cyclopaedia. Entre suas atribuições, ele foi<br />
encarregado de resumir a vida de Bolívar, que tinha morrido com tuberculose 27 anos<br />
antes. Inicia, assim, o texto de Marx:<br />
Bolívar y Ponte, Simón, o “libertador” da Colômbia, nasceu em Caracas, em 24 de julho de 1783, e faleceu em San<br />
Pedro, perto de Santa Marta, em 17 de dezembro de 1830. Era filho de uma das famílias mantuanas que, no período da<br />
supremacia espanhola, constituíam a nobreza criolla da Venezuela. 136<br />
O verbete, então, segue contando as aventuras militares do comandante, incluindo<br />
traições a seus companheiros, como Francisco de Miranda, que encarregara Bolívar de<br />
tomar conta da fortaleza de Porto Cabello:<br />
Quando os prisioneiros de guerra espanhóis, que Miranda costumava confinar na fortaleza de Porto Cabello,<br />
conseguiram dominar de surpresa os guardas e tomar a cidadela, Bolívar – apesar de os prisioneiros estarem<br />
desarmados, ao passo que ele dispunha de uma guarnição numerosa e uma grande quantidade de munição – fugiu
precipitadamente durante a noite com oito de seus oficiais, sem informar seus próprios soldados. Ao tomar conhecimento<br />
da fuga de seu comandante, a guarnição retirou-se ordeiramente do local, que foi ocupado de imediato pelos<br />
espanhóis. 137<br />
Manuel Piar, um caudilho mestiço que lutou contra a Espanha, queria que Bolívar fosse a julgamento na Corte Marcial<br />
por deserção e covardia. Ele o chamava de “Napoleão das retiradas”. A disputa entre os dois fez com que Piar fosse<br />
depois fuzilado por Bolívar. 138<br />
É a primeira narração de Marx de uma fuga covarde de Bolívar. Ao todo, há outras<br />
cinco. Outra é esta aqui, quando Marx relata o depoimento de uma testemunha:<br />
Quando os combatentes [espanhóis] dispersaram a guarda avançada de Bolívar, segundo o registro de uma testemunha<br />
ocular, este perdeu toda a presença de espírito, não disse palavra, fez meia-volta no ato com o cavalo, fugiu a toda<br />
velocidade para Ocumare, passou pelo vilarejo num galope desabalado, chegou à baía próxima, apeou de um salto, entrou<br />
num bote e embarcou no Diana, deixando todos os seus companheiros privados de qualquer auxílio. 139<br />
Para Marx, Bolívar também era despótico e egocêntrico. A ideia fixa do venezuelano<br />
era criar uma única República, que seria resultante da independência de várias colônias:<br />
“Eu desejo, mais do que qualquer outro, ver formar-se na América a maior nação do<br />
mundo, menos por sua extensão e riquezas do que pela liberdade e glória”, 140 escreveu<br />
ele em uma carta na Jamaica, em 1815. Em 1826, com a Espanha fora da região, o<br />
Libertador organizou um congresso no Panamá com representantes de vários países de<br />
toda a América do Sul. Convidou até mesmo diplomatas do Brasil. Segundo o pensador<br />
alemão:<br />
O que Bolívar realmente almejava era erigir toda a América do Sul como uma única república federativa, tendo nele<br />
próprio seu ditador. Enquanto, dessa maneira, dava plena vazão a seus sonhos de ligar meio mundo a seu nome, o poder<br />
efetivo lhe escapou das mãos. 141<br />
O número de habitantes da Venezuela antes da guerra de independência beirava 1 milhão. Depois, estava em 660 mil.<br />
Três em cada dez venezuelanos pereceram no conflito. 142<br />
No ano seguinte, em 1827, Bolívar voltou à Venezuela após cinco anos lutando contra<br />
soldados que defendiam a Espanha na Colômbia, no Peru e na Bolívia. Os interesses dos<br />
espanhóis eram guarnecidos por apenas mil soldados, a maioria deles americanos<br />
doentes e mal equipados. 143 Para ajudá-los, a Espanha enviou sua maior expedição<br />
militar para a colônia em três séculos de dominação e reforços anuais. “Mas o tamanho<br />
excedia a moral, e uma vez na América os números eram reduzidos pela morte ou<br />
deserção. Os soldados espanhóis eram conscritos (alistados obrigatoriamente), não<br />
voluntários. A Guerra Colonial não era uma causa popular na Espanha, e nem os<br />
soldados, nem os oficiais queriam arriscar suas vidas na América, muito menos na<br />
Venezuela, onde o ambiente de luta era notoriamente cruel”, escreveu John Lynch. 144<br />
Era tanta gente treinando para lutar com Bolívar nas ruas de Londres que a embaixada da Espanha apresentou uma<br />
reclamação formal ao governo inglês. Em 1819, foi decretado o Ato de Alistamento Estrangeiro, proibindo os britânicos<br />
de lutar em exércitos na América do sul e vender armas. Foi uma lei para espanhol ver, pois de nada adiantou. 145<br />
Para confrontá-los, Bolívar e seus parceiros criollos contaram com a ajuda dos<br />
ingleses. Após as guerras com Napoleão, havia milhares de soldados desempregados ou<br />
com baixos salários na Grã-Bretanha. Ansiavam tanto por um convite para lutar na<br />
América do Sul que treinavam voluntariamente durante o dia em Londres. Ao chegar à
Venezuela, passaram a ser conhecidos como bons marchadores, pois deixavam os<br />
soldados locais sempre para trás nos grandes deslocamentos de tropas. A Batalha de<br />
Boyacá, ocorrida quando Bolívar entrou na Colômbia e a qual o libertador considerava<br />
“minha mais completa vitória”, foi vencida graças aos ingleses, que também venderam<br />
rifles, pistolas e espadas aos republicanos.<br />
No retorno à Venezuela, quem recebeu Bolívar foi o general José Antonio Páez, que<br />
ajudara a debandar as tropas da metrópole e, três anos depois, se tornaria presidente da<br />
Venezuela. Em sua aula, o professor Marx nos conta então como se dá a entrada<br />
apoteótica do Libertador em Caracas:<br />
De pé sobre um carro triunfal, puxado por 12 jovens vestidas de branco e enfeitadas com as cores nacionais, todas<br />
escolhidas entre as melhores famílias de Caracas, Bolívar, com a cabeça descoberta e uniforme de gala, agitando um<br />
pequeno bastão, foi conduzido por cerca de meia hora, desde a entrada da cidade até sua residência. Proclamando-se<br />
“Diretor e Libertador das Províncias Ocidentais da Venezuela”, criou a “Ordem do Libertador”, formou uma tropa de<br />
elite que denominou de sua guarda pessoal e se cercou da pompa própria de uma corte. Entretanto, como a maioria de<br />
seus compatriotas, ele era avesso a qualquer esforço prolongado, e sua ditadura não tardou a degenerar numa anarquia<br />
militar, na qual os assuntos mais importantes eram deixados nas mãos de favoritos, que arruinavam as finanças públicas<br />
e depois recorriam a meios odiosos para reorganizá-las. 146<br />
Ao ser questionado se não teria exagerado na crítica ao descrever uma pessoa com<br />
tantas conquistas, Marx respondeu o seguinte em uma carta para o camarada Friedrich<br />
Engels:<br />
Seria ultrapassar os limites querer apresentar como Napoleão I o mais covarde, brutal e miserável dos canalhas. 147<br />
Um rei para a América Latina<br />
Em resumo, a aula de Karl Marx sobre Simón Bolívar revela que esse último lhe<br />
suscitara uma imagem nada honrosa. O venezuelano, segundo ele, era covarde, folgado,<br />
egocêntrico, narcisista, inútil como estrategista militar e sempre ávido por acumular<br />
poder. Marx tinha razão? Em alguns pontos, sim. Em outros, é difícil saber.<br />
Principalmente em relação às acusações sobre sua falta de bravura e sua preguiça. Mas<br />
uma análise das atitudes políticas que Bolívar tomava após suas conquistas militares, das<br />
cartas que escreveu, dos discursos e, principalmente, da Constituição que redigiu para a<br />
Bolívia não deixa dúvida com relação às acusações de que ele fez de tudo para acumular<br />
poder. Apesar de ter entrado em contato com conceitos iluministas durante uma viagem à<br />
França e à Inglaterra, essas ideias começaram a se enfraquecer logo após seu retorno até<br />
desaparecerem.<br />
Bolívar, um devorador de livros, leu Jean-Jacques Rousseau, John Locke, Voltaire e<br />
Montesquieu. Do inglês Locke, aprendeu o conceito de que os homens tinham direitos<br />
naturais, como a vida, a propriedade e a liberdade. Do francês Rousseau, sorveu a<br />
necessidade de lutar por liberdade, o que ele interpretou como a urgência do fim do<br />
domínio espanhol. “O homem nasce livre, mas em qualquer lugar está acorrentado”, lia<br />
ele em seu livro de cabeceira Do Contrato Social, de Rousseau. Todos esses autores<br />
exerceram alguma influência sobre o venezuelano no início de sua vida política. Era
também uma época marcada por duas revoluções, a inglesa do século 17 e a francesa de<br />
1789. Bolívar e os demais criollos viam com bons olhos o sucesso econômico da<br />
Inglaterra, que sobrepujava a Espanha, mas tinham receio de repetir o banho de sangue<br />
que se dera na França. 148 De qualquer modo, nos seus anos de vida, as ideias mais<br />
revolucionárias já tinham desaparecido de sua mente, e Bolívar defendia abertamente um<br />
absolutismo monárquico nos territórios que anos antes ele ajudara a libertar do rei<br />
espanhol.<br />
Seus primeiros traços autoritários aparecem logo no início dos confrontos, em 1813.<br />
Depois que a disputa com os espanhóis na Venezuela chegou a um impasse, Bolívar<br />
viajou com um exército mercenário para a Colômbia, com o objetivo de abrir uma outra<br />
frente contra os espanhóis. Em Cartagena, em 1813, após dominar os inimigos<br />
colonizadores, Bolívar estabeleceu uma pequena ditadura. Ditava as políticas e nomeava<br />
os membros do governo. Recebeu poder supremo pela assembleia recém-formada e<br />
estabeleceu um governo linha-dura, sem misericórdia com os espanhóis e com a pena de<br />
morte para os que ameaçavam a ordem social. No ano seguinte, ele justificou sua<br />
ditadura como uma medida necessária para manter sob controle um país em estado de<br />
emergência:<br />
Meu desejo de salvar vocês da anarquia e de destruir os inimigos que ainda estão se esforçando para manter os<br />
opressores me forçaram a aceitar e manter o poder soberano […]. Eu vim para trazer a vocês o estado das leis.<br />
Na Carta da Jamaica, em 1815, já começou a atacar mais fortemente os valores e as<br />
instituições democráticos, os quais ele considerava inadequados para as sociedades<br />
americanas:<br />
Eventos na Terra Firme nos provaram que instituições totalmente representativas não estão adaptadas para o nosso<br />
caráter, costumes e conhecimento atual. Em Caracas o espírito dos partidos cresceu nas sociedades, assembleias e<br />
eleições populares, e os partidos nos levaram de volta à escravidão. 149<br />
Talvez Bolívar estivesse certo quanto às limitações da democracia. O fato é que assim<br />
se revela sua malandragem intelectual. Ele adorava escrever em suas longas cartas que<br />
era um liberal, adepto das ideias do Iluminismo, da igualdade entre as pessoas, da<br />
separação dos poderes. Muito nobre. Algumas linhas abaixo, e ele já se dizia convencido<br />
de que isso não valia para a América, que a herança de colônia espanhola e a mistura de<br />
raças tornavam impossível implantar algo assim por aqui. A solução? Um governo de<br />
“pulso infinitamente firme, um tato infinitamente delicado”. Em um discurso de 1819,<br />
essa artimanha fica evidente. Primeiro, Bolívar afirma ser um partidário da democracia,<br />
da liberdade, da alternância de poder:<br />
A continuação da autoridade em um mesmo indivíduo frequentemente tem sido o fim dos governos democráticos. As<br />
repetidas eleições são essenciais nos sistemas populares, porque nada é tão perigoso como deixar permanentemente por<br />
um longo tempo em um mesmo cidadão o poder. O povo se acostuma a obedecer, e ele se acostuma a mandar, de onde<br />
se origina a usurpação e a tirania.<br />
Depois, solta esta:<br />
A diversidade da origem social requer uma mão infinitamente dura e um tato infinitamente delicado para administrar essa
sociedade heterogênea, cujo complexo mecanismo é facilmente deteriorado, separado e desintegrado pela menor<br />
controvérsia. 150<br />
No mesmo texto, em que dá orientações para a formação de um único governo para<br />
administrar a Venezuela e a Colômbia e de um Congresso, propõe a criação de um<br />
Senado hereditário, seguindo o modelo da Câmara dos Lordes inglesa. No trecho,<br />
defende regalos monárquicos:<br />
A veneração que professam os povos à magistratura real é um prestígio que influi poderosamente para aumentar o<br />
respeito supersticioso que se atribuiu a essa autoridade. O esplendor do trono, da coroa, da púrpura, o apoio formidável<br />
que empresta a nobreza, as imensas riquezas que gerações inteiras acumulam em uma mesma dinastia, a proteção<br />
fraternal que reciprocamente recebem todos os reis são vantagens muito consideráveis que militam em favor da<br />
autoridade real e a fazem quase ilimitada. Essas mesmas vantagens são, por consequência, as que devem confirmar a<br />
necessidade de atribuir a um magistrado republicano uma soma maior de autoridade que a que possui um príncipe<br />
constitucional. 151<br />
Quando ajuda na independência da Bolívia e escreve a Constituição do país, sua veia<br />
autoritária se revela plenamente. Segundo o texto, o presidente deve governar por toda a<br />
sua vida e teria o direito de escolher o seu sucessor e o vice-presidente (que seria o<br />
primeiro-ministro). Eleições deveriam ser evitadas, pois, segundo ele, apenas produzem<br />
anarquia. 152 Nem mesmo os conservadores europeus eram tão conservadores:<br />
Estou convencido do tutano dos meus ossos que a América só pode ser governada por um despotismo hábil. 153<br />
Com a aprovação de seu projeto de Constituição, Bolívar tentou espalhar essa mesma<br />
carta de leis pelos demais países da América do Sul onde tinha alguma influência e<br />
convidou seus presidentes ao tal Congresso no Panamá. Era isso o que Marx queria dizer<br />
com “O que Bolívar realmente almejava era erigir toda a América do Sul como uma<br />
única república federativa, tendo nele próprio seu ditador”.<br />
Bolívar participou da luta de classes – só que na parte de cima<br />
O que mais impressiona no verbete escrito por Marx, contudo, não é o que o alemão<br />
diz a respeito do venezuelano, mas o que ele esqueceu. Ao participar dos conflitos de<br />
independência, Bolívar envolveu-se em uma sangrenta luta de classes. Não no lado de<br />
baixo, das classes menos favorecidas, mas na classe de cima. Seu maior medo era que<br />
negros, índios e mestiços tomassem o poder e instalassem um governo dos pardos, que<br />
eram os negros livres e mulatos. Bolívar se referia a isso como uma “pardocracia”. Em<br />
uma carta endereçada ao general Francisco de Paula Santander, ele escreveu:<br />
A igualdade natural não é o bastante para o povo, que quer uma igualdade absoluta, tanto no público como no doméstico.<br />
E depois irá querer a pardocracia, que é a inclinação natural e única, para exterminar depois a classe privilegiada. 154<br />
Um mês depois, ele afirma:<br />
Vão nos sepultar em uma guerra de cores, ou mais ainda, destruir nossa miserável espécie. 155
Com a intenção de realçar os traços latinos do seu libertador querido, o presidente venezuelano Hugo Chávez, no<br />
programa dominical Aló Presidente, em 5 de março de 2006 disse: “Bolívar não era branco. Bolívar nasceu entre os<br />
negros, era mais negro do que branco. Não tinha olhos verdes. Bolívar era zambo”. 156<br />
O preconceito contra outros grupos sociais era comum. Sua família era parte da elite<br />
branca espanhola, de origem basca. Era um “mantuano”, como eram chamados os donos<br />
de terras e de escravos e comandantes do exército colonial 157 que descendiam dos<br />
espanhóis. O pai, que morreu de tuberculose quando ele tinha dois anos, possuía duas<br />
fazendas de cacau, uma de cana-de-açúcar na cidade de San Mateo, três ranchos de gado<br />
nas planícies, uma plantação de índigo, uma mina de cobre e quatro casas em Caracas e<br />
outras em La Guaira. A consciência de raça era bem enraizada em toda a região, e as<br />
conversas de vizinhos normalmente eram sobre a ascendência dos demais. 158<br />
O temor de Bolívar tinha fundamento de acordo com o pensamento da época. Na<br />
Venezuela, de economia agrícola, escravos e pardos constituíam 61% da população, ou<br />
seja, a maioria. 159 Por decisão dos espanhóis, foi permitido a eles que integrassem as<br />
milícias, decisão que foi reprovada pela aristocracia local, temerosa de rebeliões. 160 Não<br />
era uma época tranquila para as aristocracias. Na Europa, os princípios liberais da<br />
Revolução Francesa tinham acabado em guilhotina e tragédia. No Haiti, então a colônia<br />
francesa mais próspera no Caribe, uma revolta de escravos matou senhores brancos e<br />
tomou propriedades em 1791. A partir de então, boa parte dos agricultores e dos donos<br />
de terras deixaram o país, que mergulhou em conflitos raciais de brancos ricos, brancos<br />
pobres, mulatos, negros livres e escravos, além da invasão de franceses, ingleses e<br />
espanhóis. Depois de anos seguidos de devastação e carnificinas, a República do Haiti,<br />
proclamada em 1804, matou ou expulsou todos os brancos que viviam por ali e manteve<br />
os negros em um sistema que dissimulava a escravidão (veja mais sobre o Haiti na<br />
página 157).<br />
Quando Napoleão invadiu a Espanha, em 1807, as colônias latino-americanas ficaram<br />
subitamente sem uma metrópole para obedecer. Mais do que isso, a aristocracia criolla<br />
percebeu que não poderia contar com ela para sua proteção. No vácuo de poder,<br />
esperava-se que uma revolução acontecesse de um jeito ou de outro. “Os hispanoamericanos<br />
tiveram de preencher o vazio político e conquistar sua independência, não<br />
para criar um outro Haiti, mas para impedi-lo”, escreveu o historiador John Lynch. 161<br />
Não é por acaso que em toda a América Latina, os mesmos militares e aristocratas que<br />
tinham lutado contra a Espanha passam a atuar para conter insatisfações sociais e<br />
pequenas rebeliões internas. “Após um envolvimento inicial numa agitação puramente<br />
fiscal, os criollos geralmente percebiam o perigo de um protesto mais violento das<br />
camadas inferiores, dirigido não somente contra a autoridade administrativa mas também<br />
contra todos os opressores”, afirma o historiador Leslie Bethell. “Então se uniam às<br />
forças da lei e da ordem para reprimir os rebeldes sociais.” 162<br />
De qualquer modo, a aula de Marx foi incompleta. Bolívar tinha medo das classes<br />
sociais abaixo dele e agiu para evitar que elas chegassem ao poder. Não ter enxergado<br />
isso foi uma falta gravíssima de Marx, considerando-se que hoje seus discípulos de<br />
universidades públicas e privadas sempre começam qualquer análise social procurando,<br />
em qualquer lugar, em qualquer data, qualquer coisa relacionada a uma luta de classes.<br />
Na opinião de Simón Bolívar, que escreveu a constituição da Bolívia, essa sua obra-
prima tinha o mérito de criar uma ferramenta para enfrentar os obstáculos que viriam pela<br />
frente, principalmente as rebeliões de pardos, mestiços e mulatos, nascidos da mistura de<br />
espanhóis, índios e negros africanos:<br />
Um grande vulcão está sob nossos pés, e seus tremores não são poéticos ou imaginários, mas muito reais. Quem deve<br />
reconciliar as mentes? Quem deve reprimir as classes oprimidas? A escravidão vai quebrar seu jugo, cada tom de cor<br />
vai buscar supremacia, e o resto vai lutar como vitória ou morte. Ódios latentes entre as diferentes classes vão aparecer<br />
de novo, cada opinião vai querer ser soberana. 163<br />
Em uma carta ao general Santander, Bolívar deixa transparecer sua obsessão com o<br />
perigo das classes subalternas. Entre os argumentos para convencer o destinatário a<br />
aceitar negros nas fileiras do exército era que, assim, seria possível reduzir o número<br />
(por meio das baixas) e manter o saudável equilíbrio social da República. 164<br />
Não seria apropriado que os escravos adquirissem seus direitos no campo de batalha, e que os seus números perigosos<br />
fossem reduzidos por um processo que é ao mesmo tempo efetivo e legítimo? Na Venezuela nós temos visto a população<br />
livre morrer e os escravos sobreviverem. Eu não sei o quanto isso é político, mas sei que, a menos que a gente recrute<br />
escravos em Cundinamarca, a mesma coisa vai acontecer de novo. 165<br />
Onde está lá (no Haiti) um exército de ocupação para impor a ordem? África? − nós teremos mais e mais da África. Eu<br />
não digo isso levemente, qualquer um com pele branca que escape será sorte. 166<br />
Bolívar contra os bolivarianos<br />
Felizmente, a ambição de Bolívar em juntar vários países americanos sob sua ditadura<br />
não agradou aos militares nem aos donos de terras. O encontro no Panamá foi um<br />
fracasso diplomático. Equador, Colômbia e Venezuela eram países com identidades<br />
nacionais já construídas, que não tinham nada a ganhar sob o mando de um ditador<br />
venezuelano e sua autoritária Constituição boliviana. Além do mais, seu conceito de uma<br />
única nação era impraticável. Os pré-requisitos para uma união política ou comercial<br />
eram pequenos. Por essa época, Venezuela, Colômbia e Equador não tinham mais do que<br />
3 milhões de habitantes, pouco menos do que tem hoje a região metropolitana de<br />
Maracaibo, na Venezuela. 167 A maior parte vivia no campo, e não havia na região uma<br />
única cidade com mais de 40 mil habitantes. 168 O transporte terrestre era precário. As<br />
distâncias normalmente eram vencidas a cavalo, em estradas de terra. Diz-se que Bolívar<br />
teria percorrido mais de 100 mil quilômetros em sua vida. Os Andes não ajudavam. Ao<br />
cruzar as montanhas com uma legião de mercenários ingleses para lutar em Boyacá, na<br />
Colômbia, um em cada quatro gringos morreu no caminho. 169 A navegação costeira e<br />
fluvial também era difícil. O barco a vapor até facilitou a vida, mas era preciso esperar<br />
dias até que ele ficasse carregado para que a viagem compensasse financeiramente.<br />
“Poucas pessoas viajavam, assim como poucas mercadorias viajavam”, escreve o<br />
historiador Leslie Bethell. 170 Segundo ele, “as distâncias eram grandes demais, e a<br />
identidade de cada província era demasiado forte para que um governo localizado em<br />
Bogotá pudesse durar muito tempo depois da vitória definitiva sobre as forças<br />
espanholas. Entre as três províncias não havia quaisquer vínculos econômicos mais
estreitos”.<br />
Com seu discurso alienígena e sem ter uma função prática no novo cenário, uma vez<br />
que as batalhas já haviam sido vencidas, a popularidade de Bolívar foi se esmigalhando.<br />
Em 1828, em Bogotá, ele sofreu um atentado. Estava dormindo no Palácio de San Carlos,<br />
hoje sede do Ministério das Relações Exteriores, quando um grupo invadiu o prédio,<br />
matou três sentinelas e os cachorros de guarda. Bolívar, alertado por Manuela Sáenz, sua<br />
amante, fugiu pela janela e teve de se esconder, por três horas, nadando nas águas sujas<br />
do rio San Agustin, embaixo de uma ponte, até que o perigo passasse. 171<br />
A falta de sintonia do herói com a sociedade o transformou em vilão. Nas ruas de<br />
Bogotá, a população queimava retratos de Bolívar e gritava o nome de Santander. O<br />
general ficou dirigindo seu país, a Colômbia, como vice-presidente, enquanto o Bolívar<br />
viajava pelo Peru e pela Venezuela. Nesse tempo, Santander colocou-se contra as<br />
investidas autoritárias e monárquicas de Bolívar, insuflando alguns grupos políticos<br />
contra seu antigo companheiro, ao lado do qual tinha lutado no passado. O jornal El<br />
Fanal escreveu em seu editorial frases bem próximas das que os jornais colombianos de<br />
hoje escrevem sobre o venezuelano Hugo Chávez:<br />
O general Bolívar não tem tentado outra coisa em toda a sua carreira de administração despótica senão absorver em sua<br />
vida um mando absoluto e arbitrário sobre o povo colombiano a quem tem considerado sempre como seu verdadeiro<br />
patrimônio.<br />
O jornal Gazeta de Colombia seguiu a mesma linha:<br />
Se tivéssemos chegado sequer a imaginar que os imensos sacrifícios feitos pela causa da liberdade haviam de refluir em<br />
proveito da utilidade de Bolívar, estamos certos de que todos teriam permanecido tranquilos com os espanhóis. 172<br />
Com o clima pesado, o Libertador decidiu deixar a Colômbia com destino incerto:<br />
Jamaica ou Europa. Do caminho, escreveu ao general Flores, que então governava o<br />
Equador:<br />
Você sabe que eu governei por 20 anos e desses tirei apenas algumas certezas:<br />
(1) A América é ingovernável por nós;<br />
(2) Quem serve à causa da revolução perde tempo;<br />
(3) A única coisa a fazer na América é ir embora;<br />
(4) Este país cairá infalivelmente nas mãos de massas desenfreadas e quase imperceptivelmente passará para as mãos<br />
de tiranos mesquinhos de todas as raças e cores;<br />
(5) Uma vez que formos devorados por todos os crimes e aniquilados pela ferocidade, seremos desprezados pelos<br />
europeus;<br />
(6) Se fosse possível que uma parte do mundo voltasse ao caos primitivo, essa parte seria a América na sua hora<br />
final. 173<br />
Ídolo de Mussolini, cultuado por Chávez<br />
Tendo em vista que algumas revoluções da época (assim como quase todas as<br />
revoluções) resultaram em caos, dá para entender por que Bolívar teve atitudes<br />
autoritárias, centralistas e repressoras. O mistério é que ele tenha sido adotado como um<br />
herói por pessoas de esquerda que, ainda hoje, querem convencer a todos que são
democratas convictos, avessos à ditaduras. Como já escreveu o pensador venezuelano<br />
José Toro Hardy, “uma pessoa pode ser marxista ou pode ser bolivariana, mas não se<br />
pode ser marxista e bolivariana ao mesmo tempo”. 174<br />
A apropriação de Bolívar pelos socialistas é recente. Até o fim do século passado,<br />
Bolívar foi frequentemente lembrado pela direita e por ditadores. Um deles foi Juan<br />
Vicente Gómez, o mais terrível ditador venezuelano, presidente em quatro mandatos,<br />
entre 1908 e 1935. No seu segundo ano no poder, Gómez ordenou a reconstrução do<br />
Panteão Nacional, depois de um terremoto que destruiu o prédio em 1900. O edifício,<br />
construído inicialmente para ser a Igreja da Santíssima Trindade, tinha sido adaptado<br />
para guardar os restos de Simón Bolívar, em 1876.<br />
Gómez, que aboliu os partidos, gostava especialmente daquele último pensamento de<br />
Bolívar: “Se a minha morte contribui para que acabem os partidos e se consolide a<br />
União, eu baixarei tranquilo ao sepulcro”. 175 A frase está à direita do altar no panteão em<br />
Caracas. Para ditadores ávidos por reprimir movimentos dissonantes, como Gómez, as<br />
derradeiras palavras do Libertador caíram muito bem.<br />
Na Itália, Bolívar virou herói dos fascistas. Ézio Garibaldi, presidente do Senado,<br />
chegou ao extremo de pensar que Benito Mussolini, o ditador que se juntou a Adolf Hitler<br />
na Segunda Guerra, fosse uma reencarnação de Bolívar. “Há no Duce a mesma audácia<br />
religiosa do ditador Bolívar, a mesma fé inquebrantável no destino da Pátria e no seu<br />
próprio.” 176 Giuseppe Bottai, ministro do governo de Mussolini, dizia que “a Itália<br />
fascista vislumbra em Simón Bolívar um temperamento extremamente próximo a nossa<br />
sensibilidade política. Bolívar não é só um libertador, mas também, e sobretudo, um<br />
homem de armas, um condottiero”. 177<br />
Por fim, o próprio Mussolini fez referências ao venezuelano. Disse o Duce durante a<br />
inauguração do monumento ao herói:<br />
Herói honesto, empurrado por uma energia incontrolável e às vezes cruel, semelhante à que animava aos primeiros<br />
conquistadores, digna de sua própria linhagem.<br />
Contribuiu com uma obra verdadeiramente revolucionária e criadora, a assentar as bases da América Latina de hoje em<br />
dia. 178<br />
Bolívar é atraído para a esquerda só em 1992, quando o presidente Hugo Chávez, após<br />
tentar um golpe de Estado, começa a citá-lo em seus discursos e textos. De início,<br />
ninguém ligou. Mas com o tempo ficou impossível não reparar. Por obra do presidente<br />
venezuelano, Bolívar tornou-se um dos raríssimos casos conhecidos no universo de uma<br />
pessoa que, com o tempo, passou da direita para a esquerda. Chávez deixa até uma<br />
cadeira vazia ao seu lado na cabeça da mesa de reuniões, no Palácio Miraflores, a sede<br />
do Poder Executivo, para Bolívar passar lá de vez em quando e lhe dar alguns<br />
conselhos. 179 A julgar pela ditadura que a Venezuela se tornou nos últimos dez anos, é<br />
razoável acreditar que, sim, Simón Bolívar, senta ali todos os dias. Mais vivo do que<br />
nunca, dá seguidos conselhos catastróficos a Hugo Chávez.<br />
133 Leslie Bethell, História da América Latina: da Independência até 1870, Edusp, 2009, página 25.<br />
134 Leslie Bethell, página 28.
135 Leslie Bethell, página 39.<br />
136 Karl Marx, Simón Bolívar por Karl Marx, Martins Fontes, 2008.<br />
137 Karl Marx, página 34.<br />
138 Karl Marx, página 45.<br />
139 Karl Marx, página 43.<br />
140 Carta de Jamaica, disponível em www.analitica.com/bitbliotecarob/bitblioteca/bitblioteca/bolivar/jamaica.asp.<br />
141 Karl Marx, página 53.<br />
142 Ángel Rafael Lombardi Boscán, “1813: La ‘Guerra a Muerte’ – El horror se abate sobre Venezuela”, Revista de Artes y<br />
Humanidades UNICA, volume 4, número 8, Universidad Católica Cecilio Acosta, 2003, páginas 57-75.<br />
143 John Lynch, Simón Bolívar, a Life, Yale University Press, 2006, página 125.<br />
144 John Lynch, página 91.<br />
145 John Lynch, página 123.<br />
146 Karl Marx, página 37.<br />
147 Karl Marx, página 7.<br />
148 John Lynch, página 30.<br />
149 John Lynch, página 94.<br />
150 Simón Bolívar, “Discurso de Angostura”, disponível em www.analitica.com/bitblioteca/bolivar/angostura.asp. Publicado<br />
originalmente no Correo del Orinoco, em março de 1819.<br />
151 Idem.<br />
152 John Lynch, página 202.<br />
153 John Lynch, página 217.<br />
154 Elías Pino Iturrieta, Simón Bolívar, coleção Biblioteca Biográfica Venezolana, volume 100, El Nacional, 2009, página 163.<br />
155 Elías Pino Iturrieta, página 163.<br />
156 Plinio Apuleyo Mendoza, Carlos Alberto Montaner, Álvaro Vargas Llosa, A Volta do Idiota, Odisseia Editorial, 2007,<br />
página 157.<br />
157 John Lynch, página 10.<br />
158 John Lynch, página 9.<br />
159 Leslie Bethell, página 50.<br />
160 Idem.<br />
161 John Lynch, “As origens da independência da América Espanhola”, em Leslie Bethell, História da América Latina,<br />
Edusp, 2009, volume 3, página 71.<br />
162 Leslie Bethell, página 53.<br />
163 John Lynch, página 224.
164 Manuel Caballero, Por Qué No Soy Bolivariano, Editorial Alfa, 2006, página 148.<br />
165 John Lynch, página 152.<br />
166 John Lynch, página 218.<br />
167 Leslie Bethell, página 506.<br />
168 Idem.<br />
169 John Lynch, página 128.<br />
170 Leslie Bethell, página 508.<br />
171 John Lynch, página 241.<br />
172 Elías Pino Iturrieta, página 185.<br />
173 John Lynch, página 276.<br />
174 José Toro Hardy, ”Revolucion Socialista del Siglo XXI?”, El Universal, 10 de agosto de 2010, páginas 3-6.<br />
175 Manuel Caballero, página 51.<br />
176 Manuel Caballero, página 72.<br />
177 Idem.<br />
178 Elías Pino Iturrieta, El Divino Bolívar, Editorial Alfa, 2006, página 136.<br />
179 Elías Pino Iturrieta, página 189.
Na sua conversão forçada para a esquerda, Bolívar tornou-se também um ícone<br />
antiamericano. Alguns acreditam que, ainda no início do século 19, o libertador já teria<br />
farejado o papel que os Estados Unidos exerceriam no mundo, expandindo sua área de<br />
influência. Um profeta. Um visionário. Tudo por conta de sua frase:<br />
... e os Estados Unidos que parecem destinados pela Previdência para encher a América de misérias em nome da<br />
liberdade?<br />
Não é bem assim. Em primeiro lugar, Bolívar era um fervoroso devoto da Inglaterra,<br />
império que andava em rixa com sua ex-colônia e disputava mercados com os<br />
americanos. O Libertador, vale lembrar, recebeu amplo apoio dos ingleses para sua luta<br />
de independência. Estima-se que 6 mil ingleses e irlandeses mercenários viajaram em 53<br />
navios para lutar ao lado do venezuelano contra a Espanha. 180 Foi para um representante<br />
da Inglaterra que Bolívar mandou a carta que continha a frase acima: falar mal dos<br />
Estados Unidos era um ótimo jeito de conquistar a benevolência do inglês.<br />
UM PROFETA DO ANTIAMERICANISMO<br />
Em segundo lugar, a oposição de Bolívar aos Estados Unidos tinha um toque de inveja.<br />
Ao declarar-se independente da Inglaterra e implantar uma república – tudo isso 13 anos<br />
antes da Revolução Francesa –, o país se tornou exemplo de revolução e republicanismo<br />
para os europeus e os latino-americanos. Os avanços obtidos nas áreas de educação, nas<br />
eleições e na redução do analfabetismo estavam muito além do que tinha conquistado a<br />
Colômbia ou a Venezuela na época. E eram esses princípios que o venezuelano dizia que<br />
jamais funcionariam na América. O modelo de Bolívar era o absolutismo monárquico,<br />
não a república ou o federalismo.<br />
180 John Lynch, página 122.
HAITI
OS REVOLUCIONÁRIOS REACIONÁRIOS<br />
Uma das primeiras histórias de viagem no tempo a conquistar multidões de leitores<br />
foi o conto O Ano 2440, escrito pelo francês Louis-Sébastien Mercier em 1771. Mesmo<br />
proibida pelas autoridades de Versalhes por causa de suas críticas à monarquia, a obra<br />
foi o maior best-seller da época. Teve em poucos meses 25 reimpressões, popularizando<br />
ideias que resultariam, 18 anos depois, na Revolução Francesa. Em O Ano 2440, o<br />
narrador conta que, logo depois de uma tensa discussão com um amigo sobre as injustiças<br />
de Paris, resolveu tirar uma soneca. Acorda com uma longa barba, o corpo fraco e<br />
envelhecido: tinha dormido por quase 700 anos. Um filósofo logo percebe sua situação e<br />
se dispõe a guiar o viajante no tempo pela Paris de 2440. 181<br />
O futuro que Mercier descreve é a sua imagem de um mundo quase perfeito. Paris tinha<br />
deixado de ser o lugar sujo e desorganizado de 1771 para dar lugar a ruas limpas,<br />
planejadas e cheias de árvores. Uma revolução havia limitado o poder do rei, que andava<br />
a pé pela cidade, assim como quase todos os habitantes – e as melhores carruagens eram<br />
reservadas aos idosos. A população vivia em igualdade quase total, vestindo o mesmo<br />
tipo de roupas e morando em casas do mesmo padrão. Não havia mendigos, prisões,<br />
criminosos, soldados, impostos, padres e, o principal: não existiam escravos. A<br />
escravidão tinha sido abolida séculos antes, depois de uma grande revolta dos negros.<br />
No centro de uma praça, o narrador se depara com a estátua de um célebre<br />
revolucionário negro que fez jorrar o sangue de seus tiranos e libertou o mundo daquele<br />
costume odioso. “Franceses, espanhóis, ingleses, holandeses e portugueses, todos se<br />
tornaram vítimas do ferro, do veneno e do fogo. O solo da América bebeu avidamente o<br />
sangue que esperava por tanto tempo.” 182<br />
Algumas previsões do escritor Mercier se tornaram realidade muito antes do que ele<br />
imaginou. Paris passaria no século 19 por uma transformação urbanística que resolveria<br />
o caos das vielas medievais e daria origem aos bulevares que hoje marcam a cidade. Em<br />
1789, os cidadãos enfrentariam o rei Luís XVI para logo depois invadir igrejas e<br />
massacrar religiosos. Dois anos depois, os escravos da mais importante colônia francesa<br />
na América, o Haiti, que naquela época se chamava São Domingos, deixaram as senzalas<br />
e invadiram a casa de seus senhores. Mataram franceses, violentaram suas mulheres e<br />
filhas, queimaram canaviais e plantações de café. Com ataques repentinos, destruíam<br />
moinhos e casas de engenho, capturavam prisioneiros e armavam grandes festas no que<br />
havia sido seu cativeiro. “Espantados com o próprio progresso e bêbados de prazer,<br />
gastavam preciosos momentos festejando suas vitórias, festas que acabavam no massacre<br />
de um grande número de prisioneiros desafortunados”, contou um naturalista francês<br />
chamado Michel Descourtilz, que testemunhou as revoltas. 183 Planejados por uma extensa<br />
rede de líderes escravos, os ataques aconteceram ao mesmo tempo em centenas de<br />
propriedades. Apavorados, muitos fazendeiros fugiram para Cuba ou para outras<br />
colônias francesas, como Martinica e Guadalupe. Ingleses e espanhóis tentaram se<br />
apoderar da colônia, mas, como previu o best-seller Mercier, também foram vítimas do<br />
ferro e do fogo dos rebeldes negros. A Revolução do Haiti foi a maior revolta escrava de
toda a história do mundo e a única da América em que os rebeldes acabaram<br />
vitoriosos. 184 Hoje, dois séculos depois, há no centro de Porto Príncipe, a capital do<br />
Haiti, uma estátua em homenagem ao rebelde negro desconhecido, como Mercier<br />
imaginou.<br />
A ilha de Hispaniola, onde estão o Haiti e a República Dominicana, foi onde o navegador Cristóvão Colombo<br />
estabeleceu a primeira colônia europeia, em 1492. A Espanha dominou a ilha até 1697, quando reconheceu a existência<br />
de colonos franceses da parte oeste e cedeu metade da ilha para a França. O território ficou dividido em duas colônias<br />
com nome parecido: Santo Domingo, do lado espanhol (hoje República Dominicana), e Saint-Domingue, ou São<br />
Domingos, do lado francês, hoje Haiti.<br />
Nas primeiras plantations de São Domingos, servos brancos trabalhavam ao lado dos negros. Eram os engagés,<br />
trabalhadores com um pouco mais de direitos que os de origem africana. Depois de três anos de trabalho forçado e<br />
cativeiro, conquistavam a liberdade.<br />
No entanto, ao contrário da previsão do jovem escritor francês, a Revolução Francesa,<br />
em 1789, e a do Haiti dois anos depois não resultaram num mundo perfeito. Até então,<br />
São Domingos era uma das regiões mais prósperas do planeta. Seu território era ocupado<br />
por centenas de grandes fazendas de monocultura de exportação, as plantations, que<br />
usavam engenhos e sistemas de irrigação dos mais modernos da América. Apesar do<br />
pequeno tamanho a colônia produzia 40% de todo o açúcar consumido no mundo durante<br />
boa parte do século 18 – uma produção maior até mesmo que a do Brasil, colônia com<br />
um território 300 vezes maior. Le Cap (a principal cidade da época, no norte da colônia)<br />
tinha um teatro que abrigava 1.500 espectadores e recebia espetáculos logo depois de<br />
Paris. A cidade tinha ainda 25 padarias e um sistema de encanamento que levava água<br />
limpa das montanhas até fontes instaladas em praças. 185 Na agitada feira de domingo era<br />
possível encontrar porcelanas e joias trazidas por marujos da Europa, alimentos e<br />
especiarias, sapatos, chapéus, papagaios e macacos vindos de outras ilhas. “As<br />
montanhas eram cheias de florescentes fazendas de café e as cidades, um alvoroço de<br />
navios chegando e saindo, passageiros e mercadorias de todos os tipos”, conta o<br />
historiador Laurent Dubois, da Universidade Duke, nos Estados Unidos. “Em um século<br />
São Domingos cresceu de uma colônia marginal do Caribe para a mais rica colônia do<br />
mundo.” 186 No entanto, depois de 13 anos de batalhas intermináveis, o lugar ficou<br />
irreconhecível. Transformou-se num terreno de lavouras abandonadas, ruínas, cinzas e<br />
covas de brancos, mulatos e negros – e onde a escravidão ainda vigorava. Surgiu assim o<br />
país que é hoje o mais pobre da América.<br />
A revolução desencadeou uma sucessão de guerras e rebeliões. Começou como uma<br />
disputa entre classes sociais, com os rebeldes negros tentando se libertar de fazendeiros<br />
que se recusavam a lhes fazer concessões. No meio do turbilhão da Revolução Francesa,<br />
misturou-se a uma guerra civil entre elites, travada entre franceses brancos e mulatos,<br />
republicanos e monarquistas. Depois deu lugar a uma guerra entre impérios, pois a<br />
Espanha e a Inglaterra tentaram se aproveitar do caos que a França vivia tanto na Europa<br />
quanto no Caribe e tomar para si os valiosos territórios de São Domingos. E terminou<br />
como uma guerra de independência: quando tudo parecia calmo e um líder negro tentava<br />
pôr a colônia em ordem, o imperador Napoleão Bonaparte mandou 50 navios cheios de<br />
soldados para tentar retomar o poder de São Domingos e reimplantar a escravidão.<br />
Grande parte da destruição que essa próspera colônia sofreu se deve à insistência dos<br />
senhores brancos em manter a escravidão e o sistema colonial.
Essa história, porém, também revela que o costume milenar de ter e vender gente<br />
estava impregnado nos próprios líderes de escravos e de negros livres. Assim que<br />
conseguiram algum poder, eles se tornaram senhores escravistas a agir contra a<br />
liberdade. É difícil achar, na história da Revolução do Haiti, um protagonista de<br />
qualquer etnia ou classe social que não esteve imbuído ao mesmo tempo de ideias dos<br />
novos tempos e do Antigo Regime, de discursos contra o racismo e práticas racistas, de<br />
decisões revolucionárias e reacionárias. É o que mostram os cinco protagonistas<br />
descritos a seguir.<br />
A estranha revolta de Jean-François<br />
Em outras regiões da América, como em Minas Gerais, no Brasil, os escravos recém-chegados da África também<br />
ganhavam, tanto pelos brancos quanto pelos negros, o apelido de “bugres”. O termo também denominava os índios que<br />
tentavam se integrar na vida das cidades.<br />
A escravidão era um sistema tão estabelecido que os donos de terras, tanto do Brasil, do sul dos EUA ou do Caribe,<br />
confiavam sua própria segurança a escravos. <strong>Da</strong>vam a eles armas e os encarregavam até mesmo de capturar negros<br />
fugitivos. Por incrível que pareça, em boa parte dos casos esses homens armados não atacavam seus donos. Não foi o<br />
que aconteceu no Haiti.<br />
Para entender como aqueles escravos conseguiram planejar dezenas de revoltas<br />
simultâneas – numa época em que não havia Twitter ou Facebook –, é preciso conhecer<br />
duas coisas: sua rotina e o perfil de seus líderes.<br />
Os escravos de São Domingos, assim como quase todos na história, não eram uma<br />
massa uniforme, na mesma posição social. Havia aqueles com mais status e maior<br />
capacidade de impor sua vontade e liderar os demais. Os “boçais”, africanos recémchegados<br />
que não falavam a língua local, ingressavam nas fazendas em desvantagem em<br />
relação aos negros nascidos na América. Enquanto os novatos ficavam com o trabalho<br />
pesado da lavoura, os mais antigos tinham mais chances de conquistar a confiança de<br />
seus donos e ganhar tarefas consideradas mais nobres. No topo da pirâmide social do<br />
cativeiro estavam os empregados domésticos – mordomos, lavadeiras e cozinheiras – e<br />
também marceneiros, operadores das “máquinas” dos engenhos e seguranças, que<br />
evitavam furtos e fugas de colegas.<br />
Os mais poderosos eram os cocheiros e os feitores. Era um privilégio (se é que se<br />
pode falar de privilégios dentro da escravidão) ser cocheiro, porque dirigir carroças<br />
pelas vilas dava a possibilidade de ter acesso a outras fazendas, estabelecer mais<br />
contatos e circular com alguma liberdade. Já o feitor era uma espécie de líder informal e<br />
carismático das senzalas. Dele dependia tanto o dono da fazenda – que precisava de<br />
alguém influente para evitar descontentamentos e revoltas – quanto os escravos, pois ele<br />
tinha poder para liberar os doentes do trabalho, agir como um árbitro em brigas internas<br />
e permitir passeios à noite e aos domingos.<br />
Muitos senhores, para resolver o problema da alimentação dos escravos, cediam a eles um pedaço de terra para<br />
plantar o que preferissem. Muitos negros aproveitavam para produzir mais que o necessário e ganhar um dinheiro com a<br />
venda.<br />
Os mercados de rua de Porto Príncipe vendem aos turistas diversos bonecos daqueles que, segundo os filmes de<br />
terror, são alfinetados em rituais de vodu para atingir pessoas de verdade. Na realidade, esses bonecos têm pouco a ver<br />
com o vodu – são mesmo coisa de Hollywood. O vodu do Haiti está mais para a umbanda brasileira e a santería cubana:
ituais com tambores, danças e pessoas sendo incorporadas por entidades de outro mundo.<br />
Mistura de líder religioso e político, Dutty Boukman foi o arquiteto da revolta de 1791. Muito antes daquele dia, os<br />
escravos já vinham aterrorizando os senhores envenenando a água e a comida da casa grande. Líderes místicos como<br />
Boukman geralmente dominavam a arte de criar venenos a partir de plantas da ilha.<br />
Na rotina dos escravos, o domingo era o dia mais divertido, ou o único em que viver<br />
não era tão sofrido. Depois de passar os dias de semana trabalhando de sol a sol e gastar<br />
o sábado cuidando de suas hortas particulares, os escravos eram geralmente autorizados<br />
a deixar a fazenda. Boa parte deles aproveitava o dia livre para vender frutas e verduras<br />
nas agitadas feiras de rua das principais cidades. Depois da feira, chegava a hora de<br />
esticar em festas, casamentos ou cerimônias de vodu, o candomblé de São Domingos.<br />
Eram importantes eventos de socialização, quando os escravos trocavam notícias,<br />
queixas, planos e até conspirações políticas. Foi numa cerimônia de uma noite de<br />
domingo que a grande revolta de 1791 foi planejada.<br />
A cerimônia aconteceu em Bois Caiman, uma floresta no norte da ilha. Reuniram-se ali<br />
homens que formavam a elite dos escravos: além dos feitores e dos cocheiros, negros<br />
fugitivos, aqueles que tinham abandonado as fazendas para viver em quilombos nas<br />
florestas. Há pouca certeza sobre o que aconteceu de verdade em Bois Caiman, pois os<br />
cronistas da época tentaram retratar os negros como selvagens e bárbaros. Segundo eles,<br />
a reunião ocorreu sob uma forte tempestade e contou com danças e rituais de vodu. Um<br />
porco teria sido sacrificado para que os negros pudessem beber o seu sangue e firmar,<br />
assim, um pacto de lealdade. Há menos suspeita quanto ao acordo que foi feito naquela<br />
noite. Os líderes negros combinaram que, na noite do domingo, 21 de agosto de 1791,<br />
todos atacariam e matariam os senhores brancos em diversas fazendas, simultaneamente.<br />
A decisão foi logo comunicada entre as fazendas pelos cocheiros, e entre os escravos da<br />
mesma fazenda pelos feitores.
BIBLIOTECA NACIONAL DA FRANÇA, PARIS<br />
A revolta dos negros em 1791: Haiti em chamas.<br />
Deu certo. Na data marcada, milhares de negros deixaram as senzalas e invadiram as<br />
casas-grandes. Alguns gerentes de fazendas ou mesmo proprietários foram mortos na<br />
cama, enquanto dormiam; outros se esconderam nos canaviais e morreram queimados<br />
depois que os rebeldes atearam fogo às plantações. Poucos fugiram para contar a<br />
história. “Não poupavam nem os mais idosos – e algumas mulheres foram expostas a<br />
horrores mil vezes mais cruéis que a morte”, contou o naturalista Michel Descourtilz. O<br />
que mais impressionava e amedrontava os brancos eram o fogo dos canaviais e a fumaça<br />
que tomava conta de vilas inteiras por vários dias. O colono francês Antoine <strong>Da</strong>lmas<br />
descreveu o episódio com tons apocalípticos:<br />
O tamanho e o número de estabelecimentos consumidos pelo fogo criaram uma cena difícil de esquecer. A nuvem densa<br />
de fumaça, que durante o dia pairou acima de Cap Français, depois do pôr do sol ficou com a aparência de uma aurora<br />
boreal, situada acima de 20 plantations transformadas em vulcões. À meia-noite, o fogo apareceu no cais de Limonade,<br />
anunciando que os rebeldes haviam chegado até lá. No dia seguinte, as duas paróquias mais ricas e importantes no norte<br />
da província não eram nada além de cinzas e ruínas. 187<br />
Tropas de fazendeiros e do governo francês reagiram três meses depois, conseguindo<br />
capturar Boukman, o principal líder da revolta negra. Os rebeldes tinham então se<br />
reunido em diversos grupos armados. Com a execução de Boukman, o comando da<br />
maioria das tropas passou para um dos subordinados. Tratava-se de um típico líder negro<br />
da época, cocheiro que havia fugido de sua fazenda. Seu nome era Jean-François.
Alguns líderes escravos ficaram conhecidos pela extrema violência com que trataram não só os brancos, mas<br />
subordinados negros. Jeannot, que fazia parte do grupo de Jean-François, mandou queimar vivo um de seus assistentes<br />
suspeito de ajudar brancos a fugir. Jeannot logo depois foi morto por Jean-François. 188<br />
Em poucos meses, o cocheiro fugitivo já era um general de respeito. “O chefe supremo<br />
do exército africano estava sempre bem vestido”, contou um oficial chamado Gros (não<br />
se sabe seu primeiro nome), que foi capturado pelos homens de Jean-François e acabou<br />
virando assistente dele nas negociações de paz com os brancos. “Usava um crucifixo de<br />
São Luís [símbolo de exército real francês] e um cordão vermelho. Tinha dez guardacostas,<br />
que usavam uma bandoleira com a flor-de-lis [símbolo da Coroa francesa]. Era<br />
amado por todos aqueles que eram livres e pelos melhores escravos; seu comando era<br />
respeitado, sua tropa, bem disciplinada.” Jean-François não era, na verdade, um líder<br />
supremo – dividia suas decisões com outro general negro, Georges Biassou. Foi<br />
retratado como um líder menos violento e adepto de boas festas. Era provavelmente<br />
mais egocêntrico que eficiente – costumava decorar seu uniforme com um enorme<br />
conjunto de medalhas e bugigangas coloridas que impusessem respeito. 189<br />
“Comissários” eram os representantes que o governo francês enviava às colônias para comunicar decisões e novas<br />
políticas estipuladas na metrópole. Geralmente tinham poder para governar os territórios para onde eram enviados.<br />
A cúpula dos rebeldes negros ficava atenta ao que se passava na política francesa. Em<br />
dezembro de 1791, por exemplo, comissários chegaram da França dando ordens aos<br />
fazendeiros para anistiar os escravos que voltassem ao trabalho. Jean-François e Biassou<br />
se apressaram em escrever uma carta detalhando as suas condições para baixar as armas.<br />
Em tom educado e de conciliação, afirmam estar sob pressão dos escravos, que não<br />
abriam mão de mudanças, como a de ter três dias livres por semana. E pedem liberdade<br />
apenas para si próprios e outros líderes da revolta. Em troca, se dispõem até a capturar<br />
os escravos que se recusassem a voltar às plantations. “Muitos negros vão se esconder<br />
nas florestas; será necessário persegui-los com diligência e enfrentar perigos e o<br />
cansaço. Mas os generais e chefes que estamos pedindo a vocês para emancipar vão se<br />
juntar a nós nessa tarefa, e as riquezas públicas vão renascer das cinzas.” 190<br />
Até aí, as ações de Jean-François são compreensíveis. Ainda levaria alguns anos para<br />
a ideia revolucionária de liberdade total dos escravos se difundir pelo mundo. “Em<br />
sociedades que foram sempre divididas por cativos e senhores, os escravos geralmente<br />
aspiravam passar de uma categoria para outra, não eliminar a barreira entre elas”, diz o<br />
historiador americano <strong>Da</strong>vid Patrick Geggus. “Isso é um traço comum das rebeliões<br />
escravas antes do período revolucionário da França, que espalhou o conceito de<br />
liberdade individual.” 191 Sem maiores objetivos em mente, Jean-François e seu colega<br />
tentaram salvar a própria pele e, quem sabe, aliviar a carga de trabalho dos escravos<br />
comuns. Na tentativa de convencer os brancos a dar a liberdade à elite escrava,<br />
mostraram como seriam úteis para manter a ordem das senzalas. No entanto, com o<br />
desenrolar da revolução, as atitudes de Jean-François e de outros líderes rebeldes<br />
ficaram cada vez mais estranhas aos olhos de hoje. A partir de 1792, eles passaram a<br />
lutar entre si, contra os abolicionistas franceses e a favor da monarquia espanhola.<br />
A Espanha viu na revolta dos negros contra os franceses uma oportunidade de se<br />
apoderar do território que havia perdido menos de um século antes. Invadiu a colônia<br />
francesa e, para engrossar suas tropas, recrutou os bandos de guerreiros negros. Jean-
François, desde o começo da revolta, tinha se mostrado defensor do rei espanhol e da<br />
Igreja e disposto a um acordo. Em maio de 1793, deu a si próprio o título de grandealmirante<br />
e levou cerca de 6 mil soldados para o lado espanhol. Em troca, ganhou terras,<br />
um salário de 250 dólares da Coroa espanhola e garantia de liberdade para sua família.<br />
Enquanto os soldados espanhóis guardavam a fronteira, as tropas de Jean-François e<br />
Biassou partiram para o ataque aos franceses. 192<br />
Se a situação de São Domingos era caótica, a metrópole ardia ainda mais. A França vivia nessa época o auge do<br />
período do terror da Revolução Francesa. Dezenas de execuções públicas aconteciam diariamente. Padres, nobres ou<br />
qualquer cidadão considerado inimigo político do povo foram para a guilhotina ou foram vítimas de execuções sumárias<br />
nas ruas. Foram quase 40 mil pessoas mortas – entre elas Antoine Lavoisier, o “pai da química”.<br />
No fim de 1793, a situação ficou mais esquisita. Os republicanos franceses<br />
declararam a liberdade dos escravos de São Domingos, na tentativa de atrair para o seu<br />
lado as tropas negras. No ano seguinte, a França aboliu a escravidão em todas as suas<br />
colônias. Foi uma decisão inédita em todo o mundo – mesmo a Inglaterra, que se tornaria<br />
o berço do abolicionismo, levaria décadas para tomar a mesma atitude. Se a luta do líder<br />
negro Jean-François era por liberdade, ele deveria rapidamente abrir uma negociação e<br />
passar para o lado francês, certo? Mas Jean-François ficou do lado espanhol. Pior: com<br />
o anúncio da França de abolir os escravos, diversos fazendeiros franceses pediram<br />
abrigo à Espanha, que começou a protegê-los. Armou-se assim uma cena inusitada. Os<br />
rebeldes negros do Haiti passaram a proteger alguns dos senhores de terras contra os<br />
quais se revoltaram dois anos antes. 193<br />
Até hoje os historiadores tentam explicar por que esses líderes rebeldes tomaram<br />
atitudes assim. A primeira hipótese é que eles enxergavam os republicanos franceses<br />
abolicionistas com desconfiança. Boa parte dos burgueses que apoiaram a Revolução<br />
Francesa eram mercadores das cidades portuárias da França, como Nantes e Bordeaux.<br />
Esses homens, que impuseram os valores de igualdade e liberdade na Europa,<br />
enriqueceram vendendo produtos feitos do outro lado do Atlântico por escravos – e não<br />
lhes passava pela cabeça acabar com esse sistema. Na França europeia eram<br />
revolucionários; na França caribenha, escravistas convictos.<br />
Além disso, anos antes da revolta de 1791 estourar, a corte francesa tentou impor aos<br />
senhores coloniais mais regras sobre como deveriam tratar seus escravos. O novo<br />
“Código Negro” determinava um limite de horas de trabalho por dia, folga em parte do<br />
sábado, melhorias nas roupas e na alimentação e o mais grave: estipulava que os<br />
escravos poderiam reclamar às autoridades reais se as medidas não fossem cumpridas.<br />
Os fazendeiros se negaram a obedecer a quase todas as novas regras. Notícias desse<br />
embate se espalharam pelas fazendas, criando assim uma aproximação entre o rei e as<br />
senzalas. “Os escravos identificam o progresso à majestade real e o abuso a esses<br />
brancos que formam assembleias, conselhos municipais e outras sociedades, visando a<br />
evitar que o monarca imponha suas decisões”, afirma o historiador francês Pierre<br />
Pluchon. 194<br />
Mesmo no Brasil, os escravos foram os que mais lamentaram a queda de dom Pedro II. Até o começo do século 20<br />
era possível ver, no Rio de Janeiro, negros com a coroa real tatuada nas costas.<br />
Não só Jean-François, mas diversos outros rebeldes negros se mostraram defensores<br />
das monarquias (veja o quadro ao lado). Isso aconteceu não só em São Domingos, mas<br />
em diversas regiões da América. Num estudo clássico, o historiador americano John
Thornton, especialista em história da África, defendeu que havia uma grande influência<br />
africana na opção de tantos escravos pela monarquia. Na época da Revolução do Haiti,<br />
dois terços dos escravos tinham nascido na costa da África, principalmente no Congo.<br />
Nessa região, havia um debate político parecido com o europeu sobre os limites do<br />
poder do rei. Para o historiador, o monarquismo dos negros não deve ser visto como uma<br />
volta a políticas tribais e arcaicas da África – mas como uma tentativa de manter ou<br />
impor reis que realmente mereciam o cargo. 195<br />
181 Robert <strong>Da</strong>rnton, Os Best-Sellers Proibidos da França Pré-Revolucionária, Companhia das Letras, 1995, páginas 131 a 140.<br />
182 Laurent Dubois, Avengers of the News World: The History of the Haitian Revolution, Harvard University Press, 2004,<br />
localização 24 (edição Kindle).<br />
183 Michel-Etienne Descourtilz, Histoire des Désastres de Saint-Domingue, versão em inglês disponível em<br />
http://thelouvertureproject.org/index.php?title=History_of_the_Disasters_in_Saint-Domingue.<br />
184 Laurent Dubois, localização 24.<br />
185 Laurent Dubois, localização 2640.<br />
186 Laurent Dubois, localização 156.<br />
187 Laurent Dubois e John D. Garrigus, Slave Revolution in the Caribbean: 1789–1804, Bedford, 2006, página 93.<br />
188 Carolyn Fick, The Making of Haiti: The Saint Domingue Revolution from Below, The University of Tennessee Press, 1990,<br />
página 113.<br />
189 Carolyn Fick, páginas 112 e 113.<br />
190 Laurent Dubois e John D. Garrigus, página 101.<br />
191 Entrevista por e-mail com o historiador americano <strong>Da</strong>vid P. Geggus em 19 de junho de 2011.<br />
192 Laurent Dubois, localização 2011.<br />
193 C. L. R. James, Os Jacobinos Negros, Boitempo, 2010, página 131.<br />
194 Pierre Pluchon, Toussaint Louverture: un Révolutionnaire Noir d’Ancien Régime, Fayard, 1989, página 46.<br />
195 John K. Thornton, página 209.
Rebeldes escravos nutriam uma curiosa fidelidade à monarquia da França<br />
e, na falta dela, à Coroa espanhola, com a qual se aliaram. Diversos negros se<br />
denominavam gens du roi (“homens do rei”). Em 1793, um escravo rebelde, convidado a<br />
se unir às tropas republicanas francesas, recusou a oferta dizendo: “Estou a serviço de<br />
três reis: do rei do Congo, mestre de todos os negros, do rei da França, que representa<br />
meu pai, e do rei da Espanha, que representa minha mãe”.<br />
COM O REI NA BARRIGA<br />
Mesmo antes da revolta de 1791, grupos de escravos escolhiam reis e rainhas<br />
de sua comunidade. Esses reis escravos na América provavelmente participaram<br />
dos saques e das batalhas. No fim de 1791, tropas europeias encontraram, entre rebeldes<br />
mortos ao redor de um forte, o corpo de um escravo vestido com roupas nobres e<br />
usando uma coroa. 196<br />
196 John K. Thornton, “I am the subject of the king of Congo: African political ideology and the Haitian Revolution”, Journal of<br />
World History, volume 4, número 2, 1993, páginas 181 a 214, disponível em www.jstor.org/stable/20078560.
Gros, o oficial capturado pelos homens de Jean-François, escreveu em suas memórias<br />
que a revolta dos escravos era claramente uma “contrarrevolução”, ou seja, uma revolta<br />
armada em protesto à Revolução Francesa:<br />
Em todo lugar os escravos acreditavam que o rei tinha sido preso e que eles tinham sido requisitados para se armar e<br />
restaurar a liberdade; eles estavam cientes da queda do clero e da nobreza. Jurando pelo mais sagrado, nós podemos<br />
assegurar que há muitas provas de que a revolta dos escravos é uma contrarrevolução. 197<br />
Jean-François provavelmente lutava também para enriquecer. Com o objetivo de<br />
arrecadar pólvora e dinheiro, sua tropa capturava mulheres e crianças de tropas negras<br />
inimigas e as vendia como escravos para fazendeiros da Espanha. 198 A mesma coisa<br />
faziam outros generais negros. Esse foi um dos motivos para Jean-François arranjar<br />
tantas brigas com outros grupos da mesma etnia. Seu grande inimigo foi Toussaint<br />
L’Ouverture, que se tornaria o general negro mais poderoso do Haiti (falaremos sobre<br />
ele mais adiante). Jean-François atacou até mesmo Biassou, seu antigo aliado, matando<br />
um sobrinho dele. Essas guerras internas, entre duas tropas que agiam do lado espanhol,<br />
geraram preocupação. “Os espanhóis conseguiram apaziguar suas diferenças impondo<br />
pactos de obediência e delimitando muito bem o território de Jean-François e Biassou”,<br />
afirma o historiador <strong>Da</strong>vid Geggus. 199<br />
Em 1795, depois de sofrer derrotas de outros líderes negros e afetado por um acordo<br />
de paz entre a França e a Espanha, Jean-François se exilou. Tentou se mudar com a<br />
família para Havana, em Cuba, mas acabou atravessando o Atlântico para se fixar na<br />
cidade espanhola de Cádiz, acompanhado de 16 familiares e 19 empregados. Até morrer,<br />
provavelmente em 1806, ganhou uma pensão mensal do reino espanhol. 200<br />
Julien Raimond, carrasco e vítima<br />
Até o fim do século 19, quando a química não tinha se desenvolvido o suficiente para criar corantes sintéticos, havia<br />
um grande mercado de extratos de plantas como o índigo, fonte de azul e roxo. Bem adaptado ao clima quente do<br />
Caribe, o índigo se tornou a principal atividade de diversas fazendas escravistas da Guatemala, de São Domingos e da<br />
Venezuela – o libertador Simón Bolívar também cultivava essa planta.<br />
O registros de alguns de seus gastos sobreviveram até hoje. Sabemos assim que entre 1767 e 1784 ele gastou com<br />
joias, alfaiates, cristais, livros e partituras um valor equivalente a uma boa fazenda da região – cerca de 8 mil livres (1<br />
livre era mais ou menos quanto um trabalhador comum ganhava por dia). 201<br />
Julien Raimond foi um dos maiores produtores de índigo do sul de São Domingos.<br />
Típico membro da oligarquia de sua comunidade, passou a juventude estudando em bons<br />
colégios da França. Quando voltou ao Caribe, herdou dinheiro dos pais e arranjou um<br />
bom casamento, com uma viúva de seu nível social. Pôde assim comprar três fazendas e<br />
cerca de cem escravos – um número expressivo tendo em vista que a maioria dos<br />
produtores tinha até dez desses trabalhadores. A produção era quase toda vendida por<br />
contrabando, afinal naquele tempo a Coroa francesa, como as demais cortes com<br />
territórios na América, impunha às colônias do Caribe um monopólio do comércio: os<br />
produtores só podiam vender seus produtos para mercadores franceses e comprar<br />
mercadorias vindas da França. Comerciantes holandeses e ingleses pagavam mais, por<br />
isso Julien agia no tradicional mercado paralelo do Caribe. Com o aumento da produção
de roupas por causa da Revolução Industrial, o índigo sofreu sucessivas altas no mercado<br />
– entre 1749 e 1790 o preço aumentou 150%. Foi assim, misturando exploração<br />
escravista e contrabando de um produto em ascensão, que Julien Raimond juntou uma boa<br />
fortuna.<br />
Na década de 1780, aquele senhor se viu cada vez mais ausente de sua propriedade.<br />
Enquanto os escravos trabalhavam para torná-lo mais rico, ele se mudou para a França,<br />
onde integrou um grupo que resultaria na Sociedade dos Amigos dos Negros. Julien se<br />
tornou um dos principais ativistas contra o racismo na Europa. Ele próprio sentia-se<br />
vítima de discriminação racial, pois era mulato, filho do casamento legítimo entre um<br />
colonizador francês e uma “mulher de cor”. Na corte de Versalhes, o fazendeiro e seus<br />
colegas pressionavam as autoridades reais para que não houvesse mais distinção entre<br />
brancos, negros e mulatos nas colônias do Caribe. Em 1789, quando a Revolução<br />
Francesa estourou e a Assembleia Nacional aprovou a Declaração dos Direitos do<br />
Homem, Raimond estava lá. Junto de outros mulatos do Caribe, lançou um manifesto<br />
sobre os cidadãos livres de cor, lembrando aos franceses que, como afirmava a<br />
Declaração dos Direitos do Homem aprovada semanas antes, “todos os homens nascem<br />
livres e iguais em dignidade e direitos”.<br />
São Domingos tinha cerca de 600 mil habitantes: 500 mil escravos e 100 mil cidadãos livres, entre eles brancos, mulatos<br />
e negros alforriados.<br />
Havia em São Domingos uma classe de brancos pobres, chamados petit blancs (“pequenos brancos”), que tinham<br />
pequenas propriedades ou trabalhavam como gerentes de fazendas, caixeiros-viajantes ou artesãos. Num duplo<br />
preconceito, eram chamados pelos livres de cor de “brancos negros”.<br />
O objetivo de Raimond era acabar com a discriminação racial entre brancos e os<br />
cidadãos ricos com alguma ascendência negra, como ele. O preconceito com os mulatos<br />
era cada vez mais comum em São Domingos. Em quase todo o século 18, mais de 70%<br />
dos casamentos eram inter-raciais, geralmente de colonizadores franceses que migravam<br />
sozinhos ao Caribe e acabavam casando com ex-escravas ou suas filhas nascidas<br />
livres. 202 Por causa desses matrimônios, 47% dos cidadãos livres de 1790 eram<br />
descendentes tanto de europeus quanto de negros, os chamados livres de cor ou mulatos.<br />
Muitos deles eram filhos legítimos, que cresciam num ambiente tão próspero quanto o<br />
das crianças brancas mais ricas. Quando adultos, tornavam-se mais ricos e bemeducados<br />
que muitos brancos que não haviam estudado fora. Entre os filhos não<br />
reconhecidos, acontecia com frequência de, com a morte do pai, herdarem terras e<br />
escravos. Personagens assim foram comuns em quase todas as sociedades escravistas da<br />
América, desde o Brasil, passando pela Jamaica, até o sul dos Estados Unidos. De todos<br />
esses, o grupo mais próspero de livres de cor era o de São Domingos. 203 Juntos, eles<br />
possuíam de 20% a um terço dos 500 mil escravos da colônia e eram donos de cerca de<br />
2 mil fazendas de café. 204<br />
A partir da década de 1770, quando essa parcela da população cresceu a ponto de<br />
intimidar os brancos, os livres de cor começaram a perder direitos políticos. O censo<br />
passou a classificar as pessoas segundo o grau de descendência africana; novas leis<br />
provinciais proibiram os livres de cor de eleger representantes, ocupar cargos públicos<br />
ou trabalhar como médicos ou farmacêuticos. A lei chegava até os cuidados pessoais:<br />
eles não podiam vestir-se como os brancos nem mesmo ter penteados à moda europeia.<br />
No imponente teatro de Le Cap, mulatos e negros livres eram obrigados a se sentar nos
piores lugares. Para aqueles que haviam estudado fora e estavam acostumados a um<br />
tratamento mais digno, essa segregação era inconcebível.<br />
Além dos livres de cor, havia em São Domingos um grupo menor, mas ainda assim expressivo, de negros livres,<br />
geralmente ex-escravos que compraram ou ganharam a liberdade e se estabeleceram como artesãos ou pequenos<br />
agricultores donos de poucos escravos.<br />
A luta de Raimond passava longe da abolição dos escravos ou da ampliação dos<br />
direitos para os negros alforriados. 205 Na verdade, para ter suas exigências aceitas,<br />
Julien e outros ativistas mulatos, como Vincent Ogé, deixavam claro não compactuar com<br />
as causas dos escravos. O envolvimento com a abolição tornaria ainda mais difícil atrair<br />
adeptos para a sua causa. Os mulatos não só defendiam a continuidade da escravidão<br />
como propagavam a teoria de que o maior controle sobre as senzalas só seria possível<br />
com a igualdade racial dos cidadãos livres. Boa parte dos brancos, porém, acreditava<br />
que, se cidadãos negros tivessem direitos iguais, não haveria mais justificativa para<br />
manter outros negros como escravos, e a instituição moral da escravidão ruiria.<br />
Diante desse impasse e das seguidas derrotas políticas, os mulatos decidiram pegar em<br />
armas. Em 1790, o líder mulato Vincent Ogé, o principal representante dos livres de cor<br />
em Paris, viajou para São Domingos convencido a conquistar à força o direito dos<br />
mulatos de votar. Ele e cerca de 300 rebeldes tomaram uma cidade no norte da colônia e<br />
mandaram mensagens para a Assembleia Provincial ameaçando vingança caso não fosse<br />
aprovado o direito de os mulatos participarem das eleições. Depois de vitórias iniciais,<br />
a tropa de Ogé acabou sendo derrotada – ele foi executado de modo cruel, tendo os ossos<br />
lentamente quebrados em público.<br />
Um ano depois, porém, a situação dos livres de cor se inverteu. Com a repentina<br />
revolta dos escravos por toda a colônia, os brancos, principalmente os do sul de São<br />
Domingos, se viram numa posição mais frágil. Precisavam se defender não só dos<br />
escravos rebeldes, mas dos mulatos. Aproveitando o bom momento, esses últimos tinham<br />
reunido grandes tropas de escravos de suas próprias fazendas e das dos brancos.<br />
Convenceram os negros prometendo liberdade aos que participassem das tropas ou uma<br />
jornada mais leve. Os brancos, diante desse maior poder militar, e precisando do apoio<br />
dos mulatos para manter a ordem da colônia, acataram com mais facilidade as exigências<br />
deles.<br />
Enquanto os companheiros se batiam contra os brancos em São Domingos, Julien<br />
Raimond enfrentava batalhas políticas do outro lado do Atlântico. Publicou ao todo 12<br />
panfletos expondo aos cidadãos como era contraditório defender a igualdade dos homens<br />
e ao mesmo tempo manter leis de discriminação racial. Com o ambiente político da<br />
França cada vez mais revolucionário e abolicionista, seu grande desafio passou a ser<br />
conciliar a emancipação dos escravos com a prudência de não acabar com a economia de<br />
São Domingos. Por isso, Raimond aderiu à causa dos negros bem lentamente. Num<br />
panfleto de 1793, defende que os escravos rebeldes só poderiam ter o direito à liberdade<br />
se quitassem a dívida que tinham com a França, comprando a própria liberdade por um<br />
preço estipulado pelo governo. “O insano projeto de liberar os escravos de repente<br />
levaria à ruína total da colônia”, afirma ele.<br />
Mas Raimond terminaria sua vida trabalhando sob o comando de ex-escravos. Em<br />
1800, velho e bem menos endinheirado que décadas antes, ele conseguiu enfim se firmar<br />
em Paris como uma figura confiável quanto aos assuntos da colônia de São Domingos.
Foi nomeado comissário francês por Napoleão Bonaparte. Na colônia, para onde viajou<br />
a serviço, Raimond acabou se alinhando a Toussaint L’Ouverture, o principal líder negro<br />
da revolução naquela época. Tornou-se um dos subordinados do líder dos escravos,<br />
responsável pelo grupo que criaria a Constituição de São Domingos. O imperador<br />
Napoleão, contrariado com as decisões de seu funcionário, ao enviar tropas para retomar<br />
o poder de São Domingos deu ordens expressas para que os oficiais franceses<br />
prendessem o comissário. Julien Raimond morreu de causas naturais, com quase 80 anos,<br />
duas semanas antes de as fragatas francesas chegarem aos portos da ilha para prendê-lo.<br />
Jean Kina, de escravo a coronel britânico<br />
No sul de São Domingos, as revoltas escravas não foram tão expressivas quanto no<br />
norte, mas os fazendeiros brancos enfrentaram os ataques dos fazendeiros mulatos. Para<br />
se defender, montaram tropas com seus próprios trabalhadores. Muitos escravos se<br />
alistavam animados, pois, ao se tornarem soldados, recebiam uniforme de guerra – um<br />
tremendo símbolo de status – comiam carne quase todo dia (um luxo até mesmo para os<br />
ricos) e vislumbravam a possibilidade de conquistar a liberdade em recompensa a seus<br />
feitos heroicos. Foi nesse cenário que o escravo negro Jean Kina passou, em menos de<br />
sete anos, de mero escravo de uma fazenda de algodão para coronel do exército<br />
britânico, dono de terras e de dezenas de escravos.<br />
Jean Kina foi provavelmente trazido da África quando criança. Em 1791, tinha ao<br />
redor de 40 anos. Era uma espécie de líder informal dos escravos de uma fazenda de<br />
algodão, onde trabalhava como carpinteiro. Já nessa época devia inspirar confiança em<br />
seu dono, pois foi dado a ele o comando de uma tropa de 60 homens e a responsabilidade<br />
de vigiar a comunidade de Tiburón, onde sua fazenda se localizava. A habilidade tática e<br />
o carisma que exercia sobre os escravos impressionaram os brancos – em pouco tempo<br />
Jean Kina já liderava uma tropa de 200 soldados. Seu maior feito ocorreu no verão de<br />
1792. Cerca de 700 escravos rebeldes tinham fugido de suas senzalas e se escondido na<br />
fortaleza de Les Platons. Tropas do governo tentaram invadir o forte, sem sucesso. Foi<br />
Jean Kina e seus homens que realizaram uma heroica invasão à fortaleza e devolveram os<br />
rebeldes às senzalas. Como prêmio, Jean ganhou medalhas, uma pensão mensal e mais<br />
centenas de escravos para seu comando.<br />
O mais impressionante em Jean Kina é que ele lutava em defesa do sistema escravista<br />
por convicção, não só porque era obrigado a cumprir ordens. Ardoroso defensor da<br />
escravidão, tentava convencer seus colegas quanto aos perigos da liberdade. Em 1793,<br />
mandou cartas para amigos de fazendas vizinhas. Pedia ajuda para lutar contra “o erro<br />
que hoje em dia cega um bom número de negros, que acreditam na liberdade, crianças<br />
gananciosas tomadas pelo fanatismo republicano”. “Você lembra quantas vezes era mais<br />
feliz quando tinha um rei?”, perguntou a um conhecido. E teorizou:<br />
Infelizes escravos! Vocês foram levados a acreditar que eram homens livres, quando isso é apenas uma ilusão. É<br />
cumprindo seus deveres com seus donos que vocês se tornarão livres. 206<br />
Alguns historiadores explicam essa simpatia com o cativeiro por meio do tipo de
trabalho que ele experimentou. Jean viveu numa fazenda que produzia principalmente<br />
algodão, cultura que não exige mão de obra tão intensa quanto a produção de café ou<br />
cana-de-açúcar. Por isso se pode supor que a escravidão vivida por ele foi de “pequena<br />
escala, patriarcal, onde a carga de trabalho era relativamente pequena”. 207 Nesse tipo de<br />
convivência quase familiar, não era raro os negros tomarem para si os objetivos e os<br />
desejos dos brancos.<br />
Com o desenrolar das revoltas e as guerras civis de São Domingos, os fazendeiros<br />
passaram a depender tanto de Jean Kina para se manter vivos que o escravo poderia<br />
muito bem mudar de lado e empreender um ataque repentino aos brancos. Mas ficou<br />
muito longe disso. Quando os fazendeiros, agradecidos pelo seu esforço, anunciaram que<br />
lhe concederiam a liberdade, Jean Kina prontamente recusou: queria continuar sendo<br />
escravo. Aceitou só dois anos depois. Sua crença nas vantagens da escravidão o<br />
motivava até mesmo a desrespeitar os brancos adeptos de alguma igualdade racial.<br />
Convidado para jantar com o governador local, Jean Kina recusou. O governador tentava<br />
aproximar os fazendeiros negros dos mulatos – o que indignava os brancos racistas. Por<br />
esse motivo Jean Kina fez a desfeita: disse não ao convite, pois não gostaria de encontrar<br />
um homem que deixou seus patrões tão contrariados.<br />
Em 1793, assim como diversos colonos franceses do norte passaram para o lado<br />
espanhol, muitos fazendeiros do sul, como o dono de Jean Kina, pularam para o barco da<br />
Inglaterra, que havia invadido aquela parte da colônia. Os soldados negros passaram<br />
então a integrar as forças britânicas. Jean Kina e seus homens foram bem recomendados<br />
ao exército real pelos proprietários franceses. “Os comandantes britânicos foram<br />
generosos em tratá-lo com respeito. Ele foi nomeado coronel, recebeu uma espada, um<br />
cinto de espada, assim como presentes e dinheiro”, conta o historiador Geggus. 208 Não<br />
demorou para a lealdade do guerreiro negro surpreender os ingleses. Líder militar<br />
relevante, Jean logo teve dinheiro suficiente para comprar terras e escravos – costumava<br />
viajar para a Jamaica para adquirir dezenas de negros para sua tropa. O auge de sua<br />
carreira militar aconteceu em 1798, quando ele passou a ganhar o salário integral de<br />
coronel do exército britânico. Para os ingleses, não havia nada de estranho na promoção<br />
do ex-escravo. “O rei não tem melhor amigo que Jean Kina, cujo comprometimento com a<br />
Realeza é tão notável quando sua honra e integridade”, escreveu na época um coronel<br />
inglês. 209<br />
A difícil tarefa de Toussaint L’Ouverture<br />
O maior clássico da história da Revolução do Haiti é o livro Os Jacobinos Negros, do<br />
historiador marxista C. L. R. James. A obra defende que os guerreiros negros do Haiti<br />
estavam imbuídos das mesmas ideias que motivavam os jacobinos, os revolucionários<br />
franceses mais radicais. Apesar dos elogios exagerados aos protagonistas da revolta e do<br />
declarado posicionamento político, Os Jacobinos Negros teve o mérito de mostrar, em<br />
1938, os líderes negros como agentes de sua própria história, capazes de articular<br />
manobras políticas e negociações diplomáticas de acordo com planos e estratégias. O<br />
herói desse clássico é Toussaint L’Ouverture, talvez o principal personagem de toda a
história do Haiti. “Entre 1789 e 1815, com a única exceção do próprio Napoleão<br />
Bonaparte, nenhuma outra figura isoladamente foi, no cenário da história, tão bem dotada<br />
quanto esse negro que havia sido escravo até os 45 anos de idade”, afirma James. 210<br />
Toussaint foi escravo até a década de 1770, quando ganhou de seu dono a liberdade. Como acontecia com diversos<br />
escravos alforriados em toda a América, ele logo conseguiu juntar posses. Na época da revolução tinha uma pequena<br />
fortuna, dono de uma fazenda e 15 escravos. 211<br />
Ex-escravo e ex-dono de escravos, Toussaint começou a carreira militar como<br />
subordinado dos primeiros líderes negros, Jean-François e Biassou. Com eles, integrou o<br />
exército espanhol, praticando ataques contra os franceses no norte da ilha. Até que, em<br />
1794, fez a grande jogada: depois de trocar cartas com oficiais franceses, mudou de lado<br />
e passou a apoiar a recém-criada República da França. Nessa época, deu a si próprio um<br />
sobrenome: L’Ouverture, “a abertura”, pois provavelmente sabia como ninguém ganhar<br />
espaço por meio de ataques militares. Com a mudança de lado na guerra entre os<br />
impérios, os antigos chefes e aliados se tornaram seus grandes adversários. Em poucos<br />
anos, Toussaint conseguiu eliminar os rivais, conter a invasão britânica no sul da ilha,<br />
mandar embora o representante do governo francês para a colônia e até invadir a colônia<br />
vizinha, a espanhola Santo Domingo. Conciliador e avesso a represálias, reuniu sob seu<br />
comando aliados de todas as etnias e classes. “Foi um brilhante líder político e militar<br />
que, no curso de sua carreira, conseguiu reunir o apoio de indivíduos de todos os tipos,<br />
desde fazendeiros e oficiais brancos a escravos”, afirma o historiador Laurent Dubois. 212<br />
Toussaint contava com uma equipe de assistentes brancos, mulatos e negros que<br />
escreviam cartas e conjuntos de leis e ajudavam nas decisões administrativas. Depois de<br />
derrotar rebeldes e impérios, ele, enfim, pôde organizar o país do modo que preferia e<br />
que fosse melhor aos escravos tão cansados de brigas. Sua grande atitude, porém, foi<br />
levar de volta à ilha os trabalhos forçados impostos aos negros nas plantations de canade-açúcar.<br />
Na tentativa de recuperar a economia em ruínas da colônia, Toussaint incentivou o<br />
retorno dos fazendeiros brancos à ilha – milhares deles confiaram no novo líder negro e<br />
voltaram. Mas havia o problema da mão de obra. A maior parte dos escravos tinha<br />
ocupado terras abandonadas por seus antigos donos e estavam satisfeitos em levar uma<br />
vida de subsistência, cultivando alimentos e criando animais. Para devolvê-los às<br />
plantations, Toussaint criou uma espécie de militarização do campo. No decreto que<br />
ordenou o retorno às fazendas, afirmava:<br />
Para assegurar nossas liberdades, o que é indispensável para nossa felicidade, todo indivíduo precisa ser utilmente<br />
empregado para contribuir com o bem comum. [...] Todos os trabalhadores do campo, homens e mulheres, atualmente<br />
em estado de ociosidade, vivendo em cidades, vilas e em outras plantations às quais não pertencem devem retornar<br />
imediatamente para suas respectivas plantations.<br />
Católico, Toussaint ainda praticou perseguições culturais, reprimindo rituais de vodu e de crenças africanas. 213<br />
Era um sistema de trabalhos forçados bem parecido com a escravidão. É verdade que<br />
os negros recebiam parte da produção como salário, já não eram propriedade de algum<br />
senhor, e seus chefes não tinham poder total sobre eles. Mas ainda estavam presos nas<br />
fazendas e eram obrigados a trabalhar por ali. Se anos antes tinham arriscado a vida para<br />
reivindicar só quatro dias de trabalho por semana, no novo regime ainda tinham que
cumprir seis dias, realizando exatamente as mesmas tarefas de antes. “Os escravos, é<br />
preciso observar, tinham apenas mudado de nome sob a ditadura de Toussaint”, escreveu<br />
na época um jovem oficial francês chamado Norvins. “Ele passou a chamá-los de<br />
cultivadores, mas os negros estavam todos presos ao solo, sob pena de morte se<br />
abandonassem seus postos.” 214<br />
MUSÉE DE L’ARMÉE, PARIS<br />
Toussaint L’Ouverture em retrato de autor anônimo do século 19.<br />
Muitos escravos, claro, se revoltaram de novo – e de forma bem parecida à de 1791.<br />
Brancos e gerentes de fazendas foram mortos, plantações foram queimadas e aumentaram<br />
as fugas para florestas. Toussaint foi acusado de reavivar a escravidão e agir em<br />
benefício dos brancos. Em fevereiro de 1796, quando escravos rebeldes mataram<br />
diversos europeus, o próprio Toussaint foi falar com eles para convencê-los a desistir da<br />
revolta. Em outras ocasiões, ordenou a seus generais que prendessem os rebeldes e<br />
mandassem os demais de volta às plantations. O que os generais deveriam fazer com<br />
gosto, afinal eles próprios haviam se tornado donos de grandes fazendas. 215<br />
Volumes da Enciclopédia de Diderot e D’Alembert, trazidos por senhores iluministas escravistas, foram usados como<br />
lenha depois da revolução.<br />
Há diversas tentativas de explicar por que Toussaint reavivou os trabalhos forçados.<br />
Certamente não era uma tarefa fácil criar do zero um sistema de trocas de mercadorias<br />
que por tanto tempo se baseou na escravidão. A tradição financeira da colônia tinha se
ompido e as riquezas salvas das guerras aos poucos desapareciam. O historiador<br />
Laurent Dubois vê semelhanças nas práticas de Toussaint com as dos governadores<br />
brancos que administraram a transição entre escravidão e trabalho livre, décadas depois,<br />
no Caribe britânico, nos Estados Unidos e em Cuba. “Ainda que Toussaint se<br />
diferenciasse desses por um ponto crucial – ele próprio tinha sido escravo – suas<br />
políticas de pós-emancipação foram similares àquelas dos governadores que vieram<br />
depois. Tentando manter e reconstruir a produção de açúcar e café, procurou limitar a<br />
liberdade dos ex-escravos, respondendo com uma ordem coercitiva à tentativa deles de<br />
andar livremente, adquirir terra e escapar do trabalho forçado”. 216<br />
197 Laurent Dubois e John D. Garrigus, página 105.<br />
198 <strong>Da</strong>vid Patrick Geggus, Haitian Revolutionary Studies, Indiana University Press, 2002, páginas 18 e 129.<br />
199 <strong>Da</strong>vid Patrick Geggus, página 129.<br />
200 <strong>Da</strong>vid Patrick Geggus, página 197 a 199.<br />
201 John D. Garrigus, “Blue and brown: contraband indigo and the rise of a free colored planter class in French Saint-<br />
Domingue”, The Americas, volume 50, número 2, outubro de 1993, página 234.<br />
202 John D. Garrigus, “Opportunist or patriot?”, Slavery and Abolition, volume 28, número 1, abril de 2007, páginas 1 a 21.<br />
203 John D. Garrigus, “Blue and brown: contraband indigo and the rise of a free colored planter class in French Saint-<br />
Domingue”.<br />
204 Robin Blackburn, A Queda do Escravismo Colonial, Record, 2002, página 187.<br />
205 Laurent Dubois, localização 1172.<br />
206 <strong>Da</strong>vid Patrick Geggus, página 141.<br />
207 <strong>Da</strong>vid Patrick Geggus, página 137.<br />
208 <strong>Da</strong>vid Patrick Geggus, página 14<br />
209 <strong>Da</strong>vid Patrick Geggus, página 141.<br />
210 C. L. R. James, página 16.<br />
211 Pierre Pluchon, página 61.<br />
212 Laurent Dubois, localização 2274.<br />
213 Pierre Pluchon, página 59.<br />
214 Pierre Pluchon, página 392.<br />
215 Laurent Dubois, localização 2549.<br />
216 Laurent Dubois, localização 2288.
Em diversas guerras e invasões que o imperador Napoleão Bonaparte armou no começo<br />
do século 19, legiões polonesas ajudaram a engrossar suas tropas. Os polacos<br />
esperavam obter ajuda da França para bater a Prússia e a Rússia e se tornar<br />
independentes. Em 1802, nos 50 navios que Napoleão mandou para o Haiti com o<br />
objetivo de destituir o líder negro Toussaint L’Ouverture, havia 5.200 poloneses. Muitos<br />
desses legionários se identificaram com os haitianos e mudaram de<br />
lado, passando a lutar contra os franceses. 217<br />
OS POLACOS QUE AJUDARAM A FUNDAR O<br />
HAITI<br />
Quando a guerra acabou e as derrotadas tropas francesas foram embora, 4 mil poloneses<br />
haviam morrido em batalhas ou vítimas de doenças tropicais. Dos sobreviventes, cerca<br />
de 200 ficaram no Haiti. Ainda hoje existe uma pequena comunidade de seus<br />
descendentes, já miscigenados, na cidade de Cazale, a 70 quilômetros de Porto Príncipe.<br />
Como acontece no candomblé brasileiro (em que há orixás equivalentes a santos<br />
católicos), uma das entidades do vodu haitiano, Ezili <strong>Da</strong>ntor, corresponde à Nossa<br />
Senhora de Czestochowa, a padroeira da Polônia.<br />
217 Laurent Dubois, localizações 3862-72.
Toussaint dizia que a liberdade dos escravos só seria garantida com a prosperidade da<br />
agricultura. É verdade, assim como o fato de que os negros poderiam continuar em<br />
pequenas propriedades, vendendo a produção de cana para engenhos controlados pelo<br />
governo. As grandes fazendas, porém, traziam vantagens militares – e preocupar-se com<br />
o poder militar não era demais naquela época. “Toussaint precisava da renda das grandes<br />
plantations para manter seu exército. Para assegurar a lealdade de seus oficiais, deu<br />
grandes terras a muitos deles. Começou assim a criar uma sociedade dominada por<br />
negros, mas ainda com uma grande desigualdade entre a elite e a massa da população”,<br />
afirma o historiador americano Jeremy Popkin. 218<br />
De qualquer modo, o sistema semiescravista de Toussaint era leve se comparado aos<br />
que viriam depois. Em 1802, o imperador francês Napoleão Bonaparte, temendo o poder<br />
excessivo de Toussaint em São Domingos, invadiu a colônia para destituí-lo do cargo.<br />
Entre os mais de 30 mil soldados enviados ao Caribe, havia até mesmo legionários<br />
poloneses (veja quadro na página anterior). Toussaint, enfraquecido depois que seus<br />
generais Jean-Jacques Dessalines e Henry Christophe passaram a apoiar os franceses,<br />
acabou capturado e enviado a uma prisão num castelo em Doubs, na fronteira com a<br />
Suíça, onde morreu de pneumonia.<br />
Enquanto isso, no Caribe, seus generais romperiam a aliança com a França para voltar<br />
a lutar contra ela. Em 1803, Dessalines conseguiu expulsar os franceses, declarando<br />
independência da colônia um ano depois. Deu a ela o nome de “Haiti”, um antigo termo<br />
com que os índios chamavam a ilha. Dessalines, porém, seria logo vítima de uma<br />
conspiração de seus próprios seguidores: morreu em 1806 tentando reprimir uma revolta.<br />
Depois dele, o Haiti se dividiria em dois: ao sul e a oeste, o mulato Alexandre Pétion<br />
manteria a República; ao norte, Henri Christophe, antigo general rebelde, criaria um<br />
reino independente. Foi com ele que a tragédia da Revolução do Haiti, já tão cheia de<br />
episódios estranhos, chegaria a seu ponto mais extravagante.<br />
Henri Christophe e o ápice da loucura<br />
Henri, pela graça de Deus e a Lei Constitucional do Estado, Rei do Haiti, Soberanos das Ilhas da Tortuga, Gonave e<br />
outras adjacentes, Destruidor da Tirania, Regenerador e Benfeitor na Nação Haitiana, Criador de Instituições Morais,<br />
Políticas e Guerreiras, Primeiro Monarca Coroado no Novo Mundo, Defensor da Fé, Fundador da Ordem Real e Militar<br />
de Saint-Henri.<br />
O título que o general Henri Christophe deu a si próprio é o bastante para imaginar<br />
como foi o seu governo. Autonomeado rei Henri I em 1811, ele ultrapassou os líderes<br />
brancos, negros e mulatos do país tanto em tirania quanto em loucura.<br />
As leis que Henri I promulgou chegavam à intimidade dos cidadãos. O “Código Henri”<br />
proibia casais de morar ou dormir juntos sem se casar, mandava prender casais de<br />
solteiros surpreendidos à noite na mesma casa e vetava o divórcio. O rei ainda estipulou<br />
pena de morte a ladrões e chicotadas aos que eram flagrados em mau comportamento.<br />
Para reavivar a produção de café e cana-de-açúcar em grandes fazendas, praticou uma<br />
perseguição ainda mais brutal aos cidadãos que preferiam permanecer isolados do<br />
mundo em pequenas propriedades. 219 Ao passear pelo reino, mandava prender ou surrar
quem tivesse o azar de parecer preguiçoso.<br />
Por causa desse curioso dispositivo monetário, até hoje a moeda do Haiti se chama gourdes, “cabaça” em francês.<br />
Para recriar o sistema monetário do Haiti, Henri bolou um método curioso. Mandou<br />
confiscar do campo todas as cabaças (fruta amadeirada com que até hoje se faz moringas<br />
e vasilhas de água), transformando-as na moeda nacional. O governo passou a pagar os<br />
produtores de café com unidades de cabaças. Depois, vendia a produção para<br />
mercadores ingleses em libras. Por incrível que pareça, o sistema funcionou – e o norte<br />
do Haiti viveu um princípio de prosperidade, enquanto o sul, dividido em pequenas<br />
fazendas, ficou estancado na agricultura de subsistência. Com uma parte do dinheiro<br />
arrecado na exportação de cana e café, Henri construiu hospitais e cinco escolas de<br />
período integral. Contratou até mesmo professores estrangeiros para aulas de inglês,<br />
francês, espanhol e latim. 220 Outra parte do dinheiro vindo da exportação ia para seu<br />
próprio bolso – pouco antes de seu governo acabar, Henri depositou fortunas em moedas<br />
de ouro em bancos ingleses.<br />
THE GRANGER COLLECTION/OTHER IMAGES<br />
Henri Christophe, rei do Haiti.<br />
Em dias claros, a Cidadela Laferrière pode ser vista de Cuba, a quase 150 quilômetros.<br />
Assim como outros generais negros da Revolução do Haiti, Henri Christophe tinha<br />
sido escravo. Depois de ganhar a alforria, trabalhou como pedreiro e construtor de mesas<br />
de bilhar, até montar um restaurante, na cidade de Cap-Français, que atendia aos mais<br />
ricos fazendeiros brancos. Depois da revolução e da tomada do poder, ele ficou<br />
obcecado com os símbolos reais e em sua própria homenagem. Mudou o nome da cidade<br />
de Cap-Français para Cap-Henri e criou uma nobreza que incluía príncipes, duques,<br />
condes e cavaleiros. Esses nobres tinham que seguir regras rígidas de vestimentas para
frequentar a corte. Henri mandou ainda construir 14 palácios e castelos e uma catedral,<br />
todos feitos com trabalho forçado. Seu grande legado foi a Cidadela Laferrière, ainda<br />
hoje uma das maiores fortalezas da América e uma das principais atrações turísticas do<br />
Haiti. Durante 15 anos, cerca de 20 mil negros levaram pedras e tijolos nas costas até o<br />
topo da montanha onde a fortaleza foi construída. Em caso de um novo ataque de tropas<br />
francesas, ela poderia abrigar cerca de 5 mil soldados, além da família real, para a qual<br />
foram construídos quartos especiais, salas de jantar e de jogos.<br />
O rei excêntrico não teria condições de se refugiar naquela incrível fortaleza. Em<br />
1820, quando as obras do monumento terminavam, ele sofreu um derrame que deixou<br />
metade de seu corpo paralisado. Ameaçado por insurreições populares e por tropas<br />
republicanas do sul, suicidou-se com um tiro.<br />
Tão irreal foi o governo de Henri Christophe que ele inspirou duas grandes obras da<br />
literatura: O Imperador Jones, de Eugene O’Neill, e O Reino deste Mundo, de Alejo<br />
Carpentier, sem dúvida o melhor livro inspirado na Revolução do Haiti. O livro de<br />
Carpentier traz uma memorável suposição dos últimos momentos do rei Henri I, ao<br />
perceber-se sozinho e isolado em seu castelo:<br />
Christophe se pôs a andar por seu palácio, apoiando-se em corrimões, cortinas e espaldares de cadeiras. A ausência de<br />
cortesãos, de lacaios, de guardas criava um terrível vazio nos corredores e nos cômodos. As paredes pareciam mais<br />
altas, os ladrilhos, mais largos. O salão dos espelhos não refletiu outra figura senão a do rei, até o além-mundo de seus<br />
cristais mais longínquos. E depois, esses zumbidos, essas roçaduras, esses grilos do forro, que nunca se escutaram antes,<br />
e que agora, com suas intermitências e pausas, davam ao silêncio toda uma escala de profundidade. [...] O grande salão<br />
de recepções, com suas janelas abertas nas duas fachadas, fez que Christophe escutasse o som dos saltos de suas<br />
próprias botas, aumentando sua impressão de solidão absoluta. 221<br />
Uma bala de prata foi especialmente fabricada para o suicídio do Regenerador e<br />
Benfeitor na Nação Haitiana.<br />
218 Jeremy Popkin, The Haitian Revolution (1791-1804): A Different Route to Emancipation, Universidade de Kentucky, 2003,<br />
disponível em www.uky.edu/~popkin/Haitian%20Revolution%20Lecture.htm.<br />
219 Carole Boyce <strong>Da</strong>vies, Encyclopedia of the African Diaspora, volume 1, ABC-Clio, 2008, página 306.<br />
220 Hubert Cole, Christophe, King of Haiti, Viking Press, 1970, página 241.<br />
221 Alejo Carpentier, O Reino deste Mundo, Martins Fontes, 2010, página 105.
PERÓN E EVITA
UM GRANDE PASSADO PELA FRENTE<br />
Ah, Argentina... que país maravilhoso! Vinhos Malbec, boa comida, bife de chorizo,<br />
café expresso e alfajor em todos os restaurantes. A capital é imponente, cheia de parques<br />
e belos edifícios. Seus habitantes criaram uma música erudita e sofisticada, o tango. E<br />
ainda jogam um futebol que já viveu dias de Brasil (há 25 anos, é verdade). O esbelto<br />
prédio do Museu de Arte Latino-Americano de Buenos Aires (Malba), além de uma<br />
cafeteria deliciosa, expõe o Abaporu, de Tarsila do Amaral, ícone do modernismo<br />
brasileiro. Tudo é perfeito lá. Ou quase isso. O país só peca, e feio, no manejo político e<br />
econômico. Seus governantes teimam em ignorar as regras básicas da economia, como a<br />
lei da oferta e da demanda, maquiam os dados de inflação, criam inimigos imaginários e<br />
dependem do apoio de sindicatos vendidos. Por que nossos hermanos argentinos até<br />
agora não alcançaram a estabilidade, a exemplo dos vizinhos Brasil, Chile e Uruguai?<br />
Por que teimam em permanecer congelados no tempo?<br />
A culpa é quase toda de um único homem: Juan Domingo Perón, o militar que<br />
comandou o país entre 1946 e 1955 e também entre 1973 e 1974. Desde o dia em que<br />
assumiu o posto de secretário do Trabalho em um golpe de Estado, em 1943, ele alterou<br />
irremediavelmente a mente dos argentinos. Foi como se um material radioativo<br />
contaminasse os habitantes da época e os do futuro, fazendo-os acreditar religiosamente<br />
que as chances de sucesso de seu país dependem de uma guerra contra oligarquias<br />
imaginárias e os capitalistas estrangeiros. As palavras de Perón ainda hoje são uma<br />
bíblia para muitos políticos que se autodenominam orgulhosamente peronistas. Nas<br />
últimas duas décadas, eles só não governaram a Argentina durante dois tumultuados anos.<br />
O legado de Perón é lastimoso. Em três mandatos presidenciais, acuou a iniciativa<br />
privada, produziu inflação, agrediu opositores, atacou a imprensa, recebeu nazistas<br />
alemães, aliciou sindicalistas e colocou os seus para repreender manifestações<br />
contrárias. Isso sem falar na sedução de meninas menores de idade. Seu populismo foi<br />
cultivado com a ajuda de sua esposa Eva Duarte, a Evita, que dava notas de dinheiro aos<br />
pobres e criou escolas e fundações com seu nome. Perón ainda hoje é capaz de mobilizar<br />
milhares de argentinos em manifestações com muito choro, desmaios, quebra-quebra e<br />
porrada. Nas disputas campais entre os grupos que disputam seu legado, é raro não<br />
morrer alguém. Mesmo para um brasileiro que cresceu com a rivalidade entre as<br />
seleções de futebol, a situação é de dar pena. Ao assistir a uma típica mobilização<br />
popular peronista, é impossível discordar do erudito Jorge Luis Borges, para quem “o<br />
argentino, individualmente, não é inferior a ninguém, mas, coletivamente, é como se não<br />
existisse”. 222<br />
No início do século 20, até que Perón aparecesse em cena, o país tinha tudo para dar<br />
muito certo. Uma população escolarizada e empreendedora, terras férteis, um sistema de<br />
transportes desenvolvido, uma Constituição liberal. Perón entrou em cena, frustrou tudo<br />
e, quase um século depois, a promessa não se realizou. Por conta dele e de seus<br />
seguidores, a Argentina é um país com um grande passado pela frente. O país virou até<br />
case mundial. Basta que uma nação de primeiro mundo comece a patinar e logo alguém já
a chama de “Nova Argentina”.<br />
Rainha do Prata<br />
A Argentina alcançou a independência em 1816 e, como outros países da região, não<br />
teve sorte no começo. O fazendeiro e militar Juan Manuel de Rosas foi proclamado<br />
governador e capitão-geral da província de Buenos Aires em 1829. Governou até 1832,<br />
exercendo influência em todo o país, e voltou três anos depois, para ficar até 1852.<br />
Caudilho típico, Rosas censurou a imprensa, negligenciou a educação e desencorajou a<br />
imigração. Só após sua saída o país acertou o eixo. A chegada de europeus,<br />
principalmente espanhóis e italianos, foi estimulada. Para unir as regiões e escoar a<br />
produção do campo pelo mar, foram construídas estradas e ferrovias. A Constituição de<br />
1853, inspirada nos Federalist Papers, escritos para promover a primeira Constituição<br />
dos Estados Unidos, imprimiu ideias liberais como o livre comércio entre as províncias<br />
e a inviolabilidade da propriedade privada. A Carta garantia a todo habitante o “direito<br />
de trabalhar e exercer qualquer negócio lícito, viajar e se engajar no comércio, cobrar<br />
das autoridades, para entrar, permanecer, atravessar ou deixar o território argentino,<br />
publicar suas ideias na imprensa sem censura prévia, usar e dispor de sua propriedade,<br />
associar-se com outro para propósitos úteis, professar sua fé livremente, a ensinar e a<br />
aprender”. 223<br />
Tão ricos eram os argentinos nessa época que os franceses, para falar de alguém com dinheiro demais, usavam a<br />
expressão “rico como um argentino”.<br />
O termo “portenho”, usado para designar os habitantes de Buenos Aires, existe porque a cidade tinha três portos, por<br />
onde escoava a carne e o couro para a Inglaterra. Outra explicação é que o município foi fundado com o nome de<br />
Cidade da Santíssima Trindade e Porto de Santa Maria de Buenos Aires.<br />
Cedo, o país se beneficiou das suas condições naturais excepcionais. Com clima<br />
temperado, vastas áreas de solo fértil e fácil acesso ao mar, a Argentina tornou-se um dos<br />
maiores exportadores de carne, trigo, milho e linhaça e uma das nações mais ricas do<br />
planeta. Tinha um dos portos mais movimentados do mundo, os quais ajudaram a<br />
posicionar o país em oitavo lugar entre as nações em valor das exportações, décimo em<br />
valor das importações e nono em comércio total.<br />
Em 1907, descobriu-se petróleo na Patagônia. O Teatro Colón, fundado em 1908, após<br />
20 anos de obras, tem 2.500 lugares. É ainda hoje considerado um dos cinco melhores do<br />
mundo (o Teatro Municipal em São Paulo tem 1.580 lugares). O metrô, primeiro em toda<br />
a América Latina, começou a funcionar em 1913 (mais de 50 anos antes do metrô de São<br />
Paulo ou da Cidade do México).<br />
Assim descreveu a cidade o escritor inglês James Bryce, que publicou um relato de<br />
viagem após sua passagem pela capital no início do século 20: 224<br />
Buenos Aires é algo entre Paris e Nova York. Tem o agito econômico e o luxo do primeiro, a alegria e o prazer da boa<br />
vida do outro. Todo mundo parece ter dinheiro e gostar de gastá-lo, deixando todo mundo saber como faz isso.<br />
A cidade conhecida por ele era cosmopolita e repleta de prédios imponentes,<br />
exposições de arte, carruagens e carros caros, parques espaçosos e praças com
esculturas equestres, restaurantes e lojas. A Avenida de Mayo era mais “impressionante<br />
que a Picadilly em Londres, a Unter Linden em Berlim ou a Avenida Pensilvânia, em<br />
Washington”. E ainda: “Em nenhum outro lugar do mundo uma pessoa pode ter uma<br />
impressão mais forte de riqueza e extravagância”. 225<br />
Em 1920, Buenos Aires já era a maior cidade da América Latina e a terceira do<br />
continente, atrás apenas de Nova York e Chicago. 226 Em termos de renda per capita e<br />
reservas de ouro, a Argentina ficava à frente dos Estados Unidos, da Inglaterra e só um<br />
pouquinho atrás da França. 227<br />
Em 2010, pela primeira vez, os alunos argentinos ficaram atrás dos brasileiros no exame internacional Pisa, que<br />
compara o desempenho de estudantes de diversos países nas áreas de matemática, ciências e leitura de textos.<br />
A educação, principal meio de ascensão social, se desenvolveu ao ponto de, no final<br />
do século 19, o país ter o sistema mais avançado de escolas públicas da América<br />
Latina. O índice de analfabetismo era de 6,64% − menor do que o do Brasil de hoje, em<br />
torno de 10%. Tratava-se de um enorme público leitor, o que motivou a criação de<br />
diversos jornais e revistas. Conceituadas publicações literárias disputavam leitores. Uma<br />
delas era a Sur, em que o escritor Jorge Luis Borges, um bibliotecário, publicou seus<br />
textos.<br />
A chegada dos europeus trouxe gente com vontade de trabalhar e tino empreendedor. A<br />
Argentina foi o segundo país do mundo que mais recebeu imigração europeia entre a<br />
metade do século 19 e a década de 1950. 228 Um em cada três habitantes era estrangeiro. 229<br />
O escocês Robert Fraser abriu uma filial da Alpargatas argentina no Brasil em 1907. Dois anos depois, uma fábrica na<br />
Mooca, em São Paulo, iniciou a produção de calçados. As sandálias mostraram-se perfeitas para colher café, porque não<br />
machucavam os grãos. Hoje a empresa é conhecida pela marca Havaianas, símbolo do Brasil no exterior.<br />
Graças à liberdade econômica e à boa formação que possuíam, alguns se tornaram<br />
empresários. Perto do ano de 1900, cerca de 80% dos donos de estabelecimentos<br />
comerciais e industriais eram imigrantes ou cidadãos naturalizados. 230 Filhos e netos de<br />
imigrantes criaram grandes companhias e conglomerados. Surgiram as empresas SIAM,<br />
uma fábrica de lambretas e automóveis, Alpargatas e Molinos Río de la Plata. O<br />
viajante inglês James Bryce não deixou de notar a atmosfera de oportunidades que havia<br />
por ali. “A sociedade é algo como as cidades da América do Norte, linhas entre as<br />
classes não são bem definidas, e o espírito da igualdade foi além da França e, claro, mais<br />
que na Alemanha e na Espanha.” 231<br />
O país entra na década de 1940 com tudo para decolar. Durante a guerra mundial, a<br />
Argentina vendeu alimentos para os países europeus devastados sob empréstimo e<br />
tornou-se um dos maiores credores do mundo. A ingestão de calorias pelo povo argentino<br />
era a mais adequada do mundo nos anos após a Segunda Guerra Mundial e maior que a<br />
dos Estados Unidos. 232 O país estava pronto assim para se destacar no ranking mundial<br />
das nações ricas do pós-guerra. Mas Perón não deixou.<br />
As considerações de Perón sobre o fascismo<br />
É só Perón aparecer para que a Argentina comece a apontar para baixo. Antes, em<br />
1930, como capitão do Colégio Militar, ele participara do golpe contra o presidente
constitucionalmente eleito Hipólito Yrigoyen, que estava em seu segundo mandato. A<br />
política então passou a ser dominada pelos militares, que se consideravam os salvadores<br />
da pátria. Perón, aos 34 anos e casado com a professora Aurélia “Potota” Tizón (ela<br />
morreu em 1938, vítima de câncer no útero), foi chamado para ser o secretário privado<br />
do ministro da Guerra. Mas outro militar, o tenente-general José Félix Uriburu, assumiu o<br />
governo e imediatamente dissolveu o Parlamento. Perón foi removido e enviado para<br />
patrulhar a fronteira com a Bolívia. 233 Depois seguiu para ser agregado militar no Chile e<br />
virou adido na Europa, quando a Segunda Guerra Mundial estava começando. A missão<br />
dada a ele pelo general Carlos Márquez se constituía em estudar a situação. “Queremos<br />
saber quem vai ganhar a guerra e qual você acha que deve ser a atitude da Argentina”,<br />
disse o chefe. 234<br />
Ao retornar em 1940 de sua viagem europeia, Perón trouxe uma impressão poderosa<br />
sobre o fascismo. Seu relatório não deixava dúvidas sobre que país a Argentina deveria<br />
apoiar. Do país de Benito Mussolini, disse:<br />
O fascismo italiano conquistou uma efetiva participação das organizações populares na vida do país: uma coisa que<br />
sempre foi negada ao povo. Até Mussolini chegar ao poder, a nação estava de um lado, e o povo do outro. O último não<br />
tinha participação no primeiro. 235<br />
Manipular homens é uma técnica, a técnica do líder. Uma técnica, uma arte de precisão militar. Aprendi-a na Itália em<br />
1940. 236
AP PHOTO/GLOWIMAGES<br />
Bandeiras nazistas enfeitam a fachada do Banco Germânico, em Buenos Aires, 1943.<br />
<strong>Da</strong> Alemanha de Adolf Hitler, trouxe a seguinte consideração:<br />
Um Estado organizado dedicado a uma comunidade perfeitamente organizada e também um povo perfeitamente<br />
organizado: uma comunidade em que o Estado era um instrumento do povo e onde a sua representação era, no meu<br />
julgamento, efetiva. Eu pensei que essa poderia ser a fórmula política do futuro – em outras palavras, uma democracia<br />
realmente popular, uma democracia verdadeiramente social. 237<br />
Em sua terra natal, Perón se uniu a uma turma de jovens coronéis nacionalistas e<br />
admiradores do fascismo, o Grupo de Oficiais Unidos (GOU). Em 1943, esse grupo deu<br />
um golpe de Estado (o segundo de que ele participou). Perón então ganhou um posto<br />
como secretário do Trabalho e colocou em prática suas ideias inspiradas no fascismo<br />
italiano.<br />
Entre 1945 e 1950, chegaram ao país entre 6 mil e 8 mil criminosos de guerra nazistas, fascistas e membros da<br />
Ustasha, partido croata fascista que colaborou com os nazistas. Outras fontes falam que, em 1947, 90 mil alemães<br />
gozavam de bons dias na Argentina. Entre eles estavam membros da Luftwaffe, aos quais Perón chamava de “os<br />
justicialistas do ar”. Eles receberam passaportes e cédulas de identidade em branco para preencher como achassem<br />
melhor. 238<br />
No entanto, os países do Eixo (Alemanha, Itália e Japão) perderam a guerra para os<br />
Aliados em 1945. Como integrante do governo, Perón mostrou-se solidário aos<br />
derrotados, e a Argentina se tornou um porto seguro para nazistas. Em julho desse ano,<br />
os primeiros fugitivos nazistas chegaram a Buenos Aires dentro de um submarino, o U-<br />
530. Às 7h30 da manhã do dia 10 de julho, duas lanchas de pescadores perto de Mar del<br />
Plata avistaram a torreta de um submarino. Em seguida, uma porção de loiros que<br />
“falavam um idioma complicado” saiu da água. O comandante, então, colocou em<br />
formação no convés os 53 tripulantes e os entregou às autoridades argentinas. 239 Um mês<br />
mais tarde, apareceu o U-977. Provavelmente, ao menos outros três atracaram nas costas<br />
do país sem se anunciar, tendo sido dois deles avistados com binóculos por pelo menos<br />
duas dúzias de moradores no balneário San Clemente del Tuyú. 240 Como os ingleses e os<br />
americanos chiaram, uma comissão governamental foi nomeada para analisar o caso.<br />
Quem a presidiu foi o próprio Perón. Ele recomendou que o submarino U-530 fosse<br />
colocado “à disposição dos Estados Unidos e da Inglaterra”, mas sugeriu que a<br />
tripulação e as perícias fossem feitas pelas forças navais argentinas. 241<br />
Perón sempre odiou o Brasil, até mais do que a Inglaterra: “sempre fui contra ao que fosse britânico e, depois do<br />
Brasil, a ninguém nem a nada tenho tanta repulsão”, disse. 242<br />
No caminho que o levou às praias portenhas, o submarino U-977 pode ter realizado<br />
outras missões. Segundo um estudo de dois jornalistas argentinos, Juan Salinas e Carlos<br />
de Nápoli, o U-977 é o culpado pelo afundamento do cruzador brasileiro Bahia, que<br />
estava perto dos rochedos de São Pedro e São Paulo no dia 4 de julho de 1945. Dos 357<br />
tripulantes (incluindo quatro americanos) do barco brasileiro, apenas 36 sobreviveram.<br />
A maioria morreu de sede e desidratação após enfrentar quatro dias de sol forte em pleno<br />
oceano. Os autores argentinos acreditam que a causa do desastre foi um torpedo lançado<br />
pelos alemães. Mas a tese está longe de ter consenso, pois contrasta com o relato dos<br />
náufragos brasileiros e com as investigações da marinha do Brasil, para os quais o
motivo do acidente foi o disparo de um canhão automático do próprio navio, que atingiu<br />
cargas na popa e provocou uma explosão. 243<br />
222 “Jorge Luis Borges (1889−1986)”, revista Veja, Abril, edição 929, 25 de junho de 1986, página 97.<br />
223 Paul H. Lewis, The Crisis of Argentine Capitalism, University of North Carolina Press, 1992, localizações 341-45 (edição<br />
Kindle).<br />
224 Paul H. Lewis, localizações 277-85.<br />
225 Paul H. Lewis, localizações 301-8.<br />
226 Alicia Dujovne Ortiz, Eva Perón, a Madona dos Descamisados, Record, 1996, página 34.<br />
227 Paul H. Lewis, localização 276.<br />
228 Beatriz Sarlo, Modernidade Periférica: Buenos Aires 1920 e 1930, Cosac Naify, 2010, página 36.<br />
229 Beatriz Sarlo, página 38.<br />
230 Tomás Roberto Fillol, Social Factors in Economic Development, The MIT Press, 1961, página 28.<br />
231 Paul H. Lewis, localização 321.<br />
232 Tomás Roberto Fillol, página 77.<br />
233 Felipe Pigna, Los Mitos de la Historia Argentina, volume 4, Planeta, 2008, página 25.<br />
234 Felipe Pigna, página 27.<br />
235 Paul H. Lewis, localização 1940.<br />
236 Alicia Dujovne Ortiz, página 99.<br />
237 Paul H. Lewis, localização 1944.<br />
238 Felipe Pigna, página 234; e Alicia Dujovne Ortiz, página 132.<br />
239 Juan Salinas e Carlo de Nápoli, Ultramar Sul: A Última Operação Secreta do Terceiro Reich, Civilização Brasileira, 2010,<br />
página 312.<br />
240 Juan Salinas e Carlo de Nápoli, página 329.<br />
241 Juan Salinas e Carlo de Nápoli, página 322.<br />
242 Felipe Pigna, página 21.<br />
243 Ricardo Bonalume Neto, “Livro retoma teoria conspiratória de que Hitler fugiu para a Patagônia”, Folha de S. Paulo, 8 de<br />
maio de 2011.
Um dos líderes nazistas que chegaram à Argentina nessa época foi Josef Mengele. Era<br />
conhecido como o “anjo da morte”, pois acabou com a vida de 400 mil judeus, gays e<br />
ciganos, enviados para os campos de concentração de Auschwitz, na atual Polônia.<br />
Também realizou experimentos genéticos em que dissecava pessoas vivas, amputava<br />
membros, jogava homens em caldeiras de água fervente e fazia trocas de sangue para ver<br />
o que acontecia. Mengele chegou a Buenos Aires em 1949 com um passaporte emitido<br />
pela Cruz Vermelha, usando o nome Helmut Gregor. Conheceu Perón pessoalmente. O<br />
argentino relatou assim o encontro com um “especialista em genética”:<br />
O homem veio se despedir porque um pecuarista paraguaio o havia contratado para que melhorasse seu gado. Iam pagar<br />
uma fortuna a ele. Me mostrou as fotos de um estábulo que tinha por ali, perto de Olivos, onde todas as vacas pariam<br />
gêmeos. 244 O ENCONTRO DE PERÓN COM MENGELE<br />
Mengele viajou para o Brasil no final da década de 1960 e passou a viver em um sítio<br />
nos arredores de São Paulo, onde era conhecido como “Seu Pedro”. 245 Morreu afogado<br />
em uma praia de Bertioga, São Paulo, em 1979.<br />
244 Felipe Pigna, página 243.<br />
245 Álvaro Oppermann, “Quem Foi Josef Mengele?”, revista Superinteressante, Abril, edição 223, fevereiro de 2006.
Ao mesmo tempo em que acariciava os nazistas alemães, Perón presenteava os<br />
trabalhadores com diversos direitos. Construiu com eles uma relação de dependência e<br />
adoração. Como Getúlio Vargas e outros líderes latino-americanos da época, incorporou<br />
o 13o salário, estabeleceu as folgas semanais, aperfeiçoou o sistema de assistência<br />
social, aumentou salários e reduziu as jornadas de trabalho. Eram propostas que já<br />
vinham sendo defendidas por socialistas e comunistas, mas que empacaram e depois<br />
retornaram com o carimbo do novo líder.<br />
Por que Perón fez tudo isso? Seria porque tinha como objetivo legítimo o bem do<br />
povo? Era um socialista sonhador, sensibilizado com a exploração capitalista do homem<br />
pelo homem, como acreditam ainda hoje muitos argentinos? Foi assim que ele justificou<br />
sua ajuda aos trabalhadores em um discurso proferido em agosto de 1944, em frente à<br />
Bolsa de Valores de Buenos Aires:<br />
Essas classes trabalhadoras que estão melhor organizadas são, sem dúvida, as que são mais facilmente lideradas.<br />
É bom ter essas forças orgânicas que se pode controlar e dirigir, em vez das inorgânicas que escapam à direção e ao<br />
controle.<br />
Meus queridos capitalistas! Não se assustem com o movimento trabalhista! O capitalismo nunca esteve tão seguro,<br />
porque eu também sou capitalista. Eu tenho um rancho, e há trabalhadores nele. O que eu quero é organizar os<br />
trabalhadores para que o Estado possa controlá-los e determinar regras para eles, neutralizando em seus corações as<br />
paixões ideológicas e revolucionárias que podem colocar em perigo nossa sociedade capitalista pós-guerra. Mas os<br />
trabalhadores só serão facilmente manipulados se nós dermos a eles alguns benefícios. 246<br />
A Revolução Francesa patenteou o termo sans-culotte (sem calção). Os argentinos criaram os descamisados. Em<br />
1945, diante da Casa Rosada, onde Perón era mantido preso, os homens, suados, tiraram suas camisas. Surgiram, assim,<br />
os “descamisados”, palavra que depois se tornaria sinônimo dos peronistas. O ex-presidente brasileiro Fernando Collor<br />
aproveitou a ideia em 1989, quando se declarou o candidato dos descamisados.<br />
Em 1945, quando também assumiu a vice-presidência e o Ministério da Guerra, Perón<br />
criou uma lei semelhante ao código do trabalho de Mussolini, estabelecendo que nenhum<br />
sindicato que não tivesse o reconhecimento oficial poderia existir. Cada ramo industrial<br />
só poderia ter um sindicato. O governo passou então a reconhecer uma única<br />
organização, peronista, por setor. Greves e paralisações foram proibidas. Se um<br />
sindicalista se desviasse no meio do caminho, perderia o reconhecimento do governo e<br />
teria as finanças cortadas. Nesse mesmo ano, o embaixador americano Spruille Braden,<br />
revoltado com o namoro da Argentina com os nazistas, iniciou uma campanha contra<br />
Perón, unindo liberais, comunistas, conservadores, socialistas, fazendeiros e<br />
empresários. 247 No dia 19 de setembro, centenas de milhares de pessoas foram às ruas<br />
para exigir o fim do governo militar, que tomara o poder com um golpe, e pedir novas<br />
eleições. No dia 10 de outubro, Perón renunciou a todos os cargos e foi detido pelos<br />
militares, que também estavam temerosos de sua alta popularidade. Líderes sindicalistas<br />
se mobilizaram para exigir a sua libertação e planejaram uma greve geral. Aconteceu<br />
então o episódio que marcaria a história argentina do século 20. No dia 17, Perón foi<br />
levado a um hospital. Ao saber da notícia, entre 300 mil e 1 milhão de pessoas cercaram<br />
a Casa Rosada para pedir a volta do líder. Após negociar com os militares, Perón<br />
conseguiu sua libertação e apareceu na sacada da Casa Rosada para pronunciar o<br />
discurso que o eternizou:<br />
Dou também meu primeiro abraço a essa massa grandiosa, que representa a síntese de um sentimento que havia morrido
na República: a verdadeira civilidade do povo argentino. Isto é o povo. Este é o povo sofredor que representa a dor da<br />
terra mãe, que vamos reivindicar. É o povo da Pátria. É o mesmo povo que nesta histórica praça pediu em frente ao<br />
Congresso que se respeitasse sua vontade e seu direito. É o mesmo povo que há de ser imortal.<br />
O dia 17 de outubro passou, então, a ser a data oficial do peronismo. O “irmão mais<br />
velho” do povo, como ele se autoproclamava, foi então reconduzido ao cargo de vicepresidente<br />
e, dias depois, casou-se com Eva Duarte, até então uma atriz desprovida de<br />
fama. O magnetismo que Perón estabeleceu com as massas o levou a ganhar as eleições<br />
de 1946, com 52,4% dos votos. Empossado presidente, ele começou então a aplicar seu<br />
plano econômico, desenvolvido com o conceito de “nação em armas”. Em resumo, um<br />
país deveria estar sempre preparado para uma guerra no limite de sua capacidade, o que<br />
requeria a mobilização de toda a população e dos recursos nacionais.<br />
246 Paul Lewis, localização 2046.<br />
247 Juan Salinas e Carlo de Nápoli, página 360.
Eva Duarte era uma atriz desconhecida que atuou no rádio e no teatro. Em 1938,<br />
não estava nem entre as 38 candidatas a Miss Rádio, título dado durante o Grande<br />
Concurso de Popularidade de Sintonia. 248 Quando conheceu Perón durante um ato em<br />
Buenos Aires para ajudar as vítimas de um terremoto em San Juan, em janeiro de 1944,<br />
sua vida mudou completamente. Casou-se com o general logo que ele foi<br />
libertado pelos militares e tornou-se parte indissolúvel do peronismo.<br />
A MADONA DOS<br />
DESCAMISADOS<br />
Evita criou uma fundação com seu nome, por meio da qual construía escolas, hospitais,<br />
orfanatos e moradias para mulheres que chegavam em busca de emprego nas cidades.<br />
Atendia aos pobres em um escritório, presenteando-os com bens diversos. Em alguns<br />
encontros, distribuía notas de dinheiro. O culto à sua personalidade tinha<br />
patrocínio governamental. Em uma escola de enfermagem fundada por ela, as<br />
moças tinham de desfilar todos os anos no dia 17 de outubro com uniforme azul, que<br />
trazia o nome e o rosto de Evita bordados. 249 Nos campeonatos de futebol entre<br />
estudantes, os ganhadores levavam uma medalha de ouro com seu sorriso. 250<br />
O dinheiro que ela usava para essas aventuras vinha do governo<br />
e de companhias que eram extorquidas. Aquelas que se recusavam a<br />
ajudar a instituição filantrópica de Eva Perón corriam o risco de ser estatizadas. Foi o<br />
que aconteceu com a Massone Química e a Chocolates Mu-Mu. Suspeita-se ainda que,<br />
entre seus bens, havia peças do tesouro nazista, oriundas de famílias judias ricas<br />
assassinadas em campos de concentração. 251 O próprio Perón chegou a falar de bens de<br />
“origem alemã e japonesa” de que o governo argentino teria se apropriado. 252<br />
Evita morreu aos 33 anos, de câncer no colo do útero (assim como a primeira mulher de<br />
Perón), deixando uma fortuna superior a 8,5 milhões de dólares.<br />
Era também proprietária de uma casa na Rua Teodoro García, que lhe fora presenteada<br />
pelo milionário Ludwing Freud, o testa de ferro dos capitais nazistas que Perón<br />
conhecera na Itália. O monumento a ela, que não chegou a ser construído, tinha três<br />
vezes o tamanho do Cristo Redentor e a imagem de um homem com a<br />
camisa aberta, um “descamisado” – com a face de Perón. 253<br />
248 Beatriz Sarlo, A Paixão e a Exceção, Companhia das Letras/UFMG, 2005, página 40.<br />
249 Alicia Dujovne Ortiz, página 288.
250 Alicia Dujovne Ortiz, página 291.<br />
251 Alicia Dujovne Ortiz, página 138.<br />
252 Alicia Dujovne Ortiz, página 142.<br />
253 Hugo Gambini, Historia del Peronismo: La Obsecuencia (1952-1955), Vergara, 2007, página 81.
Tudo deveria girar em torno dos militares e da preparação para a guerra iminente. A<br />
participação dos gastos bélicos no orçamento sobe de 27,8% em 1942 para 50,7% em<br />
1946. A Constituição foi alterada para que a propriedade não fosse mais inviolável. A<br />
posse agora teria obrigações sociais, e a falha em cumpri-las poderia provocar sua<br />
perda. Na visão dos militares, toda companhia deveria servir à economia nacional. Perón<br />
começou assim a tomar as atitudes infalíveis para acabar com o desenvolvimento de seu<br />
país. O Estado poderia “intervir na economia e monopolizar qualquer atividade<br />
particular” pelo interesse geral. Também podia estatizar qualquer empresa que tentasse<br />
“dominar o mercado nacional, eliminar a competição ou obter lucros excessivos”.<br />
Estatais passaram a ser administradas por militares. O Banco Central, que tinha a<br />
participação de bancos privados, foi nacionalizado em março de 1946.<br />
Fracasso na indústria e no campo<br />
Ao juntar o controle da economia com benefícios desmedidos para os trabalhadores,<br />
Perón deixou os empresários sem saída. Entre 1946 e 1950, o salário mínimo subiu<br />
33%. 254 Levando em conta outros benefícios, foi um aumento de 70%. Perón também<br />
alterou a lei trabalhista e dificultou as demissões. Sentindo-se imunes à perda do<br />
emprego, os empregados começaram a faltar como nunca. Muitos arrumaram um segundo<br />
emprego, que desempenhavam no mesmo horário do primeiro. Com apoio do governo,<br />
sindicatos de vários setores começaram a criar suas próprias folgas “em celebração à<br />
contribuição daquela indústria para a nação”. Nesses dias, realizavam diversos atos<br />
públicos. Mas não foi suficiente. Também passaram a declarar o dia seguinte às folgas<br />
como feriado, para que os funcionários pudessem descansar. Em 1951, o argentino médio<br />
descansava um dia para cada dois trabalhados. 255<br />
Tentativas do governo de disciplinar funcionários e manter a produção levaram a<br />
greves e a conflitos violentos. Como a polícia e a justiça ficavam sempre do lado do<br />
empregado, diretores e donos de empresas viviam com medo. Tito Casera, diretor de<br />
pessoal da SIAM, foi preso acusado de atividades “antiperonistas”. Seu erro foi tentar<br />
impedir funcionários de colocar bustos de Eva Perón dentro da fábrica. Como resultado<br />
das disputas com empregados, empresários reduziram atividades e procuravam, ao<br />
máximo, mecanizar as linhas de produção. Funcionário passou a ser visto como<br />
problema. Em 1950 havia menos 14.500 operários do que em 1946. O total de fábricas<br />
foi reduzido em 3.316. Sem conseguir produzir o suficiente para abastecer o mercado<br />
consumidor, a inflação aumentou. Em 1949, o custo de vida cresceu 68% em um único<br />
ano. 256 Um ano depois, a economia do Brasil, cada vez mais industrializada, ultrapassaria<br />
pela primeira vez o tamanho da economia argentina e nunca mais perderia a<br />
superioridade. 257<br />
Quem também sofreu nas mãos de Perón foram os fazendeiros e os pecuaristas. Em<br />
1946 o governo criou o IAPI, uma empresa para monopolizar todas as compras de<br />
produtos agrícolas para exportação. Os negociadores privados foram isolados do<br />
processo, e o governo tornou-se o único mediador. Mas o IAPI pagava pouco para donos<br />
de terras e arrendatários. Enquanto o preço de cada 100 quilos do trigo estava em 18,2
pesos no mercado internacional, o governo pagava apenas 15 pesos. A linhaça, que<br />
custava entre 90 e 100 pesos, era avaliada na Argentina por 35 pesos em 1946. Com<br />
custos e salários aumentando, fazendeiros cancelaram investimentos e reduziram a<br />
produção.<br />
254 Paul H. Lewis, localizações 2532-35.<br />
255 Paul H. Lewis, localizações 2548-52.<br />
256 Paul H. Lewis, localizações 2552-56.<br />
257 Angus Maddison, Historical Statistics of the World Economy: 1-2008 AD, disponível em<br />
www.ggdc.net/maddison/Historical_Statistics/horizontal-file_02-2010.xls.
Os discursos da primeira-dama peronista eram extremamente simples. Ela se<br />
limitava a enaltecer o marido e atacar inimigos imaginários, como<br />
neste discurso de 1948:<br />
O capitalismo estrangeiro, o capitalismo estrangeiro e seus serventes oligárquicos e entreguistas comprovaram que não<br />
há força capaz de submeter o povo que tem consciência de seus direitos. Uma vez mais, meus queridos descamisados,<br />
unindo-nos ao líder e condutor, reafirmamos que na vida argentina já não há lugar para o colonialismo econômico, para a<br />
injustiça social, nem para os traficantes de nossa soberania e nosso futuro.<br />
O GUARDA-ROUPA DE EVITA<br />
Contudo, ao escolher as peças de seu armário, a raiva xenófoba se esvaía. Evita era<br />
fã dos vestidos do francês Christian Dior e dos sapatos do também<br />
francês Perugia. Ao morrer, os bens de Evita contavam “756 objetos de prataria e<br />
ourivesaria, 144 peças de marfim, colares e broches de platina, diamantes e pedras<br />
preciosas avaliadas em 19 milhões de pesos”. 258<br />
258 Tomás Eloy Martínez, Santa Evita, Companhia das Letras, 1996, página 120.
Compradores internacionais também tinham de se submeter aos preços do IAPI e, por<br />
isso, se sentiram desencorajados. O IAPI vendia um quintal de trigo por 45 pesos, mas o<br />
produto era cotado a 28 pesos em Chicago. Cobrava 23,5 pesos pelo milho, quando o<br />
preço internacional era de 17,5 pesos. No início, como não havia concorrência com os<br />
produtos argentinos, países como a Inglaterra foram obrigados a comprar da Argentina<br />
mesmo assim. Mas foi por pouco tempo. O país que estava prestes a saciar a fome do<br />
mundo viu sua participação no comércio mundial despencar. Entre 1946 e 1954, as<br />
exportações de carne caíram de 296.440 toneladas para 167.635. Quedas semelhantes<br />
ocorreram entre os grãos, como o trigo. A fatia argentina sobre o comércio de carne caiu<br />
de 40% para 19%. Em trigo, caiu de 19% para 9%. Linhaça, de 68% para 44%.<br />
As ações benevolentes de Perón para com os trabalhadores foram um tiro no pé. Ao<br />
aumentar o salário mínimo, o presidente estimulou as compras. Contudo, não se<br />
preocupou com expandir os investimentos nas áreas de indústria pesada, de energia e<br />
mecanização do campo. 259 O país, então, foi forçado a importar bens de capital,<br />
necessários para que a produção conseguisse abastecer o mercado interno. Contudo,<br />
como as exportações agrícolas caíram vertiginosamente, não havia dinheiro para tanto. E<br />
os investidores estrangeiros não ousavam se aventurar no país com uma retórica<br />
nacionalista, estatizante e sem respeito pela propriedade privada. O capital estrangeiro,<br />
que antes da Primeira Guerra Mundial representava metade dos investimentos no país,<br />
passou para 5% em 1949. Com Perón, aquele dinheiro que estava guardado no Banco<br />
Central, que poderia ser usado para a indústria pesada, foi todo usado na nacionalização<br />
de companhias já existentes que possuíam donos estrangeiros. Pagou caro, até o triplo,<br />
por companhias de transporte e comunicação. Algumas, como as ferrovias, estavam<br />
bastante deterioradas e necessitavam de reparos urgentes.<br />
Sem conseguir exportar produtos agrícolas e com a indústria em decadência, a balança<br />
comercial argentina foi para o vermelho. Em 1945, o país importava 1,8 bilhão de pesos<br />
e exportava 6,7 bilhões, resultando num saldo positivo de 4,9 bilhões. As reservas de<br />
ouro eram de 1,6 bilhão de dólares. Dez anos depois, importava 5,3 bilhões de pesos e<br />
exportava 4,4 bilhões de pesos, o que deixava o país com saldo negativo de 900 milhões<br />
de pesos. As reservas encolheram para 402 milhões de dólares. Os argentinos gostaram e<br />
pediram mais. 260<br />
Em 1928, a União Soviética tinha lançado a moda de planos quinquenais, de cinco anos, que inspiram governantes<br />
latino-americanos até hoje.<br />
Perón alterou a Constituição em 1949 para permitir a reeleição, prática conhecida<br />
entre políticos latino-americanos. Em 1952, obteve a maioria dos votos e mais cinco<br />
anos de governo. Lançou então seu segundo plano quinquenal. Nada mudou de<br />
importante. O governo continuou empregando mais gente do que devia. Entre 1945 e<br />
1955, o número de empregados na administração central do governo federal subiu de<br />
203.300 para 394.900. 261 Os preços seguiram aumentando com os salários agora<br />
congelados. Os erros provocaram um declínio de 32% no valor dos salários reais entre<br />
1949 e 1953. Em maio de 1954, trabalhadores metalúrgicos revoltaram-se contra seus<br />
líderes peronistas e iniciaram greves que afetaram ainda mais a produção.<br />
Nessa época, Evita convocou a cúpula da CGT e pediu a compra de 5 mil pistolas automáticas e 1.500 metralhadoras<br />
para formar milícias de trabalhadores. Todos os gastos correriam por conta da Fundação Eva Perón, segundo o
historiador argentino Felipe Pigna. 262<br />
Com trabalhadores criticando o governo e a economia no limbo, o governo assumiu<br />
uma nova posição. Em 1951, tropas de choque leais a Perón recrutadas para reprimir<br />
greves entraram em ação. Perón nessa época fez vários discursos contra grevistas e<br />
mandou demiti-los aos milhares. Também ordenou a prisão de centenas de comunistas ou<br />
socialistas que o incomodavam. Era também uma batalha ideológica. Preocupado em<br />
moldar a mente da população, o peronismo também alterou os livros didáticos. Após a<br />
morte de Evita, o país de Borges, que se orgulhava de ter uma população bem-educada e<br />
com baixíssima taxa de analfabetismo, passou a aprender a ler com a seguinte cartilha:<br />
Perón. Pe rón. Eva. E vi ta.<br />
Evita olha o nenê. O nenê olha Evita.<br />
Eu vi Eva. Ave. Uva. Viva. Vivo. Vejo. Via. Eva. E va. Evita. Perón. Pe rón. Sara e seu marido são peronistas.<br />
Votaram em Perón. Essa mulher é Evita [desenho]. Era terna e dadivosa. Ajudou a todos. Ninguém a esquecerá. Perón<br />
nos deu muitas coisas e nos dará ainda mais. O Libertador General San Martín [desenho]. O Libertador General Perón<br />
[desenho].<br />
Perón nos ama. Ama a todos. Por isso, o amamos. Viva Perón! Esta é Evita [desenho]. Amou-nos tanto! 263<br />
259 Paul H. Lewis, localizações 2517-21.<br />
260 Paul H. Lewis, localizações 2641-47.<br />
261 Paul H. Lewis, localizações 2244-47.<br />
262 Felipe Pigna, página 260.<br />
263 Hugo Gambini, páginas 177 e 178.
Os argentinos insistem que as ilhas Malvinas são deles. Tudo bem,<br />
não fosse o fato de serem habitadas pelos kelpers, descendentes de ingleses que há mais<br />
de sete gerações vivem por lá. Em 1982, os militares argentinos invadiram a ilha com<br />
poucas armas e jovens soldados inexperientes recrutados compulsoriamente. A reação<br />
inglesa foi brutal e encerrou a desavença em apenas 74 dias.<br />
EM DEFESA DOS VENCEDORES<br />
O principal argumento dos argentinos para justificar o direito sobre as<br />
Falklands (o nome correto desse arquipélago no oceano Atlântico) é que as ilhas<br />
estão muito próximas de seu país. Se o argumento valesse, o<br />
Brasil poderia invadir o Uruguai, e os Estados Unidos entrariam em Cuba<br />
amanhã. A reação inglesa foi melhor fundamentada. Eles usaram princípios básicos,<br />
como a autodeterminação dos kelpers e o direito de eles se defenderem. Uma resolução<br />
do Conselho de Segurança das Nações Unidas, com dez votos a favor e apenas um contra<br />
(do Panamá), ordenou a imediata retirada argentina. A favor da Inglaterra, estavam<br />
Estados Unidos, França, Alemanha Ocidental, Japão, Canadá, Austrália e Nova Zelândia,<br />
sendo que essa última até ofereceu uma fragata para ajudar os ingleses. 264<br />
O curioso é que as recordações da “Falklands War” seguem o mesmo padrão de outros<br />
dois confrontos regionais, a Guerra do Pacífico entre Chile, Bolívia e Peru (1879 a<br />
1883) e a Guerra do Paraguai, entre Paraguai, Brasil, Argentina e Uruguai (1864-1870).<br />
Em todos os casos, a opinião se inclina para a defesa dos mais fracos<br />
e derrotados: Paraguai, Bolívia e Peru. Mesmo tendo sido eles a iniciar os<br />
conflitos com alegações vagas ou improcedentes.<br />
Brasil e Argentina foram obrigados a revidar o Paraguai, cujas tropas do ditador<br />
Francisco Solano López invadiram seus territórios. Na Guerra do Pacífico, o governo<br />
boliviano abusou da boa vontade do vizinho ao sobretaxar as empresas chilenas que<br />
exploravam minerais no Atacama – uma medida que tinha combinado não<br />
fazer após uma guerra em que Chile e Peru expulsaram tropas espanholas, em 1864.<br />
Essa região, que tinha uma população majoritariamente chilena e ficava distante do<br />
centro de poder em La Paz, era o litoral boliviano. 265266 Quando o governo de La Paz<br />
rasgou o acordo já assinado sobre as taxas, o chileno saiu em defesa de sua população.<br />
Como punição ao vizinho, pegou para si aquele naco de praia e de deserto.<br />
264 Lawrence Freedman, “The Falklands conflict in History”, em The Falklands Conflict Twenty Years On: Lessons for the<br />
Future, Frank Cass, 2005, localizações 754-65.
265 William F. Sater, Andean Tragedy, localizações 251-55 (edição Kindle).<br />
266 William F. Sater, localizações 259-63.
Em 1948, o Congresso, de maioria peronista, aprovou a lei do desacato, tornando<br />
crime para qualquer cidadão, mesmo um congressista, falar mal de uma autoridade.<br />
Todas as rádios passaram a ser controladas pelo governo. A maior parte dos jornais de<br />
oposição foi fechada. Em 1951, Perón expropriou o jornal La Prensa. No ano seguinte,<br />
todos os jornais, com exceção do La Nación, estavam em mãos peronistas. Jorge Luis<br />
Borges, o maior escritor argentino, para quem Evita não passava de uma prostituta,<br />
perdeu seu emprego como bibliotecário. A mando de Mussolini, ops! de Perón, as<br />
autoridades nomearam o escritor para o cargo de inspetor de aves e ovos nos mercados<br />
da capital.<br />
Enquanto o país quebrava, Perón se divertia com estudantes<br />
Perón sempre teve um gosto particular por meninas. Quando era jovem, ganhou de presente de um camponês de<br />
Mendoza sua filha, uma amante-criança carinhosamente apelidada de “Piranha”. A menina viveu com ele até ser<br />
enxotada por Evita.<br />
A esculhambação geral da nação veio logo após a morte de Evita, em 1952. Assim que<br />
ela faleceu, o ministro da Educação, Armando Méndez San Martín, foi incumbido de<br />
encontrar uma forma de entreter o melancólico presidente. 267 Sua ideia brilhante foi criar<br />
uma organização estudantil “para proporcionar interesse ao presidente, que acabava de<br />
perder sua esposa”. Criou-se, assim, a União de Estudantes Secundaristas (UES), com<br />
duas alas, a feminina e a masculina. Informado da ideia, Perón rapidamente saiu com uma<br />
piadinha. “Até que se construam as sedes esportivas, a UES pode funcionar na quinta<br />
presidencial. A ala feminina, claro...” Que sacada! As jovens estudantes ficaram na<br />
residência presidencial de Olivos, enquanto os homens ficaram bem longe dali. Na<br />
inauguração das moradias femininas, com 50 camas, em julho de 1953, Perón fez um<br />
longo discurso. Deu um conselho maroto às animadas moças:<br />
Queremos uma juventude que comece a administrar a si própria, queremos uma juventude livre de preconceitos, porque<br />
geralmente a virtude não estriba em ignorar os vícios senão em conhecê-los e dominá-los. E, como sempre, as mulheres<br />
devem ir à frente. Decidiu-se habilitar essa residência presidencial que era demasiado grande para um homem só como<br />
eu. 268<br />
Recado dado? O prédio tinha garagem para motos e lambretas, sala de estar e ginásio<br />
de esportes. Governar tornou-se menos importante. Perón passava tardes inteiras<br />
conversando com as adolescentes. As más-línguas diziam que o presidente escondia um<br />
bilhetinho no casaco de uma das moças. Aquela que o encontrava permanecia na casa<br />
presidencial à noite.
BETTMANN/CORBIS/LATINSTOCK<br />
Perón passeia de lambreta ao lado de seguranças e estudantes secundaristas em Buenos Aires.<br />
Uma das meninas, Nelly Rivas, chamou a atenção de Perón. Era a delegada de sua<br />
escola dentro da UES. Tinha 13 anos. Quando Perón foi repreendido por relacionar-se<br />
com uma menina tão nova, respondeu: “Ah é? Ela tinha 13 anos? Não faz mal, não sou<br />
supersticioso”. 269 A jovem Nelly “era uma moreninha de grandes olhos negros e<br />
sobrancelhas pronunciadas”, contou a jornalista Alicia Dujovne Ortiz. Divertia-se<br />
experimentando os vestidos de Evita sob o olhar enternecido do “velho general”. 270
AP PHOTO/GLOWIMAGES<br />
O general na companhia da jovem Nelly Rivas, durante o Festival de Cinema de Mar del Plata, em 1955.<br />
A publicação dos artigos de Nelly Rivas no Clarín foi suspensa após o segundo artigo, por ordem de um juiz de<br />
menores. 271<br />
De início, o presidente marcou reuniões com Nelly para discutir grandes temas, mas<br />
aconteceu que, em uma delas, o papo se prolongou e ficou tarde demais para que ela<br />
voltasse para a casa de seus pais. O namoro foi narrado por ela mesma em artigos<br />
publicados em 1957 no jornal americano New York Herald Tribune, no uruguaio El<br />
Diario e no argentino Clarín. Conta Nelly:<br />
Existia o costume de que cada menina nova [da UES] almoçasse com Perón. Eu jamais havia sentado em uma mesa<br />
com um personagem tão importante como o Presidente da República, nem sonhava com algo parecido, quando se<br />
aproximou o senhor Renzi para me avisar que ao meio-dia eu comeria com o general. A princípio, minhas pernas<br />
tremeram, mas depois pensei que seria interessante estar sentada ali. 272<br />
Nelly então é convidada para uma reunião na residência oficial da Avenida Alvear:<br />
[Perón] me recebeu como sempre. Nós nos sentamos em uma sala ampla e cheia de luz, onde falamos longamente,<br />
primeiro sobre a União de Estudantes Secundaristas, depois sobre os meus problemas. Passei toda a tarde com ele até<br />
que anoiteceu, e, como eu era muito jovenzinha para voltar sozinha, não me deixou retornar para minha casa. “Está<br />
bem”, eu disse ao general aquela noite, ”por essa vez eu fico para dormir aqui”. E chamei por telefone os meus pais para
avisá-los de que eu não regressaria, que não deviam se preocupar e que não era preciso me enviar uma camisola porque<br />
já tinham me oferecido uma.<br />
Foi a primeira noite em que passaram juntos. Ela então estava com 14 anos. Uma<br />
semana depois, Perón a convidou para assistir a uma luta no Parque Luna Park, em<br />
Buenos Aires, quando os dois apareceram juntos em público. Depois...<br />
Como tudo terminou muito tarde, voltei a dormir na casa do presidente. A terceira vez que fiquei foi por uma causa<br />
fortuita, a chuva, que me obrigou a reincidir. Mas essa foi a definitiva, pois não voltei a dormir na minha casa. Fiquei<br />
vivendo com o general até que ele me abandonou para se refugiar em uma canhoneira paraguaia (1955).<br />
A festa com as secundaristas teve seu preço. Bem alto. Para agradar as jovens, Perón<br />
as presenteou com motos, bicicletas, lambretas e automóveis. Em três anos, a UES<br />
consumiu 10 milhões de dólares, segundo o historiador argentino Hugo Gambini. 273<br />
Com tanta fanfarronice e a economia indo para o buraco, as críticas a Perón<br />
aumentaram. Em 1955, o presidente declarou que “qualquer um, em qualquer lugar, que<br />
tente mudar o sistema contra as autoridades constituídas, ou contra as leis ou a<br />
Constituição, deverá ser morto por qualquer argentino”. E continuou: “Qualquer<br />
peronista deve aplicar essa regra, não apenas contra aqueles que cometem esses atos,<br />
mas também contra aqueles que os inspiram e os incitam”.<br />
Perón prometeu que, para cada peronista que caísse pela causa, outros cinco inimigos<br />
deveriam morrer. 274 Era o desespero de um presidente que já não encontrava conserto<br />
para os problemas que ele mesmo tinha criado. Milícias de esquerda e de direita<br />
ganharam espaço e começaram a vitimar a população civil. Uma delas era baseada na<br />
CGT, a Confederação Geral do Trabalho, centro do peronismo ainda hoje. Logo após a<br />
morte de Evita, a entidade passou a usar o dinheiro dos fundos de ajuda social para<br />
comprar armas.<br />
A situação ficou insustentável, e os militares deram um golpe, obrigando Perón a<br />
viajar para o Paraguai. Depois, foi para Panamá, Venezuela e, por fim, Espanha. Mas as<br />
ideias do presidente deposto seguiram fortes na Argentina. Quase 20 anos depois, nas<br />
eleições de 1973, o peronista Héctor Cámpora foi eleito com 49% dos votos e colocou<br />
em ação um plano para trazer de volta o general de forma definitiva. Nessa época, Perón<br />
vivia em Madri com uma dançarina de cabaré, María Estela Martínez de Perón, ou<br />
Isabelita. O corpo de Evita, embalsamado, dormia no sótão da casa, onde foi montado um<br />
pequeno altar. Dessa maneira, o casal absorvia as energias emanadas pela defunta.<br />
Tratava-se de uma invenção de José López Rega, guarda-costas de Isabelita. Após viajar<br />
a Madri, Rega tornou-se influente na vida dos dois e virou secretário pessoal de Perón.<br />
Conhecido como “el Brujo”, Rega unia astrologia e umbanda com a maçonaria Rosa-<br />
Cruz. Contradizia o chefe em público, interrompia suas conversas e controlava o acesso<br />
ao general. Quando Perón retornou a seu país, López Rega preparou uma recepção nas<br />
proximidades do aeroporto de Ezeiza, para onde acudiram milhares de pessoas. Sob o<br />
comando do secretário de Perón, membros da Juventude Sindical Peronista (JSP)<br />
atiraram contra os montoneros, de esquerda. Treze morreram, baleados ou enforcados nas<br />
árvores. O conflito ficou conhecido como o Massacre de Ezeiza.<br />
267 Hugo Gambini, página 167.
268 Hugo Gambini, página 168.<br />
269 Alicia Dujovne Ortiz, página 384.<br />
270 Alicia Dujovne Ortiz, página 384.<br />
271 Hugo Gambini, página 174.<br />
272 Hugo Gambini, página 175.<br />
273 Hugo Gambini, página 173.<br />
274 Paul H. Lewis, localizações 3021-25.
Em Madri, para onde viajou na companhia de Isabelita, o presidente deposto conviveu<br />
diariamente com López Rega. Afeito à maçonaria, à umbanda e à<br />
astrologia – e também à picaretagem –, ele passou a ser o cérebro por trás das<br />
decisões do chefe.<br />
No livro O Romance de Perón, que une pesquisa com ficção, o jornalista Tomás Eloy<br />
Martínez narrou dois momentos curiosos na convivência de Rega com Perón. No<br />
primeiro, Rega solta um peido e coloca a culpa em Perón: “Eu não tenho nada a ver com<br />
isso. Esses gases são os que se infiltram por sua boca e depois usam meu corpo como<br />
válvula de escape”, argumentou. 275 Em outro, Rega monta guarda sentado no<br />
braço da poltrona do avião em que Perón dorme. Faz isso para ajudálo<br />
a respirar, “empurrando o ar com sua força de vontade”. 276 É melhor acreditar que<br />
tudo isso é ficção.<br />
PERÓN E O MORDOMO ESOTÉRICO<br />
López Rega escreveu livros sobre suas teses malucas. Em Zodíaco Multicor, publicado<br />
em português pela Livraria Freitas Bastos em 1965, ele apresenta uma curiosa teoria com<br />
o propósito de servir à humanidade. Faz relações entre as cores, suas vibrações, o corpo<br />
humano, planetas, países, signos do zodíaco e os sentimentos. A cor índigo está<br />
“compreendida entre 4.490 e 4.340 unidades angstrom. Atua sobre os corpúsculos do<br />
sangue, no fluido nervoso e no dinamismo que regula o movimento. Apazigua o ânimo,<br />
inspira ideia de nostalgia, modéstia, singeleza, dignidade, altura de visão e grandeza<br />
moral; é um poderoso estimulante das funções intelectuais”. 277 Cento e vinte e<br />
duas páginas de puro besteirol.<br />
275 Tomás Eloy Martínez, O Romance de Perón, Companhia das Letras, 1998, página 61.<br />
276 Tomás Eloy Martínez, página 13.<br />
277 José López Rega, Zodíaco Multicor, Livraria Freitas Bastos, 1965, página 43.
Quando Perón e sua trupe retornaram a Buenos Aires, novas eleições foram<br />
convocadas e – adivinhe? – os argentinos tornaram a votar em peso no homem. Ele<br />
ganhou, assim, outra chance para destruir seu país. Destilou a mesma receita já<br />
fracassada em seus dois mandatos anteriores: controle da indústria, congelamento de<br />
preços e salários, regulação das exportações agrícolas, centralização, inchaço do<br />
funcionalismo, estatizações e xenofobia. Uma lei de 1973 proibiu o investimento exterior<br />
em áreas como alumínio, química industrial, petróleo, bancos, seguros, agricultura,<br />
imprensa, publicidade e pesca. Diretores de empresas estrangeiras foram obrigados a se<br />
registrar como agentes estrangeiros. Claro, nenhum investimento de fora foi registrado no<br />
país nos três anos seguintes. O número de funcionários públicos subiu de 1,4 milhão para<br />
1,7 milhão em apenas três anos. Um aumento de 339 mil. Com tanta gente, prefeituras se<br />
viram incapazes de pagar as folhas de pagamento e, assim, tiveram de cortar serviços<br />
como coleta de lixo, limpeza e iluminação das ruas. Mesmo assim, nenhum empregado<br />
público foi demitido. 278 Sindicalistas peronistas ganharam força, e uma lei passou a<br />
proibir que fossem acusados de crimes, a menos que pegos em flagrante. A<br />
insubordinação aumentou. O investimento na indústria caiu 30% em 1973 e mais 38% no<br />
ano seguinte. 279 O gasto público elevado obrigou a emissão de moeda, aumentando a<br />
inflação, que chegou a 74% anuais em 1974. Nos dois anos seguintes, chegaria a<br />
assustadores 954%. 280<br />
A tragédia se assemelhava com a de 20 anos antes, mas com um diferencial: a<br />
guerrilha urbana estava muito mais atuante nos anos 70. Grupos terroristas como os<br />
montoneros, com 250 mil homens, e o Exército Revolucionário do Povo (ERP), ambos de<br />
esquerda, e a Juventude Sindical Peronista (JSP, de direita) enfrentavam-se nas ruas,<br />
roubavam bancos, sequestravam empresários e atacavam policiais. O ERP, cansado de<br />
tentar convencer o proletariado a entrar na revolução, decidiu que a faria “com as<br />
massas, sem as massas ou contra as massas”. O país mergulhou na desordem. “Ninguém<br />
vai me dizer que esses que assaltam bancos estão fazendo isso por um motivo ideológico<br />
superior: eles estão fazendo essas coisas para roubar”, disse o presidente. O bruxo López<br />
Rega, nomeado ministro do Bem-Estar Social, distribuiu armas aos terroristas da direita,<br />
como a JSP e a Concentração Nacional Universitária. Outra que ganhou força foi a<br />
Aliança Anticomunista Argentina (AAA), criada por López Rega. Seus membros<br />
enviavam cartas para os esquerdistas ordenando que deixassem o país. Caso não o<br />
fizessem, eram geralmente assassinados dias depois.<br />
No dia 1o de julho de 1974, Perón morreu, aos 78 anos. O “abacaxi” passou para as<br />
mãos de Isabelita, sua esposa e vice-presidente. Do dia em que ele morreu até setembro<br />
de 1975, 248 esquerdistas morreram nas mãos da AAA. Outros 131 foram mortos pela<br />
polícia e 132 corpos não identificados foram encontrados. 281 Isabelita iniciou um governo<br />
desastroso e deixou a Casa Rosada após um golpe militar em março de 1976, dando<br />
início à ditadura mais sangrenta da América Latina.<br />
278 Paul H. Lewis, localizações 5778-82.<br />
279 Paul H. Lewis, localizações 5852-56.<br />
280 Paul H. Lewis, localizações 5869-73.
281 Paul H. Lewis, localizações 5961-65.
PANCHO VILLA
O LATIFUNDIÁRIO MAIS FAMOSO DE<br />
HOLLYWOOD<br />
O sombreiro, o taco, o molho de carne com chocolate e pimenta, o apreço por<br />
música ruim e o hábito de comer ovos crus no café da manhã são coisas que em nenhum<br />
lugar se vê tanto quanto no México. É um país singular. No Dia dos Mortos, 2 de<br />
novembro, seus habitantes montam altares dentro de casa, servem comida aos parentes<br />
falecidos e saem às ruas se divertindo com esqueletos (dica: para comprar um nas<br />
lojinhas, é só perguntar pelas calaveras). Eles fazem até pequenas caveiras de açúcar.<br />
Todas comestíveis, claro. E dá para colocar o próprio nome nelas também. Pitoresco.<br />
Exótico. Assim também foi a Revolução Mexicana, que derrubou o ditador Porfirio Díaz<br />
e sacudiu o país inteiro entre 1910 e 1920. O movimento lutou por reforma agrária antes<br />
mesmo da Revolução Russa, de 1917. Sua marca registrada são os rebeldes de bigode<br />
pontudo, chapelão, cartucheira com balas no peito e muita maconha dentro do pulmão. Ao<br />
percorrer milhares de quilômetros para lutar contra as tropas federais, os revoltosos<br />
entoavam um hino curioso:<br />
La cucaracha, la cucaracha, ya no puede caminar. Porque no tiene, porque le falta, marijuana pa’ fumar<br />
Traduzindo:<br />
A barata, a barata já não pode caminhar. Porque não tem, porque lhe falta maconha para fumar<br />
Desse estado mexicano veio o nome da raça dos menores cachorros do mundo. Não se sabe se a raça teve origem por<br />
ali, mas é certo que a região abrigou os criadores que durante o século 19 popularizaram o cãozinho nos Estados Unidos,<br />
com o qual o estado de Chihuahua faz fronteira.<br />
Viva México! Entre os protagonistas da revolução contra o ditador Porfirio Díaz<br />
estava Doroteo Arango, que adotou a alcunha de Francisco “Pancho” Villa. Nasceu em<br />
Durango, no norte do México – sua família morava na propriedade de um fazendeiro. Aos<br />
16 anos, após discutir com o proprietário da terra onde morava, fugiu. Passou algum<br />
tempo escondido nas montanhas e depois foi para o estado vizinho, Chihuahua. Lá,<br />
tornou-se líder de bandidos armados, uma espécie de cangaceiro. Por essa época, não<br />
tinha qualquer discurso político ou ideológico. Quando a revolução contra Porfirio Díaz,<br />
que pedia o fim da ditadura e a reforma agrária, chegou ao seu estado, Pancho foi<br />
integrado ao exército rebelde, por razões ainda não bem compreendidas. Aos poucos,<br />
ganhou confiança dos líderes da revolução e dirigiu a Divisão do Norte, o maior exército<br />
revolucionário da América Latina da época, com 40 mil a 100 mil homens. 282 “É possível<br />
que, de todos os bandidos profissionais do mundo ocidental, tenha sido ele [Pancho]<br />
quem fez a melhor carreira revolucionária”, escreveu o historiador marxista Eric<br />
Hobsbawm. 283 Pancho foi “o mais eminente de todos os bandidos transformados em<br />
revolucionários”, segundo Hobsbawm. 284<br />
Na Divisão do Norte, Pancho recrutou milhares de homens que tinham perdido suas
terras por conta de decretos de Porfirio Díaz. O presidente havia proibido que terrenos<br />
baldios e áreas do estado fossem usados pelos camponeses. Até então, eles cruzavam<br />
livremente esses espaços com seus pequenos rebanhos. A esses homens, juntaram-se exprisioneiros,<br />
peões de fazenda, bandoleiros, mineiros, vaqueiros desempregados e<br />
jovens de 14 a 16 anos, os quais ainda não tinham formado a própria família e podiam<br />
ser facilmente convocados. 285 Todos queriam ganhar um pedaço de terra, seguindo a<br />
tradição medieval de dividir o território como recompensa aos vencedores. Aos<br />
muchachos, juntaram-se também suas mulheres, amantes, prostitutas e seus filhos, que os<br />
acompanhavam pelo país, andando ou viajando de trem. Elas trabalhavam como<br />
enfermeiras e até mesmo entravam na luta com armas em punho. Eram as soldaderas. 286<br />
282 Friedrich Katz, Pancho Villa, tomo II, Ediciones Era, 1998, página 410.<br />
283 Eric Hobsbawm, Bandidos, Paz e Terra, 2010, página 137.<br />
284 Eric Hobsbawm, página 190.<br />
285 Friedrich Katz, tomo I, página 334.<br />
286 Friedrich Katz, tomo I, página 335.
Não há provas de que Pancho Villa fumava a erva. Mas é certo que seus<br />
subordinados puxavam um. Essa era a forma preferida de relaxamento após as<br />
batalhas. 287 O termo marijuana, aliás, foi criado intencionalmente para fazer referência<br />
aos mexicanos. Em 1915, quando os homens de Pancho Villa tomaram a fazenda<br />
Babicora do magnata da imprensa americana William Randolph Hearst, a represália veio<br />
nas páginas de seus 20 jornais. 288 As palavras cannabis e hemp, usadas até então, foram<br />
proibidas e teve início uma campanha contra uma tal marijuana. O<br />
neologismo fundia propositadamente duas palavras que soavam bem hispânicas, “Maria”<br />
y “Juana”. 289 Pegou. Desde essa época, a maconha nos Estados Unidos é<br />
relacionada aos imigrantes que cruzavam a fronteira.<br />
A MARCHA DA MACONHA HÁ 100 ANOS<br />
A erva também era usada tradicionalmente pelos índios yaquis,<br />
que integraram a divisão de Pancho no estado de Sonora. Em uma noite de<br />
1915, quando dançavam alegremente influenciados pela erva, foram atacados. Em fuga<br />
desesperada, depararam-se com cercas de arame farpado e foram seriamente feridos. 290<br />
Soldados das tropas federais mexicanas que perseguiram Pancho também eram adeptos.<br />
Tanto que as autoridades acharam que deveriam acabar com a festa. 291 Jovens<br />
americanos do outro lado da fronteira também se interessavam pelos poderes<br />
da planta, e assim a polêmica começou.<br />
287 Curtis Marez, Drug Wars, Minnesota, 2004, página 142.<br />
288 Julie Holland, The Pot Book: A Complete Guide to Cannabis: Its Role in Medicine, Politics, Science and Culture, Rochester,<br />
2010, página 31.<br />
289 Denis Russo Burgierman e Alceu Nunes, “A verdade sobre a maconha”, Superinteressante, Abril, edição 179, agosto de<br />
2002.<br />
290 James Hurst, Pancho Villa and Black Jack Pershing, Praeger Publishers, 2008, localização 175 (edição Kindle).<br />
291 <strong>Da</strong>le H. Gieringer, “The origins of cannabis prohibition in California”, Contemporary Drug Problems, volume 26, Federal<br />
Legal Publications, 1999, páginas 14 e 15.
Mas, acredite, Pancho mantinha sua divisão na mais perfeita ordem. Para controlar<br />
essa turba composta de ex-prisioneiros, bandoleiros, mulheres e adolescentes chapados,<br />
ele empregou uma estratégia infalível: vacilou, tomou bala. Qualquer um dos seus<br />
subordinados podia ir para o paredón sem qualquer direito à defesa. Bastava beber além<br />
da conta ou suscitar uma leve suspeita de que tinha passado informações ao inimigo. 292<br />
As sentenças de morte também eram aplicadas aos que se recusavam voluntariamente a<br />
entrar na Divisão ou aos que desertavam e se juntavam às fileiras de outros<br />
revolucionários. O método deu tão certo que o mexicano ficou famoso pela disciplina<br />
que impôs à tropa.<br />
FOTO DE OTIS AULTMAN. FONTE: MIGUEL ÁNGEL BERUMEN, PANCHO VILLA: LA CONSTRUCCIÓN DEL MITO, CUADRO<br />
POR CUADRO, IMAGEN Y PALABRA/OCÉANO, 2009<br />
Pancho vestido com o uniforme militar que usou nas gravações do filme feito pela Mutual Films.<br />
O sombreiro foi adotado por vaqueiros americanos, no Texas, ainda em meados do século 19. Como caía muito para a<br />
frente e atrapalhava a visão, foi adaptado e se transformou no chapéu do caubói americano. 293<br />
Sua popularidade atingiu o auge nas telas dos cinemas americanos. O filme The Life of<br />
Pancho Villa (“A Vida de Pancho Villa”) contava a sua história, com várias mudanças<br />
para agradar ao público americano, acostumado a valorizar o empreendedorismo<br />
individual e a desconfiar de tudo o que vem do governo. Assim, a família de Pancho, que<br />
vivia nas terras de um fazendeiro, foi retratada como a de um pequeno sitiante que<br />
entrava em disputas com oficiais federais. Na trama, os vilões do governo perseguiam<br />
duas irmãs de Pancho. Dois deles sequestram a menor, a violentam e a abandonam. Ao<br />
voltar para casa, o herói descobre o que aconteceu e segue no encalço deles até matar um
dos responsáveis. É perseguido e foge para as montanhas, jurando pegar o segundo. Em<br />
uma batalha, ele o encontra e o mata. Era o clímax do filme. 294 As cenas de Pancho<br />
quando jovem foram interpretadas por um ator famoso de Hollywood, Raoul Walsh.<br />
Aquelas em que Pancho já era adulto foram protagonizadas, acredite se quiser, pelo<br />
próprio herói. Ele interpretou a si próprio e seguiu o roteiro adaptado sem reclamações.<br />
Pelo contrato assinado com a Mutual Film Company, Pancho ganhou 20% da arrecadação<br />
com as bilheterias, dinheiro que o ajudou a comprar armas nos Estados Unidos. 295 Quatro<br />
cinegrafistas da empresa o acompanhavam nas aventuras militares pelo México. Por<br />
insistência deles, Pancho realizou diversas manobras com seu cavalo antes das batalhas.<br />
Para não espantar o público, ainda aceitou trocar o sombreiro flácido por um uniforme<br />
militar. Gostou tanto do personagem que adotou a nova vestimenta em definitivo.<br />
Aconteceu assim um estranho fenômeno. Pancho Villa se tornou um personagem real<br />
baseado em fatos ficcionais. 296<br />
Pancho morreu vítima de uma emboscada em 1923, quando seu carro foi alvejado por<br />
40 tiros. Desde então, sua fama só cresceu, até que se tornou o mexicano mais conhecido<br />
nos Estados Unidos. Seu nome está em restaurantes de tacos, nachos e burritos no mundo<br />
tudo: em Glasgow, Ottawa, Moscou, Tóquio, Anchorage (Alasca) e Cascavel, no Paraná<br />
(com direito a bandinha de mariachis cantando La Bamba). Também ganhou direito a um<br />
retrato na Galeria dos Patriotas Latino-Americanos na Casa Rosada, a sede do poder<br />
executivo na Argentina (está no mesmo salão com imagens de Simón Bolívar, Salvador<br />
Allende, Perón e Che Guevara).<br />
Leis promulgadas por Díaz em 1893 e 1894 expropriaram 50 milhões de hectares e deixaram milhares de pessoas<br />
repentinamente sem ter com o que viver. A demanda por redistribuição de terras, portanto, era legítima . 297<br />
O fôlego dessa adoração prolongada se deve a duas crenças principais. A primeira é a<br />
ideia de que Pancho era um antiamericano. Em 1916 ele comandou um ataque com quatro<br />
centenas de homens armados à cidade fronteiriça de Columbus, nos Estados Unidos.<br />
Morreram dez americanos – a maioria civis – e mais de cem “villistas”, como eram<br />
chamados seus seguidores. “Os salteadores [de Pancho Villa] produziram um caudilho<br />
em potencial e uma lenda – a do único líder mexicano que tentou invadir a terra dos<br />
gringos neste século 20”, escreveu Hobsbawm ainda no século passado. 298 A segunda<br />
crença é a de que ele foi o Robin Hood latino-americano: roubava dos ricos para dar aos<br />
pobres. Criou escolas, cuidou dos órfãos, confiscou latifúndios e defendeu a reforma<br />
agrária.<br />
As duas crenças, porém, são dois mitos. Pancho amava os Estados Unidos. Queria que<br />
um de seus filhos estudasse lá. 299 Se é verdade que profetizou a reforma agrária, ele a<br />
adiou o quanto pôde. Depois, esqueceu completamente o assunto e viveu seus últimos<br />
anos como um latifundiário conservador. Por fim, atacava os ricos tanto quanto os<br />
pobres. Fuzilou a todos indistintamente.<br />
292 John Reed, Insurgent Mexico: with Pancho Villa in the Mexican Revolution, Red and Black Publishers, 1914, localizações<br />
1720 e 3283 (edição Kindle).<br />
293 “A heads-up on the history of cowboy headgear”, The American Cowboy, volume 6, número 5, janeiro/fevereiro de 2000,<br />
página 55.<br />
294 Friedrich Katz, tomo I, página 373.
295 Friedrich Katz, tomo I, página 373.<br />
296 Friedrich Katz, tomo I, página 373.<br />
297 Marco Antonio Villa, A Revolução Mexicana, Ática, 1993, página 11.<br />
298 Eric Hobsbawm, página 142.<br />
299 John Reed, localizações 1715-26.
Pancho Villa costumava explicar sua rebeldia contando uma história sofrida de sua<br />
adolescência. Aos 16 anos, voltava para casa em Durango quando encontrou o dono da<br />
fazenda onde ele morava, Don Agustín López, discutindo com sua mãe. “Vá embora da<br />
minha casa! Por que quer levar minha filha?”, gritava ela. Pancho pegou um rifle e atirou<br />
contra Don Agustín, sem o ferir gravemente. Na fuga, matou alguns de seus<br />
perseguidores. Desde então, só lhe restou a vida louca de banditismo. 300 Porém, enquanto<br />
não há como saber se o relato de violação de sua irmã é verdadeiro, o disparo contra o<br />
fazendeiro e seus empregados mais parece uma farsa. Pancho só foi preso por roubar<br />
mulas e um rifle. Foi solto em seguida.<br />
OS FALSOS COITADINHOS<br />
Alterar a própria história para fazer-se de coitado é uma<br />
obsessão entre muitos heróis da América Latina. Segundo diplomatas<br />
americanos que viviam no México, os pais de Pancho “tinham um rancho e desfrutavam<br />
certa abundância. Sua educação se limitou à escola primária, mas ao menos chegou até<br />
aí, não é o analfabeto que descrevem os jornais; suas cartas estão bem redigidas”. 301<br />
Fenômeno parecido ocorreu com o brasileiro Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião. O<br />
famoso bandido dizia ter entrado no cangaço para vingar o assassinato do pai, morto em<br />
1920 por um policial, o tenente Lucena. Essa é só meia verdade. Lampião não<br />
contava a ninguém que o pai morreu justamente por causa dos<br />
roubos e dos saques que ele mesmo praticava. Quando o tenente Lucena<br />
invadiu a casa da família, estava à procura do filho – Lampião e uns amigos tinham<br />
matado um rapaz de 15 anos e cometido assaltos em Alagoas. O tenente entrou na casa<br />
atirando e matou o pacato pai do cangaceiro. 302<br />
Outro caso semelhante é o da índia guatemalteca Rigoberta Menchú. Sua biografia causou<br />
impacto em 1983 e rendeu a ela o Prêmio Nobel da Paz. O livro contava a triste história<br />
de Rigoberta, que fora proibida de frequentar a escola, cresceu em miseráveis vilas<br />
maias e conviveu com esquadrões da morte patrocinados pelos Estados Unidos contra os<br />
índios e o movimento de guerrilha que resistia ao governo. Rigoberta foi uma<br />
unanimidade até 1999, quando o antropólogo americano <strong>Da</strong>vid Stoll revelou os exageros<br />
e as mentiras da obra. Stoll descobriu que a família de Rigoberta não era tão<br />
pobre quanto ela dizia, nem precisava se sujeitar a trabalhos de semiescravidão. Seu<br />
pai era dono de terras que foram distribuídas pelo governo, e ela havia estudado até o<br />
oitavo ano em instituições católicas privadas. O antropólogo provou também que os<br />
conflitos entre os índios e o governo foram deflagrados pelo movimento
de guerrilha do qual Rigoberta fazia parte, e não por grupos de<br />
extermínio. 303<br />
300 Friedrich Katz, tomo I, página 16.<br />
301 Friedrich Katz, tomo I, página 358.<br />
302 Frederico Pernambucano de Melo, Quem Foi Lampião, Stahli, página 68.<br />
303 <strong>Da</strong>vid Stoll, Rigoberta Menchú and the Story of All Poor Guatemalans, Westview Press, 1999.
Pancho Villa adorava os Estados Unidos<br />
A crença de que Pancho era um antiamericano esbarra nos elogios desmesurados que<br />
ele fez na década de 1910 aos Estados Unidos, na época governado por Woodrow<br />
Wilson. A um jornalista americano, disse:<br />
O que eu quero é a paz do México. Não o tipo de paz que tínhamos com Díaz, quando uns poucos tinham tudo e os<br />
muitos outros eram escravos, mas a paz que têm vocês nos Estados Unidos, onde todos os homens são iguais perante a<br />
lei e onde qualquer um que deseje trabalhar pode conseguir para ele e para a sua família meios de vida que só os muito<br />
ricos podem desfrutar no México. 304<br />
Sobre Woodrow Wilson, o presidente americano, Pancho afirmou:<br />
[Wilson] era o homem mais justo do mundo. Todos os mexicanos o adoram. Nós consideraremos os Estados Unidos<br />
como nosso amigo. 305<br />
FOTO DE OTIS AULTMAN. FONTE: MIGUEL ÁNGEL BERUMEN, PANCHO VILLA: LA CONSTRUCCIÓN DEL MITO, CUADRO<br />
POR CUADRO, IMAGEN Y PALABRA/OCÉANO, 2009<br />
Pancho brinca com câmera fotográfica de jornalista americano.<br />
O entusiasmo de Pancho com os vizinhos do Norte se explica pela estreita relação que<br />
manteve com eles em sua vida, desde cedo. Às vésperas da revolução, os estados de<br />
Durango e Chihuahua estavam repletos de fazendas de gado e minas de prata, as quais<br />
tinham proprietários estrangeiros, principalmente americanos. Muitos deles contrataram<br />
os serviços de Pancho, que também atuava como segurança na época. Um de seus chefes<br />
foi um empresário inglês chamado Furber, que comprou minas de prata em Durango. Para<br />
ele, Pancho trabalhava como capataz e como segurança. Cuidava das quadrilhas de<br />
bandoleiros que apareciam pelo caminho e tentavam assaltar os vagões de trem ou os
comboios de mula que levavam o pagamento dos funcionários da firma de Furber. 306<br />
Em retribuição, Pancho manteve praticamente intactas as propriedades de estrangeiros<br />
depois que teve início a revolução. Preferiu armar briga com fazendeiros mexicanos e<br />
espanhóis. Nunca com seus ex-patrões e seus conterrâneos. A imunidade dos estrangeiros<br />
era tão evidente que muitos proprietários mexicanos venderam suas terras a preço de<br />
banana aos de fora, os quais podiam usá-las como pasto para gado ou cultivá-las sem<br />
dores de cabeça. 307<br />
Os Estados Unidos mandaram até um cônsul especial para funcionar como um representante diplomático<br />
acompanhando Pancho Villa. Seu nome era George Carothers.<br />
Com os donos de minas de prata americanos, a relação também era de cordialidade.<br />
Uma vez que o país, convulsionado pela guerra, e o mundo estavam sofrendo uma<br />
redução na demanda de minerais, muitos estrangeiros desistiram de investir no país e<br />
interromperam a produção. Pancho conversou com eles para que reatassem os trabalhos.<br />
Como garantia, deu sua palavra de que não teriam as minas confiscadas se atendessem a<br />
seus pedidos. Também lhes assegurou que os trens, fundamentais para o transporte das<br />
tropas revolucionárias, estariam sempre à disposição dos mineradores para levar seus<br />
produtos aos Estados Unidos. Pancho ainda prometeu que permitiria a presença de<br />
sindicalistas americanos, principalmente de membros da IWW, a Industrial Workers of<br />
the World (Trabalhadores Industriais do Mundo, em inglês), sindicato americano com<br />
sede em Chicago e ligado a partidos socialistas. Seus integrantes não conseguiriam agitar<br />
os trabalhadores nem fariam greves. 308 Confiando nesse autêntico socialista, muitos<br />
donos dos meios de produção retornaram às suas atividades.<br />
Para os empresários industriais, a mão firme de Pancho, que manteve a disciplina<br />
mesmo entre seus chapados comandados da Divisão do Norte e impediu greves nas minas<br />
e nas fábricas, era a chave que poderia abrir um futuro ordeiro para o México. 309 O<br />
presidente americano Woodrow Wilson gostava disso. Uma vez, ao falar de Pancho em<br />
uma conversa com um militar francês, o presidente americano:<br />
Expressou a admiração que lhe causava que este bandido de caminhos tivesse conseguido gradualmente instilar em suas<br />
tropas disciplina suficiente para convertê-las em um exército. Talvez, disse, este homem representa hoje o único<br />
instrumento de civilização que existe no México. Sua firme autoridade permite colocar ordem e educar a turbulenta<br />
massa de peões, tão inclinada à pilhagem. 310<br />
Em 1914, quando virou estrela de Hollywood, Pancho também se tornou um dos<br />
personagens preferidos de revistas e jornais americanos. Para um jornalista ianque, era<br />
só cruzar a fronteira para a tentadora aventura de entrevistar um exótico revolucionário.<br />
O assédio a Pancho pelos gringos imperialistas era intenso, e ele chegou até mesmo a<br />
sair na capa de revistas. Era hype. A propaganda de um dos filmes sobre ele dizia que se<br />
publicava sobre Pancho o triplo do que sobre qualquer outro ser vivo. 311
FOTO DE JOHN DAVIDSON WHEELAN. FONTE: MIGUEL ÁNGEL BERUMEN, PANCHO VILLA: LA CONSTRUCCIÓN DEL MITO,<br />
CUADRO POR CUADRO, IMAGEN Y PALABRA/OCÉANO, 2009<br />
Cinematografistas que foram ao México fazer filme de Pancho.<br />
Um dos méritos do ditador Porfirio Díaz foi integrar o território mexicano com ferrovias e ligá-las aos mercados<br />
consumidores nos Estados Unidos. Díaz fez a economia crescer a uma taxa de 8% ao ano e atraiu investimentos<br />
estrangeiros. Durante a revolução, os rebeldes fizeram intenso e inteligente uso dos trens, com os quais recebiam<br />
suprimentos e deslocavam as tropas.<br />
O jornalista que mais adulou Pancho foi John Reed, o mesmo que depois se mandou<br />
para a Europa para escrever o livro Dez Dias Que Abalaram o Mundo, sobre a<br />
Revolução Russa. Reed tinha 26 anos quando entrou no México, e suas matérias para a<br />
revista Metropolitan tiveram grande repercussão nos Estados Unidos, a ponto de ter sido<br />
convidado para um encontro com o presidente Woodrow Wilson na Casa Branca. Para<br />
Reed, o México estava experimentando a alvorada de uma sociedade socialista. Pancho<br />
era “um peão ignorante. Nunca foi para a escola. Nunca teve a mais leve noção da<br />
complexidade da civilização”. 312 O Pancho de Reed, nas épocas de fome, “alimentou<br />
distritos inteiros, e tomou conta de vilas inteiras que foram expulsas pela ultrajante lei de<br />
terra de Porfirio Díaz. Em todo lugar ele era conhecido como o amigo dos pobres, o<br />
Robin Hood Mexicano”. Tanta bajulação era recompensada, segundo o próprio Reed,<br />
por uma calorosa acolhida em terras estranhas. Para se locomoverem com conforto e não<br />
perder uma batalha, correspondentes e fotógrafos ocupavam um vagão exclusivo no trem<br />
revolucionário de Pancho, totalmente adaptado. “Tínhamos nossas camas, cobertores e<br />
Fong, nosso querido cozinheiro chinês”, escreveu Reed. 313 Os cinegrafistas da Mutual<br />
Film iam no mesmo vagão. Pancho sabia muito bem da importância de cultivar uma boa<br />
imagem no mundo. Garantir uma imprensa dócil e favorável era o primeiro passo.<br />
Outros correspondentes foram mais longe que Reed e até mesmo tentaram justificar as<br />
execuções sumárias do patrono. Foi o caso de Walter Durborough, que cobriu a
campanha militar do mexicano para o jornal Santa Fe New American. Ele escreveu:<br />
Não creio que [Pancho Villa] jamais tenha condenado à morte um homem que não merecia. Penso que sempre que<br />
ordenou uma execução o fez com a crença patriótica de que estava se desfazendo de um traidor para este país.<br />
Devemos lembrar que há uma verdadeira guerra sendo levada a cabo no México e que os julgamentos marciais são<br />
parte do inferno da guerra. 314<br />
Os vínculos entre Pancho e os Estados Unidos pioraram ainda em 1914. Em fevereiro<br />
desse ano, o mexicano matou um fazendeiro inglês, William Benton. A imprensa<br />
internacional e os americanos, então, viraram-se contra ele, em solidariedade às vítimas<br />
inocentes que começaram a se acumular. Entre outubro de 1914 e abril de 1915, quando o<br />
país passou a ser disputado por forças rebeldes, a Cidade do México permaneceu sob<br />
domínio de Pancho. Nesse ínterim, ele e seus comandados instauraram o pânico na<br />
cidade. Promoveram fuzilamentos, sequestros e extorsões. A campanha de terror villista<br />
resultou em 150 mortos, 315 principalmente entre partidários do governo deposto e<br />
generais do exército federal, que lutaram contra os rebeldes.<br />
Preocupado em encerrar o conflito mexicano e assim se concentrar melhor na Primeira<br />
Guerra Mundial, Woodrow Wilson tomou partido na Revolução Mexicana e apoiou o<br />
revolucionário Venustiano Carranza para a presidência do país, em maio de 1915.<br />
Pancho ficou furioso como um garoto mimado preterido pelos pais. Imediatamente,<br />
voltou-se contra seus antigos protetores: os americanos. Começou a acusá-los de querer<br />
transformar o México em uma colônia e a percorrer seu país como um louco enfurecido.<br />
“Seu caminho é o de um cão raivoso, um mulá enlouquecido”, escreveu o vice-cônsul<br />
inglês Patrick O’Hea. 316 Nesse mesmo ano, moradores do povoado de San Pedro de<br />
Cuevas tiveram o azar de estar no caminho de Pancho. Ao se aproximarem do povoado,<br />
os comandados de Pancho foram recebidos à bala por uma milícia de moradores, que<br />
estavam fartos dos ataques de bandoleiros. Os habitantes da cidade, ao perceber o<br />
engano, pediram perdão ao comandante de Pancho, Macario Bracamontes, que se<br />
mostrou compreensivo. Mas o chefe não aceitou as desculpas e ordenou que todos os<br />
homens adultos fossem presos. No dia seguinte, mandou fuzilar todos. O padre da cidade<br />
pediu clemência e conseguiu que alguns fossem perdoados. Pancho pediu que o padre não<br />
insistisse mais. Como esse não o obedeceu, o revolucionário sacou a pistola e o matou<br />
ali mesmo. No total, foram 69 mortos. 317<br />
304 Friedrich Katz, tomo I, página 357.<br />
305 Friedrich Katz, tomo I, página 406.<br />
306 Friedrich Katz, tomo I, página 91.<br />
307 Friedrich Katz, tomo II, página 26.<br />
308 Friedrich Katz, tomo I, páginas 471-472.<br />
309 Friedrich Katz, tomo I, página 359.<br />
310 Friedrich Katz, tomo I, página 358.<br />
311 Miguel Ángel Berumen, Pancho Villa: La Construcción del Mito, Cuadro por Cuadro, Imagen y Palabra/Océano de<br />
México, 2009, página 29.
312 John Reed, localização 1590.<br />
313 John Reed, localizações 3284-95.<br />
314 Miguel Ángel Berumen, páginas 74 e 109.<br />
315 Friedrich Katz, tomo II, página 34.<br />
316 Friedrich Katz, tomo II, página 224.<br />
317 Friedrich Katz, tomo II, página 117.
O herói da Revolução Mexicana tem diversas afinidades com os criminosos que atuam<br />
perto da fronteira com os Estados Unidos atualmente. A mais óbvia é o uso da<br />
violência e dos sequestros para financiar suas atividades. Outra<br />
semelhança é que todos eles adquiriam armas nos Estados Unidos, onde a venda é<br />
liberada, e portar uma pistola é considerado um direito do cidadão. Um dos motivos para<br />
que Pancho não entrasse em atrito com os americanos, aliás, era o temor de que<br />
pudessem proibir a importação de munições.<br />
PANCHO VILLA E OS TRAFICANTES DE<br />
DROGAS<br />
A mais cruel semelhança, contudo, é o recrutamento forçado de jovens. Sem<br />
apoio popular, Pancho obrigava adolescentes a entrar para seu grupo. Caso se<br />
recusassem, eram fuzilados. Por esse motivo, quando chegava a notícia em um povoado<br />
de que Pancho estava se aproximando, os homens jovens fugiam em desespero para se<br />
esconder. No México de hoje, o recrutamento forçado leva o nome de levantones, que é<br />
o sequestro simultâneo de um grupo de garotos para obrigá-los a trabalhar para<br />
o narcotráfico. Intimidados pelo poderoso arsenal exibido pelos colegas e pelos<br />
mais velhos, a maioria aceita compulsoriamente a tarefa. A minoria que se recusa<br />
morre.
No ano seguinte, Pancho tentou sua medida mais desesperada. Na tentativa de<br />
reconquistar adeptos e sabotar o apoio americano ao presidente Carranza, recémempossado,<br />
planejou uma ofensiva aos Estados Unidos. Para isso, escolheu uma cidade<br />
pouco guarnecida, Columbus. Em março de 1916, comandou de longe a invasão do<br />
município com 485 homens, de madrugada. Seus subordinados atacaram um posto<br />
policial, incendiaram um armazém, e as chamas se espalharam pelo hotel vizinho. Dez<br />
civis morreram. Quatro deles estavam no hotel. O proprietário do estabelecimento foi<br />
retirado de seu quarto e assassinado. Um hóspede que estava com sua noiva foi levado<br />
para baixo das escadas e morto. Um veterinário foi assassinado na rua. 318 Ao retornar na<br />
mesma manhã em debandada, o grupo não obtivera nenhum resultado prático. Não levou<br />
consigo nem dinheiro, nem armas. Foi um fracasso. Do grupo de Pancho, 105 padeceram<br />
no ataque, o que representava 22% dos invasores. 319 Três anos depois, ao reconhecer que<br />
a estratégia de arrumar um inimigo externo não surtira qualquer efeito, Pancho fez<br />
voluntariamente as pazes com os Estados Unidos. 320<br />
Não ultrapasse a cerca. Latifundiário raivoso<br />
Seus subordinados no exército também tomaram casas elegantes que a oligarquia tinha abandonado na região.<br />
Pancho não fez a reforma agrária porque não quis. Durante os dez anos de revolução,<br />
ele confiscou muitas terras, mas não deu nada aos mais necessitados. Quando assumiu<br />
provisoriamente o governo do estado de Chihuahua, até baixou um decreto para<br />
redistribuir a terra. Contudo, não citou como beneficiários de suas medidas os<br />
trabalhadores que perderam seus sítios ou os peões das fazendas – os pobres e<br />
explorados que o apoiavam. Na reforma agrária de Pancho, quem se beneficiava eram<br />
apenas os soldados de alta patente de seu exército. Seu objetivo era colocar o exército<br />
para trabalhar no campo, criando regimes de três dias de trabalho na lavoura e três de<br />
instrução militar. O projeto atendia ainda a um desejo antigo do revolucionário. “Minha<br />
ambição é viver a vida em uma dessas colônias militares entre meus companheiros de<br />
que eu gosto, que sofreram tanto tempo e tão profundamente comigo”, disse Pancho para<br />
o jornalista John Reed. 321
AP PHOTO/GLOWIMAGES<br />
Pancho em sua fazenda em Canutillo, como latifundiário.<br />
Ao entregar as terras confiscadas a seus amigos militares, Pancho Villa não fez nada muito estranho. Foi assim<br />
também com a Revolução Cubana e com as terras tomadas dos espanhóis pelo venezuelano Simón Bolívar.<br />
Algumas das fazendas confiscadas por Pancho nessa época ficaram sob controle<br />
estatal. Outras tantas passaram a ser administradas por militares. Um general de armas<br />
administrava cinco fazendas. Sete ficaram sob responsabilidade de generais da Divisão<br />
do Norte. Duas com o próprio Pancho. O que eles faziam com o lucro da produção? Em<br />
uma dessas fazendas, sabe-se que metade era entregue ao Estado. A outra, ninguém<br />
sabe. 322<br />
Existe uma única notícia de uma terra que foi dada a camponeses pobres que antes<br />
tinham perdido suas terras. A fazenda chamava-se El Rancho de Matachines. 323 De resto,<br />
os trabalhadores rurais não eram sequer citados nos dois jornais publicados em<br />
Chihuahua pelo governo de Pancho, o Vida Nueva e o Periódico Oficial. 324 Quando, em<br />
1915, Pancho finalmente publicou uma lei agrária, ele já estava enfraquecido e sem<br />
qualquer meio para executá-la. Um ano depois, o herói já esquecera completamente o<br />
assunto.<br />
Se fosse submetida a uma reforma agrária seguindo os critérios do chileno Salvador Allende, Canutillo poderia gerar<br />
800 lotes. Caso se considere o limite de 20 hectares, usado pelo Movimento dos Trabalhadores (Rurais) Sem Terra<br />
(MST), o latifúndio de Villa renderia 3.200 lotes.<br />
Após a morte de Carranza – o líder revolucionário que se tornou presidente com o<br />
apoio dos Estados Unidos –, Pancho fez um acordo com o recém-instalado governo<br />
mexicano. Prometeu não mais se intrometer nos interesses nacionais e, em troca, ganhou<br />
uma fazenda para cuidar: Canutillo. Tratava-se de uma rica propriedade no estado de<br />
Durango, com 64 mil hectares. Nesse espaço enorme, era possível pastar 24 mil<br />
ovelhas, 3 mil cabeças de gado e 4 mil cavalos. A casa-grande tinha 500 pés de lado,<br />
cerca de 150 metros – a largura de um quarteirão. 325
Ao tomar posse da propriedade, Pancho encontrou empregados vivendo e trabalhando<br />
na fazenda. Não pensou em aplicar alguma utopia socialista ou coisa que o valha.<br />
Manteve todos os funcionários em suas antigas posições e ainda os submeteu a sua velha<br />
amiga, a disciplina militar. Todos tinham que começar a labuta às quatro horas da manhã.<br />
Como sempre fora muito rígido com seus subordinados, é bem provável que tenha<br />
perdido a paciência e executado alguns. Ao contratar professores para a escola que<br />
montou na fazenda, tentou acalmá-los dizendo: “Olha, aqui não se perde nada, porque ao<br />
que rouba alguma coisa eu fuzilo”. 326 Definitivamente, não era um patrão camarada.<br />
Depois da morte de Pancho, em 1923, alguns trabalhadores disseram que o antigo chefe<br />
pagava muito pouco e ameaçava matá-los se reclamassem. 327<br />
No auge de sua maturidade intelectual, Pancho deu discursos à altura de um<br />
conservador esclarecido:<br />
Os líderes bolcheviques, no México como no estrangeiro, perseguem uma igualdade de classes impossível de conseguir.<br />
A igualdade não existe, nem pode existir. É mentira que todos podemos ser iguais. A sociedade, para mim, é uma grande<br />
escada, na qual há gente para baixo, outros no meio, subindo, e outros muito altos... É uma escada perfeitamente bem<br />
mais marcada pela natureza, e contra a natureza não se pode lutar, amigo... O que seria do mundo se todos fôssemos<br />
generais, ou todos fôssemos capitalistas, ou todos fôssemos pobres? Tem que ter gente de todas as qualidades. O mundo,<br />
amigo, é uma loja de comércio, onde há proprietários, dependentes, consumidores e fabricantes. Eu nunca lutaria pela<br />
igualdade de classes sociais. 328<br />
Para completar, o homem ainda impediu que uma reforma agrária ocorresse nas terras<br />
em torno de sua fazenda. Em 1921, a comissão agrária de Chihuahua deu alguns terrenos<br />
para 240 moradores do povo de Vila Coronado. No ano seguinte, quando chegaram para<br />
tomar posse das terras, foram recebidos por homens armados que não os deixaram entrar.<br />
Disseram que seguiam ordens de Pancho Villa. Um Robin Hood assim só mesmo o<br />
México seria capaz de produzir.<br />
318 James Hurst, localização 536.<br />
319 James Hurst, localização 569.<br />
320 Friedrich Katz, tomo II, página 300.<br />
321 Friedrich Katz, tomo I, página 292.<br />
322 Friedrich Katz, tomo I, páginas 459-460.<br />
323 Friedrich Katz, tomo I, página 460.<br />
324 Friedrich Katz, tomo I, página 464.<br />
325 Friedrich Katz, tomo II, página 331.<br />
326 Friedrich Katz, tomo II, página 335.<br />
327 Idem.<br />
328 Friedrich Katz, tomo II, página 345.
SALVADOR ALLENDE
JOGOS, TRAPAÇAS E CANOS FUMEGANTES<br />
Às sete horas da manhã do dia 11 de setembro de 1973, a marinha chilena tomou o<br />
porto de Valparaíso e prendeu 3 mil pessoas, o equivalente a 1% de toda a população da<br />
cidade. 329 Os detidos, que ficaram em navios ancorados, eram simpatizantes do governo<br />
de Salvador Allende. Quinze minutos depois, o presidente, avisado do golpe em<br />
andamento por um telefonema, correu para o Palácio de La Moneda, a sede do Poder<br />
Executivo, no centro da capital, Santiago. O prédio logo foi cercado por tropas e tanques,<br />
que começaram a disparar. Perto do meio-dia, aviões da força aérea chilena deram<br />
rasantes no prédio e bombardearam as torres, criando labaredas de fogo nas janelas.<br />
Dentro do edifício, Allende proferiu discursos pelo rádio, usando os três telefones de seu<br />
escritório que tinham conexão direta com estações que apoiavam o governo. “Neste<br />
momento definitivo, o último em que eu posso me dirigir a vocês, quero que aproveitem a<br />
lição: o capital estrangeiro, o imperialismo, unidos aos reacionários, criaram um clima<br />
para que as forças armadas rompessem a tradição”, disse ele. Ladeado por um pequeno<br />
grupo de militantes e agentes cubanos, o presidente suicidou-se às duas horas da tarde<br />
com um tiro de fuzil AK-47 na cabeça. “Foi com propósito e premonição que nós lhe<br />
oferecemos esse fuzil automático. Nunca um fuzil foi empunhado por mãos tão heroicas”,<br />
diria mais tarde o ditador cubano Fidel Castro, que dera a arma de presente para<br />
Allende.<br />
A atitude extrema de Allende, eleito presidente do Chile em 1970 pela coligação de<br />
partidos Unidade Popular, celebrizou-o como um mártir da esquerda na América Latina e<br />
no mundo. O fato de ter sido substituído pela cruel ditadura de Augusto Pinochet, que<br />
durou 17 anos, fez com que ganhasse a aura de defensor heroico da democracia, dos<br />
menos favorecidos, da liberdade de expressão.<br />
Mas o primeiro presidente marxista eleito democraticamente em todo o mundo<br />
(Rússia, China, Cuba e os demais se tornaram socialistas pelas armas) foi também o<br />
pioneiro em destruir a democracia de dentro dela mesma. Eleito com apenas um terço<br />
dos votos para se tornar o líder máximo da sua nação, Allende atropelou o Congresso, a<br />
Suprema Corte, a Controladoria Geral e a Constituição, que naquela época já vigorava<br />
havia 45 anos. Na sua proposta de abrir uma “via chilena ao socialismo” – segundo ele<br />
“irmã mais nova da Revolução Soviética” –, apoiou grupos paramilitares que recebiam<br />
ajuda de Cuba. Nacionalizou fazendas e indústrias, promovendo desabastecimento e<br />
inflação. Allende também reprimiu a imprensa e fez um projeto de doutrinação socialista<br />
nas escolas. Quando o caos não deixava mais saída para o seu país, planejou com seus<br />
companheiros políticos um autogolpe, que instalaria a ditadura do proletariado e<br />
sepultaria de vez a oposição democrática. O desfecho só não foi esse porque, uma<br />
semana antes da data, os militares se anteciparam e bombardearam o Palácio de La<br />
Moneda.<br />
Só entre os políticos e intelectuais brasileiros que foram para o Chile, estavam o ex-presidente brasileiro Fernando<br />
Henrique Cardoso, José Serra, Plínio de Arruda Sampaio, Francisco Weffort, <strong>Da</strong>rcy Ribeiro, Betinho, Fernando Gabeira<br />
e Alfredo Sirkis.
Nossa percepção equivocada de Allende – que faz o parágrafo acima soar tão estranho<br />
– deve-se em grande parte aos relatos e às vivências dos políticos e intelectuais que<br />
fugiram da ditadura militar de outros países na mesma época e encontraram um paraíso<br />
socialista em gestação no Chile. Entre 10 e 15 mil extremistas estrangeiros viajaram ao<br />
país com a ideia de defender o governo de Allende, deixando para trás o Brasil, a<br />
Argentina, o Peru, a União Soviética, a Alemanha Oriental, a Checoslováquia, Cuba e o<br />
Uruguai. 330 De modo geral, esses jovens idealistas ignoraram as atitudes antidemocráticas<br />
do presidente chileno e supervalorizaram a maldade de seus opositores, entre eles<br />
políticos, juízes e jornalistas, muitos deles simpatizantes da própria esquerda.<br />
O antropólogo brasileiro <strong>Da</strong>rcy Ribeiro tornou-se assessor especial de Allende e<br />
redigiu algumas de suas falas. No discurso que o presidente proferiu em 5 de maio de<br />
1971, escrito pelo brasileiro, havia citações explícitas a clássicos do marxismo e se<br />
enfatizava que o caminho chileno seria percorrido “dentro dos marcos do sufrágio, em<br />
democracia, pluralismo e liberdade”. 331332 Era assim que os demais brasileiros também<br />
interpretavam o que ocorria no país. Allende, ninguém duvidava, era um democrata que<br />
poderia enviar uma mensagem poderosa ao seu extremo oposto: a ditadura militar<br />
brasileira. O Chile era, assim, a terra prometida.<br />
No livro Roleta Chilena, no qual narrou sua experiência nessa época, Alfredo Sirkis,<br />
hoje do Partido Verde, escreveu que o Chile era “o país onde a esquerda tinha povo”.<br />
Sirkis assumiu como seus inimigos todos aqueles que criticavam o governo de Allende.<br />
Mulheres protestavam nas ruas batendo panelas contra a escassez de comida? Eram<br />
dondocas de direita. “Há um importante componente popular, atrasado, nestas marchas de<br />
panelas vazias”, escreveu. 333 Jornais denunciavam as violações de direitos humanos<br />
praticados pelos militares no Brasil? Não importa. Eram veículos de direita, “pasquins<br />
fascistas”. 334 Sirkis chamou os eleitores da Democracia Cristã, o partido que governava o<br />
Chile até Allende assumir o poder, de momios, gíria que ele traduziu como “múmias,<br />
reacionários”. Logo após o golpe, ele se deparou com uma família comemorando a<br />
destituição de Allende. Escreveu ele: “Nas portas de alguns edifícios aparecem grupos<br />
eufóricos, de rádio e bandeira chilena na mão, como se fosse decisão de campeonato. É a<br />
classe média marchadeira que vibra e torce, lembranças [do golpe militar] de 1º de abril<br />
de 1964”. 335<br />
Para evidenciar as armadilhas em que muitos já caíram e ainda caem, nós faremos aqui<br />
um pequeno teste, com perguntas espalhadas ao longo deste capítulo. Marque a<br />
alternativa que achar correta e confira o resultado no final do capítulo.<br />
Questão 1<br />
Quem derrubou Salvador Allende?<br />
a) A CIA<br />
b) Os Estados Unidos<br />
c) O presidente americano Richard Nixon<br />
d) Nenhuma das alternativas anteriores<br />
Apesar do discurso radical, Allende vivia como riquinho. Praticava equitação, natação, tiro ao alvo e comprou um<br />
pequeno veleiro, no qual levava as filhas para passear. Nos anos 60, Allende foi diretor-geral e acionista da Sociedade<br />
Anônima e Comercial Pelegrino Carioca, uma firma de exportação e importação com sedes em Valparaíso e
Santiago. 336<br />
O brigadeiro Marmaduke Grove, sabe-se hoje, foi pago regularmente pelo Ministério de Assuntos Exteriores nazista.<br />
“Mesmo os ministros socialistas da Frente Popular de Pedro Aguirre Cerda (1938 a 1941) foram subornados diretamente<br />
pela embaixada nazista em Santiago”. 337<br />
Ao mesmo tempo em que entrou na universidade, em 1926, também ingressou na maçonaria seguindo o exemplo de<br />
seu pai e de seu avô paterno, que portava o título de Gran Mestre da Maçonaria. 338<br />
Salvador Allende Gossens, filho de uma abastada família de Valparaíso, inclinou-se<br />
para o socialismo por influência de um sapateiro anarquista de origem italiana.<br />
Declarava-se marxista-leninista e chamava às próprias filhas “companheira” Carmen,<br />
“companheira” Isabel, “companheira” Beatriz. 339 Na Faculdade de Medicina, em que<br />
ingressou em 1926, participou de um grupo de estudos marxistas. Em 1932, com 24<br />
anos, integrou um grupo comandado pelo brigadeiro Marmaduke Grove, que deu um<br />
golpe militar e criou a Junta da República Socialista do Chile. A empreitada durou<br />
apenas duas semanas, e Allende chegou a ser preso por fazer um discurso na Faculdade<br />
de Direito. No ano seguinte, tornou-se um dos fundadores do Partido Socialista de<br />
Valparaíso. Como parte de uma coalizão chamada Frente Popular, os socialistas<br />
conquistaram a presidência em 1938, e Allende, com seus óculos de aros grossos, foi<br />
empossado ministro da Saúde. Ficou no cargo até 1942.<br />
Em seguida, Allende foi senador por 25 anos e tentou três vezes a presidência, sem<br />
sucesso. Em 1970, concorreu pela quarta vez pela Unidade Popular, que incluía o Partido<br />
Comunista, fiel a Moscou, o Partido Socialista, o Partido Radical e outros grupos, que<br />
pensavam de maneira mais radical que o Partido da Democracia Cristã (PDC), no poder<br />
até então. A missão expressa nos documentos do Partido Socialista deixava clara sua<br />
intenção: “estabelecer um Estado revolucionário que possa libertar o Chile da<br />
dependência e do atraso econômico e cultural e iniciar um processo de socialismo. A<br />
violência revolucionária é inevitável e legítima […]. A revolução socialista só pode ser<br />
consolidada pela destruição da estrutura burocrática e militar do Estado burguês”. 340<br />
329 Les Evans, Disaster in Chile, Allende’s Strategy and Why It Failed, Pathfinder Press, página 218.<br />
330 Libro Blanco del Cambio de Gobierno en Chile, Secretaría General de Gobierno de Chile/Lord Cochrane, 1973, página<br />
69.<br />
331 Alberto Aggio, “A esquerda brasileira vai ao Chile”, revista História Viva, Duetto, edição 42, abril de 2007.<br />
332 <strong>Da</strong>rcy Ribeiro, Confissões, Companhia das Letras, 1997, página 414.<br />
333 Alfredo Sirkis, Roleta Chilena, Círculo do Livro, 1981, página 116.<br />
334 Alfredo Sirkis, páginas 26 e 108.<br />
335 Alfredo Sirkis, página 22.<br />
336 Víctor Farías, Salvador Allende, Antissemitismo e Eutanásia, Novo Século, 2005, página 26.<br />
337 Víctor Farías, página 18.<br />
338 Patricia Verdugo, Como os EUA Derrubaram Allende, Revan, 2003, página 9.<br />
339 “Os Caminhos do Chile”, revista Veja, Abril, 16 de setembro de 1970.
340 Robin Harris, A Tale of Two Chileans, Chileans Supporters Abroad, disponível em<br />
www.reocities.com/CapitolHill/Congress/1770/harris.pdf, página 9.
O poeta chileno Pablo Neruda, Nobel de Literatura, era membro do Partido<br />
Comunista do Chile. Quando Josef Stálin, um dos piores ditadores do século 20,<br />
morreu, em 1953, Neruda publicou uma Ode a Stálin na revista francesa L’Espresso:<br />
NERUDA AMAVA STÁLIN<br />
Junto a Lênin<br />
Stálin avançava<br />
e assim, com blusa branca,<br />
com gorro cinzento de operário, Stálin,<br />
com seu passo tranquilo,<br />
entrou na História acompanhado<br />
de Lênin e do vento.<br />
Stálin desde então<br />
foi construindo. Tudo<br />
fazia falta. Lênin<br />
recebeu dos czares<br />
teias de aranha e farrapos.<br />
Lênin deixou uma herança<br />
de pátria livre e vasta.<br />
Stálin a povoou<br />
com escolas e farinha,<br />
imprensas e maçãs. [...]<br />
Sua simplicidade e sua sabedoria,<br />
sua estrutura<br />
de bondoso coração e de aço inflexível<br />
nos ajuda a ser homens cada dia,<br />
diariamente nos ajuda a ser homens.
Allende ganhou o pleito com 36% dos votos. Como a maioria da população chilena<br />
não optara pelo candidato, foi preciso validar o resultado no Congresso. Cientes das<br />
credenciais radicais de Allende, os parlamentares o obrigaram a assinar um documento,<br />
o Estatuto das Garantias Democráticas. Nesse juramento, Allende prometeu respeitar o<br />
Estado de Direito, o profissionalismo das forças armadas, a liberdade de opinião, a<br />
pluralidade sindical, a autonomia das universidades e a obrigação de indenizar as<br />
expropriações previstas no programa de governo. 341<br />
Poucos franceses fizeram tanto estrago na América Latina quanto Régis Debray. No livro Revolução na Revolução,<br />
ele desenvolveu a teoria do foco, segundo a qual pequenos grupos armados poderiam vencer grandes exércitos. Essa<br />
ideia levou milhares de jovens a perder a vida organizando guerrilhas no meio do mato. Debray foi preso com Che<br />
Guevara na Bolívia em 1967. Solto em 1970, mudou-se para o Chile e virou conselheiro de Allende. Sua mulher,<br />
Elisabeth Burgos, foi a ghost-writer da biografia de Rigoberta Menchú.<br />
Foi um ato de puro cinismo, pois mais tarde Allende debochou do acordo e ignorou<br />
todas as promessas. Em entrevista ao jornalista francês Régis Debray, em 1971, Allende<br />
disse que só assinou o documento por “necessidade tática”. Segundo ele, “o importante<br />
era tomar o poder”. 342 Na entrevista, disse ainda:<br />
Quanto ao Estado burguês do momento presente, nós estamos buscando superá-lo. Derrotá-lo.<br />
Nós devemos expropriar os meios de produção que ainda estão em mãos privadas.<br />
Camarada, o presidente da República é um socialista... Eu alcancei esse posto para trazer a transformação econômica e<br />
social do Chile, o que abrirá o caminho para o socialismo. Nosso objetivo é o total, científico, socialismo marxista. 343<br />
As políticas adotadas por Allende foram drásticas desde o princípio. Seus seguidores,<br />
armados, começaram a realizar impunemente uma série de apropriações de fazendas e<br />
fábricas, as quais eram chamadas de tomas. A queda na produção de alimentos e outros<br />
bens, decorrente disso, provocou escassez, inflação e fez o governo lançar, uma década<br />
depois de Cuba, um cartão de racionamento. Grupos irregulares de direita começaram a<br />
contra-atacar os de esquerda, gerando conflitos violentos. A média era de uma morte por<br />
semana em confrontos políticos. 344<br />
Os terroristas chilenos também aprontaram no Brasil. Com o pretexto de ajudar a guerrilha em El Salvador,<br />
integrantes do MIR sequestraram o empresário Abilio Diniz, dono do Grupo Pão de Açúcar, em 1989. O sequestro do<br />
publicitário Washington Olivetto, que ocorreu em 2002, também envolveu chilenos. Um deles, Marco Rodolfo Rodríguez<br />
Ortega, é filho de dois integrantes do MIR.<br />
O presidente também criou uma guarda pessoal para cuidar de sua segurança. Era o<br />
GAP, Grupo de Amigos Pessoais, montado logo no início do mandato. Muitos dos seus<br />
participantes também estavam no Movimiento de Izquierda Revolucionária (MIR),<br />
grupo de militantes radicais que tinha como um dos seus líderes Andrés Pascal Allende,<br />
sobrinho do presidente. Eram cerca de 200 homens pesadamente armados – tinham<br />
pistolas com silenciadores e dirigiam carros potentes para a época, como o Fiat 125. 345<br />
Corriam pelas ruas de Santiago exibindo metralhadoras do lado de fora das janelas. “Eu<br />
estava atravessando a rua com uma amiga em Santiago, e quase fomos atropeladas por<br />
eles. Com armas do lado de fora da janela, nunca paravam os carros”, diz Célia de las<br />
Mercedes Morales Ruiz, que morava no Chile na época e depois se mudou para o Brasil.<br />
Entre os seguranças que protegiam as residências de Allende, havia cubanos, argentinos<br />
radicais membros do grupo dos montoneros e uruguaios do grupo tupamaro, todos<br />
terroristas. Os treinamentos do GAP ocorriam nas propriedades do presidente com
instrutores cubanos.<br />
BETTMANN/CORBIS/LATINSTOCK<br />
Allende acena para a multidão a caminho de parada militar em Santiago, em novembro de 1970. Os guarda-costas que o<br />
acompanham são integrantes do GAP.<br />
Allende ainda tentou controlar o ensino nas escolas. Bem ao estilo de Che Guevara,<br />
seu plano era de criar uma Escola Nacional Unificada (ENU), para criar o “homem<br />
novo... livre para se desenvolver integralmente em uma sociedade não capitalista, e quem<br />
vai se expressar como uma personalidade... consciente e solidária com o processo<br />
revolucionário, que é... tecnicamente e cientificamente capaz de desenvolver a economia,<br />
a sociedade em transição para o socialismo”. 346 Lautaro Videla, coautor do projeto, disse<br />
que a Escola Nacional Unificada era a “entrada definitiva da luta de classes na<br />
educação”. O projeto revoltou pais de alunos, militares, políticos de oposição,<br />
professores, mulheres e estudantes. Até mesmo padres da Igreja Católica deram<br />
declarações indignadas contra a proposta de doutrinação.<br />
O cinema também sofreu censura. A estatal Chile Films é que ditava os filmes que deveriam ser exibidos nas salas.<br />
Mais da metade deles passou a ser de soviéticos. As salas, claro, ficaram vazias.<br />
Allende também investiu contra veículos de comunicação que não compactuavam com<br />
suas ideias. Jornais e rádios foram atacados e passaram a ter problemas para importar<br />
antenas de transmissão, tinta e óleo para as impressoras, cujas vendas passaram a ser<br />
controladas pelo governo. Diversas estações de rádio foram compradas. As que se<br />
negaram a negociar com o governo ganharam concorrentes na mesma cidade. Dez delas<br />
foram invadidas por socialistas e comunistas, que expulsavam os donos e mudavam a<br />
programação na marra. 347 Canais de televisão também foram tomados. O diretor do Canal<br />
5 e seus funcionários foram feitos prisioneiros e até mesmo chicoteados. 348 O Canal 6,<br />
criado pela Universidade do Chile, foi palco de violência. Dois dias depois de entrar no<br />
ar, em 19 de junho de 1973, um grupo de policiais civis entrou com armas nas mãos, sem
autorização judicial, destruiu os equipamentos e prendeu 31 estudantes e jornalistas. A<br />
ordem foi dada pelo governador de Santiago, o socialista Julio Stuardo. 349<br />
O governo ainda fez uma campanha contra o único fornecedor de papel de imprensa no<br />
Chile, a empresa La Papelera. Tentou comprar as ações da empresa por um preço quatro<br />
vezes maior, mas nenhum acionista aceitou a proposta. O jornal El Mercurio sofreu<br />
boicote das estatais, que deixaram de comprar anúncios. Três meses após a posse de<br />
Allende, a receita tinha caído 40%. Os bancos, que passaram para as mãos do governo,<br />
recusaram-se a dar crédito ao periódico. Por duas vezes, militantes pró-Allende tentaram<br />
incendiar as instalações. Funcionários e colaboradores recebiam cartas e chamadas<br />
telefônicas de desconhecidos dizendo que iriam colocar fogo em seus carros e prendêlos.<br />
O diretor Agustín Edwards também foi ameaçado de morte. Segundo a cientista<br />
política socialista francesa Suzanne Labin, que reconstruiu os fatos da época a partir de<br />
depoimentos de chilenos, o El Mercurio só sobreviveu graças ao apoio de seus<br />
trabalhadores, que aceitaram uma redução de salários de 20%. 350<br />
Liberdade de imprensa não era uma bandeira do presidente. Em um congresso de<br />
jornalistas no dia 18 de abril 1971, Allende deu sua opinião sobre como deveria ser o<br />
trabalho desses profissionais:<br />
Não deve haver lugar para objetividade no jornalismo. O dever supremo dos jornalistas de esquerda não é servir a<br />
verdade, mas a revolução. 351<br />
Em maio de 1973, um tribunal da cidade Rancagua determinou que uma fazenda ocupada ilegalmente fosse devolvida a<br />
seu dono. O governo, então, deu uma ordem ao chefe de polícia local para que não tirasse os invasores e mandasse<br />
embora o proprietário verdadeiro, se ele ousasse aparecer. Indignada, a Corte Suprema divulgou uma nota pública a<br />
Allende, reclamando que era a “enésima vez que ele interferia em um ato de justiça”. Não apenas tinha impedido que<br />
uma sentença fosse cumprida, como tinha ordenado o oposto. 352<br />
Em agosto de 1973, um mês antes do suicídio do presidente, o Congresso listou dez<br />
flagrantes de desrespeito à ordem constitucional e legal do país. Entre as denúncias,<br />
afirmava-se ser “um fato que o atual governo da república, desde seu início, se empenhou<br />
em conquistar o poder total, com o evidente propósito de submeter todas as pessoas ao<br />
mais estrito controle econômico por parte do Estado e conseguir desse modo a instalação<br />
de um sistema totalitário, absolutamente oposto ao sistema democrático representativo,<br />
que a Constituição estabelece”. O texto ainda acusava o governo de burlar a ação da<br />
justiça nos casos de delinquentes que pertenciam a partidos ou grupos do governo, atentar<br />
contra a liberdade de expressão, impedir grupos de adversários de fazer reuniões, tentar<br />
tornar obrigatória a conscientização marxista na escola, violar o direito de propriedade,<br />
reprimir sindicatos com meios ilegais e apoiar a formação e o desenvolvimento de<br />
grupos armados, destinados a enfrentar as forças armadas do país. A Câmara dos<br />
Deputados passou uma resolução, com 87 votos a favor e 47 contra, declarando o<br />
governo de Allende ilegal. 353 Muito pouco disso foi considerado pelos intelectuais e<br />
políticos estrangeiros que estavam refugiados no Chile.<br />
Por essa época, Allende estava longe de ter a população chilena a seu favor. Com a<br />
economia em frangalhos, grupos terroristas promovendo atentados, um projeto de<br />
doutrinação ideológica nas escolas em andamento e jornais sob ataque, o<br />
descontentamento cresceu. Mulheres protestaram nas ruas batendo panelas. Motoristas de
caminhão organizaram uma greve nacional, inviabilizando que mercadorias e matériasprimas<br />
chegassem a seus destinos. Ao protesto dos motoristas, juntaram-se estudantes<br />
universitários, donas de casa, lojistas, pilotos de companhias aéreas, donos de ônibus da<br />
capital, bancários, engenheiros civis, médicos e dentistas. 354 Seus pedidos não davam em<br />
nada. Allende, eleito por uma minoria, nunca se preocupou em conquistar o coração e a<br />
confiança dos outros chilenos. O próprio presidente assumiu: “Eu não sou presidente de<br />
todos os chilenos, mas apenas dos que apoiam a Unidade Popular”. 355 O país ficou<br />
ingovernável, e as pessoas começaram a se preparar para enfrentar uma guerra civil.<br />
O relato do chileno Ricardo García Valdés, engenheiro elétrico aposentado, hoje com<br />
65 anos, ilustra bem a situação. Em Santiago, ele trabalhava na Standard Electric, de<br />
capital americano, e simpatizava com o Partido da Democracia Cristã, o PDC:<br />
Um dia veio um cara do sindicato e disse: “Você é um fdp vendido aos americanos!”. E cuspiu na minha mesa. Eu fui<br />
então conversar com o presidente da companhia, diretamente. Contei o que aconteceu, e ele respondeu: “Ricardo, eu não<br />
mando mais na empresa. Quem comanda aqui é o sindicato, não posso fazer nada. Não tenho mais autoridade”.<br />
Outro dia, os funcionários socialistas tomaram a companhia. Colocaram tábuas de madeira em formato de cruz nas<br />
janelas e organizaram um corredor polonês, com pessoas dos dois lados, que ia afunilando até o portão da empresa.<br />
Quem não era do partido socialista teve de sair por esse caminho, sob o olhar amedrontador dos demais. Era como se<br />
dissessem: “esse vai ser o nosso forte, vamos usá-lo na revolução”.<br />
No bairro onde eu morava, todos nós que não éramos do partido socialista de Allende nos juntamos na casa de um<br />
colega para decidir o que fazer para nos defender quando viesse a revolução socialista. Sabíamos que vizinhos do outro<br />
lado estavam se preparando para um enfrentamento iminente. Também nos unimos. Um vizinho do nosso grupo<br />
trabalhava numa gráfica, outro em uma companhia telefônica. Éramos todos de classe média. Um de nós ficaria<br />
encarregado de armazenar água. Outro, remédios. Um terceiro tentaria comprar armas, revólveres. Ninguém sabia<br />
disparar ou tinha qualquer noção de guerrilha. Eram pessoas como eu, que até então viviam tranquilamente com a família<br />
e de repente entraram sem querer em uma situação absurda. Vivíamos uma neurose coletiva. Se realmente eclodisse<br />
uma guerra civil, estaríamos todos mortos.<br />
Antes que o pior acontecesse, e em sintonia com os órgãos máximos do Poder<br />
Legislativo e Judiciário, o exército, a marinha e a aeronáutica deram o golpe.<br />
Questão 2<br />
Qual era a ideologia dos soldados do exército chileno no tempo de Allende?<br />
a) Esquerda<br />
b) Direita<br />
c) Centro<br />
d) Nenhuma das anteriores<br />
Como o general Augusto Pinochet iniciou uma longa ditadura após o golpe contra<br />
Allende, muitos passaram a acreditar que o exército chileno sempre foi de direita. Mas<br />
não era essa a realidade nos tempos do governo da Unidade Popular, a coligação que<br />
sustentou Allende. Na época, o exército espelhava o pensamento do restante da<br />
população chilena e se inclinava à esquerda. Soldados e generais só mudaram de posição<br />
depois de assistir à destruição da democracia e da economia do país.<br />
Em 1969, um ano antes de Allende assumir, o embaixador brasileiro Câmara Canto,<br />
que estava em Santiago, enviou um ofício ao Itamaraty. Com base em fontes nas forças<br />
armadas, escreveu que entre 65% e 80% dos soldados, abaixo da patente de major, eram<br />
de esquerda. Era uma “notória infiltração esquerdista”, que incluía militantes do
Movimiento de Izquierda Revolucionária (MIR), comunistas e socialistas. 356 O general<br />
Carlos Prats, que se tornou comandante-chefe do exército em 1970, tinha estatísticas<br />
parecidas. Para ele, 80% dos militares eram de centro-esquerda, embora nem todos<br />
fossem marxistas. 357 O próprio Prats era a favor da reforma agrária e da nacionalização<br />
dos recursos naturais, embora afirmasse que não queria a ditadura do proletariado. 358<br />
Por dois momentos, militares de alta patente foram integrados ao gabinete do<br />
presidente Allende. No primeiro, em novembro de 1972, Prats assumiu o Ministério do<br />
Interior e a vice-presidência da República. Milicos também ocuparam as pastas do<br />
Ministério das Minas, do Ministério das Obras Públicas e Transportes. Todos<br />
renunciaram com a piora da crise econômica e depois de ouvir seguidas declarações<br />
radicais de aliados do governo. Em agosto de 1973, militares voltaram aos principais<br />
postos da nação a convite de Allende. Ocuparam o Ministério dos Transportes, o<br />
Ministério da Fazenda e o Ministério de Terras e Colonização. Prats foi para o<br />
Ministério da Defesa Nacional. Renunciou no dia 23 do mesmo mês – 19 dias antes do<br />
golpe de Estado.<br />
À medida que Allende avançava em seu projeto socialista, a população reclamava e<br />
pedia alguma ação das forças armadas. A passividade que demonstraram incomodou<br />
muita gente. Mulheres protestavam no pátio da Escola Militar, lançando grãos de milho<br />
no chão, “insinuando que os militares eram covardes, frouxos, porque não agiam contra o<br />
governo”, como relata Luiz Alberto Moniz Bandeira, historiador que foi filiado ao<br />
Partido Socialista Brasileiro. 359 Em outras palavras, as chilenas chamavam os soldados<br />
de galinhas.<br />
A mudança de postura dos militares – da esquerda para a direita – ocorreu por vários<br />
fatores. O principal é que eles e seus familiares também foram afetados por greves,<br />
tomadas de empresas, escassez de comida, inflação, violência. Até as padarias pararam<br />
de fabricar pão. 360 Também temiam a doutrinação ideológica nas escolas de seus filhos.<br />
Ainda que tímida e vagarosamente, as galinhas das forças armadas começaram a<br />
resistir às investiduras antidemocráticas de Allende. Em 1972, o presidente acusou os<br />
empresários de estocar produtos. Na visão do presidente, seriam eles os responsáveis<br />
pela inflação e pela escassez. Então, mandou prender os 63 dirigentes das principais<br />
organizações empresariais do país. O exército não deixou que o absurdo fosse adiante.<br />
Quem o estava liderando na época era um militar que, depois de reprimir com sucesso<br />
uma greve geral contra o governo, foi promovido por Allende e se tornou um dos homens<br />
de confiança do presidente. Seu nome era Augusto Pinochet. 361<br />
Questão 3<br />
Quem estava louco para dar um golpe no Chile?<br />
a) A CIA<br />
b) Os militares<br />
c) Os soviéticos<br />
d) Os terroristas cubanos e chilenos<br />
A CIA é considerada por muitos como a grande culpada pela derrocada de Salvador<br />
Allende no golpe militar do dia 11 de setembro de 1973. Mas nessa época a agência de
inteligência americana já não estava fazendo suas típicas trapalhadas no país. A CIA<br />
atuou, sim, no Chile. Mas a maior parte de suas ações aconteceu entre 1962 e 1970, bem<br />
antes do golpe. Nesses oito anos, seus integrantes cometeram uma sucessão de besteiras.<br />
Erraram feio no diagnóstico do país e, quando atuaram, produziram efeitos inversos.<br />
Em um primeiro momento, entre 1962 e 1969, o principal objetivo da CIA no Chile era<br />
evitar que o país se transformasse em uma nova Cuba, aliando-se à União Soviética. O<br />
mundo estava em plena Guerra Fria, quando as duas superpotências dividiam entre si o<br />
tabuleiro mundial. A primeira ajuda financeira da agência para o país foi durante o<br />
governo de Dwight Eisenhower, que aprovou o envio de milhares de dólares para<br />
financiar o Partido da Democracia Cristã (PDC). 362 Com o PDC, a CIA pretendia impedir<br />
que Salvador Allende, do Partido Socialista, se tornasse o presidente e “cubanizasse” o<br />
país. Aí estava o primeiro engano.<br />
O PDC propunha uma sociedade “comunitária”, um passo além do capitalismo e do<br />
socialismo. Mas claramente inclinava-se para a segunda opção. A visão de mundo da<br />
democracia cristã segundo o próprio Eduardo Frei, seu candidato nas eleições de 1964,<br />
explicou em uma conferência que deu na Universidade de <strong>Da</strong>yton, nos Estados Unidos:<br />
O regime capitalista tem aprofundado as desigualdades entre os homens e concentrado o poder em poucas mãos, então<br />
se configurou um sistema político profundamente opressivo, em que uma classe social estabelece sua dominação sobre<br />
todo o resto da sociedade. 363<br />
É evidente que está em crise a organização da empresa privada industrial de tipo capitalista clássico. Cedo ou tarde cada<br />
uma de nossas sociedades colocará o problema da organização da empresa sobre a base, não na relação capital-trabalho<br />
subordinado, mas de uma nova forma de empresa em que os trabalhadores tenham participação na direção. 364<br />
Frei era claramente favorável à reforma agrária:<br />
Acreditamos que onde não se esteja disposto a incorporar as massas camponesas ao processo político, cultural e social,<br />
se correrá o risco de desvios totalitários. Em algumas partes do continente, precisamos reconhecer, a hora dessas<br />
mudanças está passando. É urgente, pois, encará-la. 365<br />
Vitorioso nas eleições de 1964 e fiel às promessas que fizera durante a campanha, Frei<br />
tomou uma série de medidas que ia no sentido oposto ao dos interesses americanos.<br />
Promoveu a chamada chilenização da indústria de cobre, com a aquisição de 51% das<br />
ações das empresas americanas que atuavam no país. Também aprofundou a reforma<br />
agrária, já em vigor. Queria dar a terra àqueles que nela trabalhavam. 366 Mais de 1.300<br />
propriedades com mais de 80 hectares foram expropriadas. Entre um quinto e um quarto<br />
das fazendas chilenas já tinham mudado de mãos. 367 O presidente hesitou em apoiar as<br />
sanções americanas contra Cuba. 368 Foi do PDC que nasceram duas facções paramilitares<br />
de extrema-esquerda, o MAPU e a Izquierda Cristiana. <strong>Da</strong> direita mesmo era o Partido<br />
Conservador, do ex-presidente Jorge Alessandri, e alguns grupos radicais, como o Pátria<br />
e Liberdade, os quais entraram em seguidos confrontos com os comunistas e os<br />
socialistas. Se a ideia dos americanos era evitar uma nova Cuba, o apoio da CIA ao PDC<br />
saiu pela culatra.<br />
Com o valioso apoio americano, o PDC conseguiu 31% dos votos nas eleições<br />
legislativas de 1969, menos do que obtivera nas legislativas de 1965, quando ficou com<br />
43%. 369 Na eleição presidencial de 1970, o candidato do PDC, Radomiro Tomic,
apresentou-se abertamente como socialista-cristão lutando pela erradicação “do<br />
capitalismo e do neocapitalismo”. Durante essa campanha, a CIA optou por não apoiar<br />
diretamente os candidatos, limitando-se a atacar o comunismo. A fraqueza dessa<br />
estratégia, segundo o diretor da CIA, Richard Helms, foi querer “bater em alguém com<br />
ninguém”. 370 Cartazes mostravam tanques soviéticos entrando nas ruas de Santiago.<br />
Ninguém deu bola. “Eu disse duas semanas antes da eleição que nunca tinha visto uma<br />
propaganda tão terrível em lugar algum do mundo”, escreveu o embaixador americano<br />
Edward Korry, que reprovou a ação. “Eu disse que os idiotas da CIA que tinham ajudado<br />
a criar aquela campanha de terror deveriam ser demitidos imediatamente por não<br />
entender o Chile nem os chilenos.”<br />
Após as eleições presidenciais que dão a vitória a Allende, em 1970, é esse mesmo<br />
partido, o PDC (que tal chamá-lo de Partido da CIA?), que garantiu no Congresso as<br />
condições para que Allende assumisse o governo com a assinatura do Estatuto das<br />
Garantias.<br />
Embora o PDC ainda tenha se aproximado em alguns momentos iniciais do governo de<br />
Allende, o partido afastou-se quando percebeu que a democracia estava sendo destruída.<br />
Criticou a existência do GAP, Grupo de Amigos Pessoais, de Allende. Também<br />
questionou a repressão às greves e aos sindicatos não afiliados à Unidade Popular e às<br />
mobilizações de mulheres. Nessa hora, contudo, a CIA já estava fora do jogo. Era a<br />
população chilena que pressionava Allende.<br />
O acompanhamento do treinamento dos milicianos era feito com notas.<br />
Antes de apontar o dedo para os Estados Unidos, é melhor olhar o que Cuba aprontou<br />
no Chile. O melhor levantamento sobre isso está no Libro Blanco del Cambio de<br />
Gobierno en Chile, publicado pela Secretaria Geral do Governo do Chile em 1973, logo<br />
após o golpe de Estado de Pinochet, com diversos documentos e fotos da época. Na<br />
página seguinte, pode-se ver uma foto de Allende, de chapéu, sendo adestrado no uso de<br />
uma metralhadora de guerra por um cubano de boina, com o chão repleto de cartuchos<br />
vazios de bala. O local da foto é entre os montes de El Arrayán, onde se encontrava a<br />
residência presidencial, e o campo de treinamento de guerrilheiros El Cañaveral. 371 Entre<br />
os que davam aulas de tiro, defesa pessoal e manejo de explosivos estavam não apenas<br />
cubanos, mas também brasileiros e argentinos. 372 Há também fotos e registros dos<br />
arsenais encontrados no Palácio de La Moneda e na residência presidencial Tomás<br />
Moro, onde dormia Allende. A maior parte era de origem checoslovaca ou soviética. 373<br />
Havia armas para equipar 5 mil homens.<br />
Para receber Fidel Castro, estudantes chilenos tiveram até de aprender o hino cubano.<br />
Enquanto era senador, Allende ofereceu asilo na ilha de Páscoa aos seis sobreviventes<br />
do grupo de Che Guevara que lutaram na Bolívia e os acompanhou pessoalmente na<br />
viagem. 374 A filha de Allende, Beatriz, casou-se com o cubano Luis Fernández de Oña, o<br />
comunista que organizou a expedição de Che Guevara à Bolívia antes de ter se tornado<br />
um dos chefes da polícia secreta cubana. 375 Ao longo de 25 dias, entre novembro e<br />
dezembro de 1971, o cubano Fidel Castro visitou o Chile e participou de diversas<br />
reuniões de governo, fazendo discursos inflamatórios. “Agora vejam: a questão que<br />
obviamente se coloca é se acaso se cumprirá ou não a lei histórica da resistência e da<br />
violência dos exploradores”, disse Fidel em seu ato público de despedida. Não era uma
pregação pacífica, muito menos neutra. “Temos dito que não existe na história nenhum<br />
caso em que os reacionários, os exploradores, os privilegiados de um sistema social se<br />
resignem à mudança, se resignem pacificamente às mudanças”. 376<br />
FONTE: SECRETARÍA GENERAL DE GOBIERNO DE CHILE, LIBRO BLANCO DEL CAMBIO DE GOBIERNO EN CHILE, LORD<br />
COCHRANE, 1973.<br />
Allende faz aula de tiro com um terrorista cubano em uma residência oficial.<br />
Em 1971, Fidel Castro passou a enviar armas e dar treinamento para militantes<br />
chilenos na ilha. Dos seus 5 mil membros, cerca de 2 mil estavam sob ordens de cubanos.<br />
Os armamentos, encontrados após o golpe militar, incluíam 3 mil fuzis AK-47, 2 mil<br />
submetralhadoras e mais de 3 mil pistolas e armas capazes de furar blindagens, os quais<br />
sequer existiam entre os arsenais das forças armadas chilenas. O estoque bélico, que<br />
aparece em fotos no Libro Blanco, chegou por meio do contrabando de caixas que<br />
vinham de Cuba pela empresa aérea Lan Chile, com a conivência de simpatizantes<br />
socialistas que trabalhavam ali. 377
FONTE: SECRETARÍA GENERAL DE GOBIERNO DE CHILE, LIBRO BLANCO DEL CAMBIO DE GOBIERNO EN CHILE, LORD<br />
COCHRANE, 1973.<br />
Boletim com notas de uma escola de guerrilheiro na casa do presidente. O aluno se chamava “Eduardo”.<br />
Na embaixada de Cuba, em Santiago, foi montado um depósito de armamentos no<br />
subterrâneo, de 120 metros quadrados, ao lado de uma sala de operações de guerra<br />
criada para “um combate, que todos consideravam inevitável”. 378 As armas eram<br />
soviéticas e havia até um aparelho para interferir nas comunicações locais. 379
FONTE: SECRETARÍA GENERAL DE GOBIERNO DE CHILE, LIBRO BLANCO DEL CAMBIO DE GOBIERNO EN CHILE, LORD<br />
COCHRANE, 1973.<br />
Alvos em forma de figuras humanas usados em treinamentos de tiro, encontrados na residência presidencial da Rua<br />
Tomás Moro.<br />
Quando veio o golpe de Pinochet, a reação dos chilenos treinados em Cuba foi aquém<br />
do esperado de um grupo com tanto poder bélico em mãos. Com o golpe, muitos de seus<br />
líderes se refugiaram em embaixadas, o que os impediu de coordenar uma reação<br />
armada. Mas os comandos mais fanáticos, que estavam sob ordens de cubanos, foram à<br />
luta. Nos dias que se seguiram à deposição de Allende, atacaram diversos policiais e<br />
militares no caminho de casa, indo ou voltando do trabalho, ou fazendo patrulhas de<br />
rotina. Até o suicídio de Allende, eles tinham matado seis pessoas. Depois do golpe e até<br />
o fim de 1973, foram mais 87 assassinatos. 380<br />
Meses antes da mudança de governo, a ideia na cabeça dos revolucionários era<br />
promover um autogolpe no país. Uma vez que a Constituição, as forças armadas, o
Congresso e a justiça chilena impediam o presidente Allende de ir adiante com seu<br />
projeto socialista, a solução seria acabar com todo tipo de oposição. A data para isso,<br />
segundo o que se descobriu nos planos resgatados após o golpe, seria entre os dias 18 e<br />
19 de setembro, aproveitando as mobilizações pelas festas da independência. Nesses<br />
dias, os principais chefes das forças armadas, policiais, dirigentes políticos e<br />
sindicalistas seriam assassinados e teria início, assim, uma ditadura do proletariado. 381<br />
No “Plano Z”, com data de 25 de agosto de 1973, falava-se na “detenção imediata de<br />
oficiais e elementos sediciosos de oposição pré-fichados e seu translado a lugares de<br />
retenção e eliminação”, além da sabotagem de aeroportos, pontes, ferrovias, vias de<br />
comunicação e estradas de Santiago, Valparaíso, Concepción e Antofagasta para isolar<br />
as cidades e impedir um possível contragolpe.<br />
O plano de autogolpe do Partido Comunista orientava que cada um de seus membros<br />
deveria conseguir uma arma de fogo e acumular em casa garrafas de vidro (para<br />
coquetéis Molotov), lanternas, parafinas e água potável. Esse último item se deve ao fato<br />
de que sistemas de água e de luz seriam destruídos pelos terroristas. O texto também<br />
orienta que, “em caso de enfrentamento, jamais se deve atuar contra policiais<br />
uniformizados, sem se certificar antes de que possam ser militantes do PC com uniformes<br />
de policiais”.<br />
Um outro plano do Partido Socialista afirmava que “no Chile se deverá produzir um<br />
enfrentamento armado entre as classes, que irá adquirir grandes proporções”. 382 Em caso<br />
de emergência, os principais líderes do partido, como o próprio Allende, circulariam<br />
com outros nomes (o presidente passaria a se chamar Reinaldo Ángulo Aldunate). Todos<br />
deveriam se reunir em uma casa batizada de “Filadélfia” sempre que escutassem pelo<br />
rádio o tango Mi Buenos Aires Querido, interpretada por Carlos Gardel. A música seria<br />
tocada a cada 30 minutos na Rádio Corporación, e os participantes deveriam chegar a pé<br />
ao local e dizer a senha: “Sou professor”. Se o porteiro respondesse afirmativamente, é<br />
porque haveria reunião. 383 Outra estratégia encontrada pelos militares falava que “a<br />
aplicação do plano requer como condição a destruição ou pelo menos a neutralização das<br />
forças inimigas [burguesia e possivelmente policiais] no interior de nossas linhas”.
FONTE: SECRETARÍA GENERAL DE GOBIERNO DE CHILE, LIBRO BLANCO DEL CAMBIO DE GOBIERNO EN CHILE, LORD<br />
COCHRANE, 1973.<br />
Extremista brasileiro dirige uma empilhadeira transformada em tanque de guerra na fábrica estatizada Mademsa, no<br />
Chile. Os militares encontraram 24 veículos iguais a esses após o golpe. 384<br />
O antropólogo brasileiro <strong>Da</strong>rcy Ribeiro explica a situação em seu livro Confissões.<br />
Ele deixa claro que um golpe de esquerda estava sendo preparado:<br />
As esquerdas radicais entraram a conspirar, querendo elas próprias dar o golpe para cubanizar o processo chileno. 385<br />
Não se pode ter certeza de que esses grupos realmente tentariam colocar seus planos<br />
em prática. A história não deu espaço para que isso acontecesse. Mas que eles estavam<br />
loucos para dar um golpe no Chile, não há como negar.<br />
Questão 4<br />
Qual foi o país que recusou um empréstimo de 500 milhões de dólares, solicitado por<br />
Allende?<br />
a) Estados Unidos<br />
b) Cuba<br />
c) União Soviética<br />
d) Brasil<br />
No poder, Allende seguiu as três atitudes infalíveis da ruína econômica. Dentro dessa<br />
cartilha de destruição financeira, que funciona em todos os lugares onde é implantada, fez<br />
ataques a multinacionais que levaram à fuga de investidores estrangeiros.<br />
Nacionalizações resultaram na queda da capacidade empreendedora e da produção de
ens. Com menos arrecadação e mais gastos, o governo teve de imprimir mais dinheiro e,<br />
assim, provocou inflação. Em três anos, suas conquistas foram:<br />
• a produção industrial caiu 12%;<br />
• a produção agrícola caiu 30%;<br />
• a produção de carne bovina caiu 20%;<br />
• os preços subiram 1.000%;<br />
• as reservas internacionais caíram de 400 milhões de dólares para 0. 386<br />
Com a aceleração da reforma agrária, mesmo os fazendeiros que não foram<br />
expropriados passaram a temer a ação dos militantes armados e deixaram de plantar.<br />
Venderam as máquinas, abateram seus animais ou os enviaram para a Argentina. A área<br />
de terra cultivada diminuiu em um quinto. A colheita de trigo diminuiu em um terço, e a<br />
de arroz, em 20%. 387 Alimentos sumiram dos mercados, a inflação subiu, e o mercado<br />
negro prosperou.<br />
Outra política desastrosa foi a nacionalização das minas de cobre. O metal que<br />
respondia por 70% das receitas externas do país era, na visão de Allende, o “salário do<br />
Chile”. Para ele, a propriedade estrangeira das mineradoras era a “causa básica do nosso<br />
subdesenvolvimento... do nosso magro crescimento industrial, da nossa agricultura<br />
primitiva, do desemprego, dos baixos salários, do nosso baixo padrão de vida, da alta<br />
taxa de mortalidade infantil e... da pobreza, do atraso”. 388 Se antes de Allende o Estado<br />
chileno tinha assumido participação de 51% nas mineradoras, o novo governo as tomou<br />
por completo. Com isso, muitos técnicos que entendiam do trabalho pediram demissão.<br />
Eles se recusaram a ganhar em moeda nacional (até então, recebiam em dólares, o que os<br />
protegia da inflação) e não aceitavam a contratação de psicólogos, profissionais de<br />
relações públicas e sociólogos sem conhecimento na área para diversos cargos. Nas<br />
minas estatizadas, o mais importante para conseguir um cargo era a filiação ideológica.<br />
As empresas viraram cabides de emprego para os amigos camaradas. O número de<br />
funcionários na companhia Chuquicamata, que atuava na maior mina do Chile, aumentou<br />
em um terço. A empresa ficou quase toda sob o comando do Partido Comunista. 389 Quanto<br />
mais gente incompetente era convocada, mais a produção despencava. Entre 1969 e<br />
1973, o número de empregados nas diversas empresas de mineração aumentou em 45%,<br />
enquanto a produção por funcionário diminuiu 19%. Em Chuquicamata, caiu 29%. 390 Os<br />
salários também diminuíram, e o número de greves aumentou. Entre 1971 e 1972, foram<br />
85 paralisações. 391 Insatisfeitas pelas compensações oferecidas arbitrariamente pelo<br />
governo de Allende, duas empresas americanas que foram expropriadas, a Anaconda e a<br />
Kenecott Copper, iniciaram um lobby para que companhias estrangeiras deixassem de<br />
comprar o cobre chileno. O esforço levou ao boicote americano que impediu a venda de<br />
peças de reposição para indústrias do país, embora os chilenos ainda estivessem livres<br />
para comprar tais materiais de outros países, como o Japão.<br />
341 Luiz Alberto Moniz Bandeira, Fórmula para o Caos, Civilização Brasileira, 2008, página 176.<br />
342 Luiz Alberto Moniz Bandeira, página 177.<br />
343 Robin Harris, páginas 10 e 11.
344 Libro Blanco del Cambio de Gobierno en Chile, página 13.<br />
345 Libro Blanco del Cambio de Gobierno en Chile, página 21.<br />
346 Simon Collier e William F. Sater, A History of Chile, 1808-2002, Cambridge Latin American Studies, 2004, página 354.<br />
347 Suzanne Labin, Chile: The Crime of Resistance, Richmond, 1982, página 52.<br />
348 Suzanne Labin, página 53.<br />
349 Suzanne Labin, página 54.<br />
350 Suzanne Labin, página 59.<br />
351 Suzanne Labin, página 180.<br />
352 Suzanne Labin, páginas 150-151.<br />
353 Suzanne Labin, página 162.<br />
354 Simon Collier e William F. Sater, páginas 126-127.<br />
355 Suzanne Labin, página 28.<br />
356 Luiz Alberto Moniz Bandeira, página 132.<br />
357 Luiz Alberto Moniz Bandeira, página 133.<br />
358 Luiz Alberto Moniz Bandeira, página 369.<br />
359 Luiz Alberto Moniz Bandeira, página 378.<br />
360 Entrevista com M. G., dona de casa em Valparaíso, realizada em 8 de novembro de 2011.<br />
361 Luiz Alberto Moniz Bandeira, página 446.; e Carlos Alberto Sardenberg, Neoliberal, Não. Liberal, Globo, 2009, página<br />
86.<br />
362 Luiz Alberto Moniz Bandeira, página 95.<br />
363 Eduardo Frei, “A Resposta Política: Marxismo – Democracia Cristã”, conferência dada na Universidade de <strong>Da</strong>yton em<br />
novembro de 1971, Archivo Chile, página 16.<br />
364 Eduardo Frei, página 20.<br />
365 Eduardo Frei, página 19.<br />
366 Luiz Alberto Moniz Bandeira, página 111.<br />
367 Simon Collier e William F. Sater, página 314.<br />
368 Luiz Alberto Moniz Bandeira, página 113.<br />
369 Luiz Alberto Moniz Bandeira, página 124.<br />
370 Luiz Alberto Moniz Bandeira, página 143.<br />
371 Libro Blanco del Cambio de Gobierno en Chile, página 8.<br />
372 Libro Blanco del Cambio de Gobierno en Chile, página 21.<br />
373 Libro Blanco del Cambio de Gobierno en Chile, página 21.
374 Suzanne Labin, página 27.<br />
375 Idem.<br />
376 Luiz Alberto Moniz Bandeira, página 295.<br />
377 Libro Blanco del Cambio de Gobierno en Chile, página 42.<br />
378 Pero Varas Lonfat, Chile: Objectivo del Terrorismo, edição do autor, 1988, capítulo 5.<br />
379 Luiz Alberto Moniz Bandeira, página 551.<br />
380 Idem.<br />
381 Libro Blanco del Cambio de Gobierno en Chile, página 47.<br />
382 Libro Blanco del Cambio de Gobierno en Chile, página 49.<br />
383 Libro Blanco del Cambio de Gobierno en Chile, página 182.<br />
384 Libro Blanco del Cambio de Gobierno en Chile, página 26.<br />
385 <strong>Da</strong>rcy Ribeiro, página 415.<br />
386 Suzanne Labin, página 104.<br />
387 Simon Collier e William F. Sater, página 340.<br />
388 Simon Collier e William F. Sater, página 334.<br />
389 Robin Harris, página 14.<br />
390 Simon Collier e William F. Sater, página 335.<br />
391 Simon Collier e William F. Sater, páginas 335 e 336.
O embaixador americano no Chile, Edward Korry, tentou explicar regras<br />
básicas de economia para Allende quando viu que o país sob a sua tutela estava<br />
indo por um mau caminho, logo no início do mandato. Ficou impressionado ao ver o<br />
quanto o seu aluno não entendia do assunto:<br />
UMA AULA DE ECONOMIA PARA ALLENDE<br />
“Allende não entendia o problema. Desde o ponto de vista da economia moderna,<br />
era um analfabeto. Eu digo com muita seriedade, não faço brincadeira. Me<br />
dei conta de que não entendia o uso moderno da palavra ‘capital’; não entendia quando<br />
eu me referia a ‘acesso ao capital’... Havia duas, três, cinco gerações de<br />
diferença entre a minha linguagem e a sua. Assim, ao explicar a ele o<br />
acesso à tecnologia, o acesso ao capital, o acesso aos mercados, ele não tinha onde<br />
se apoiar. Mais do que isso, estava seguro de que tinha descoberto a pedra mágica e,<br />
na sua opinião, o Chile gozava em 1971 de uma grande prosperidade.<br />
Não podia entender do que eu estava falando. Não podia imaginar que a situação em<br />
1971 se devia simplesmente à impressão de notas. Allende não tinha ideia de<br />
que essa prosperidade era falsa, de que os agricultores estavam descapitalizando o<br />
campo o mais rápido que podiam – quando eu tratei de lhe explicar isso, uhn! –, [...] e<br />
assim outras coisas”. 392<br />
392 “El Embajador Edward M. Korry en el CEP”, revista Estudios Publicos, número 72, 1998.
Allende nacionalizou 90 grandes indústrias. Em 1973, o governo possuía 80% da<br />
produção industrial do país. Em todas elas, socialistas e comunistas assumiram os cargos<br />
de direção. 393 Contrataram amigos e inflaram as folhas de pagamento. Nas empresas que<br />
permaneceram privadas, o problema passou a ser o preço congelado de muitos produtos.<br />
Para vários empresários, produzir deixou de ser lucrativo, e muitos deixaram de investir<br />
na produção. 394 A única fábrica que funcionava bem no Chile era a de bandeiras. Sempre<br />
que havia uma invasão de terra ou de fábrica, fincavam uma do lado de fora.<br />
A escassez de produtos básicos começou já em 1971, atingindo, sobretudo, os pobres.<br />
Primeiro, começou a faltar óleo. Depois manteiga. E, por fim, tudo. No ápice da crise,<br />
faltava gás, cigarro, pasta de dente, pão, gasolina e óleo de cozinha. Para controlar o que<br />
cada pessoa podia comprar, o governo criou as Juntas de Abastecimentos e Preço (JAP),<br />
para distribuir produtos à população a preços fixos. As Juntas eram formadas por<br />
pessoas afinadas com a ideologia socialista. Nas cidades pequenas, os integrantes das<br />
Juntas sabiam exatamente quantas pessoas havia em cada casa e distribuíam a comida em<br />
conformidade com isso. Em alguns casos, uma Junta cuidava de apenas 40 famílias. Nas<br />
cidades ou nos bairros maiores, o controle passou a ser feito com cartões de<br />
racionamento. Um dos produtos que desapareceram foram os cigarros. Para comprar uma<br />
caixa, era preciso enfrentar filas de mais de cem pessoas em uma banca de jornal. “Só os<br />
comunistas e os socialistas, aliados ao governo, conseguiam cigarros. Estocavam vários<br />
pacotes de maços, os quais eles fumavam ou trocavam por comida ou detergente”, diz a<br />
dona de casa chilena M. G., que mora na região de Valparaíso e pediu anonimato. 395<br />
A bióloga chilena Celia de las Mercedes Morales Ruiz emigrou para o Brasil em 1973<br />
e hoje dá aulas de espanhol em São Paulo. Veja o que ela conta:<br />
Era preciso fazer fila para comprar tudo, papel higiênico, sabonete. Na padaria, não tinha pão. Meu sogro precisava<br />
fazer fila na banca de jornal para comprar cigarro. Quando eu casei, em junho de 1973, uma amiga minha me deu<br />
tamancos de madeira, porque não havia sapatos à venda. Uma conhecida de minha mãe fez para mim dois jogos de<br />
lençóis, porque não havia onde comprá-los. E fui eu que comprei a última geladeira da cidade. Tudo desapareceu das<br />
gôndolas.<br />
Nós ganhamos um cartão de racionamento que regulava quanto cada pessoa podia comprar. Um dia, fui ao açougue e<br />
teve o maior problema. Como meu marido tinha direito a comprar 250 gramas de carne e eu, mais 250 gramas, eu<br />
poderia comprar meio quilo de carne. Na prateleira, vi um rim muito bonito, mas que pesava 750 gramas. Perguntei ao<br />
açougueiro se ele poderia vendê-lo inteiro para mim. Então, o pessoal da Junta de Abastecimento e Preços convocou<br />
uma reunião. Enquanto isso, do lado de fora, havia um monte de gente esperando na fila, com chuva e frio. Era um<br />
sábado à tarde. Foi muita humilhação. Ao final, consegui comprar, porque o açougueiro ficou muito bravo. Ele sabia que,<br />
se ficasse com apenas 250 gramas de rim, ninguém iria comprar dele.<br />
Com tanta dificuldade, o jeito normalmente era comprar tudo no mercado negro, de forma escondida e pagando um<br />
preço bem elevado. Os funcionários das fábricas nacionalizadas, que passaram a ser donos das empresas onde<br />
trabalhavam, levavam peças e produtos para suas casas. Como não havia mais hierarquia nas indústrias, e todos eram<br />
companheiros, não havia mais quem pudesse censurar os desvios do outro. Então, eles anunciavam os seus produtos nos<br />
jornais. Quem queria comprar uma geladeira ou um aspirador, por exemplo, tinha de ir até a casa desses funcionários<br />
que estavam vendendo os produtos, em conjuntos habitacionais e favelas longe do centro.<br />
O chileno Ricardo García Valdés, engenheiro elétrico da Standard Electric em<br />
Santiago na época, tinha um problema a mais, arranjar comida para os filhos pequenos:<br />
Eu trabalhava sempre com um rádio de pilha ligado em cima da minha mesa. Quando se anunciava que tinha chegado<br />
um carregamento de leite em pó Nan (eu tinha três bebês) em algum ponto da cidade, eu pedia licença para o meu chefe<br />
e ia fazer fila para comprar.
Para comprar alimento, era preciso fazer fila nas JAPs. Cada um tinha o seu cartão de racionamento. Havia uma coluna<br />
com o nome dos produtos (carne, sal, óleo etc.) e outras nas quais as pessoas faziam um “x”. De tempos em tempos, era<br />
preciso trocar o cartão. Isso era para pessoas como eu. A grande maioria dos socialistas tinha acesso especial à comida.<br />
Enquanto eu pegava fila para comprar um pedacinho de carne pequeno para fazer sopa para minhas crianças, meu<br />
vizinho do lado fazia churrasco. Ele era do governo, do partido.<br />
Meu chefe me ofereceu um emprego no Rio de Janeiro, e minha mulher aceitou a ideia na hora. Pegamos os três nenês<br />
e embarcamos para o Brasil em 1973. Quando chegamos, eu e minha mulher ficamos meia hora olhando aquele prédio<br />
da Sears, em Botafogo, com andares cheios de produtos. Tinha bateria de carro. No Chile, não tinha nada, e eu tinha<br />
ficado oito meses para conseguir comprar uma bateria pro meu carro pequenininho. E tinha mais um monte de coisas.<br />
Tinha pneu. Uma beleza. Geladeira. Máquina de lavar roupa. Ferro de passar. No Brasil tinha de tudo. No Chile não<br />
tinha nada.<br />
No desespero de tentar salvar a casa, Allende viajou para Moscou e pediu um<br />
empréstimo de 500 milhões de dólares aos soviéticos. Imitou, assim, o mesmo trajeto que<br />
fez Che Guevara. Logo depois da revolução de 1959, o argentino foi para a União<br />
Soviética pedir ajuda financeira e a compra de açúcar subsidiado. Che conseguiu o que<br />
queria. Mas Allende não contava com o mesmo fator surpresa. Os soviéticos negaram a<br />
ajuda, pois não queriam arcar com os custos de uma segunda Cuba. 396 Já fazia uma<br />
década que, mesmo com todos os recursos enviados, a ilha caribenha não conseguia se<br />
desenvolver economicamente e continuava dependente da mesada soviética. Allende teve<br />
de voltar de mãos abanando.<br />
Questão 5<br />
A Reforma Agrária começou a ser implantada no Chile por pressão de qual país?<br />
a) União Soviética<br />
b) Cuba<br />
c) Estados Unidos<br />
d) Brasil<br />
Foi o maior tremor já medido por instrumentos na história. Na escala Richter, que vai de 0 a 9, o terremoto registrou<br />
9,5. Com epicentro na cidade chilena de Valdivia, a 700 quilômetros ao sul de Santiago, gerou um tsunami que chegou<br />
até o Havaí, onde ondas de dez metros mataram 61 pessoas.<br />
Allende não foi o pioneiro da reforma agrária no Chile. O confisco e a distribuição de<br />
terras foram iniciados no país logo após o terremoto de 1960. Foi uma iniciativa do<br />
presidente americano Dwight Eisenhower, um republicano, que condicionou a ajuda para<br />
a reconstrução à realização de uma reforma no campo. Eisenhower estava sob forte<br />
influência de seu irmão Milton, metido em assuntos sociais na América Latina. Quem não<br />
teve outra opção, senão promovê-la, foi o então presidente chileno Jorge Alessandri,<br />
ligado aos americanos. 397<br />
Allende só aprofundou o que estava em curso, mas usando técnicas de terrorismo. Com<br />
ele, as invasões passaram a ser feitas por grupos de guerrilheiros armados,<br />
principalmente do Movimiento de Izquierda Revolucionária (MIR). Os participantes<br />
desse movimento que estavam detidos por terem praticado atos de violência no governo<br />
anterior foram anistiados por Allende: o presidente os considerava “jovens idealistas”.<br />
Livres de punições, praticavam as tomas de terras sem dar oportunidade aos<br />
proprietários de contestar a decisão na justiça ou arranjar um novo lugar para viver.<br />
Homens armados entravam de surpresa nas propriedades rurais e ordenavam ao
proprietário e à sua família que fizessem as malas e pegassem a estrada. A polícia nada<br />
fazia. O bando então colocava uma faixa nos portões dizendo: “Essa propriedade foi<br />
tomada pelo povo”. Horas depois, chegava um interventor do governo, anunciando que a<br />
propriedade passara ao controle do governo. Essa presença deixava evidente que os<br />
burocratas do governo quase sempre tinham prévio conhecimento da invasão.<br />
Não raro, proprietários eram assassinados nas disputas. Outros cometeram suicídio ou<br />
morreram de ataques cardíacos. 398 Uma das mortes mais famosas foi a do fazendeiro<br />
Jorge Baraona Puelma, deputado do Partido Conservador. Puelma trabalhava havia 40<br />
anos em um rancho em Nilahue, com seus 11 filhos. Dois deles eram deficientes.<br />
Ameaçados pela “justiça revolucionária”, a família teve de deixar a casa principal e<br />
mudou-se para uma apertada cabana no rancho, onde ficou vivendo por meses. Mas os<br />
revolucionários não admitiram tal ousadia. Em uma manhã de fevereiro de 1971, Puelma<br />
e seus filhos foram expulsos por homens armados. Enquanto Puelma, de 68 anos,<br />
caminhava para longe, carregando alguns porta-retratos embaixo do braço, sofreu um<br />
infarto fulminante. 399<br />
Com Allende, quase todas as propriedades com mais de 80 hectares foram<br />
expropriadas. Mas essa regra não era seguida sempre. Dependendo do ânimo dos<br />
invasores, até algumas de 15 hectares entraram na mira. 400 Entre novembro de 1970 e<br />
abril de 1972, 1.767 fazendas foram tomadas por bandos armados. 401<br />
Questão 6<br />
Quando era estudante de medicina, Allende:<br />
a) criou avançadas propostas de reforma de saúde pública.<br />
b) formou sua visão de um mundo mais humano após tomar contato com pacientes pobres.<br />
c) propôs esterilizar doentes mentais e alcoólatras.<br />
d) As alternativas A e B estão corretas<br />
Allende não foi um aluno brilhante na faculdade. Seu trabalho Higiene Mental e Delinquência foi aprovado com um<br />
singelo “distinção média”. As páginas estão povoadas de erros de espanhol. Só na primeira, são oito. É um erro para<br />
cada três linhas. Um examinador criterioso mandaria reescrever a tese. Se a primeira página da introdução fosse<br />
considerada uma redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), ele não tiraria mais do que nota 6.<br />
Outro equívoco comum na biografia de Allende é quando se fala da contribuição de<br />
seu trabalho como médico para seus ideais socialistas. Historiadores disseminaram a<br />
ideia de que Allende, ao estudar na Universidade do Chile, “descobriu em primeira mão<br />
as condições estarrecedoras dos pobres, e em particular a sua situação médica – má<br />
nutrição, mortalidade infantil, doenças congênitas”. 402 O contato com pacientes humildes,<br />
assim, seria uma das explicações para sua retórica em defesa dos desafortunados. O<br />
próprio Allende ajudou a construir esse mito: “Fiz 1.500 autópsias. Sei o que é o drama<br />
da vida e quais são as causas da morte”, dizia.<br />
É um ponto de vista frequente ainda hoje no Chile. O documentário Grandes Chilenos<br />
de Nuestra História, exibido pela televisão estatal TVN no Chile em 2008, dá um bom<br />
destaque à tese de conclusão de curso de Allende, Higiene Mental e Delinquência,<br />
apresentada no final de sua vida acadêmica, em 1933. Conforme o documentário, o<br />
estudo inclui “avançadas propostas de reforma de saúde pública e uma análise da<br />
desigualdade social”. “Ele compartilhou da miséria e da amargura desses delinquentes”,
diz o historiador César Leyton no documentário. “De certa forma, para mim, essa é a<br />
plataforma que mais tarde será o Allende político, o Allende que pede pela solução da<br />
necessidade dos setores populares. A medicina social nesse sentido é fundamental para a<br />
formação ou para a visão que mais tarde ele terá sobre a sociedade e a miséria.”<br />
Uma avaliação do mesmo trabalho de Allende mostra uma conclusão completamente<br />
diferente. Para o filósofo chileno Víctor Farías, autor de Salvador Allende,<br />
Antissemitismo e Eutanásia, o estudante e, mais tarde, ministro da Saúde expôs ideias<br />
que nada têm de compaixão social, como a esterilização em massa e forçada de doentes<br />
mentais. Aos 25 anos, Allende enfatizava que muitos distúrbios estavam relacionados à<br />
herança biológica, e não à condição social. Na sua tese, faz uma tipificação das raças e<br />
descreve a propensão de cada uma delas ao crime. Cita, então, o polêmico médico<br />
italiano Cesare Lombroso (1835 a 1909), para quem um criminoso podia ser denunciado<br />
por seus traços físicos ou por sua origem étnica:<br />
Entre os árabes há algumas tribos honradas e trabalhadoras, e outras aventureiras, imprevidentes, ociosas e com<br />
tendência ao furto.<br />
Os ciganos constituem habitualmente agrupações delituosas, onde impera o descuido, a ira e a vaidade.<br />
Os hebreus se caracterizam por determinadas formas de delito: fraude, falsidade, calúnia e, sobretudo, a usura.<br />
Allende não aceita todas as ideias de Lombroso – nem as rejeita. “Esses dados nos<br />
fazem suspeitar que a raça influencia na delinquência. Não obstante, carecemos de dados<br />
precisos para demonstrar essa influência no mundo civilizado”, afirma. O vínculo entre<br />
raça e comportamento reaparece na tese quatro páginas depois. Citando outros autores,<br />
divide os vagabundos (errantes) em três tipos. No primeiro deles, estariam os de origem<br />
étnica – “judeus, ciganos, alguns boêmios etc.”.<br />
Com suas próprias palavras, Allende afirma que “o homossexual orgânico é um<br />
enfermo que, em consequência, deve merecer a consideração de tal”. Logo depois,<br />
descreve uma peculiar cirurgia de inversão sexual:<br />
Por outra parte, os trabalhos de Steinach, Lipschutz, Pézard e outros nos fazem senão corroborar o que foi exposto<br />
antes. Além disso, os autores conseguiram curar um homossexual, em cuja família havia outros pederastas, que<br />
apresentava um grande número de características sexuais secundárias femininas, injetando pedaços de testículo no<br />
abdômen. Depois da operação, segundo os autores mencionados, se modificaram aquelas características femininas, que<br />
foram substituídas por outras masculinas, e o doente abandonou seus hábitos homossexuais.<br />
Em todo o resto da tese, Allende não faz qualquer crítica, ponderação ou rejeição à<br />
ideia de curar gays com o bisturi.<br />
O problema ficou maior quando Allende passou, já com 31 anos e no cargo de ministro<br />
da Saúde, a defender um programa de esterilização em massa para evitar que algumas<br />
características humanas não desejáveis fossem transmitidas às gerações seguintes. Em<br />
1939, propôs o Projeto de Lei para Esterilização dos Alienados, sugerindo medidas<br />
“eugenésicas negativas”: a esterilização em massa e forçada dos doentes mentais. Em seu<br />
primeiro artigo, o programa diz que:<br />
Toda pessoa que sofra de uma enfermidade mental que, de acordo com conhecimentos médicos, possa transmitir a sua<br />
descendência, poderá ser esterilizada, em conformidade às disposições desta lei. 403
“O único projeto comparável ao que emanara do Ministério da Saúde é o que se<br />
implementou em 1933, na Alemanha nazista”, afirma o filósofo Víctor Farías. “Com a<br />
diferença de que ali a iniciativa foi levada até as últimas consequências criminais,<br />
afetando mais de 350 mil seres humanos e integrando-a diretamente aos programas de<br />
extermínio massivo, incluindo crianças de ‘vida inservível’”. 404 Na Alemanha, depois<br />
que os programas de esterilização começaram, os nazistas entenderam que muito mais<br />
prático era matar os ditos “doentes” em vez de impedir que se reproduzissem. “Logo,<br />
essas campanhas de limpeza étnica se estenderam aos adultos e, por fim, ao extermínio<br />
nas primeiras câmaras de gás [os caminhões de gás] e nos campos de extermínio.” 405<br />
O projeto de lei de Allende, aliás, era cópia do alemão. Entre os candidatos à<br />
esterilização, listava:<br />
a) esquizofrenia (demência precoce);<br />
b) psicose maníaco-depressiva;<br />
c) epilepsia essencial;<br />
d) coreia de Huntington;<br />
e) idiotice, imbecilidade e debilidade mental profunda;<br />
f) loucura moral constitucional;<br />
g) alcoolismo crônico.<br />
A lei alemã, empregada até 1939, era quase idêntica:<br />
a) imbecilidade congênita;<br />
b) esquizofrenia;<br />
c) folia circular (mania depressiva);<br />
d) epilepsia hereditária;<br />
e) coreia de Huntington (dança de são vito);<br />
f) cegueira hereditária;<br />
g) surdez hereditária;<br />
h) graves deformidades físicas e hereditárias.<br />
Nos sonhos de Allende para um mundo melhor, a escolha das pessoas que seriam<br />
submetidas ao tratamento seria feita por Tribunais de Esterilização, que funcionariam nas<br />
capitais das províncias e em Santiago, a capital. Após feita uma solicitação de<br />
esterilização, a sentença deveria ocorrer em 30 dias. Sem possibilidade de recurso. Caso<br />
houvesse resistência, a decisão seria executada com o auxílio da polícia:<br />
Artigo 23: Todas as resoluções ditadas pelos Tribunais de Esterilização serão obrigatórias para toda pessoa ou<br />
autoridade, e se levarão a efeito, em caso de resistência, com auxílio da força pública. 406<br />
Parece a Alemanha nazista? Era só o Chile segundo as ideias de Salvador Allende.<br />
Por sorte, o projeto contou com a oposição de médicos de renome na época e foi<br />
abandonado mesmo antes de ter sido apresentado ao Parlamento sob acusação de que<br />
poderia levar a medidas mais drásticas, como efetivamente já tinha ocorrido na Europa.<br />
A identificação do presidente marxista com ideias nazistas, contudo, retorna décadas<br />
depois quando Allende se negou, em 1972, a extraditar Walter Rauff, criador dos<br />
caminhões de gás que exterminaram meio milhão de seres humanos. O presidente alegou<br />
que as acusações contra Rauff já haviam expirado. Crimes contra a humanidade, porém,
são imprescritíveis.<br />
Gabarito<br />
Questão 1 – D. Se alguém pode ser responsabilizado pelo golpe militar, foi o próprio<br />
Salvador Allende, que deixou seu país ingovernável.<br />
Questão 2 – A. O exército chileno estava sintonizado com a esquerda.<br />
Questão 3 – D. Quem queria dar um golpe no Chile eram os comparsas radicais do<br />
presidente Salvador Allende.<br />
Questão 4 – C. Foi a União Soviética que negou empréstimos a Allende. Os soviéticos<br />
temiam que o Chile se transformasse em um poço de dinheiro sem fundo, como Cuba.<br />
Questão 5 – C. Quem estimulou a execução de uma reforma agrária no Chile foram os<br />
Estados Unidos.<br />
Questão 6 – C. Allende queria esterilizar doentes mentais e alcoólatras.<br />
393 Simon Collier e William F. Sater, página 342.<br />
394 Simon Collier e William F. Sater, página 340.<br />
395 Entrevista com M. G., Limache, Chile.<br />
396 Revista Estudios Publicos, página 107.<br />
397 Revista Estudios Publicos, página 76.<br />
398 Suzanne Labin, página 75.<br />
399 Site da Biblioteca do Congresso Nacional do Chile, seção Biografias, disponível em<br />
http://biografias.bcn.cl/wiki/Jorge_Baraona_Puelma.<br />
400 Suzanne Labin, página 73.<br />
401 Libro Blanco del Cambio de Gobierno en Chile, página 92.<br />
402 Simon Collier e William F. Sater, página 330.<br />
403 Víctor Farías, página 110.<br />
404 Víctor Farías, página 104.<br />
405 Víctor Farías, página 29.<br />
406 Víctor Farías, página 114.
EPÍLOGO
O FIM QUE NINGUÉM QUERIA<br />
Todos os personagens que dão nome aos capítulos deste livro passaram por maus<br />
bocados após a morte. Foram embalsamados, decapitados, mutilados ou exumados com<br />
objetivos diversos: pedir resgates milionários, sustentar teses históricas absurdas,<br />
promover cultos personalistas ou realizar rituais de magia negra.<br />
Os restos do libertador venezuelano Simón Bolívar foram transferidos para o Panteão<br />
Nacional, em Caracas, em 1876. Por lá permaneceram até 2010, quando o presidente<br />
Hugo Chávez ordenou a exumação do defunto. No dia 16 de julho daquele ano, um grupo<br />
vestido de branco, com tocas no cabelo, máscaras e marchando como soldados, abriu o<br />
sarcófago e retirou os vestígios para análise. Bolívar morreu de tuberculose, a mesma<br />
doença que afligira seu pai e sua mãe. Para Chávez, contudo, ele foi envenenado com<br />
arsênico ou baleado pela oligarquia colombiana. “Morreu chorando, morreu solitário”,<br />
afirmou o presidente em cadeia de televisão.<br />
Há quem acredite que o espetáculo com os restos do Bolívar não teve motivação<br />
científica e histórica, mas foi realizado para cumprir um ritual de bruxaria, ou santería, a<br />
religião de origem africana praticada em Cuba. Vestidos sempre de branco, os feiticeiros<br />
cubanos (“babalaôs”) são presença recorrente no Palácio de Miraflores, a sede do poder<br />
executivo da Venezuela. O entra e sai desses religiosos no Congresso, em Caracas,<br />
também é comum. De acordo com a jornalista Angélica Mora, do Diário de América, os<br />
babalaôs estariam entre os cientistas vestidos de branco que profanaram o sarcófago. A<br />
data de 16 de julho foi escolhida porque é o dia da Virgem de Carmem que, no<br />
sincretismo religioso, representa Oyá, a dona das chaves do cemitério. Antes de fuçar<br />
nos túmulos, é necessário sempre pedir uma autorização de Oyá, na data certa. Por isso a<br />
cerimônia aconteceu às 3 horas da madrugada, que é quando se praticam os atos de magia<br />
negra. Essa é considerada a hora oposta à de Jesus Cristo, três da tarde. 407<br />
Já o mexicano Pancho Villa, morto em uma emboscada em Parral, foi enterrado nessa<br />
mesma cidade, no México. Em 1926, o administrador do cemitério descobriu que a tumba<br />
tinha sido violada e a cabeça havia desaparecido. 408 Cinquenta anos depois, o cadáver<br />
foi transferido para o Monumento à Revolução, na Cidade do México. Entre as<br />
especulações que tentam explicar o mistério sobre a decapitação, uma fala que a caveira<br />
estaria com um instituto científico americano. Outra, em poder de uma sociedade secreta<br />
da Universidade Yale, a Skull and Bones Society (Sociedade Caveira e Ossos), que teria<br />
tido entre seus participantes o ex-presidente George W. Bush e o político americano<br />
democrata John Kerry. 409<br />
O corpo do general Juan Domingo Perón, morto em 1974, ficou por dois anos na<br />
residência oficial de Olivos, em Buenos Aires. Mais tarde, foi enterrado no Cemitério de<br />
La Chacarita. Nos anos 1980, vândalos amputaram e roubaram suas mãos. Também<br />
sumiram com o quepe e a espada. Pediram um resgate de 8 milhões de dólares, que nunca<br />
foi pago. 410 Em 2006, Perón foi transferido para um mausoléu em uma chácara na<br />
província de San Vicente, onde peronistas da esquerda e da direita se digladiaram com
paus, pedras e tiros pelo direito de subir ao palanque.<br />
Evita Perón rodou o mundo depois de morta. Tão logo a Madona dos Descamisados<br />
faleceu, em 1952, teve início seu embalsamento. O encarregado foi o médico anatomista<br />
espanhol Pedro Ara, que desempenhou a tarefa em um laboratório improvisado dentro da<br />
Confederação Geral do Trabalho (CGT), a central sindical peronista. Quando os<br />
militares depuseram Perón, em 1955, o exército, sob a liderança do tenente-coronel<br />
Carlos Eugenio Moori Koenig, invadiu o prédio para pegar o corpo e escondê-lo,<br />
evitando que se tornasse um objeto de culto. A cena dos homens entrando no laboratório<br />
para levar Evita é relatada pelo escritor Rodolfo Walsh, no livro Esa Mujer:<br />
Ela estava nua no caixão e parecia uma Virgem Santa. Sua pele tornara-se transparente. Podiam ser vistas as<br />
metástases do câncer, como pequenos desenhos sobre um vidro molhado. Nua. Éramos quatro ou cinco, incapazes de<br />
nos olharmos. Havia um capitão de navio, o galego [sinônimo de espanhol, para os argentinos], que a embalsamou, e não<br />
sei mais quem. E, quando a tiramos dali, aquele galego asqueroso atirou-se sobre ela. Estava apaixonado pelo cadáver,<br />
tocava-a, mexendo discretamente nos bicos dos seios. 411<br />
Evita em seguida habitou diversos prédios militares até ser colocada dentro de uma<br />
caixa de madeira no gabinete do tenente-coronel Koenig. 412 Saiu de lá para uma cova<br />
anônima na Itália, onde permaneceu até ser devolvida a Perón, que então estava exilado<br />
na Espanha. Foram 21 anos de percalços até que Evita repousasse no Cemitério de La<br />
Recoleta, em Buenos Aires, a seis metros de profundidade. Seu túmulo foi construído por<br />
uma empresa especializada em caixas de bancos, para evitar outro sequestro. Só a irmã<br />
de Evita ganhou uma chave. 413<br />
Também deram notícia os restos mortais de Salvador Allende. O presidente chileno<br />
cometeu suicídio em 1973 no Palácio de La Moneda, em Santiago, com uma AK-47 que<br />
Fidel Castro lhe dera de presente. Em diversas ocasiões, Allende admitiu a possibilidade<br />
de colocar sua vida em jogo em nome da causa que defendia. No discurso que proferiu<br />
pelo rádio dentro de La Moneda, cercado por militares, disse: “Colocado em um transe<br />
histórico, pagarei com minha vida a lealdade do povo”. 414 Fidel Castro, que conhecera<br />
Allende e ficou três semanas no Chile fazendo discursos em todas as cidades que<br />
passava, afirmou após a morte de Allende: “Ele tinha aquela disposição de ânimo, aquela<br />
disposição de defender o processo ao custo de sua própria vida”. Ao antropólogo<br />
brasileiro <strong>Da</strong>rcy Ribeiro, Allende disse: “Só sairei de La Moneda coberto de balas”. 415<br />
A tese do suicídio é defendida também pela família do ex-presidente.<br />
O corpo de Allende foi exumado em maio de 2011 para testar outra hipótese,<br />
defendida por um grupo de legistas. Eles afirmam que o presidente teria recebido tiros de<br />
armas de calibres diferentes: uma pistola automática e um fuzil. A primeira explicação é<br />
a de que ele cometeu um suicídio assistido: depois de dar um tiro em si próprio, sem<br />
conseguir pôr fim à vida, recebeu outro, do militante de esquerda Enrique Huerta, que<br />
teria completado a execução para cumprir uma promessa feita ao presidente de não<br />
deixá-lo sair vivo de La Moneda. 416 A segunda explicação é a de que Allende foi<br />
assassinado pelos militares, que depois ocultaram o fato. Tudo besteira. A perícia,<br />
finalizada em julho de 2011, concluiu que o presidente se matou.<br />
O argentino Che Guevara teve as mãos amputadas a pedido do exército boliviano, logo<br />
depois de morto em 1967, para que servisse como prova incontestável de sua morte. 417
Foi enterrado na cidade de Vallegrande, na Bolívia. Segundo a história oficial, divulgada<br />
pelo governo cubano, os restos do guerrilheiro foram desenterrados de uma cova na<br />
Bolívia em 1997, e levados para um mausoléu na cidade de Santa Clara, em Cuba, onde<br />
um museu foi construído em sua homenagem. O corpo de Che foi encontrado em uma<br />
cova com outros seis guerrilheiros e portava a sua jaqueta verde, o que ajudou na<br />
identificação.<br />
Todavia, a probabilidade de que as autoridades cubanas tenham pegado o corpo de um<br />
guerrilheiro qualquer para fazê-lo de Che é enorme. Segundo os militares que estavam<br />
presentes na Bolívia em 1967, o argentino foi enterrado sozinho. 418 Para Félix Rodríguez,<br />
exilado cubano que ajudou na captura de Che, ele foi enterrado com três outros homens,<br />
não mais que isso. Gustavo Villoldo, um oficial americano de alta patente que estava em<br />
Vallegrande e participou da operação, conta:<br />
Eu enterrei Che Guevara. Ele não foi cremado; não o permiti, assim como me opus terminantemente à mutilação de seu<br />
corpo. Na madrugada do dia seguinte, transportei um cadáver numa caminhonete, junto com os de mais dois<br />
guerrilheiros. Eu estava acompanhado de um motorista boliviano e de um tenente chamado Barrientos, se não me<br />
engano. Fomos até o campo de pouso e ali enterramos os corpos. 419<br />
A cova com sete homens, onde os especialistas cubanos acreditam ter encontrado os<br />
restos de Che Guevara, é outra. Ele tampouco foi enterrado com sua jaqueta verde.<br />
Depois de morto, seu corpo foi lavado, e a peça ficou com o correspondente do jornal<br />
Presencia, Edwin Chacón, de acordo com os jornalistas Maite Rico e Bertrand de La<br />
Grange, que fizeram um extenso estudo sobre o caso e o publicaram na revista mexicana<br />
Letras Libres. As mãos de Che, conservadas em um pote com formol, foram levadas para<br />
Budapeste, depois Moscou e, em 1970, aterrissaram em Havana. São o único resto<br />
genuíno de Che em Cuba atualmente.<br />
Na ilha arrasada pelas mãos de Che, elas são o único resto genuíno do herói.<br />
407 Angélica Mora, “Chávez, el Babalao”, Diário de América, 21 de julho de 2010.<br />
408 Friedrich Katz, Pancho Villa, tomo II, Ediciones Era, 1998, página 389.<br />
409 Friedrich Katz, página 390.<br />
410 Duda Teixeira, “Os três enterros de Perón”, revista Veja, Abril, edição 1979, 25 de outubro de 2006, páginas 102-104.<br />
411 Dujovne Ortiz, Eva Perón, a Madona dos Descamisados, Record, 1996, página 378.<br />
412 Dujovne Ortiz, página 379.<br />
413 Site Howstuffworks, “Why did it take more than 20 years to bury Eva Peron?”, disponível em<br />
http://history.howstuffworks.com/south-american-history/eva-peron-body.htm.<br />
414 Patricia Verdugo, Como os EUA Derrubaram Allende, Revan, 2003, página 132.<br />
415 <strong>Da</strong>rcy Ribeiro, Confissões, Companhia das Letras, 1997, página 417.<br />
416 Blog El Mercúrio, “Escritor asegura que médicos de Allende conspiraron para ocultar la verdad de su muerte”, 1º de junho<br />
de 2011, disponível em http://blogs.elmercurio.com/cronica/2011/06/01/escritor-asegura-que-medicos-d.asp.<br />
417 Maite Rico e Bertrand de la Grange, “Operación Che: Historia de uma mentira de Estado”, revista Letras Libres, fevereiro<br />
de 2007.
418 Idem.<br />
419 Jorge Castañeda, Che Guevara: A Vida em Vermelho, Companhia de Bolso, 2009, página 522.
BIBLIOGRAFIA
LIVROS E EDISSERTAÇÕES<br />
BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz, Fórmula para o Caos, Civilização Brasileira, 2008.<br />
BEJEL, Emilio, Gay Cuban Nation, The University of Chicago Press, 2001.<br />
BERUMEN, Miguel Ángel, Pancho Villa: La Construcción del Mito, Cuadro por Cuadro, Imagen y Palabra/Océano<br />
de Mexico, 2009.<br />
BETHELL, Leslie, História da América Latina: <strong>Da</strong> Independência a 1870, Edusp, 2009.<br />
BLACKBURN, Robin, A Queda do Escravismo Colonial, Record, 2002.<br />
BUENO, Eduardo, Náufragos, Traficantes e Degredados, Objetiva, 1998.<br />
CABALLERO, Manuel, Por Qué No Soy Bolivariano, Editorial Alfa, 2006.<br />
CALDEIRA, Jorge, Mulheres no Caminho da Prata, Mameluco, 2006.<br />
CARPENTIER, Alejo, O Reino deste Mundo, Martins Fontes, 2010.<br />
CASTAÑEDA, Jorge, Che Guevara: A Vida em Vermelho, Companhia de Bolso, 2009.<br />
CHILE, Secretaria General de Gobierno de, Libro Blanco del Cambio de Gobierno en Chile, Editora Lord Cochrane<br />
S.A., 1973.<br />
COBO, Padre Bernabe, History of Inca Empire, University of Texas Press, 1979.<br />
COLE, Hubert, Christophe, King of Haiti, Viking Press, 1970.<br />
COLLIER, Simon; SATER, William F., A History of Chile, 1808-2002, Cambridge Latin American Studies, 2004.<br />
CORZO, Pedro, Cuba: Perfiles del Poder, Ediciones Memórias, 2007.<br />
D’ALTROY, Terence, The Incas, Blackwell, 2002.<br />
DARNTON, Robert, Os Best-Sellers Proibidos da França Pré-Revolucionária, Companhia das Letras, 1995.<br />
DAVIES, Carole Boyce, Encyclopedia of the African Diaspora, volume 1, ABC-Clio, 2008.<br />
DEPALMA, Anthony, O Homem Que Inventou Fidel: Cuba, Fidel e Herbert L. Matthews do New York Times,<br />
Companhia das Letras, 2006.<br />
DESCOURTILZ, Michel-Etienne, Histoire des Desastres de Saint-Domingue, publicado originalmente em 1795,<br />
versão em inglês disponível em http://thelouvertureproject.org/index.php?title=History_of_the_Disasters_in_Saint-<br />
Domingue.<br />
DUBOIS, Laurent, Avengers of the News World: The History of the Haitian Revolution, Harvard University Press,<br />
2004.<br />
DUBOIS, Laurent, GARRIGUS, John D., Slave Revolution in the Caribbean, 1789–1804, Bedford, 2006.<br />
EVANS, Les, Disaster in Chile, Allende’s Strategy and Why It Failed, Pathfinder Press, 1974.<br />
FARÍAS, Víctor, Salvador Allende, Antissemitismo e Eutanásia, Novo Século, 2005.<br />
FICK, Carolyn E., The Making of Haiti: The Saint Domingue Revolution from Below, The University of Tennessee<br />
Press, 1990.<br />
FILLOL, Tomás Roberto, Social Factors in Economic Development: The Argentine Case, The MIT Press, 1961.<br />
FLORES, Tomás Jalpa, La Sociedad Indígena en la Región de Chalco durante los Siglos XVI y XVII, Instituto<br />
Nacional de Antropologia, 2009.<br />
FONTOVA, Humberto, Fidel: Hollywood’s Favorite Tyrant, Regnery Publishing, 2005.<br />
FREEDMAN, Lawrence, “The Falklands conflict in History”, em The Falklands Conflict Twenty Years On: Lessons<br />
for the Future, Frank Cass, 2005.<br />
GAMBINI, Hugo, História del Peronismo: La Obsecuencia (1952–1955), Vergara, 2007.<br />
_____________, Historia del Peronismo: La Violencia (1956–1983), Vergara, 2008.<br />
GARRETT, <strong>Da</strong>vid T., Shadows of Empire: The Indian Nobility of Cusco, 1750–1825, Cambridge University Press,<br />
2005.<br />
GJELTEN, Tom, Bacardi and the Long Fight for Cuba, Penguin Books, 2008.
GOSSENS, Salvador Allende, Higiene Mental e Delinquência, Universidade do Chile – Faculdade de Medicina, 1933.<br />
GUEVARA, Che, Textos Políticos, Global, 2009.<br />
_____________, Diários de Motocicleta, versão digital.<br />
GIBSON, Charles, Los Aztecas Bajo el Dominio Español (1519-1810), FCE, 2003.<br />
HARRIS, Robin, A Tale of Two Chileans: Pinochet and Allende, Chileans Supporters Abroad, diponível em<br />
www.reocities.com/CapitolHill/Congress/1770/harris.pdf.<br />
HASSIG, Ross, Aztec Warfare, University of Oklahoma Press, 1995.<br />
HERNANDEZ, Deborah Pacini, Rockin’ las Américas: the Global Politics of Rock in Latin America, University of<br />
Pittsburgh Press, 2004.<br />
HOBSBAWM, Eric, Bandidos, Paz e Terra, 2010.<br />
HOLLAND, Julie, The Pot Book: A Complete Guide to Cannabis: Its Role in Medicine, Politics, Science, and<br />
Culture, Park Street Press, 2010.<br />
HURST, James W., Pancho Villa and Black Jack Pershing, Praeger Publishers, 2008.<br />
INFANTE, Guillermo Cabrera, Mea Cuba, Companhia das Letras, 1996.<br />
ITURRIETA, Elías Pino, El Divino Bolívar, Editorial Alfa, 2006.<br />
_____________, Simón Bolívar, coleção Biblioteca Biográfica Venezuelana, volume 100, El Nacional, 2009.<br />
JAMES, C.L.R., Os Jacobinos Negros, Boitempo, 2010.<br />
KATZ, Friedrich, Pancho Villa, tomos I e II, Ediciones Era, 1998.<br />
LABIN, Suzanne, Chile: The Crime of Resistance, Foreign Affairs Publishing Co., 1982.<br />
LAMANA, Gonzalo, Domination without Dominance, Duke University Press, 2008.<br />
LEÓN, Pedro de Cieza de, The Second Part of the Chronicle of Peru, Adamant, 2005.<br />
LEWIS, Paul H., The Crisis of Argentine Capitalism, University of North Carolina Press, 1992 (edição Kindle).<br />
LONFAT, Pedro Varas, Chile: Objetivo del Terrorismo, edição do autor, 1988.<br />
LOWINGER, Rosa; FOX, Ofelia, Tropicana Nights, Harcourt, 2005.<br />
LYNCH, John, Simón Bolívar, a Life, Yale University Press, 2006.<br />
MACCORMACK, Sabine, Religion in the Andes: Vision and Imagination in Early Colonial Peru, Princeton<br />
University Press, 1991.<br />
MAREZ, Curtis, Drug Wars, University of Minnesota Press, 2004.<br />
MARTÍNEZ, Tomás Eloy, O Romance de Perón, Companhia das Letras, 1996.<br />
____________, Santa Evita, Companhia das Letras, 1996.<br />
MARX, Karl, Simón Bolívar por Karl Marx, Martins Fontes, 2001.<br />
MATTHEW, Laura (org.), Indian Conquistadors, University of Oklahoma Press, 2007.<br />
MENDOZA, Plinio; MONTANER, Carlos Alberto; LLOSA, Álvaro Vargas, A Volta do Idiota, Odisseia Editorial,<br />
2007.<br />
MISES, Ludwig von, As Seis Lições, Instituto Ludwig von Mises Brasil, 1979.<br />
MITCHELL, José, Segredos à Direita e à Esquerda na Ditadura Militar, RBS Publicações, 2007.<br />
MORUZZI, Peter, Havana before Castro, Gibbs Smith, 2008.<br />
OGBURN, Dennis Edward, The Inca Occupation and Forced Resettlement in Saraguro, dissertação apresentada na<br />
Universidade da Califórnia em Santa Barbara, 2001.<br />
OLIVIER, Guilhem; LUJÁN, Leonardo López), El Sacrificio Humano en la Tradición Religiosa Mesoamericana,<br />
Instituto Nacional de Antropología e Historia/Universidad Nacional Autónoma de Mexico – Instituto de Investigaciones<br />
Históricas, 2010.<br />
ORTIZ, Alicia Dujovne, Eva Perón, a Madona dos Descamisados, Record, 1996.<br />
PIGNA, Felipe, Los Mitos de la Historia Argentina, volume 3, Planeta, 2006.<br />
____________, Los Mitos de la Historia Argentina, volume 4, Planeta, 2008.<br />
PÉREZ, Louis A., Cuba and the United States: Ties of Singular Intimacy, University of Georgia Press, 2003.
PLUCHON, Pierre, Toussaint Louverture: Un Révolutionnaire Noir d’Ancien Régime, Fayard, 1989.<br />
PRESCOTT, William, The History of the Conquest of Mexico, Barnes & Noble, 2004.<br />
REED, John, Insurgent Mexico: With Pancho Villa in the Mexican Revolution, Red and Black Publishers, primeira<br />
impressão em 1914.<br />
REGA, José López, Zodíaco Multicor, Livraria Freitas Bastos, 1965.<br />
RESTALL, Matthew, Sete Mitos da Conquista Espanhola, Civilização Brasileira, 2006.<br />
RODRÍGUEZ, Eduardo Luis, The Havana Guide: Modern Architecture, 1925-1965, Princeton Architectural Press,<br />
2000.<br />
ROJO, Ricardo, Meu Amigo Che, Civilização Brasileira, 1983.<br />
ROTWOROWSKI, María, History of the Inca Real, Cambridge University Press, 1999.<br />
RUÍZ, Andrés Ciudad (org.), Antropología de la Eternidad: La Muerte en la Cultura Maya, volume 1, Sociedad<br />
Española de Estudios Mayas, 2005.<br />
SALINAS, Juan; NÁPOLI, Carlos de, Ultramar Sul: A Última Operação Secreta do Terceiro Reich, Civilização<br />
Brasileira, 2010.<br />
SARLO, Beatriz, Modernidade Periférica: Buenos Aires 1920 e 1930, Cosac Naify, 2010.<br />
____________, A Paixão e a Exceção: Borges, Eva Perón, Montoneros, Companhia das Letras/UFMG, 2005.<br />
SATER, William F. Andean, Tragedy, Fighting the War of the Pacific (1979–1884), University of Nebraska Press,<br />
2007.<br />
SIRKIS, Alfredo, Roleta Chilena, Círculo do Livro, 1981.<br />
SMITH, Michael E., The Aztecs, Blackwell, 2003 (edição Kindle).<br />
STEELE, Paul, Handbook of Inca Mythology, ABC-Clio, 2004.<br />
STERN, Steve J., Peru’s Indian Peoples and the Challenge of Spanish Conquest: Huamanga to 1640, The<br />
University of Wisconsin Press, 1993.<br />
STRAKA, Tomás Straka, La Épica del Desencanto, Editorial Alfa, 2009.<br />
TABLADA, Carlos, El Pensamiento Económico de Ernesto Che Guevara, Casa de las Americas, 1987.<br />
TAYLOR, J. M., Eva Perón: The Myths of a Woman, The University of Chicago Press, 1979.<br />
THOMAS, Hugh, Cuba ou os Caminhos da Liberdade, Bertrand, 1971.<br />
TOTA, Antonio Pedro, Os Americanos, Contexto, 2009.<br />
VERDUGO, Patricia, Como os EUA Derrubaram Allende, Revan, 2003.<br />
VILLA, Marco Antonio, A Revolução Mexicana, Ática, 1993.<br />
_____________, Francisco “Pancho” Villa: Uma Liderança da Vertente Camponesa na Revolução Mexicana,<br />
Ícone, 1992.<br />
WEINER, Tim, Legado de Cinzas: Uma História da CIA, Record, 2008.<br />
ARTIGOS DE JORNAIS, REVISTAS E PUBLICAÇÕES<br />
CIENTÍFICAS<br />
ANDRADE, Maria do Carmo, “Jerônimo de Albuquerque”, site da Fundação Joaquim Nabuco, disponível em<br />
www.fundaj.gov.br.<br />
AGGIO, Alberto, “A esquerda brasileira vai ao Chile”, revista História Viva, edição 42, abril de 2007.<br />
BONALUME NETO, Ricardo, “Livro retoma teoria conspiratória de que Hitler fugiu para a Patagônia”, Folha de S.<br />
Paulo, 8 de maio de 2011.<br />
BUSTAMANTE, Alberto, “Notas y estadisticas sobre los grupos etnicos en Cuba”, revista Herencia, volume 10, 2004.<br />
CALLONI, Stella, “Hace más de de 500 años esperamos la verdadeira libertad”, entrevista com Evo Morales para a
evista Zoom, 11 de dezembro de 2009, disponível em http://revista-zoom.com.ar/articulo3498.html.<br />
CASTILLO, Bernal Días de, “Historia verdadera de la conquista de la Nueva España”, site da Biblioteca Virtual<br />
Universal, disponível em www.biblioteca.org.ar/zip22.asp?texto=10011374.<br />
“EL EMBAJADOR Edward M. Korry en el CEP”, revista Estudios Publicos, número 72, 1998.<br />
GARRIGUS, John D., “Opportunist or patriot?”, Slavery and Abolition, volume 28, número 1, abril de 2007.<br />
________________, “Blue and brown: contraband indigo and the rise of a free colored planter class in French Saint-<br />
Domingue”, The Americas, volume 50, número 2, outubro de 1993.<br />
GIERINGER, <strong>Da</strong>le H, “The origins of cannabis prohibition in California”, Contemporary Drug Problems, volume 26,<br />
Federal Legal Publications, 1999.<br />
HARDY, José Toro, “Revolución socialista del siglo XXI?”, El Universal, 10 de agosto de 2010.<br />
IBARRA, Laura, “La moral en las antiguas sociedades chichimecas”, revista Estudios de Cultura Náhuatl, volume 40,<br />
2009.<br />
“JORGE Luis Borges (1889-1986)”, revista Veja, Abril, edição 929, 25 de junho de 1986.<br />
KEEN, Benjamin, “The black legend revisited”, The Hispanic American Historical Review, novembro de 1969,<br />
disponível em www.nativeweb.org/papers/statements/identity/tiwanaku.php.<br />
LUJÁN, Leonardo López; BALDERAS, Ximena Chávez; VALENTÍN, Norma; MONTÚFAR, Aurora, “Huitzilopochtli<br />
y el sacrificio de niños en el Templo Mayor de Tenochtitlán”, disponível em<br />
www.mesoweb.com/about/articles/Huitzilopochtli.pdf.<br />
OPPERMANN, Álvaro, “Quem foi Josef Mengele?”, Superinteressante, Abril, edição 223, fevereiro de 2006.<br />
________________,“Os caminhos do Chile”, revista Veja, Abril, edição 106, 16 de setembro de 1970.<br />
PENNY, Mary E. “Can coca leaves contribute to improving the nutritional status of the Andean population?”, Food and<br />
Nutrition Bulletin, volume 30, número 3, The United Nations University, 2009.<br />
POPKIN, Jeremy, The Haitian Revolution (1791–1804): A Different Route to Emancipation, Universidade de<br />
Kentucky, 2003, disponível em www.uky.edu/~popkin/Haitian%20Revolution%20Lecture.htm.<br />
“‘RACIST’ Apocalypto accused of denigrating mayan culture”, The Guardian, disponível em<br />
www.guardian.co.uk/film/2007/jan/10/news.melgibson.<br />
SMITH, Kirby; LLOREN, Hugo, “Renaissance and decay: a comparison of socioeconomic indicators in pre-Castro and<br />
current-day Cuba”, em Cuba in Transition, volume 8, Association for the Study of the Cuban Economy (ASCE), 1998.<br />
TIESLER, Vera; CUCINA, Andrea, “El sacrificio humano por extracción de corazón: una evaluación osteotafonómica<br />
de violencia ritual entre los mayas del clasico”, Estudios de Cultura Maya, Universidad Autónoma de Yucatán, volume<br />
30, páginas 57-78, disponível em www.iifl.unam.mx/html-docs/cult-maya/vera-cucci.pdf.<br />
THORNTON, John K., “‘I am the subject of the king of Congo’: African political ideology and the Haitian Revolution”,<br />
Journal of World History, volume 4, número 2, 1993, disponível em www.jstor.org/stable/20078560.<br />
WOOD, Michael, “The Story of the Conquistadors”, site BBC History, disponível em<br />
www.bbc.co.uk/history/british/tudors/conquistadors_01.shtml#four?.<br />
SITES<br />
ARQUIVO DA COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS (CIDH), disponível em<br />
www.cidh.org/countryrep/cuba67sp/cap.1a.htm#_ftnref4.<br />
BIBLIOTECA DO CONGRESSO NACIONAL DO CHILE, seção Biografias, disponível em http://biografias.bcn.cl.<br />
CUBA ARCHIVE, Arquivo de <strong>Da</strong>dos, caso 206, Ariel Lima Lago, disponível em<br />
www.cubaarchive.org/database/victim_case.php?id=306.<br />
El HISTORIADOR, disponível em www.elhistoriador.com.ar.<br />
FOREIGN AGRICULTURAL SERVICE (FAS), “Cuba’s Food & Agriculture Situation Report”, março de 2008,<br />
disponível em www.fas.usda.gov/itp/cuba/CubaSituation0308.pdf.
INDUSTRIAL WORKERS OF THE WORLD, disponível em www.iww.org.<br />
PARTIDO JUSTICIALISTA DE BUENOS AIRES, disponível em www.pjbonaerense.org.ar.<br />
TEATRO COLÓN, disponível em www.teatrocolon.org.ar.<br />
CONTEÚDO AUDIOVISUAL<br />
E Estrelando Pancho Villa, HBO Films, Warner Bros., 2003.<br />
Grandes Chilenos de Nuestra História – Salvador Allende, documentário, TVN, Chile, 2008.<br />
“Músicos cubanos querem ficar no Brasil”, programa Fantástico, Rede Globo, 15 de abril de 2008, disponível em<br />
http://fantastico.globo.com/Jornalismo/FANT/0,,MUL698091-15605,00.html.
Índice<br />
CAPA<br />
Ficha Técnica<br />
INTRODUÇÃO<br />
COMO DEIXAR DE SER LATINO-AMERICANO<br />
CHEGUEVARA<br />
UM OLHAR MATADOR<br />
Che e a liberdade artística e sexual<br />
Che, a paz e o amor<br />
Che e os direitos humanos<br />
Che e os trabalhadores<br />
Che e a liberdade artística e sexual<br />
Che, a paz e o amor<br />
Che e os direitos humanos<br />
Che e os trabalhadores<br />
ASTECAS, INCAS, MAIAS<br />
OS ÍNDIOS CONQUISTADORES<br />
Boa parte dos andinos comemorou a chegada dos espanhóis<br />
Viviam os incas em 1984?<br />
Antes dos espanhóis, muito mais sangue era derramado na América Latina<br />
A descoberta do índio conquistador<br />
Os índios não foram excluídos das decisões políticas<br />
Boa parte dos andinos comemorou a chegada dos espanhóis<br />
Viviam os incas em 1984?<br />
Antes dos espanhóis, muito mais sangue era derramado na América Latina<br />
A descoberta do índio conquistador<br />
Os índios não foram excluídos das decisões políticas<br />
SIMÓN BOLÍVAR<br />
DA DIREITA PARA A ESQUERDA<br />
Um rei para a América Latina<br />
Bolívar participou da luta de classes – só que na parte de cima<br />
Bolívar contra os bolivarianos<br />
Ídolo de Mussolini, cultuado por Chávez<br />
Um rei para a América Latina<br />
Bolívar participou da luta de classes – só que na parte de cima<br />
Bolívar contra os bolivarianos<br />
Ídolo de Mussolini, cultuado por Chávez<br />
HAITI<br />
OS REVOLUCIONÁRIOS REACIONÁRIOS<br />
A estranha revolta de Jean-François<br />
Julien Raimond, carrasco e vítima<br />
Jean Kina, de escravo a coronel britânico<br />
A difícil tarefa de Toussaint L’Ouverture
Henri Christophe e o ápice da loucura<br />
A estranha revolta de Jean-François<br />
Julien Raimond, carrasco e vítima<br />
Jean Kina, de escravo a coronel britânico<br />
A difícil tarefa de Toussaint L’Ouverture<br />
Henri Christophe e o ápice da loucura<br />
PERÓN E EVITA<br />
UM GRANDE PASSADO PELA FRENTE<br />
Rainha do Prata<br />
As considerações de Perón sobre o fascismo<br />
Fracasso na indústria e no campo<br />
Enquanto o país quebrava, Perón se divertia com estudantes<br />
Rainha do Prata<br />
As considerações de Perón sobre o fascismo<br />
Fracasso na indústria e no campo<br />
Enquanto o país quebrava, Perón se divertia com estudantes<br />
PANCHO VILLA<br />
O LATIFUNDIÁRIO MAIS FAMOSO DE HOLLYWOOD<br />
Pancho Villa adorava os Estados Unidos<br />
Não ultrapasse a cerca. Latifundiário raivoso<br />
Pancho Villa adorava os Estados Unidos<br />
Não ultrapasse a cerca. Latifundiário raivoso<br />
SALVADOR ALLENDE<br />
JOGOS, TRAPAÇAS E CANOS FUMEGANTES<br />
Gabarito<br />
Gabarito<br />
EPÍLOGO<br />
O FIM QUE NINGUÉM QUERIA<br />
BIBLIOGRAFIA<br />
LIVROS E EDISSERTAÇÕES<br />
ARTIGOS DE JORNAIS, REVISTAS E PUBLICAÇÕES CIENTÍFICAS<br />
SITES<br />
CONTEÚDO AUDIOVISUAL