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Publicação Mensal Ano XIX - Nº <strong>217</strong> Abril de 2016<br />
A promessa se<br />
realizará!
“Esvoaça do lado de fora,<br />
mas não entra”<br />
Francisco Lecaros<br />
2<br />
C<br />
erta ocasião, quando São Vicente Ferrer<br />
entrava em Barcelona — uma das maiores<br />
e mais ilustres cidades de seu tempo —, fizeram-lhe<br />
uma recepção tão extraordinária que<br />
de todas as janelas pendiam tapeçarias em sua<br />
honra, o povo o aclamava e ele caminhava debaixo<br />
de um pálio, cujas varas eram carregadas<br />
pelos principais da cidade. Então, alguém<br />
lhe perguntou, baixinho, ao ouvido:<br />
— Irmão Vicente, e a vaidade?<br />
— Esvoaça do lado de fora, mas<br />
não entra — respondeu ele.<br />
A resposta de um orgulhoso<br />
seria: “Nem sinto tentação.”<br />
E um pusilânime diria: “Pobre<br />
de mim, estou inundado<br />
de vaidade.”<br />
Este Santo deu a resposta certa:<br />
Como homem, posso e estou<br />
sendo tentado. Porém, a tentação esvoaça<br />
do lado de fora, mas, pela graça<br />
de Deus, ela não entra.<br />
De fato, neste vale de lágrimas é normal<br />
sermos tentados. A tentação tempera a alma.<br />
Quem diz “não” para o demônio sai mais forte,<br />
mais pertencente a Nossa Senhora. O servo<br />
bom e fiel que foi provado e venceu manifesta<br />
a sua fidelidade, faz render na luta os seus<br />
talentos, colhe louros e os entrega à sua Senhora.<br />
Somos soldados da Igreja Militante e devemos<br />
nos entusiasmar com isso.<br />
(Extraído de conferência de 16/1/1970)
Sumário<br />
Publicação Mensal Ano XIX - Nº <strong>217</strong> Abril de 2016<br />
Ano XIX - Nº <strong>217</strong> Abril de 2016<br />
A promessa se<br />
realizará!<br />
Na capa, afresco da<br />
Mãe do Bom Conselho<br />
Genazzano, Itália.<br />
Foto: Timothy Ring<br />
As matérias extraídas<br />
de exposições verbais de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
— designadas por “conferências” —<br />
são adaptadas para a linguagem<br />
escrita, sem revisão do autor<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
<strong>Revista</strong> mensal de cultura católica, de<br />
propriedade da Editora Retornarei Ltda.<br />
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Gráfica Print Indústria e Editora Ltda.<br />
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assinatura anual<br />
Comum............... R$ 130,00<br />
Colaborador........... R$ 180,00<br />
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Grande Propulsor....... R$ 655,00<br />
Exemplar avulso........ R$ 18,00<br />
Serviço de Atendimento<br />
ao Assinante<br />
Tel./Fax: (11) 2236-1027<br />
Editorial<br />
4 Os momentos da Providência<br />
Piedade pliniana<br />
5 Oração à Mãe do Bom Conselho<br />
Dona Lucilia<br />
6 União de almas entre Dona Lucilia e <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
A sociedade analisada por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
8 Santidade e personalidade - I<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />
12 Confiança: flexibilidade nas<br />
mãos da Providência<br />
De Maria nunquam satis<br />
17 Obra de cortesia e de arte<br />
O pensamento filosófico de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
20 A procura do absoluto e<br />
o perfeito convívio - I<br />
Calendário dos Santos<br />
24 Santos de Abril<br />
Hagiografia<br />
26 Exemplo de constância e de fortaleza<br />
Luzes da Civilização Cristã<br />
30 Intercâmbio de mentalidade<br />
entre Mãe e Filho<br />
Última página<br />
36 Refúgio dos Pecadores<br />
3
Editorial<br />
Os momentos da<br />
Providência<br />
H<br />
á momentos na vida em que a Providência parece ausentar-Se e deixar a alma com a sensação<br />
de ter sido abandonada. As graças sensíveis cessam, o panorama descortinado outrora pela<br />
voz da graça torna-se cheio de névoas e tem-se a impressão de que tudo começará a soçobrar.<br />
Na vida de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> esses momentos não faltaram, mas sua entranhada devoção a Maria Santíssima<br />
manteve-o sempre em contínuo ato de confiança. Seu amor a Nossa Senhora manifestava-se de modo<br />
muito especial na devoção à Mãe do Bom Conselho, venerada na cidade de Genazzano, Itália. Vejamo-<br />
-lo narrar uma das mais sensíveis graças recebidas por meio de uma de suas estampas.<br />
Eu me encontrava na fase pós-operatória de uma intervenção cirúrgica penosa, delicada, que visava<br />
conter um processo de gangrena. Feita a operação, eu estava passando alguns dias no hospital para<br />
restabelecer-me, quando me trouxeram uma estampa de Nossa Senhora de Genazzano.<br />
Ao fitá-la fui surpreendido pela sensação maravilhosa de que a Santíssima Virgem mudava magnificamente<br />
de expressão. Tornava-se “viva”, afável, materna, muito mais do que a mera estampa poderia<br />
representar. De algum modo isso me dava a entender a solução para um problema muito complexo<br />
e delicado que eu trazia dentro da alma, o qual me atormentava muito mais do que a operação.<br />
Eu tinha estado em perigo de vida nessa ocasião, mas, ao mesmo tempo, algo em minha alma dizia<br />
que eu ainda haveria de viver por bastante tempo para realizar inteiramente minha vocação, travando<br />
na Terra a luta vitoriosa contra a Revolução, com que eu sonhava desde o meu tempo de adolescente.<br />
Porém, as doenças inopinadas que vinham sucedendo comigo até chegar à situação muito grave<br />
da gangrena, levavam-me a recear que os meus dias acabassem.<br />
Quando a estampa “sorriu”, entendi ser essa uma comunicação de que eu chegaria ao termo da<br />
obra, e que, portanto, nesse sentido a Santíssima Virgem me sorria com uma grande doçura, afabilidade<br />
e bondade.<br />
Anexa a esta certeza interior, vinha outra ideia: que eu não temesse as vicissitudes encontradas em<br />
meu caminho, pois as dificuldades mais ásperas, duras e inesperadas seriam superadas por Nossa Senhora.<br />
Com isso, veio-me uma confiança, não só quanto ao termo final da nossa obra, mas também de<br />
que os episódios insolúveis, de um modo ou de outro, se resolveriam, e Maria Santíssima levaria a<br />
nossa caminhada até o fim de seu termo.<br />
Foi isso que me manteve a vida. Confiando n’Ela, por causa desse sorriso, caminhei como os judeus<br />
no meio do Mar Vermelho.<br />
Compreende-se, assim, toda a gratidão que sou levado a ter para com Nossa Senhora. A promessa<br />
fica de pé, tem-se confirmado não sei quantas vezes, e chegará o momento em que tudo se realizará.<br />
Confiança! 1<br />
1) Conferência de 16/12/1988.<br />
Declaração: Conformando-nos com os decretos do Sumo Pontífice Urbano VIII, de 13 de março de 1625 e<br />
de 5 de junho de 1631, declaramos não querer antecipar o juízo da Santa Igreja no emprego de palavras ou<br />
na apreciação dos fatos edificantes publicados nesta revista. Em nossa intenção, os títulos elogiosos não têm<br />
outro sentido senão o ordinário, e em tudo nos submetemos, com filial amor, às decisões da Santa Igreja.<br />
4
Piedade pliniana<br />
Antonio Lutiane<br />
Oração à<br />
Mãe do Bom<br />
Conselho<br />
ÓMãe do Bom Conselho, eu Vo-lo suplico:<br />
falai no mais íntimo da alma deste<br />
vosso filho e escravo.<br />
Tornai, assim, sempre presente a meu espírito<br />
a convicção de que são objetivas — e não meros<br />
frutos da imaginação — as graças que, segundo<br />
firmíssima tradição, concedeis a vossos<br />
devotos pelas “mudanças” de vossa fisionomia.<br />
Convencei-me de que podeis instilar, desta<br />
forma, nas almas, convicções de confiança e paz<br />
que valham por verdadeiras promessas vossas.<br />
Tendo em vista os auxílios providenciais que<br />
em várias ocasiões inesperadamente me concedestes,<br />
peço-Vos que acresçais ainda mais minha<br />
confiança, de sorte que ela se torne inabalável<br />
em todas as ocasiões.<br />
Pela virtude dessa confiança, dai-me a certeza<br />
de que, através de graças avassaladoras, tornar-me-eis<br />
um perfeito cavaleiro vosso; exorcizai<br />
e enviai para longe de mim qualquer influência<br />
diabólica; e uni-me cada vez mais a Vós,<br />
para Vos servir na Terra e Vos louvar no Céu.<br />
Assim seja.<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
5
Dona Lucilia<br />
União de almas entre<br />
Dona Lucilia e <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
Entre ambos não havia apenas uma<br />
afinidade temperamental, psicológica,<br />
como existe muitas vezes entre mãe e<br />
filho. Tratava-se de uma união de almas<br />
tão profunda, que vinha dos mais íntimos<br />
alicerces do ser de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, do seu espírito,<br />
que coincidiam com os de Dona Lucilia.<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
L<br />
ogo que mamãe morreu, eu<br />
me lembro de que fui ao quarto<br />
dela — não assisti ao seu último<br />
suspiro —, chorei muito e chorei<br />
alto, mas depois se estabeleceu<br />
uma paz em minha alma, que durou<br />
durante todo o dia do enterro,<br />
os dias seguintes também, e que culminou<br />
com a cena que se passou durante<br />
a Missa de sétimo dia, quando<br />
um raio de luz bateu sobre uma coroa<br />
de orquídeas.<br />
O raio de sol sobre<br />
as orquídeas<br />
Eu tinha pedido a Nossa Senhora<br />
um sinal de que mamãe não estava<br />
no Purgatório, porque me afligia<br />
muito a ideia de que ela pudesse estar<br />
sofrendo lá. Então, um raio de sol<br />
saiu de um vitral lateral da igreja 1 e<br />
incidiu nas orquídeas que ornavam<br />
o centro da cruz, e foi<br />
se tornando mais intenso, até<br />
adquirir uma intensidade<br />
enorme; depois foi se afastando<br />
lentamente e sumiu;<br />
mas numa velocidade correspondente<br />
à cadência dos<br />
passos dela, e o modo de ela<br />
se afastar quando não andava<br />
depressa. Ela tinha o hábito<br />
de andar depressa, mas<br />
quando andava de modo<br />
muito calmo, a cadência era<br />
aquela. Eu pensei: “A cadência<br />
dos passos de mamãe<br />
era assim.” E fiquei<br />
muito tocado com aquilo.<br />
Tenho saudades dela,<br />
no sentido de que eu gostaria<br />
imensamente de osculá-la,<br />
de conversar com<br />
Igreja de Santa Teresinha - São Paulo, Brasil<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
6
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
ela, imensissimamente, mas na minha<br />
alma é como se ela estivesse viva. Não<br />
é que eu converse com ela, mas aquela<br />
sensação da presença, da convivência,<br />
eu tenho com ela; e não sensação<br />
de ausência que eu teria — quando<br />
mamãe vivia —, por exemplo, estando<br />
eu na Europa. E considerem que<br />
ela está no Céu e eu aqui na Terra!<br />
Sobretudo nos últimos anos da vida<br />
de mamãe, não era a conversa,<br />
mas a presença, uma coisa que eu<br />
não sei explicar, e isso para mim continua<br />
como se ela estivesse viva.<br />
“Éramos um”<br />
Acho que para os que<br />
não a conheceram ou<br />
que não souberam apreciá-la<br />
em vida, e vão visitar<br />
seu túmulo, acontece<br />
algo semelhante.<br />
Eu olho as caras e<br />
tenho a impressão de<br />
que é muito mais uma<br />
audiência que ela dá,<br />
do que uma oração que<br />
se faz para uma pessoa<br />
que está fora; é uma coisa<br />
curiosa, eles não se dão<br />
conta disso, mas suas atitudes<br />
são — não que ela estivesse<br />
conversando com eles — como<br />
se ela estivesse exercendo uma<br />
ação de presença junto a eles.<br />
É preciso notar que a força de<br />
presença que ela tinha era única. O<br />
Quadrinho 2 possui isso, de maneira<br />
que quando o recebi eu disse: “Este<br />
Quadrinho veio para reforçar a sensação<br />
da presença dela.”<br />
Havia uma união de alma entre<br />
ela e eu tão profunda, que vinha dos<br />
mais íntimos alicerces do meu ser,<br />
de meu espírito, que coincidiam com<br />
os dela; de tal maneira que não era<br />
só uma afinidade temperamental,<br />
psicológica, enfim, os mil tipos de<br />
afinidade que possa haver entre mãe<br />
e filho, mas era uma coisa diferente;<br />
do fundo da alma, o quanto pode<br />
ser, eu sentia essa afinidade.<br />
E fazíamos um só, de tal maneira<br />
éramos unidos. Eu me lembro<br />
de que uma arrumadeira portuguesa<br />
chamada Ana, que tivemos<br />
quando morávamos numa outra casa,<br />
fez a nosso respeito um comentário,<br />
do qual mamãe gostou muito.<br />
Com aquela simplicidade portuguesa,<br />
Ana dizia o seguinte: “Viver com<br />
a cordialidade que a senhora vive<br />
com o <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, nem marido e mulher,<br />
noivo e noiva têm, porque eles,<br />
quando são felizes, não possuem essa<br />
cordialidade.” Mas era realmente<br />
João Dias<br />
um encanto contínuo meu por ela, e<br />
um modo de tratar como eu nunca vi<br />
filho tratar mãe, e dela comigo, talvez<br />
ainda mais, porque nas menores<br />
coisas havia uma delicadeza e uma<br />
solicitude em procurar interpretar-<br />
-me, mil coisas que os fatinhos concretos<br />
não podem exprimir, porque<br />
era o espírito com que o fatinho era<br />
realizado.<br />
Isso tem uma projeção espiritual,<br />
quer dizer, de tal maneira éramos<br />
um, que não é possível aderir a<br />
um e não aderir ao outro. É evidente<br />
que eu devo muito de minha formação<br />
primeira a ela. De maneira que<br />
eu acho isso muito natural, muito razoável,<br />
verdadeiro. v<br />
(Extraído de conferência de<br />
8/3/1986)<br />
1) Igreja Santa Teresinha, situada no<br />
bairro de Higienópolis, em São Paulo.<br />
2) Quadro a óleo, que muito agradou<br />
a <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, pintado por um de seus<br />
discípulos, com base nas últimas fotografias<br />
de Dona Lucília. Ver <strong>Revista</strong><br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> n. 119, p. 6-9.<br />
7
A sociedade analisada por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
Santidade e personalidade - I<br />
A Doutrina Católica visa que cada homem aprimore sua personalidade,<br />
caminhando rumo à santidade. Assim são criadas as condições<br />
para a constituição de uma civilização perfeita.<br />
T<br />
odos ouviram falar vagamente,<br />
com certeza, do panteísmo,<br />
e da diferença entre este<br />
e o ateísmo. E depois, sobre a crença<br />
em Deus.<br />
Noção de pessoa<br />
De acordo com o ensinamento<br />
da Igreja infalível, existe um só<br />
Deus em três Pessoas realmente distintas.<br />
Mas esse Deus é pessoal. O<br />
que é uma pessoa? Chama-se “pessoa”<br />
um ser que pensa a respeito de<br />
si mesmo e forma, portanto, um circuito<br />
fechado. Um bicho, uma planta,<br />
uma pedra não são pessoas, e sim<br />
indivíduos. Por quê? Porque eles não<br />
pensam, não têm consciência de que<br />
existem, de um mundo interno e de<br />
um mundo externo. Nós, pelo contrário,<br />
temos essa consciência, e por<br />
causa disso somos pessoas.<br />
Deus é Pessoa porque Ele tem<br />
consciência de Si próprio, daquilo<br />
que Ele criou. E de tal maneira é<br />
Pessoa que, na sua unidade — porque<br />
é um só Deus —, há três Pessoas:<br />
o Pai, o Filho e o Espírito Santo.<br />
O que constitui o mistério da Santíssima<br />
Trindade.<br />
Tendo criado o universo, o qual,<br />
sendo necessariamente um reflexo<br />
d’Ele, Deus quereria refletir no universo<br />
o fato de que Ele é Pessoa. E,<br />
portanto, haveria de criar o universo<br />
constituído por pessoas; e por isso,<br />
criou os anjos e os homens, que são<br />
Paulo Mikio<br />
os elementos essenciais do universo.<br />
Os animais, as plantas e os minerais<br />
estão a serviço do homem, e são para<br />
o universo mais ou menos como a<br />
franja é para o tapete. Ninguém iria<br />
pôr em casa um tapete só feito de<br />
franja. Não seria tapete. Pelo contrário,<br />
há tapetes muito finos que não<br />
têm franja. A franja do tapete é uma<br />
coisa que faz parte dele, mas não é de<br />
nenhum modo a sua essência.<br />
Assim também os animais, as plantas<br />
e os minerais são como as franjas<br />
do universo. Deus criou o universo para<br />
as pessoas, que são os anjos e os homens.<br />
E é em cada uma dessas pessoas<br />
que Deus encontra a sua imagem.<br />
Com essa noção, compreende-se<br />
fazer parte da Doutrina Católica que<br />
cada pessoa se personifique cada vez<br />
mais. Quer dizer, Deus criou cada<br />
um de nós com determinadas características,<br />
as quais são agrupadas em<br />
torno daquilo que nós chamamos a<br />
“luz primordial”. Se a pessoa corresponde<br />
à graça, de fato se santifica,<br />
a sua personalidade toma um realce<br />
extraordinário, e tudo quanto ela<br />
A Santíssima Trindade e os 4 Evangelistas<br />
Catedral de Colônia, Alemanha<br />
8
Francisco Lecaros<br />
Baile no Palácio - Museu Carmen Thyssen, Málaga, Espanha<br />
tem de bom e característico fica ultracaracterístico.<br />
Tudo o que ela possui<br />
de mau é posto de lado.<br />
Deus é eminentemente<br />
personificante<br />
Em qualquer santo isso é ultracaracterístico.<br />
Todos são muito parecidos<br />
entre si, mas ao mesmo tempo<br />
enormemente diversos uns dos outros.<br />
O que São Paulo prefigurou de<br />
modo magnífico, dizendo: “Stella differt<br />
stella” 1 .<br />
Olhem para o céu onde há uma<br />
porção de estrelas. Uma criança diria<br />
que são iguais. Mas na realidade<br />
nestas miríades de estrelas não há<br />
nenhuma igual à outra. Assim são os<br />
homens.<br />
Mais ainda, todos os homens que<br />
houve, há e haverá no plano de Deus<br />
formam uma coleção. E essa coleção<br />
deve de algum modo, no seu conjunto,<br />
espelhar o que o Criador é no<br />
seu conjunto. Quer dizer, assim como<br />
Deus é imenso, infinito, e tem<br />
todas as qualidades possíveis, isto se<br />
reproduz no conjunto dos homens.<br />
Cada um com sua tônica, tomando<br />
essas tônicas no conjunto se obtém<br />
uma espécie de mapa de Deus, de<br />
conjunto constituído por Deus. De<br />
maneira que nós não temos consciência,<br />
mas somos peças de uma coleção;<br />
peças superindividuais, peças<br />
pessoais de uma coleção, e cada um<br />
de nós, se corresponder à sua luz primordial,<br />
é de um jeito que faz parte<br />
da coleção de Deus. E para que esta<br />
tenha toda beleza, todo colorido, todo<br />
vigor, é necessário que cada uma<br />
dessas peças possua toda a sua personalidade.<br />
Deus é eminentemente<br />
personificante. Quer dizer, Ele<br />
dá à pessoa a sua personalidade. Por<br />
quê? Porque Ele é Pessoa.<br />
Um extremo oposto disso é o panteísmo.<br />
O panteísmo sustenta que há<br />
um deus, mas esse deus não é pessoa,<br />
é um ente sem pensamento, sem<br />
conhecimento de si próprio; que vive,<br />
portanto, no eterno sono do bicho,<br />
da planta e da pedra. Quer dizer,<br />
não conhece nem entende nada,<br />
e que todos os seres que existem saíram<br />
desse deus, como moléculas saem<br />
de um determinado corpo.<br />
A Doutrina Católica ensina o contrário:<br />
nós não saímos de Deus; fomos<br />
criados por Deus.<br />
Mas, para o panteísmo, ser uma<br />
pessoa é uma desgraça; porque para<br />
ser uma pessoa é preciso sofrer, e<br />
sofrer é uma desgraça. Então, a finalidade<br />
da religião é que a pessoa vá<br />
se preparando para, morrendo, desaparecer,<br />
fundir-se de novo nesse<br />
ser sem raciocínio, sem consistência<br />
pessoal, que é deus.<br />
Assim, dizem os panteístas, deus é a<br />
natureza. O que querem dizer com isto?<br />
Que deus é uma força a qual está<br />
presente em tudo, e que não tem consciência<br />
de si. Se quiserem, deus é a vida.<br />
A vida está nos presentes neste auditório,<br />
está em mim, nos bichos, nas<br />
plantas. A vida não tem consciência<br />
de si, nem é uma só vida. O panteísmo<br />
apresenta isso como um só fluido presente<br />
em todo mundo. Este fluido, esta<br />
vida, tem como objetivo despersonificar,<br />
liquidar as pessoas, para elas se<br />
prepararem a sumir quando elas morrerem.<br />
Desaparecerem dentro deste<br />
grande conjunto sem pensamento que<br />
é chamado “deus”.<br />
Civilização cristã e cortesia<br />
Daí decorre uma ideia da civilização<br />
católica, e outra ideia da civilização<br />
pagã, panteísta. Para a civilização<br />
católica trata-se de, nessa vida, a pessoa<br />
se personificar cada vez mais e depois<br />
adorar, no Céu, as três Pessoas da<br />
Santíssima Trindade. Para o panteísta<br />
trata-se de diluir a personalidade.<br />
A civilização católica faz da vida,<br />
sobretudo, uma relação de pessoa<br />
para pessoa, e concebe a formação<br />
de maneira que cada pessoa é ela<br />
9
A sociedade analisada por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
Jan van Eyck (CC3.0)<br />
“Cavaleiros de Cristo” - Catedral<br />
de Ghent, Bélgica<br />
mesma e depois respeite a personalidade<br />
do outro, sinta as afinidades e<br />
as diferenças. Tenha cortesia.<br />
O que é a cortesia? É a perfeita<br />
afinidade de pessoas distintas umas<br />
das outras. Há então um abismo que<br />
separa uma pessoa da outra. Eu sou<br />
eu, sou um circuito fechado em mim.<br />
Cada um dos que aqui se encontram<br />
é um circuito fechado em si. De outro<br />
lado, nós temos relações, porque<br />
somos todos homens.<br />
A cortesia é a perfeita relação que<br />
passa por cima deste abismo existente<br />
de homem para homem. A força<br />
que liga este abismo chama-se amor<br />
fraterno católico. A cortesia é o laço<br />
cheio de respeito, de distinção, de<br />
afeto que prende as pessoas diferentes<br />
e as coloca numa relação, como<br />
notas de uma música. Dir-se-ia que<br />
as notas de uma música estão em estado<br />
de cortesia umas com as outras.<br />
Imaginem uma pessoa irrefletida<br />
que, por exemplo, passa diante de<br />
um piano que está com a tampa aberta,<br />
escorrega e se apoia sobre o piano<br />
para não cair; sai um som horroroso<br />
parecido com uma descortesia. Por<br />
quê? É que não há harmonia.<br />
A cortesia é a musicalidade das<br />
relações humanas. Mas nessa musicalidade<br />
cada homem constitui sua<br />
personalidade apoiado pelo outro,<br />
e todos crescem, todos brilham, cada<br />
um com a luz de sua personalidade<br />
própria.<br />
Daí partem inúmeras consequências.<br />
Uma delas é que, na civilização<br />
medieval, a lei tomava em linha de<br />
conta direitos e deveres, o que a lei<br />
contemporânea não toma mais em<br />
consideração.<br />
Por exemplo, o dever entre benfeitor<br />
e beneficiado é de gratidão.<br />
Na lei de hoje quase não há resquícios<br />
desse dever. Na lei da Idade<br />
Média o dever de gratidão era enorme.<br />
Daí nasceu o feudalismo, que é<br />
uma concatenação de gratidões. O<br />
rei dava terras a um suserano, que ficava<br />
vassalo do rei. O suserano concedia<br />
terras ao nobre menor, o qual<br />
se tornava vassalo desse suserano.<br />
Esse nobre menor dava terras a um<br />
plebeu, que ficava vassalo desse nobre<br />
menor. Cada um que deu ficava<br />
obrigado à proteção daquele que tinha<br />
recebido, para tudo. E cada um<br />
que recebeu ficava obrigado a obedecer<br />
e a apoiar aquele que tinha sido<br />
seu benfeitor. E esta era a concatenação<br />
das relações pessoais.<br />
O nobre e o burguês,<br />
na Idade Média e no<br />
Ancien Régime<br />
Na Idade Média, os direitos eram<br />
mais sobre as pessoas do que sobre<br />
as coisas. Havia direito sobre as coisas<br />
também, mas o direito sobre as<br />
pessoas se considerava muito mais<br />
do que o direito sobre as coisas.<br />
Querem ver um exemplo curioso<br />
disso? Na Idade Média o que era<br />
mais: um riquíssimo burguês, ou um<br />
nobre, senhor de um castelinho com<br />
uma aldeia? Era o nobre. Mas o burguês<br />
não era muito mais rico, mais<br />
poderoso? A resposta que um medieval<br />
daria era é a seguinte: “Não vem<br />
ao caso. O nobre governa pessoas; o<br />
burguês governa matéria, governa<br />
ouro. É muito mais governar homens<br />
do que ouro. De maneira que é uma<br />
riqueza metafísica maior ser senhor<br />
de uma pequena aldeia do que dono<br />
de uma grande fortuna.”<br />
Não sei se percebem o respeito<br />
ao homem que entra dentro disso. E<br />
por essa razão se, por exemplo, entrasse<br />
numa cidade um senhor feudal<br />
num cavalinho rapado, vestido<br />
ele mesmo meio apertadamente,<br />
porque suas terras produziam pouco,<br />
com um escudeiro que ia a pé,<br />
porque não tinha cavalo; o senhor<br />
portando uma espada com o forro<br />
meio gasto, e um chapéu com uma<br />
pluma que já tomou muita chuva…<br />
Passando ele diante de um burguês,<br />
médio, vestido de veludo,<br />
usando um chapéu magnífico com<br />
10
pedras preciosas, e não uma pluma,<br />
mas uma cauda de pássaro no chapéu,<br />
o burguês se descobria, dando<br />
um passo à frente, e o nobre correspondia<br />
amavelmente, mas de cima.<br />
Alguém diria: “Incompreensível,<br />
orgulho.” Não. É o contrário. O<br />
nobre afirmava aí o maior valor dos<br />
seus vassalos, porque eram homens,<br />
sobre o ouro do burguês. Isto não<br />
se encontra em nenhum manual de<br />
História, mas é o modo do medieval<br />
conceber as relações.<br />
Terminada a Idade Média, o feudalismo<br />
foi acabando, mas muitos<br />
restos dele ficaram na sociedade<br />
do Ancien Régime 2 . A sociedade se<br />
transformou, mas isso ainda existia.<br />
Considerem, por exemplo, um<br />
nobre do Ancien Régime e um burguês<br />
riquíssimo. Por que aquele era<br />
nobre? Porque ele era de uma classe<br />
social que tinha obrigação de ir à<br />
guerra e derramar o sangue pelo rei.<br />
Enquanto o burguês não podia ser<br />
convocado para o serviço militar; fazia<br />
serviço militar se quisesse.<br />
O nobre tinha essa excelência de<br />
alma de aceitar ser da classe que é<br />
obrigada a ir morrer pela pátria, ainda<br />
que não quisesse — quer dizer,<br />
era crime não ir. Como a dedicação<br />
vale mais do que o ouro, porque a<br />
dedicação é uma qualidade do homem,<br />
e o homem vale mais do que<br />
o metal, por causa disso o nobre valia<br />
mais do que o plebeu. Não sei se<br />
estão percebendo a ação contínua da<br />
pessoa humana.<br />
“E se um plebeu ou um burguês<br />
quisesse ir para a guerra?” Ah! Se<br />
fosse para a guerra e se tornasse um<br />
herói era frequentemente elevado<br />
ao cargo, à condição de nobre. Mas<br />
aí ele se engajava num outro circuito.<br />
Acabou a vida cômoda, terminaram<br />
os verões despreocupados e com<br />
passeio, acabou a agradável contagem<br />
do dinheiro por detrás dos guichês<br />
da loja. Porque, habitualmente,<br />
chegando a primavera e o verão, começava<br />
a guerra e os nobres todos tinham<br />
que partir. Se o plebeu ficasse<br />
nobre, ele tinha que ir para a guerra<br />
também.<br />
Compreende-se que o número de<br />
candidatos para nobre era bem menor,<br />
do que se podia imaginar à primeira<br />
vista.<br />
Como se explica isto? É a<br />
prevalência do homem sobre<br />
a matéria, das qualidades humanas<br />
sobre as qualidades<br />
materiais.<br />
O burguês tinha uma<br />
vida muito mais confortável<br />
do que o nobre.<br />
Tomem gravuras daquele<br />
tempo, representando<br />
o interior<br />
das casas burguesas:<br />
são residências agradáveis,<br />
aconchegadas,<br />
confortáveis, com tudo<br />
abundante, etc.,<br />
feitas para as pessoas<br />
se regalarem.<br />
Observem as gravuras<br />
representando os palácios:<br />
são lindos, de alto luxo,<br />
não são cômodos. Basta<br />
ver os móveis que restaram.<br />
Se um indivíduo sentar-se<br />
irrefletidamente numa<br />
daquelas cadeiras, ele cai<br />
com a cadeira. Aqueles móveis exigem<br />
que a pessoa esteja continuamente<br />
numa atitude de grande dignidade,<br />
de grande distinção. Aquele<br />
modo de falar todo trabalhado exige<br />
uma atenção contínua na língua<br />
que se usa, nas fórmulas de cortesia,<br />
nas etiquetas, para estar à<br />
altura da situação. Que cultura<br />
era preciso ter para<br />
sustentar aquelas grandes<br />
conversas...<br />
Para considerar simplesmente<br />
isto: como entrava<br />
uma jovem nobre<br />
em sociedade? v<br />
(Continua no próximo<br />
número)<br />
(Extraído de conferência<br />
de 29/6/1974)<br />
Divulgação (CC 3.0)<br />
Palácio do Rei Sancho - Mallorca, Espanha<br />
1) Do latim: Há diferença<br />
de estrela para<br />
estrela (1Cor 15,41).<br />
2) Do francês: Antigo<br />
Regime. Sistema social<br />
e político aristocrático<br />
em vigor na França<br />
entre os séculos XVI<br />
e XVIII.<br />
Francisco Lecaros<br />
11
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />
Confiança: flexibilidade<br />
nas mãos da Providência<br />
A confiança vem da certeza interior de que a Providência irá<br />
conceder aquilo que Ela promete e que não conseguimos<br />
por nossas próprias forças. Os momentos em que é preciso<br />
confiar são os mais belos da vida de um homem.<br />
Mccampestrini (CC3.0)<br />
C<br />
onfiança em Nossa Senhora!<br />
Que magnífico! Que extenso<br />
tema cheio de aspectos, de<br />
profundidade, de luzes, cheio também<br />
de santas exigências!<br />
Necessidade do auxílio<br />
da Providência<br />
Como deve ser a confiança em<br />
Nossa Senhora?<br />
A palavra “confiança” é cheia<br />
de doçura. Não há homem que<br />
não tenha necessidade de uma<br />
ajuda da Providência a todo<br />
momento de sua vida. Se ele<br />
é muito orgulhoso e não quer<br />
reconhecer a necessidade desse<br />
auxílio, o fardo que ele leva<br />
é pior, porque não há coisa<br />
mais terrível do que levar a vida<br />
no isolamento, sentindo a própria<br />
insuficiência. E não há homem<br />
que não seja insuficiente para<br />
a grande tarefa de viver.<br />
Há uma expressão francesa que<br />
diz: “Entra-se e grita-se; é a vida!<br />
Grita-se e sai-se; é a morte!” Entre<br />
dois gritos está a vida de um homem.<br />
E quanto é isto verdade! Quanto a<br />
vida é cheia de sofrimentos! O homem<br />
nasce, e à medida que ele vai<br />
adquirindo o uso da razão, de um<br />
Marcelo Ferreira<br />
Nossa Senhora da Confiança<br />
Seminário Maior de<br />
Roma, Itália<br />
modo mais ou menos confuso, se estabelece<br />
no espírito dele a ideia de<br />
que a vida deve ser de um determinado<br />
modo.<br />
Essa ideia é muitas vezes influenciada<br />
por desejos, por sonhos irrealizáveis,<br />
mas pode também ser algo<br />
nascido da reta ordenação das coisas,<br />
de uma ponderação exata das<br />
circunstâncias, que leva o homem a<br />
desejar aquilo cuja realização seria<br />
razoável. Em busca disto começa a<br />
história da vida de um homem.<br />
Homens com e sem história<br />
O que é a história de um homem?<br />
Conhecemos, por exemplo, a história<br />
deste, daquele; depois tal outro<br />
que não tem história. O que é a vida<br />
dos homens sem história?<br />
Por mais modesta e apagada, ou<br />
por mais magnífica que seja a vida,<br />
ela tem história quando possui<br />
uma meta e há dificuldades<br />
para se alcançá-la. Mesmo<br />
quando a pessoa não consegue<br />
atingir a meta que traçou para<br />
si, ela tem uma história. Pode<br />
ser a história de um êxito ou de<br />
um fracasso. Por quê? Porque<br />
foi a trajetória de um esforço.<br />
Quais são os homens que não<br />
têm história? São os que não deixam<br />
sulco na História. São os que<br />
não tiveram meta. Toda vida humana<br />
é interessante desde que ali tenha<br />
havido uma meta e um método para<br />
alcançar esse objetivo.<br />
Um homem que, por exemplo,<br />
jornaleiro — hoje essa profissão não<br />
existe mais, era um ofício muitíssimo<br />
modesto —, que vende jornais<br />
andando pela rua, e gritando de um<br />
12
lado para outro, musicalizando: “O<br />
Estado, a Folha…” Às vezes víamos<br />
um homem maduro, que passara a<br />
vida inteira como jornaleiro, mas<br />
percebia-se nele a intenção de ter sido<br />
um determinado tipo de jornaleiro,<br />
e tinha ou não conseguido aquele<br />
intuito.<br />
É uma história anônima. Mas se<br />
uma pessoa se debruçasse sobre ela,<br />
conhecesse os pormenores, soubesse<br />
quais foram as metas, as tentativas,<br />
o fracasso e o êxito, se fosse um bom<br />
escritor, faria daquela vida um grande<br />
livro. Porque onde houve uma<br />
meta e um método, esta história mereceria<br />
ser escrita.<br />
Não merece ser escrita a história<br />
daqueles que não tiveram meta nem<br />
método, que passaram a vida vagueando<br />
de um lado para outro, sem<br />
querer e sem desejar nada, sem ter<br />
método para alcançar alguma coisa,<br />
ao sabor das circunstâncias, como<br />
uma cortiça jogada ao mar. Jogada<br />
no Atlântico, tanto pode ir parar no<br />
Mar Amarelo, como em Istambul,<br />
como pode passar cem anos flutuando<br />
nos espaços internos da baía de<br />
Guanabara e, depois, desintegrar-se.<br />
Não tem interesse, não houve meta,<br />
não houve método, houve apenas<br />
o jogo fortuito das circunstâncias…<br />
São os homens sem história.<br />
Manuelvbotelho (CC3.0)<br />
“Estátua do guerreiro”<br />
Palácio da Pena, Sintra, Portugal<br />
Necessidade<br />
da confiança<br />
para cumprir<br />
os desígnios<br />
de Deus<br />
Para os homens<br />
que possuem história,<br />
muitas vezes esta meta<br />
é verdadeira. Mas<br />
muitas vezes também<br />
a pessoa se engana.<br />
E chegar a conhecer<br />
a verdadeira meta da<br />
vida é uma graça. Alguns<br />
a têm nos primeiros<br />
albores da vida,<br />
outros quando a<br />
vida já vai madura, a<br />
mar alto! A Providência<br />
não quis lhes fazer<br />
conhecer antes a<br />
meta designada para<br />
eles. E eles foram vivendo<br />
na incerteza, à<br />
procura de uma meta,<br />
até o momento em que ela floresce<br />
dentro do mar onde eles estavam<br />
vagando sem sentido.<br />
Às vezes a Providência tem metas<br />
desencontradas para uma mesma<br />
pessoa, para prová-la. Então, chama<br />
um homem, primeiro para guerreiro.<br />
Ele luta e, de repente, a Providência<br />
dá um jeito, o homem descobre<br />
em si mesmo um talento diplomático<br />
enorme. Ele deixa de lado a espada<br />
e começa a usar a lábia, a gentileza;<br />
entra pela diplomacia.<br />
Em determinado momento, lhe<br />
vem a ideia, e é a vocação: “Eu devo<br />
ser padre, devo ser religioso… Vou<br />
— como São Pedro Armengol —<br />
ser um homem para resgatar os cativos…<br />
eu não quero outra coisa…”<br />
São vidas que parecem quebradas,<br />
mas se somam formando um todo,<br />
uma bonita unidade, que se percebe<br />
melhor depois, quando a pessoa<br />
morreu e vemos o caminho seguido<br />
por ela.<br />
São Pedro Armengol, na forca, sustentado por<br />
Nossa Senhora - Museu do Prado, Madri, Espanha<br />
Outro exemplo: Santo Inácio. Há<br />
uma beleza especial no fato de ele<br />
ter sido guerreiro antes de ser padre.<br />
E como embeleza ainda mais a vida<br />
deste Santo o fato de, entre o tempo<br />
de guerreiro e o de Fundador, ter<br />
passado um período de convalescença,<br />
com uma perna quebrada, lendo<br />
livro de cavalaria, depois livro de<br />
Santos, da biblioteca do velho castelo,<br />
e mandando quebrar três vezes a<br />
perna para consertar…<br />
Como é bonito que depois esse fidalgo<br />
deixasse a corte e se vestisse<br />
como um mendigo, e fosse para um<br />
grupo escolar onde os meninos davam<br />
risada dele. Aquele homem já<br />
feito quase não tinha cultura. Ele tinha<br />
passado a vida guerreando e não<br />
tinha tido tempo de estudar. Ele recebe<br />
com humildade os apodos, até<br />
que sua alma começa a luzir como<br />
uma tocha! É a Contrarreforma que<br />
brilha nele, talvez como em nenhum<br />
outro Santo.<br />
13<br />
Vicente Carducho (CC3.0)
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />
Francisco Lecaros<br />
Santo Inácio - Santuário<br />
de Loyola, Espanha<br />
Como tudo isto é magnífico! Como<br />
estas coisas são feitas de tal maneira<br />
que o homem, para conhecer<br />
as vias de Deus, deve medir e pesar<br />
com sabedoria as circunstâncias.<br />
De outro lado, deve ouvir a voz<br />
de Cristo — “voz misteriosa da graça<br />
que fala às almas palavras de doçura<br />
e de paz” — e dar mais um passo, fazendo<br />
um ato de confiança:<br />
“Um impulso interno do lado<br />
bom de minha alma floresce quando<br />
eu formo a ideia de seguir tal rumo.<br />
Tudo quanto há de bom em mim fenece,<br />
quando penso no rumo oposto.<br />
Para lá eu devo andar! Há alguma<br />
coisa de Deus que me diz isso no<br />
interior da alma!”<br />
Quantas e quantas vezes o homem<br />
se confunde a respeito da voz de<br />
Deus! É preciso medir pela razão, pela<br />
sabedoria, se esse impulso interno<br />
está direito. “Medi, rezei para conseguir<br />
fazer bem. Medi e dei o passo!<br />
Está lançada a história, eu comecei!”<br />
Aqui aparece mais especialmente<br />
a necessidade da confiança. A pessoa<br />
formou aquela certeza e deve<br />
andar em determinada direção.<br />
Rezar, rezar muito<br />
e não duvidar<br />
Qual é o papel da confiança dentro<br />
disso?<br />
“Nossa Senhora me chamou para<br />
isto, e Ela não chama em vão. Se<br />
a Santíssima Virgem me chamou,<br />
eu obterei. Ela muitas vezes me fará<br />
passar pelas avenidas dos becos<br />
sem saída, muitas vezes me fará conhecer<br />
o tormento das situações que<br />
não têm solução. Mas eu devo resistir<br />
a esses tormentos com muita calma,<br />
devo estar sereno… Porque,<br />
em determinado momento, as mãos<br />
d’Ela abrem as muralhas do beco como<br />
se fossem cortinas, e eu passarei<br />
com facilidade.”<br />
É a confiança vinda daquela certeza<br />
interior, uma certeza meio do<br />
raciocínio e meio da graça, na qual<br />
nada é contra a razão, mas às vezes<br />
é mais do que a simples razão vê. Assim<br />
forma-se a resolução de fazer e<br />
seguir naquele rumo, sabendo que a<br />
Providência Divina acabará dando<br />
aquilo que a pessoa julga jamais conseguir.<br />
Esses são os mais belos momentos<br />
da vida do homem, em que<br />
ele diz:<br />
“Não consigo, não vou avante! Salve<br />
Regina, Mater misericordiæ, vita,<br />
dulcedo et spes nostra, salve! 1 Não tem<br />
saída, mas Vós, ó Mãe, sois a saída!”<br />
Quantos e quantos fatos — e não<br />
só na vida dos Santos — provam como<br />
a alma verdadeiramente confiante,<br />
que soube continuar a esperar,<br />
mesmo quando tudo parecia perdido,<br />
obtém a graça almejada. O que<br />
é preciso é, em primeiro lugar, rezar;<br />
Sergio Hollmann<br />
em segundo lugar, rezar muito; em<br />
terceiro lugar, não duvidar que será<br />
atendida.<br />
Diante de obstáculos<br />
insuperáveis, a certeza do<br />
auxílio de Nossa Senhora<br />
Como se define a virtude da confiança?<br />
É a virtude pela qual o homem,<br />
levado pela luz da razão e pela luz<br />
da Fé, se convence de que um determinado<br />
caminho é o dele, e convencendo-se<br />
disso, diante dos obstáculos<br />
mais impossíveis, das dores mais<br />
terríveis, tem certeza de que Nossa<br />
Senhora o ajudará. Então, ele não se<br />
perturba, não duvida, e nas circunstâncias<br />
mais terríveis ele se mantém<br />
calmo e em ordem, porque sabe que<br />
Nossa Senhora virá em seu socorro.<br />
Esta é a virtude da confiança.<br />
A condição da virtude da confiança<br />
é não duvidar. Se o homem não<br />
duvida, a sua confiança será atendida<br />
e premiada. Pelo contrário, se<br />
duvida, ele pode não obter. E é por<br />
causa disso que a confiança é uma<br />
das condições fundamentais da oração.<br />
Uma oração confiante move as<br />
montanhas.<br />
Desse modo compreende-se como<br />
nós devemos nos preparar para<br />
Santo Inácio ferido em batalha<br />
Santuário de Loyola, Espanha<br />
14
a confiança. Custe o que custar e seja<br />
de que maneira for, confiar, confiar,<br />
confiar! Esperar contra toda esperança!<br />
Quando tudo parecer sem<br />
solução, confiança, confiança, confiança!<br />
A solução vem!<br />
Alguém dirá: “Mas, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>,<br />
confiar é tão doce, é um Céu na Terra!<br />
Nós não compreendemos onde<br />
está a virtude, por que pode haver<br />
sacrifício em professar uma confiança<br />
tão doce?!”<br />
O homem tem um desejo do Céu,<br />
no seu lado bom; mas, no seu lado<br />
ruim, ele tem uma misteriosa tendência<br />
para os abismos. E um homem<br />
que está confiando, e deve a<br />
paz e a alegria de sua alma à confiança,<br />
tem uma inclinação esquisita<br />
a duvidar. Ele fica desconfiado e lhe<br />
agrada perguntar-se a sim mesmo:<br />
“Será?!…” Agrada-lhe afligir-se, desesperar-se.<br />
Este se afunda...<br />
Isso se deu no episódio de São Pedro<br />
andando sobre as ondas.<br />
Nosso Senhor mandou-o ir até<br />
Ele, São Pedro começou a andar;<br />
mas, em certo momento, em vez de<br />
olhar para Nosso Senhor, olhou para<br />
as ondas. E, coisa terrível, veio a pergunta:<br />
“Será?”<br />
Nós não temos o direito de atirar<br />
a primeira pedra, mas São Pedro,<br />
numa hora destas, deve ter duvidado.<br />
Em vez de olhar para a face<br />
de Nosso Senhor, que lhe daria toda<br />
a certeza, olhou para as águas. Nem<br />
era preciso que houvesse água, podia<br />
haver vácuo, se ele confiasse caminharia<br />
em cima! Podemos imaginar<br />
que, para prová-lo, a onda tenha<br />
sido tão grande que o tenha feito<br />
perder a visão direta da face de Nosso<br />
Senhor, e por isso tenha começado<br />
a afundar.<br />
Até o momento em que pede ajuda<br />
a Nosso Senhor, que o salva. Mas<br />
ainda aí há a tentação da desconfiança:<br />
“Desta eu escapei, em outra<br />
não me meto — a alma humana é assim<br />
— chegando à terra firme, nunca<br />
mais navego!” Um homem que agisse<br />
assim pecaria contra a confiança!<br />
Metas mudadas<br />
pela Providência<br />
Transponho isso para a nossa vida<br />
de apostolado. A três por dois estamos<br />
numa situação que não tem saída,<br />
num embrulho sem arranjo. Às<br />
vezes pensamos que temos a solução<br />
na mão. Não temos! Em certo momento,<br />
se soubermos confiar, vemos<br />
aquilo sendo resolvido. Quando menos<br />
esperamos, num canto do horizonte<br />
a tempestade começa a passar.<br />
Daqui a pouco passa completamente.<br />
A primavera chega, vem<br />
o verão da confiança. Mas, depois,<br />
mais adiante as coisas vão se fazendo<br />
novamente esquisitas. “Ih, desta<br />
vez não sei se dará certo... Das outras<br />
deu, mas desta dará? Que complicação!”<br />
São os outonos da confiança.<br />
E depois vêm também os terríveis<br />
invernos da confiança, em que<br />
tudo parece ir contra e dar resultado<br />
desfavorável. É preciso confiar, rezar;<br />
rezar, confiar, porque Nossa Senhora<br />
acabará arranjando.<br />
Há um ponto delicado dentro disso.<br />
Tão delicado que, tanto quanto<br />
eu me lembro, o próprio Abbé Saint-<br />
-Laurent, no Livro da Confiança,<br />
não trata. É o seguinte.<br />
Santo Inácio com as constituições<br />
da Companhia de Jesus<br />
Santuário de Loyola, Espanha<br />
Nossa Senhora quer que alguns<br />
façam uma obra na Terra, e deseja<br />
conservá-los para realizar esta obra.<br />
Mas de outros Ela dispõe que sejam<br />
vítimas expiatórias. E a vítima expiatória<br />
deve aguentar nas costas toda<br />
espécie de sofrimentos para obter o<br />
resgate dos outros. Uma espécie de<br />
mercedário, mas com vistas à outra<br />
vida. Sofre nesta vida para evitar que<br />
outros vão para o Inferno.<br />
E às vezes a Providência dá a entender:<br />
“Meu filho, resolvi abreviar a<br />
sua vida. E quero o holocausto completo.<br />
Você vai morrer!” A ideia da<br />
morte causa espavento! Causa dor<br />
e tormento! O homem chora diante<br />
da ideia da morte! Ele pede para<br />
ser daqui a pouco, para terminar tal<br />
negócio, acabar tal relação, para fa-<br />
Francisco Lecaros<br />
15
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />
Mariella Antunes<br />
Juan Pablo Calavid Arango<br />
zer tal outra coisa… “Não! Chegou<br />
a sua vez de morrer!” É preciso morrer<br />
com confiança.<br />
O que significa aí morrer com<br />
confiança?<br />
“Eu pensei que a Providência fosse<br />
me dar uma longa vida, e confiava<br />
que assim seria. Mas, de repente,<br />
por um pecado meu, ou porque<br />
Deus quis de mim o sacrifício<br />
por alguém que eu não conheço,<br />
mas que Ele quer<br />
salvar, a Providência<br />
me pede: ‘Meu filho,<br />
queres morrer<br />
por mim? É novo,<br />
é uma sugestão<br />
nova… Tu<br />
não sabias, tu<br />
Estátua equestre<br />
de Santa Joana<br />
d’Arc - Paris, França<br />
16<br />
não conhecias. Queres morrer<br />
por mim?’”<br />
E é preciso ter a confiança<br />
de dizer:<br />
— Senhor — ou Senhora<br />
—, se Vós o quereis,<br />
eu quero também!<br />
É o curso terrível e<br />
natural das coisas. É,<br />
por exemplo, Santa<br />
Joana d’Arc, a heroína<br />
da confiança. Confiou,<br />
venceu, mas em<br />
certo momento foi presa,<br />
vendida pelos borguinhões<br />
aos ingleses,<br />
submetida ao injustíssimo<br />
e infamíssimo processo da<br />
Inquisição contra ela e, depois,<br />
queimada viva.<br />
No último momento, o grande<br />
ato de confiança: “As vozes não<br />
mentiram! Realmente aquilo que foi<br />
prometido, acontecerá!” Ela deve<br />
ter tido alguma revelação.<br />
Os paradoxos da<br />
confiança<br />
“Nossa Senhora da Divina<br />
Providência” (acervo particular)<br />
Caieiras, Brasil<br />
A confiança é bifásica. Ela pede<br />
que confiemos de que as coisas<br />
vão correr de um determinado<br />
jeito, e normalmente<br />
correm. Mas, por uma razão<br />
excepcional, elas podem<br />
não correr. Então<br />
se deve começar a confiar<br />
num plano mais alto da<br />
Providência que não<br />
sabemos qual é.<br />
A confiança é<br />
para todos os momentos,<br />
para todas<br />
as formas.<br />
Ela exige, portanto,<br />
que tenhamos<br />
a certeza de que<br />
seremos socorridos,<br />
mas, paradoxalmente,<br />
ao mesmo<br />
tempo experimentemos<br />
a impressão<br />
de que o auxílio não virá. E<br />
fiquemos resignados caso a Providência<br />
queira qualquer outra coisa.<br />
A confiança comporta esta flexibilidade:<br />
quando confiamos numa coisa,<br />
se acontecer algo contrário, não<br />
nos revoltamos, e nos entregamos. É<br />
a confiança em Nosso Senhor Jesus<br />
Cristo.<br />
Aí se compreende também toda<br />
a doçura e bondade que há no título<br />
de Mãe de Misericórdia, e como<br />
Nossa Senhora da Divina Providência<br />
é a Mãe de Misericórdia num<br />
sentido muito especial da palavra,<br />
uma espécie de requinte da invocação<br />
de Nossa Senhora Auxiliadora.<br />
Para Ela, devemos nos voltar em<br />
dias como estes.<br />
v<br />
(Extraído de Conferência de<br />
17/11/1984)<br />
1) Do latim: Salve Rainha, Mãe de misericórdia,<br />
vida, doçura e esperança<br />
nossa, salve!
De Maria nunquam satis<br />
Fotos: Gustavo Kralj<br />
Obra de cortesia e de arte<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> descreve o quadro de Nossa Senhora do Bom<br />
Conselho de Genazzano, mostrando, entre outros elevados<br />
e profundos aspectos, a cortesia de Maria Santíssima.<br />
Afotografia mostra Nossa<br />
Senhora como Rainha. As<br />
coroas de Maria Santíssima<br />
e do Menino Jesus são de pedras<br />
preciosas, não propriamente do quadro,<br />
mas joias que foram nele presas<br />
posteriormente, em razão dos grandes<br />
milagres e graças de que o afresco<br />
de Genazzano tem sido ocasião.<br />
Nossa Senhora está<br />
olhando para quem reza<br />
Vemos os colares de pérola que<br />
estão suspensos no quadro, alguns<br />
adornos que dão uma ideia oriental,<br />
com uma espécie de meia-lua; são<br />
coisas muito legítimas, muito boas,<br />
mas nós podemos abstrair delas para<br />
compreendermos bem o afresco em<br />
si mesmo como pintura.<br />
No quadro, percebemos que há<br />
uma coerência admirável na figura<br />
mais expressiva, que é Nossa Senhora,<br />
porque o Menino Jesus é menos<br />
expressivo.<br />
O que há de interessante na figura<br />
de Maria Santíssima?<br />
A fisionomia d’Ela está completamente<br />
distendida. Não se nota um<br />
músculo que esteja contraído, que<br />
indique qualquer impressão, exceto<br />
a sensação de contentamento de<br />
estar com o Menino. Ela está toda<br />
voltada para a ideia de que segura<br />
o Menino Jesus nos braços e só está<br />
pensando n’Ele; não tem outra preocupação.<br />
O mundo inteiro não existe<br />
para Ela, há apenas o Menino Jesus.<br />
O curioso é que Ela não está olhando<br />
propriamente para Ele, mas para<br />
quem reza. Percebe-se que o fato de a<br />
face de Nossa Senhora tocar na fronte<br />
e na face do Menino Jesus faz com<br />
que Ela tenha uma espécie de degustação<br />
da presença d’Ele, de alegria daquele<br />
contato do corpo que é, sobretudo,<br />
um contato de alma muito íntimo,<br />
que A deixa cheia de satisfação.<br />
Esse contato, entretanto, é habitual<br />
e não de surpreender. Não é um<br />
êxtase, nem nada deste gênero, mas<br />
uma impressão, uma sensação como<br />
toda mãe tem com seu filho; quan-<br />
17
De Maria nunquam satis<br />
do ela está com seu filho, há momentos<br />
em que o amor materno se abre<br />
mais, floresce mais e o seu carinho se<br />
expande. Nossa Senhora é apresentada<br />
desta maneira aqui.<br />
Bondade, ternura, proteção<br />
A bondade, a ternura, a proteção<br />
d’Ela para com o Filho se fazem notar<br />
muito na posição do pescoço e<br />
da cabeça. O Menino está suspenso<br />
n’Ela e A agarra pelo pescoço — a<br />
ponta da mão direita d’Ele aparece<br />
por detrás —, e explica que Ela esteja<br />
com o pescoço ligeiramente inclinado<br />
pelo peso d’Ele. A intimidade<br />
d’Ele com Ela é extraordinária!<br />
O Menino agarra como algo que<br />
Ele está habituadíssimo a segurar, e<br />
Nossa Senhora se deixa agarrar como<br />
quem já foi segurada mil vezes. E<br />
até acha agradável sentir-Se curvada<br />
diante de um peso tão suave, tão doce,<br />
tão deleitável para Ela.<br />
O Menino não está propriamente<br />
com medo, mas meio agarrado a Ela<br />
como quem, também Ele, não quer saber<br />
nada do mundo de fora. Ele está todo<br />
para Ela, como Ela está toda para<br />
Ele. Ele só tem alegria de estar ligado<br />
à Mãe d’Ele, mais nada, e na alegria de<br />
se sentir protegido e unido a Ela.<br />
Nenhum dos dois pensa, nem cogita<br />
nem nota nada. Olhem para essa<br />
Criança: não está pensando em bola,<br />
em doce ou qualquer outra coisa. Está<br />
pensando apenas: “Mamãe”; e a Mãe<br />
está pensando somente: “Meu Filho”.<br />
Nota-se, entretanto, uma coisa<br />
curiosa: na expressão d’Ele, apesar de<br />
ser menino, existe — é uma delicadeza<br />
do quadro — uma sensação de “doninho”.<br />
O Menino Jesus segura Nossa<br />
Senhora, está contente, protegido,<br />
mas Ele é um pouco “doninho”<br />
d’Ela, enquanto n’Ela existe uma veneração,<br />
respeito. Parece que Ela está<br />
procurando escutar o que se dá dentro<br />
d’Ele, se sai uma palavra desse Sacrário<br />
que Ela tem nos braços... E quando<br />
se presta atenção, vê-se o seguinte: Ela<br />
está rezando para Ele. Essa posição da<br />
cabeça, essa atitude, é de quem ausculta,<br />
no fundo está numa espécie de<br />
prece, não pedindo algo, mas fazendo<br />
uma contemplação da Pessoa d’Ele,<br />
querendo tomar contato com a Pessoa<br />
d’Ele. É uma meditação, uma contemplação<br />
muito alta.<br />
Está subentendida a<br />
doutrina da mediação<br />
Ele está nesta intimidade com<br />
Ela, mas, enquanto os olhos d’Ela<br />
vão para baixo, os olhos d’Ele vão<br />
para cima, dirigem-se a Deus. É a<br />
ideia da mediação. Ela olha para Ele<br />
e Ele olha para Deus. Nós olhamos<br />
para Nossa Senhora, Ela olha para<br />
Jesus e Ele olha para Deus.<br />
É bonito que tanta doutrina tenha<br />
sido posta tão delicadamente neste<br />
quadro, que nem se sabe o que dizer.<br />
Notem outra coisa: o olhar d’Ela<br />
é, curiosamente, bivalente. Não é<br />
verdade que Ela está olhando para<br />
Ele? E também olhando para quem<br />
fita o quadro?<br />
Sente-se meio olhado por Ela<br />
quando se olha para o quadro, e é<br />
bem o papel d’Ela. Ela é nossa medianeira,<br />
recebe nossa oração, transmite<br />
para Ele e Ele é Deus e transmite<br />
a nossa oração às outras Pessoas<br />
da Santíssima Trindade.<br />
De maneira que se tem a Doutrina<br />
Católica suavissimamente expressa,<br />
sem essa precisão dogmática que<br />
é própria à Teologia, mas com esse<br />
subentendido que é próprio à arte.<br />
Porque é agradável adivinhar isto<br />
no quadro, sem que se veja à primeira<br />
vista.<br />
Os que se encontram neste auditório,<br />
não acham mais interessante<br />
descobrirem quando uma pessoa<br />
lhes mostra, do que estar escrito em<br />
baixo: “Mediação universal”?<br />
Que dizer, a coisa que se insinua<br />
é dada a entender de leve, não está<br />
afirmada de modo cortante, mas a<br />
pessoa vai assim descobrindo como<br />
atrás de um aroma delicado. Na arte,<br />
isso tem seu encanto. Para a arte,<br />
às vezes certo mistério aumenta<br />
o atrativo. Aqui temos, então, este<br />
mistério.<br />
Sentir-se filho mais<br />
até do que adotivo<br />
Há outro aspecto interessante:<br />
essa intimidade. Toda intimidade<br />
é fechada, exclui. O pintor soube<br />
— aliás, a meu ver, esse quadro<br />
foi pintado por Anjo — criar uma<br />
18
coisa curiosa, que é uma intimidade<br />
aberta. Tem-se a impressão de que<br />
se alguém for chegando perto, entra<br />
no circuito dessa intimidade; que<br />
é amado por Nossa Senhora, pelo<br />
Menino Jesus, é entendido pelos<br />
dois e que Eles socorrem a pessoa<br />
que se aproxima. Qualquer um que<br />
se achega a esse quadro pode sentir-se<br />
íntimo, sentir o aconchego da<br />
presença do quadro. Seja uma alma<br />
reta, seja um pecador, seja até um<br />
inimigo; se se aproxima sente esse<br />
aconchego.<br />
Outra coisa curiosa: Nossa Senhora<br />
aqui está sorrindo? Olhando para<br />
os lábios, não. Não<br />
sei se notam que há<br />
um ligeiro sorriso indefinido<br />
espalhado<br />
por todo o rosto; e<br />
é um certo comprazimento<br />
para com o<br />
Filho. Mas de outro<br />
lado também é um<br />
comprazimento para<br />
com o devoto, com o<br />
fiel que chega aí perto,<br />
filho d’Ela como<br />
Este outro.<br />
Está insinuado<br />
no quadro que<br />
quem olha para o<br />
quadro é irmão do<br />
Menino Jesus, é<br />
também filho d’Ela.<br />
Esse quadro poderia<br />
se chamar “Adoção”.<br />
Porque a pessoa<br />
se sente filho<br />
adotivo, ou mais<br />
até do que adotivo,<br />
simplesmente aproximando-se<br />
do quadro.<br />
Isso me parece<br />
ser o que o quadro<br />
tem de mais interessante.<br />
Pergunto o seguinte:<br />
o quadro é<br />
de uma Rainha? Faço<br />
abstração da coroa.<br />
Não há nada que indique uma<br />
pessoa de alta categoria social, nem<br />
de categoria social modesta, nem<br />
média. Está à margem das categorias<br />
sociais. Apesar disto, há qualquer<br />
coisa n’Ela de Rainha, porque<br />
é sumamente venerável, sumamente<br />
respeitável. Se fôssemos abrir a boca<br />
para dizer uma palavra, teríamos<br />
vontade de nos ajoelhar.<br />
Por quê? Tão ordenada, tudo tão<br />
direito dentro d’Ela, que qualquer<br />
palavra que partisse d’Ela seria uma<br />
palavra de sabedoria, de santidade.<br />
Quase que se imagina o timbre desta<br />
voz, seria um ensinamento. Imediatamente<br />
teríamos desejo de nos colocar<br />
genuflexos. Todas essas riquezas<br />
foram postas neste quadro.<br />
Nossa Senhora está cortês com o<br />
Menino Jesus, nesse afresco? Eu diria<br />
que sumamente cortês. Notem<br />
com que respeito Ela está com Ele.<br />
É um enorme respeito, uma veneração.<br />
Mas, de outro lado, muito íntima.<br />
E Ele com Ela também, com<br />
que respeito! Como Ele está direitinho,<br />
nada está errado, nada como<br />
não deve ser. Jesus tem a sensação<br />
da sacralidade dos braços em que<br />
Ele está. Quer dizer, um menino<br />
dessa idade, rezando numa igreja,<br />
não podia ter uma<br />
atitude mais cheia<br />
de respeito do que<br />
está aí.<br />
Temos aí uma<br />
verdadeira obra de<br />
cortesia e de arte.<br />
No que está a<br />
cortesia nesse quadro?<br />
Os três elementos<br />
da cortesia<br />
estão presentes<br />
ali: o respeito mútuo,<br />
o amor mútuo<br />
e, como reflexo<br />
de ambos, um modo<br />
de tratar que deixa<br />
transluzir o bem-<br />
-estar de permanecer<br />
ligado a algo de<br />
mais alto, e ao mesmo<br />
tempo um sorriso<br />
por estar ligado<br />
a algo que se quer<br />
muito. E essa é uma<br />
das definições de<br />
cortesia. Aí estaria<br />
a cortesia no quadro<br />
de Nossa Senhora<br />
de Genazzano. v<br />
(Extraído de<br />
conferência de<br />
29/6/1974)<br />
19
O pensamento filosófico de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
A procura do absoluto<br />
e o perfeito convívio - I<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
A perfeição do relacionamento humano está<br />
profundamente condicionada à capacidade<br />
que as almas tenham de transcender à<br />
fruição meramente material e elevar-se a<br />
uma esfera metafísica e sobrenatural.<br />
Omaravilhoso na ordem temporal<br />
tem como desfecho a tendência<br />
para o Céu empíreo.<br />
Deleitar-se com os bens<br />
temporais à procura do<br />
absoluto é um ato de<br />
natureza espiritual<br />
Normalmente, para o comum dos<br />
homens — não para um com vocação<br />
especial —, o maravilhoso, o religioso,<br />
não podem ser vistos a não<br />
ser numa orientação análoga com o<br />
temporal. Portanto, o grande comprazimento<br />
com a coisa temporal<br />
não se confunde com o ato de volúpia,<br />
mas é um ato de natureza espiritual<br />
quando se procura nele o absoluto.<br />
Toda a teoria da procura do<br />
absoluto em função das coisas temporais<br />
é o que leva ao Céu empíreo.<br />
Porque no Céu empíreo a coisa sensível<br />
é dada ao homem para ajudar a<br />
sua integração na visão beatífica.<br />
Em mim, a problemática metafísica<br />
foi modelada pela influência da<br />
<strong>Plinio</strong>, por ocasião<br />
de sua Primeira<br />
Comunhão<br />
Guilherme Gaensly (CC3.0)<br />
Guilherme Gaensly (CC3.0)<br />
Vale do Anhangabaú e Estação da Luz,<br />
São Paulo, por volta de 1900<br />
20
Fräulein Mathilde, porque um mundo<br />
de coisas da mentalidade, da educação<br />
das crianças alemãs é embebido<br />
da ideia de que certas coisas têm<br />
valor metafísico. Mas não vão mais<br />
adiante e não relacionam este valor<br />
metafísico com Deus.<br />
Então, por mil aspectos, minha alma<br />
aderia muito a isso. E eu percebia<br />
que a procura do absoluto me conduzia<br />
à Igreja, me completava como católico<br />
e, portanto, eu deveria estimulá-la.<br />
Porque dia viria em que as coisas<br />
se conectariam. Eu notava a dissonância<br />
entre a posição que eu tomava<br />
e a de outras pessoas, e percebia<br />
com todas as luzes que a atitude<br />
delas não podia ser a católica.<br />
Do lado brasileiro, ajudou-me<br />
nisto também a vida tranquila e, até<br />
certo ponto, regalada existente na<br />
São Paulo de meu tempo, onde uma<br />
série de deleites era concebida ainda<br />
dentro da ordem tradicional, e eu<br />
percebia que esses prazeres tinham<br />
uma coerência com os princípios católicos<br />
e, portanto, a questão não<br />
consistia em largar esses deleites retos,<br />
mas em ensinar as pessoas a conservá-los.<br />
Um exemplo característico tão<br />
frisante, quase infantil: a árvore de<br />
Natal. Uma criança muito virtuosa<br />
diante de uma árvore de Natal tinha<br />
dois caminhos: por penitência,<br />
comer coisas de que não gosta e torturar<br />
o seu Natal, ou, por outro lado,<br />
gozar o seu Natal. Ora, embora<br />
compreenda em tese que, a uma alma<br />
chamada de modo muito especial,<br />
Deus possa exigir o sacrifício do<br />
Natal, para mim, teria dado uma asfixia<br />
do outro mundo!<br />
O gáudio reto, santo, inocente do<br />
Natal me enchia de amor a Deus.<br />
E também com uma série de outras<br />
coisas, por exemplo, a vida um tanto<br />
cerimoniosa que se levava no meu<br />
ambiente. Isso dava propriamente<br />
em uma vida com bons regalos. Essa<br />
teoria do regalo santificante não poderia<br />
deixar de desfechar numa teoria<br />
do Céu empíreo. Donde durante<br />
décadas eu insistir, de um ou de outro<br />
modo, sobre o regalo bom santificante.<br />
Em certo momento, caiu-me<br />
nas mãos esse material sobre o Céu<br />
empíreo, do Cornélio a Lápide 1 .<br />
Duas escolas espirituais<br />
diante dos deleites legítimos<br />
Segundo certa escola espiritual,<br />
uma pessoa virtuosa, na hora de colher<br />
morangos nos bosques, diria: “Ó,<br />
fujamos disto! Não vos esqueçais de<br />
que hoje é sexta-feira e Nosso Senhor<br />
padeceu por nós.” É uma consideração<br />
muito santa, muito direita para<br />
certo filão de almas. Para outro filão:<br />
“Vá pegar morango no bosque, passe<br />
pela capela, pela paróquia que está<br />
aberta, faça uma Via-Sacra, porque<br />
é sexta-feira, Nosso Senhor morreu<br />
nesse dia.” Está muito bem.<br />
Eu estou vendo que uma pessoa<br />
poderia me dizer desde logo: “Ofereça<br />
esse pequeno<br />
sacrifício e renuncie<br />
a esse regalo,<br />
porque isto é grato<br />
a Deus.” Eu digo:<br />
Desde logo ponho<br />
em dúvida o que<br />
você diz. Há certos<br />
casos em que é,<br />
há certos casos em<br />
que não é.<br />
Certa vez, uma<br />
pessoa me disse:<br />
“Você quer passar<br />
um dia de virtude?<br />
Faça o seguinte:<br />
o tempo inteiro<br />
quando você quiser<br />
esticar as pernas,<br />
você cruze; quando<br />
quiser cruzá-las,<br />
faça o contrário, e<br />
assim por diante,<br />
o contrário do que<br />
você quer. Você à<br />
noite terá uma tonelada<br />
de méritos.”<br />
Pensei comigo: “Eu não vou desencorajar<br />
essa boa alma, mas tenho<br />
um abismo de mal-estar e de perplexidade<br />
com isso.”<br />
Alternativa em face<br />
da fruição e o risco de<br />
abandonar a “transesfera”<br />
Quando a pessoa está na fase anterior<br />
às provas, o deleite é quase<br />
sempre santificante. Entretanto, há<br />
um determinado momento na evolução<br />
de uma pessoa em que o deleite<br />
da coisa pela coisa se diferencia<br />
saudavelmente do deleite por<br />
causa daquilo que ela significa. Então,<br />
por exemplo, o deleite físico de<br />
mexer com esta pedra, que adorna<br />
minha mesa, e o deleite espiritual<br />
de contemplar as ranhuras que há<br />
nela diferenciam-se um do outro,<br />
mais ou menos como de dentro da<br />
haste de uma flor se diferenciam as<br />
pétalas.<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
21
O pensamento filosófico de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
E, em consequência, começa a<br />
aparecer um apego a isto, que já não<br />
é concomitante com o deleite espiritual,<br />
mas é autônomo. E que nasce<br />
de uma profundeza da alma, como o<br />
deleite espiritual nasce também.<br />
Vamos dizer, banho de mar. Ele<br />
pode dar toda espécie de deleites físicos<br />
e espirituais ao mesmo tempo.<br />
Mas há um momento em que o deleite<br />
puramente físico do banho de<br />
mar, da respiração cutânea, enfim,<br />
do movimento, da aventura nas ondas,<br />
do pulchrum do mar se apresentam<br />
já eles mesmos diferenciados<br />
daquilo que seria o transesférico<br />
2 , que a atenção ora vai para uma<br />
coisa, ora vai para outra. Quando<br />
isto se dá, o amor pelo transesférico<br />
começa a ser provado, porque a<br />
alma não pode prestar atenção em<br />
duas coisas ao mesmo tempo. Ela<br />
não pode pensar como seria o mar<br />
transesférico e fruir com toda a alma<br />
daquele mar concreto. E a provação<br />
começa.<br />
Dá-se uma espécie de alternativa<br />
onde ainda não entra diretamente,<br />
muito de imediato, a tentação para<br />
o mal, mas ela está a um milímetro<br />
daí. A pessoa pode ser mais arrastada<br />
pela fruição do mar, enquanto<br />
mar sensível, do que pelo mar<br />
transesférico, pelo simples fato de<br />
que essa fruição do mar sensível tem<br />
qualquer coisa de absoluto, de imperativo,<br />
de arrebatador, que é uma<br />
coisa tremenda. E com isso ela é colocada<br />
diante de uma opção: “Qual<br />
das duas é melhor?”<br />
Para a maior parte das pessoas,<br />
essa escolha se passa nos lindes da<br />
semiconsciência: a pessoa vê bem<br />
pela inteligência que um é mais nobre,<br />
que corresponde mais à sua estatura<br />
inteira, que o outro apresenta<br />
uma fruição da parte. De um modo<br />
mais ou menos implícito, é positivo<br />
que vê.<br />
A alma pode começar a optar por<br />
um dos dois polos e, portanto, entrar<br />
pelo caminho de Esaú ou de Jacó.<br />
Quando a alma está nesse estado,<br />
a parte fruitiva baixa começa a se<br />
deformar, e constituem-se ansiedades,<br />
apegos, tormentos, reações próprias<br />
do pavor de perder aquele prazer.<br />
E o metafísico começa a empalidecer<br />
porque não concorre em nada,<br />
ou em muito pouco; aquela fruição<br />
lota o horizonte. Aí entra uma espécie<br />
de opção que vai pela vida afora.<br />
Se uma pessoa, diante dessa fruição,<br />
disser: “Eu não te quero assim,<br />
vou te conter, limitar-te, reduzir-te à<br />
devida proporção e, se for o caso, eu<br />
te elimino, porque não quero ser infiel.”<br />
Então há um sacrifício que vale<br />
muito mais do que o amor inocente<br />
não sacrificado dos primeiros anos.<br />
Entra a Santa Cruz de Nosso Senhor<br />
Jesus Cristo. Porém, se a pessoa tiver<br />
uma fruição desvinculada disso,<br />
ela erra completamente.<br />
Do amor a uma<br />
ordem superior nasce o<br />
perfeito relacionamento<br />
entre os homens<br />
Esses problemas da vida relacionam-se<br />
cronologicamente segundo<br />
uma maturação prevista pela Providência:<br />
na criança, com o amor primeiro<br />
não provado, ela não tem dificuldades<br />
de relacionamento com os<br />
seus, e aquilo é manso, “mar azul.”<br />
A mãe, o pai, os irmãos, a parentela<br />
toda, aquilo tudo é uma maravilha.<br />
Depois começam a aparecer as diferenças<br />
e as decepções, como também<br />
os atos de justiça em relação a<br />
esses e àqueles, e o mundo familiar<br />
vai se rasgando.<br />
Há rasgões externos como internos,<br />
apresentam-se os deveres que<br />
a pessoa segue ou não, juntamente<br />
com várias provações simultâneas, e<br />
a puberdade, cedo ou tarde, irrompe<br />
dentro disto e a pessoa vai entrando<br />
na batalha.<br />
Se imaginarmos almas numa posição<br />
inteiramente reta a respeito<br />
deste assunto, as relações entre<br />
elas serão fundamentalmente diferentes.<br />
Porque essas almas amam<br />
principalmente a ordem transesférica,<br />
mística, sobrenatural para a qual<br />
elas vivem, e por causa disso o relacionamento<br />
com outras almas análogas<br />
em função desta ordem é reputado<br />
por elas um bem mais pre-<br />
Rodrigo Aguiar<br />
Guarapari, Espírito Santo, Brasil<br />
22
Francisco Lecaros<br />
Separação de Abrão e Ló - Museu de León, Espanha<br />
cioso do que o trato baseado em outros<br />
valores.<br />
Tomemos como exemplo dois<br />
bons irmãos que se estimam, se prezam<br />
e têm relações de alma completamente<br />
corretas neste ponto. Aparece<br />
entre eles uma questão de divisão<br />
de uma herança paterna. Ela<br />
se faz amistosamente, sem nenhuma<br />
dificuldade, porque, por esta sua<br />
retidão neste patamar superior, eles<br />
são parecidos e, portanto, têm facilidade<br />
de se entender e fazer a justa<br />
divisão. Mas também porque se um<br />
notar uma pequena fraqueza ou um<br />
pequeno apego que possa prejudicar<br />
o superior relacionamento entre ambos,<br />
o irmão bom facilmente desiste<br />
da vantagem material para conservar<br />
um convívio mais elevado.<br />
O episódio bíblico ocorrido com<br />
Abrão e Ló é característico. Abrão<br />
diz: “Aqui estão as terras, pega a parte<br />
que tu queres, eu fico com a outra.”<br />
3 Esta é a atitude de uma pessoa<br />
que preza o relacionamento bom,<br />
muito mais do que a terra.<br />
Mas se a pessoa cedeu ao desejo<br />
do bem material, inferior, da fruição<br />
não metafísica, não religiosa, facilmente<br />
entra em briga. Porque quando<br />
não apreciam aquele bom relacionamento<br />
e o viverem juntos para<br />
uma esfera mais alta, dividem-<br />
-se miseravelmente a respeito de ninharias.<br />
Seriam capazes até de fazer<br />
o seguinte: “Tal ponto não fica nem<br />
teu nem meu. Construamos ali um<br />
altar, um templo, mas teu não fica!”<br />
Os vínculos na Cristandade<br />
medieval eram baseados no<br />
amor ao transcendente<br />
Assim, todas as relações humanas<br />
de ordem política, social, familiar,<br />
econômica são completamente<br />
diferentes num mundo onde haja esta<br />
boa ordenação. Do ponto de vista<br />
humano, formas de governo, estruturas,<br />
leis, simplesmente não pegam,<br />
na medida em que esse relacionamento<br />
superior não exista.<br />
A lealdade, por exemplo, provém<br />
propriamente do fato de alguém ter<br />
verazmente em relação a outrem essa<br />
disposição de alma. Tê-la e saber<br />
torná-la notória, isto é a lealdade que<br />
permite funcionarem direito vínculos<br />
como os da sociedade feudal.<br />
O ponto de partida está em que as<br />
almas não sejam apegadas às coisas<br />
de modo fruitivo e amem o transcendente.<br />
Esse amor ao transcendente, a<br />
Cristandade medieval conheceu a<br />
fundo, embora não soubesse explicar.<br />
Todos os vínculos da ordem social<br />
eram vínculos de amor baseados<br />
nesse vínculo das almas pelo lado superior.<br />
v<br />
(Continua no próximo número)<br />
(Extraído de conferência de<br />
11/3/1982)<br />
1) Jesuíta e exegeta flamengo (* 1567 -<br />
† 1637).<br />
2) Relativo a “transesfera”: termo criado<br />
por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> para significar que, acima<br />
das realidades visíveis, existem as<br />
invisíveis. As primeiras constituem a<br />
esfera, ou seja, o universo material; e<br />
as invisíveis, a transesfera.<br />
3) Cf. Gn 13, 8-9.<br />
23
Gustavo Kralj<br />
C<br />
alendário<br />
Santa Maria Egipcíaca<br />
1. Santa Maria Egipcíaca, penitente<br />
(†séc. V). Famosa pecadora de<br />
Alexandria que, pela intercessão da<br />
Santíssima Virgem, se converteu a<br />
Deus na Cidade Santa e se consagrou<br />
a uma vida penitente e austera além<br />
do Jordão.<br />
2. São Francisco de Paula, confessor<br />
(†1507). Fundador da Ordem<br />
dos Mínimos, na Calábria, Itália. São<br />
Francisco de Paula foi célebre pelos<br />
milagres que praticou, pelas profecias<br />
que fez acerca do futuro da Igreja, e<br />
pelos exemplos de grande austeridade<br />
de vida, nascida de uma profunda humildade.<br />
3. II Domingo da Páscoa. Domingo<br />
da Divina Misericórdia.<br />
São João, bispo (†432). Bispo de<br />
Nápoles, Itália. São João morreu na<br />
dos Santos – ––––––<br />
Ludmiła Pilecka (CC3.0)<br />
Noite Santa da Páscoa, enquanto celebrava<br />
os sagrados mistérios, e foi sepultado<br />
na Solenidade da Ressurreição<br />
do Senhor.<br />
4. Anunciação do Senhor. (Transferida<br />
do dia 25 de março para a primeira<br />
segunda-feira após a oitava da Páscoa)<br />
Santo Isidoro, Bispo e Doutor da<br />
Igreja (†636).<br />
5. São Vicente Ferrer, presbítero<br />
(†1419). Ver página 2.<br />
6. Beato Notkero, o Gago, monge<br />
(†912). Passou quase toda a sua vida<br />
no Mosteiro de São Galo, na Suábia,<br />
atual Suíça, onde compôs numerosos<br />
poemas litúrgicos; era débil de<br />
corpo mas não da mente, gago da língua<br />
mas não da inteligência, assíduo<br />
na oração, na leitura e na meditação.<br />
7. São João Batista de la Salle,<br />
presbítero (†1719).<br />
8. São Dionísio de Corinto, bispo<br />
(†180). Dotado de admirável conhecimento<br />
da Palavra de Deus, instruiu<br />
pela pregação não só os fiéis de sua<br />
Relicário contendo os restos mortais<br />
de Santo Adalberto de Praga<br />
diocese em Corinto, na Grécia, mas,<br />
por meio de cartas, ensinou também<br />
os Bispos de outras dioceses.<br />
9. São Máximo, bispo (†282). Como<br />
presbítero em Alexandria, Egito,<br />
acompanhou no exílio e na confissão<br />
da Fé São Dionísio, a quem sucedeu<br />
na sede episcopal.<br />
10. III Domingo da Páscoa.<br />
Santos Terêncio e companheiros,<br />
mártires (†c. 250). Na perseguição<br />
do imperador Décio, sofreram cruéis<br />
tormentos e foram decapitados por<br />
praticarem a Fé cristã.<br />
11. Santo Estanislau, bispo e mártir<br />
(†1079).<br />
Santa Gema Galgani, virgem<br />
(†1905). Mística ardorosa pela Cruz<br />
de Nosso Senhor, que teve como privilégio<br />
receber os estigmas da Paixão<br />
e morrer no Sábado Santo, aos 25<br />
anos de idade, em Lucca, Itália.<br />
12. Santa Teresa de Los Andes, virgem<br />
(†1920). Carmelita chilena que<br />
ofereceu a vida a Deus pela conversão<br />
do mundo. Morreu aos 20 anos.<br />
13. São Martinho I, Papa e mártir<br />
(†656). Ver página 26.<br />
14. São Bernardo, abade (†1117).<br />
Superior do mosteiro de Tiron, perto<br />
de Chartres, França, instruiu e conduziu<br />
à perfeição evangélica os numerosos<br />
discípulos que a ele acorriam.<br />
15. São Damião de Veuster, presbítero<br />
(†1889). Religioso da Congregação<br />
dos Missionários dos Sagrados<br />
Corações de Jesus e Maria, que se<br />
consagrou à assistência aos leprosos<br />
na ilha de Molokai.<br />
16. Santa Bernadette Soubirous,<br />
virgem (†1879).<br />
24
––––––––––––––––––– * Abril * ––––<br />
Divulgação (CC3.0)<br />
São Damião de Veuster<br />
17. IV Domingo da Páscoa.<br />
Santa Catarina Tekakwitha, virgem<br />
(†1680). Nascida na região de<br />
Quebec, Canadá, sofreu vexações<br />
e ameaças por ter aceitado o Batismo<br />
e oferecido a Deus sua virgindade.<br />
18. Santa Antusa, virgem (†séc.<br />
VIII). Sendo filha do Imperador<br />
Constantino Coprônimo, soube<br />
empregar todos os seus bens para<br />
ajudar os pobres, redimir os escravos,<br />
restaurar as igrejas e construir mosteiros,<br />
recebendo do Bispo São Tarásio<br />
o hábito religioso.<br />
Santo Apolônio, mártir (†185). Cidadão<br />
romano eminente, foi denunciado<br />
como cristão e fez ante o prefeito<br />
Perennio e o Senado de Roma uma<br />
insigne apologia do Cristianismo. Depois<br />
confirmou com seu sangue o testemunho<br />
da Fé.<br />
22. Santa Oportuna, abadessa<br />
(†c.770). No território francês, Santa<br />
Oportuna foi célebre pela sua abstinência<br />
e austeridade.<br />
23. Santo Adalberto de Praga, bispo<br />
e mártir (†997).<br />
Divulgação (CC3.0)<br />
São Leão IX<br />
Suíça, foi massacrado pelos hereges<br />
em Seewis.<br />
25. São Marcos, Evangelista.<br />
26. Nossa Senhora do Bom Conselho.<br />
Ver páginas 17 e 30.<br />
São Cleto, Papa (†88). Segundo sucessor<br />
de São Pedro a presidir a Igreja<br />
Romana.<br />
27. Santa Zita, virgem (†1278).<br />
Distribuía aos pobres o pouco que lhe<br />
sobrava do salário recebido como empregada<br />
doméstica. Sua santidade foi<br />
reconhecida ainda em vida, e confirmada<br />
por grande número de milagres.<br />
É padroeira das empregadas domésticas<br />
e patrona de Lucca, Itália.<br />
28. São Pedro Chanel, presbítero e<br />
mártir (†1841).<br />
São Luís Maria Grignion de<br />
Montfort, presbítero (†1716).<br />
29. Santa Catarina de Sena,<br />
virgem e Doutora da Igreja<br />
(†1380).<br />
30. São Pio V, Papa (†1572).<br />
El Greco (CC3.0)<br />
19. São Leão IX, Papa (†1054).<br />
20. Santa Inês de Montepulciano,<br />
virgem (†1317). Com apenas nove<br />
anos, tomou as vestes das virgens consagradas.<br />
Fundou em Montepulciano<br />
um mosteiro dominicano. Sua vida<br />
é repleta de episódios maravilhosos,<br />
sendo abundantes os milagres e as<br />
graças místicas. Faleceu aos 48 anos.<br />
21. Santo Anselmo, bispo e Doutor<br />
da Igreja (†1109).<br />
São Jorge, mártir (†séc. IV).<br />
Santo Eulógio, bispo (†387). Bispo<br />
de Edessa, na Turquia, que, segundo<br />
a tradição, morreu na Sexta-Feira<br />
Santa.<br />
24. V Domingo da Páscoa.<br />
São Fidélis de Sigmaringa, presbítero<br />
e mártir (†1622). Sendo advogado,<br />
ingressou na Ordem dos Frades<br />
Menores Capuchinhos, onde se destacou<br />
como pregador. Enviado para<br />
consolidar a verdadeira doutrina na<br />
São Pio V<br />
25
Hagiografia<br />
Erics (CC3.0)<br />
Exemplo de constância<br />
e de fortaleza<br />
Varão de espírito nobre, muito inteligente e culto,<br />
São Martinho I foi sujeito a uma das maiores<br />
humilhações a que um Papa tenha sido exposto,<br />
desde o começo da história do Pontificado.<br />
Divulgação (CC3.0)<br />
V<br />
amos analisar uma nota<br />
biográfica referente a São<br />
Martinho, Papa e mártir 1 .<br />
Condenado à morte por<br />
defender a verdade<br />
São Martinho I sucedeu a Teodoro,<br />
no ano 649.<br />
São Martinho I. Ao fundo, ruínas do<br />
Cardo romano em Gerasa, Jordânia<br />
A alma do novo Papa deveria ser<br />
grande para suplantar as grandes dificuldades<br />
do momento. Para salvar especialmente<br />
as Igrejas do Oriente, devia<br />
anatematizar a heresia monotelista<br />
2 . E foi o que fez o novo Papa.<br />
Imediatamente, por ordem do Imperador<br />
Constante II, foi preso numa<br />
emboscada e transportado num<br />
navio para o Oriente. Sofreu horrivelmente<br />
durante a viagem. Ao chegar<br />
a Constantinopla estava em extremo<br />
grau de debilidade; mesmo assim,<br />
manietado, arrastaram-no ao<br />
tribunal, chamaram testemunhas<br />
falsas que depuseram contra o Pontífice<br />
acusando-o de traidor e herético.<br />
Depois de condená-lo, carregaram-no<br />
para junto das cavalariças<br />
imperiais, onde se reunia incontável<br />
multidão.<br />
São Martinho foi alçado a um terraço<br />
para que Constante pudesse vê-lo<br />
da sacada de seu palácio; depois o juiz<br />
que havia presidido o tribunal aproximou-se<br />
do ancião mofando:<br />
— Viste como Deus te livrou de<br />
nossas mãos, eras contra o imperador.<br />
Deus te abandonou.<br />
Em seguida ordenou aos soldados<br />
que rasgassem as vestes do Papa e lhe<br />
26
Bigdaddy1204 (CC3.0)<br />
Muros de Constantinopla<br />
arrancassem os calçados. Entregando-o<br />
ao prefeito, recomendou-lhe que<br />
o fizesse em pedaços.<br />
Como a multidão se mantivesse calada,<br />
o juiz incitou-a a anatematizar o<br />
condenado, mas ouviu-se somente a<br />
voz de umas vinte pessoas. As demais,<br />
olhos baixos, dispersavam-se silenciosamente.<br />
Os carrascos então despojaram<br />
São Martinho de seus farrapos e do<br />
pálio sacerdotal. Revestiram-no com<br />
uma túnica aberta de ambos os lados,<br />
grotesca e humilhante. Rodearam-lhe<br />
o pescoço com uma argola<br />
de ferro, puxaram-no por uma corrente<br />
pela cidade até a prisão, que<br />
era a mesma dos criminosos comuns.<br />
Sob o frio intenso, tiritava.<br />
Permaneceu preso esperando a morte,<br />
mas sua pena foi comutada por<br />
prisão perpétua.<br />
No exílio da Criméia, seu martírio<br />
aumentou dia a dia até que o Criador<br />
o chamou para Si, no ano de 655.<br />
Esse pontífice deixou cartas notavelmente<br />
bem escritas, cheias de vigor<br />
e sabedoria, bem como as respostas<br />
dadas no tribunal de Bizâncio. Seu<br />
estilo é nobre e sublime, digno da majestade<br />
da Sé Apostólica.<br />
Constância e fortaleza em<br />
meio a injustos tormentos<br />
Encontramos nessa narração vários<br />
aspectos desse martírio que são<br />
instrutivos para nós.<br />
Em primeiro lugar, a suma respeitabilidade<br />
desse Pontífice e a forma<br />
especial de tormento a que ele foi<br />
sujeito. Por ser um santo, tinha na<br />
mais alta conta a dignidade do trono<br />
pontifício por ele ocupado, compreendendo<br />
perfeitamente tratar-se do<br />
maior cargo da Terra.<br />
Não há dignidade de rei, nem<br />
de imperador, nem de nenhum outro<br />
que se possa comparar sequer<br />
de longe à dignidade do Vigário de<br />
Cristo na Terra, daquele que é sucessor<br />
de São Pedro, a quem Jesus Cristo<br />
deu as chaves do Reino do Céu,<br />
de maneira que aquilo que ele abrir<br />
estará aberto e aquilo que fechar<br />
permanecerá fechado.<br />
Além disso, São Martinho era<br />
um homem de um espírito nobre,<br />
muito inteligente e culto, em cujas<br />
cartas se expressava com nobreza e<br />
elevação. Portanto, uma pessoa que<br />
gostava de tudo quanto é alto, sublime,<br />
digno.<br />
Pois bem, ele foi sujeito a uma das<br />
maiores humilhações a que um Papa<br />
tenha sido exposto, desde o começo<br />
da história do Pontificado.<br />
São Pedro, crucificado de cabeça<br />
para baixo, foi tão humilhado ou<br />
mais do que ele. Mas poucos foram<br />
os Papas que sofreram um martírio<br />
tão terrível como São Martinho.<br />
Trata-se de um Pontífice romano,<br />
que se sabe Vigário de Cristo, e que é<br />
jogado no porão de um navio daquele<br />
tempo, desce na cidade de Constantinopla,<br />
é arrastado ao tribunal por hereges<br />
monotelistas, para ser condenado;<br />
depois é levado diante de uma<br />
imensa multidão, vestido de um modo<br />
ridículo, colocam-lhe no pescoço uma<br />
argola de ferro atada a uma corda, e<br />
o conduzem como se fosse um animal;<br />
encontrando-se já na iminência de ser<br />
morto, ele é arrastado, a pé e descalço,<br />
pela cidade até a outra ponta, para ser<br />
preso entre os prisioneiros comuns.<br />
Imaginem a humilhação de um homem<br />
que se preza, sofrendo tudo isso!<br />
Mais ainda: fazia um frio intenso,<br />
ele já estava idoso e tiritava. Naturalmente<br />
tomavam o tremor dele como<br />
sendo por medo, e muitos terão<br />
caçoado dele.<br />
27
Hagiografia<br />
Guérin Nicolas (CC3.0)<br />
Vê-se a crueldade desse Imperador<br />
Constâncio e dos hereges monotelistas,<br />
que o arrastaram. Depois<br />
ele foi mandado para a Criméia e ali,<br />
submetido a trabalhos forçados, morreu<br />
por causa das intempéries, da idade,<br />
mas em consequência dos maus<br />
tratos. Por isso a Igreja o considera<br />
mártir. Até o fim ele não cedeu e,<br />
diante do interrogatório do imperador<br />
e do juiz, ele suportou com altivez<br />
e soube dizer ao juiz as verdades que<br />
deveriam ser ditas. É um nobre exemplo<br />
de constância e de fortaleza.<br />
Invasão de Constantinopla pelos turcos<br />
Museu dos Agostinianos, Toulouse, França<br />
Crueldade e indolência,<br />
sintomas de um<br />
império que caía<br />
Por outro lado, vemos o Império<br />
Romano que caminhava para seu<br />
fim. Haveria ainda alguns séculos<br />
para o termo final do Império Romano<br />
do Oriente, mas esse fim vinha<br />
sendo preparado de longe por sinais<br />
manifestos de decadência. Esse crime<br />
praticado pelo imperador na presença<br />
de todo o povo é um sintoma<br />
disso. O imperador manda expor o<br />
Papa num terraço onde ele o pudesse<br />
ver e, naturalmente, zombando do<br />
Pontífice sacrilegamente.<br />
Todo o povo também presenciou a<br />
cena e o juiz estava querendo induzi-lo<br />
a vaiar o Papa. Mas a atitude do povo<br />
foi esta: ficou quieto e depois foi se<br />
dispersando. De dentro da multidão,<br />
apenas umas vinte pessoas — provavelmente<br />
pagas — vaiaram o Pontífice.<br />
A vaia não teve a menor repercus-<br />
Divulgação (CC3.0)<br />
Palácios imperiais da Roma Antiga<br />
28
são, ninguém acompanhou, e as pessoas<br />
se dispersaram lentamente.<br />
Há uma frase famosa que diz: “O<br />
silêncio dos povos é a lição dos reis.”<br />
Quer dizer, os povos não vaiam, não<br />
agridem, mas quando eles não aplaudem,<br />
os reis ficam compreendendo<br />
haver uma censura. Essa é uma frase<br />
do Ancien Régime 3 , e isso era verdade<br />
antes da Revolução Francesa.<br />
Quer dizer, resta sempre aos povos<br />
um recurso que ninguém tem o poder<br />
de lhes tirar: é o de não aplaudir. Como<br />
obrigar o povo a aplaudir? Uma<br />
multidão imensa, se não quiser aplaudir<br />
não aplaude, e não se pode matar<br />
a multidão por causa disso.<br />
Entretanto, nota-se de um lado o<br />
prurido de independência dos imperadores<br />
do Oriente contra o Papa, o que<br />
acabaria desfechando no cisma e, posteriormente,<br />
na queda do Império Romano<br />
do Oriente. De outro lado, constata-se<br />
também a maldade do povo. À<br />
primeira vista, tem-se uma boa impressão<br />
do povo porque se recusou a aplaudir;<br />
era, portanto, menos corrupto do<br />
que o imperador. Contudo, não deixava<br />
de ser um povo corrompido também,<br />
porque se ele sabia que aquele<br />
ancião, sendo o Vigário de Cristo, não<br />
deveria ser tratado assim e merecia todo<br />
o respeito, o que fez esse povo que<br />
não se revoltou contra os algozes, não<br />
protestou e não vaiou aquele juiz?<br />
Evidentemente, dispersando-se, a<br />
multidão se condenou porque provou<br />
saber que aquilo era mau, e mostrou<br />
que se tinha intrepidez de não aplaudir,<br />
entretanto, não possuía coragem<br />
de libertar. Ora, o Papa tinha o direito<br />
de ser liberto. Isso mostra o profundo<br />
apodrecimento do povo; era<br />
um império que caía de podre.<br />
Rechaçados pela<br />
Justiça de Deus<br />
Resultado: durante séculos essa<br />
rivalidade entre Constantinopla<br />
e Roma, as duas maiores cidades de<br />
cultura latina daquele tempo, foi aumentando.<br />
Quando no século XV os<br />
turcos assediavam Constantinopla,<br />
estava ali um personagem que pôde<br />
até assistir à queda da cidade e conseguiu<br />
fugir a tempo.<br />
Nas cartas que esse personagem<br />
escreveu, ele pôs a seguinte nota: “O<br />
povo de Constantinopla, que era herege,<br />
tinha rompido com a Santa Sé,<br />
estava apavorado com aquela entrada<br />
feroz dos turcos, que fizeram uma<br />
carnificina, reduziram inúmeros indivíduos<br />
a escravos, entraram em conventos,<br />
destroçaram tudo.”<br />
E fez este comentário: “Se se desse<br />
aos constantinopolitanos a opção<br />
entre salvar a cidade, voltando<br />
a aderir à Igreja Católica, ou continuar<br />
na heresia e serem destroçados<br />
pelos turcos, eles prefeririam a heresia<br />
e a morte a se unirem novamente<br />
à Igreja Católica.”<br />
Quer dizer, um ódio tão cego à<br />
verdade que eles só queriam saber de<br />
aderir à heresia, e preferiam a morte<br />
com a heresia à vida, à dignidade e<br />
à honra. Vemos, por aí, como os adversários<br />
da Igreja podem ser fanáticos,<br />
a ponto de gostarem mais daquilo<br />
que representa o seu próprio destroçamento<br />
do que a união com o que<br />
significa a verdade integral.<br />
Lembro-me de uma frase de Donoso<br />
Cortés 4 , grande pensador espanhol,<br />
que dizia o seguinte: Os homens<br />
gostam de verdades, mas nenhum<br />
homem, a não ser pela graça<br />
de Deus, gosta da verdade inteira, da<br />
verdade global.<br />
A Doutrina Católica oferece a verdade<br />
global. Esta, os inimigos da Igreja<br />
odeiam mais do que tudo, preferindo<br />
qualquer erro à verdade total. Assim<br />
eram os monotelistas, como também<br />
os cismáticos de Constantinopla<br />
séculos depois, e os modernistas<br />
do tempo de São Pio X. Tudo menos<br />
a verdade global. Resultado: serão rechaçados<br />
pela Justiça de Deus. v<br />
(Extraído de conferência de<br />
24/9/1973)<br />
1) Não dispomos das referências bibliográficas<br />
nas quais se baseia <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>.<br />
2) Monotelismo: heresia que nega a<br />
existência de duas naturezas — a humana<br />
e a divina — em Nosso Senhor<br />
Jesus Cristo.<br />
3) Do francês: Antigo Regime. Sistema<br />
social e político aristocrático em vigor<br />
na França entre os séculos XVI e<br />
XVIII.<br />
4) Juan Francisco María de la Salud Donoso<br />
Cortés y Fernández Canedo. Filósofo,<br />
político e diplomata espanhol<br />
(* 1809 - † 1853).<br />
29
Luzes da Civilização Cristã<br />
Intercâmbio de mentalidade<br />
Fotos: Gustavo Kralj<br />
entre Mãe e Filho<br />
A cidade de Genazzano está<br />
construída numa montanha, no<br />
alto da qual se ergue a Basílica<br />
de Nossa Senhora do Bom<br />
Conselho, onde se encontra o<br />
belíssimo afresco, trazido no<br />
século XV pelos Anjos desde<br />
Scútari, na Albânia.<br />
T<br />
emos aqui uma vista da cidadezinha de Genazzano.<br />
Bem no centro e no alto encontra-se o campanário<br />
e o corpo da igreja e, depois, vemos a cidade<br />
que se pendura nas encostas dessa pequena montanha.<br />
Eis uma das razões do pitoresco dessa cidade.<br />
O extremo pitoresco do urbanismo<br />
“genazzaniano”<br />
Genazzano foi, outrora, uma cidade fortificada e era<br />
uma espécie de feudo dos Príncipes Colonna. No período<br />
das guerras feudais, ela teve que enfrentar várias dificuldades,<br />
diversos cercos, e por causa disso a população<br />
procurava concentrar-se dentro da cidade, encostando-<br />
-se as casas, umas nas outras, tanto quanto possível. O melhor<br />
meio para uma fortificação defender-se com facilidade<br />
era localizar-se no alto de uma montanha; ora, os altos<br />
das montanhas são naturalmente estreitos, pequenos. Daí<br />
a necessidade de fazer as ruas o mais possível estreitas e<br />
com um traçado sinuoso, pelo qual se adaptem ao modo<br />
com que cada casa consegue pendurar-se no morro. Aí es-<br />
tá o extremo pitoresco do urbanismo “genazzaniano” —<br />
se assim podemos chamar —, que vamos examinar.<br />
Veem-se restos de muralhas, pois com o desaparecimento<br />
das guerras feudais e do perigo de invasões normandas,<br />
árabes, etc., as muralhas foram caindo, mas a cidade<br />
continuou assim, agarradazinha às encostas e deitando<br />
uns prolongamentos para o sopé da montanha.<br />
Foi no alto desse local que uma ardorosa devota da<br />
Mãe do Bom Conselho, Petruccia Nora, quis construir<br />
uma igreja de acordo com revelações e visões recebidas,<br />
e que deveria ser num lugar onde havia uma capela, em<br />
estado de deterioração, em louvor de São Brás, bispo e<br />
protetor contra os males da garganta.<br />
Aí pousou, em certo momento, em meio a coros angélicos<br />
cantando e nuvens luminosas, a imagem de Nossa<br />
Senhora do Bom Conselho que tinha atravessado o Mar<br />
Adriático, acolitada pelos dois albaneses que a seguiram<br />
desde Scútari, na Albânia, caminhando milagrosamente<br />
sobre as águas.<br />
É-nos grato tomar em consideração que no lugar onde<br />
está, na igreja, o altar de Nossa Senhora do Bom Conselho<br />
30
de Genazzano, a imagem baixou, e imaginarmos a<br />
cena: esse burgozinho efervescendo de alegria com<br />
as graças todas que se derramavam do Céu, de um<br />
modo sensível através das músicas, das nuvens, etc.,<br />
e o triunfo de Petruccia, posteriormente sepultada<br />
na igreja, na qual há uma lápide comemorando-a.<br />
Elegância que tem poesia<br />
À primeira vista, quem olhasse essas construções<br />
poderia fazer uma objeção: “Isso é um espaço<br />
31
Luzes da Civilização Cristã<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> em peregrinação a Genazzano em setembro de 1988<br />
mal aproveitado, a cidade não deveria ter sido construída<br />
aí, as casas ficam se encostando, por assim dizer “acotovelando-se”<br />
umas nas outras; a população fica mal servida<br />
de espaços; as ruas têm que ser sinuosas e, portanto,<br />
feias; não há um plano de conjunto. Pelo contrário,<br />
se se fizer uma cidade dividida como um tabuleiro de xadrez,<br />
em quadradinhos, com espaço horizontal bem amplo,<br />
grandes avenidas e um trânsito abundante passando<br />
por aí, fica muito mais bonito!”<br />
Ora, isso daria nessa banalidade que todos conhecemos.<br />
Pensemos, por exemplo, em uma grande avenida de<br />
São Paulo e façamos a comparação: Genazzano é pitoresca,<br />
dá vontade de ir visitar. Pelo contrário, diante da<br />
grande avenida sentimos vontade de bocejar.<br />
Vemos nesta outra fotografia, tirada de dentro de um<br />
restaurante, um panorama muito bonito, montanhoso,<br />
variado e, felizmente, pouco cultivado pelo homem.<br />
É curioso, mas às vezes a cultura do homem embeleza<br />
e às vezes torna sem graça uma determinada paisagem.<br />
Aqui se tem a impressão de que as coisas continuam como<br />
eram quando saíram das mãos de Deus.<br />
Em outra foto aparece uma parte da muralha, uma<br />
fontezinha com chafariz, que está ao lado de uma espécie<br />
de reservatório. Nota-se na muralha certa<br />
preocupação de elegância. Vejam as ameias,<br />
cuja finalidade é permitir que o defensor da<br />
cidade se proteja dos projéteis lançados pelo<br />
adversário, escondendo-se atrás disso que<br />
poderíamos chamar vagamente uns “Vs”;<br />
e na hora de ele mesmo atirar, aparece depressa<br />
e joga qualquer coisa, depois volta para trás.<br />
Entretanto, esses “Vs” são mais altos do que costumam<br />
habitualmente ser em fortificações dessa natureza, para tomar<br />
assim uma forma de elegância que tem certa poesia.<br />
Observem as paredes. São fortificações belíssimas. A<br />
vegetação se introduziu em todas as frinchas que separam<br />
uma pedra da outra. Onde um pouco de terra pousou,<br />
uma semente se deitou, uma planta nasceu e assim<br />
aquela que poderíamos chamar quase de torre é felpuda<br />
de vegetação.<br />
Do lado de cá, há uma porta que outrora fora aberta,<br />
mas provavelmente por razões de defesa resolveram fechar.<br />
Junto a ela está tudo ajardinado e arranjadinho, a<br />
fonte está bem conservadinha sobre uma bonita coluna<br />
que sustenta a bacia, e tem-se aí um golpe de vista muito<br />
interessante.<br />
Ruas estreitas em zigue-zague,<br />
terraços floridos<br />
É especialmente interessante o fato de terem conservado<br />
a muralha e, com o desaparecimento das guerras, ter-<br />
32
-se formado um pouco de cidade de um lado e do outro dela;<br />
e, para maior comodidade, foram retirados os batentes<br />
da porta, que não é mais necessário fechar, pois os inimigos<br />
desapareceram. Contudo, a muralha permanece. Vejam como<br />
é interessante esta piazzetta localizada logo depois da<br />
muralha, em cujo andar térreo vê-se uma janela com cortininhas<br />
e um toldo. Trata-se, provavelmente, de um restaurante<br />
muito barato, de comida nada raffinée, mas saborosa,<br />
onde o povo engorda tanto quanto pode, comendo e bebendo,<br />
conversando, exclamando e, pela vocação um pouco<br />
oratória do povo italiano, declamando também.<br />
Neste outro aspecto da cidade, vemos um claro exemplo<br />
do que falávamos há pouco sobre as ruas apertadas,<br />
estreitas. Aqui foi concedido ao fator “rua” o menor espaço<br />
possível, para poder caber dentro das muralhas o<br />
maior número possível de habitantes.<br />
Vejam como a rua se torna, assim, sinuosa, desenvolvendo-se<br />
numa espécie de zigue-zague. E, para aproveitar<br />
mais o espaço, por cima da própria rua constroem<br />
pontes onde deve haver quartos com gente habitando.<br />
Como habitação, não é muito diferente de uma favela<br />
de pedra. Entretanto, não se tem a impressão de miséria<br />
e para lá vão turistas para ver o pitoresco dessas mansões<br />
humildes. Notem como as ruas são limpas, os lugares<br />
arejados e como as pessoas moram um pouco ou<br />
muito apertadas ali dentro, mas alegres e com o espírito<br />
gaiato, satisfeito, cantam, evidentemente.<br />
Isso aqui está fotografado à luz do dia, porém é ainda<br />
mais bonito sob o luar. Exatamente, nós visitamos isso<br />
ao luar, e fica um verdadeiro encanto! Não é só quando<br />
a Lua nasce “por detrás da verde mata”, que ela é muito<br />
bonita. Ela é bela em todas as circunstâncias: “pulchra<br />
ut luna, electa ut sol” 1 , diz a Escritura num trecho aplicado<br />
pela Igreja a Nossa Senhora. Sob o luar essa paisagem<br />
urbana adquire certo ar de mistério, e um transeunte que<br />
anda sozinho por essas ruas, à noite, com uma capa, o<br />
rosto meio embuçado e com um passo apressado, não se<br />
sabe se é um mensageiro que está trazendo uma mensagem<br />
secreta, um aventureiro a fugir de uma polícia, ou<br />
simplesmente um habitante do lugar, um pouco teatral...<br />
É a poesia de Genazzano.<br />
Na Itália, como em outros países da Europa, existe a<br />
preocupação frequente de florir os terraços. Vemos nessa<br />
residência como tudo está enfeitadinho, indicando o<br />
prazer e a alegria de viver, o gosto de ter uma vida razoável<br />
e alegremente ornada, dentro de certa pobreza. É<br />
o contrário da revolução social marxista, com os punhos<br />
fechados, ameaçando revolta e morte.<br />
Aqui vemos uma porta e, no alto, um brasão com uma<br />
coroa.<br />
Nos edifícios antigos era comum porem-se coroas, escudos,<br />
ainda que não pertencessem às famílias nobres,<br />
mas, por exemplo, à municipalidade. Elas ostentavam<br />
uma coroa, não feita de ouro e prata, mas de pedra, representando,<br />
em ponto pequeno, a muralha, símbolo da auto-<br />
Fachada da Basílica da Mãe do Bom<br />
Conselho - Genazzano, Itália<br />
33
Luzes da Civilização Cristã<br />
nomia da cidade. Tanto quanto a minha vista me permite<br />
discernir, não há sobre esta porta uma coroa nobiliárquica,<br />
mas municipal. Entretanto, vejam como ela ficou agradável<br />
de ver em cima dessa entrada. É a pequena e modesta<br />
pompa de um vilarejo consciente de sua dignidade.<br />
O teto, a mesa de Comunhão e o<br />
quadro da Mãe do Bom Conselho<br />
Vemos aqui o interior da igreja. O afresco de Nossa<br />
Senhora do Bom Conselho de Genazzano está à esquerda.<br />
Nota-se do lado esquerdo alguns arcos grandes que, à<br />
primeira vista, parecem vedados por um grande cortinado;<br />
mas não é cortina, e sim um gradeado muito bonito,<br />
sólido e bem desenhado, que defende por todos os lados<br />
a imagem de eventuais atentados durante a noite. Assim,<br />
a sagrada imagem fica ao resguardo de qualquer ladrão<br />
que queira vendê-la, de qualquer devoto indiscreto que<br />
deseje fazer com ela uma extravagância, inspirado por alguma<br />
piedade mal entendida, ou de qualquer blasfêmia<br />
de algum profanador.<br />
A igreja tem um tom de seriedade que lembra a Igreja<br />
do Sagrado Coração de Jesus, em São Paulo. Na parte<br />
do fundo, vê-se a capela-mor, o presbitério e dois altares<br />
— o altar onde estão as velas, e aquele onde se encontra<br />
o Crucifixo é o altar antigo.<br />
O teto não cai perpendicularmente, mas à maneira de<br />
uma semiabóboda, cujo desenho é mais ou menos entrevisto<br />
pelo arco que há no alto, na entrada do presbitério,<br />
e que se repete depois. Aqueles losangos e os desenhos<br />
dentro deles não são pintados, e sim feitos em alto-relevo<br />
muito fino, muito bonito e distinto, sem aqueles transbordamentos<br />
demagógicos e um tanto cafajestes que o<br />
Renascimento tem, mesmo quando procura ser aristocrático.<br />
Aqui não: esse adorno é muito discreto e distinto,<br />
como convém às coisas sacrais.<br />
A mesa de Comunhão é de um mármore de muito boa<br />
qualidade, concebida segundo uma inspiração muito justa<br />
e verdadeira, do ponto de vista teológico. Dado que o Santíssimo<br />
Sacramento é Nosso Senhor realmente presente<br />
sob as espécies eucarísticas, o padre dar a Comunhão e o<br />
fiel recebê-la constituem um ato tão alto, de uma elevação<br />
infinita — porque Nosso Senhor Jesus Cristo, Homem-<br />
-Deus, é Aquele que é dado e recebido — que seria próprio<br />
aos Anjos segurarem o pano da mesa de Comunhão.<br />
Por isso, é muito bonita a ideia de representar a mesa<br />
de Comunhão como um pano improvisado, sustentado<br />
poeticamente por anjos, não esticado, mas com umas<br />
ondulações bonitas esculpidas no mármore.<br />
Desagrada, entretanto, o fato de serem representados<br />
uns anjos travessos, sem seriedade, nada daquilo que se<br />
pode imaginar de um Príncipe na presença de Deus por<br />
34
toda a eternidade. Isso desdoura e entra em contraste<br />
com toda a respeitabilidade autêntica, muito maternal e<br />
afável da igreja.<br />
Ao fundo da nave esquerda, na capela guarnecida<br />
de grades fortes e distintas, de que falamos há pouco, e<br />
cujas paredes estão revestidas de mármores particularmente<br />
bonitos, encontra-se o nicho com o quadro de<br />
Nossa Senhora do Bom Conselho.<br />
A imagem é altamente expressiva e deixando transparecer<br />
esse convívio maternal, silencioso, de longas e longas<br />
horas entre Ela e o Menino Jesus, e uma espécie de<br />
consenso mudo entre ambos a respeito de toda espécie<br />
de coisas, de temas, indicando a união intimíssima de almas<br />
da mais alta das meras criaturas, que é Maria Santíssima,<br />
com Aquele que, enquanto Homem é criatura,<br />
e na sua natureza divina é o Criador. Isso tudo vivido na<br />
simplicidade das relações, Mãe e Filho. É o tipo de relação<br />
mais simples, mais espontânea, mais natural e mais<br />
íntima que o espírito humano pode conceber.<br />
Há nessas duas figuras uma espécie de silêncio vivo<br />
pelo qual não dão a impressão, nem um pouco, de meras<br />
pinturas. Não se pode retratar melhor o intercâmbio de<br />
afeto, de mentalidade e quase de vitalidade entre Mãe e<br />
Filho do que essa imagem representa.<br />
agostiniano que viveu em meados do século XIX 2 . É o<br />
grande devoto de Nossa Senhora de Genazzano.<br />
Tanto quanto a minha experiência faz notar, essa devoção<br />
tem como que eclipses. Quer dizer, há momentos<br />
em que ela é muito sensível, e a esperança de ser atendido<br />
pela intercessão de Nossa Senhora do Bom Conselho<br />
é fácil, alegre e luminosa. Em outras ocasiões fica difícil,<br />
essa esperança não é sensível e torna-se necessária uma<br />
grande força de alma para se perseverar na confiança.<br />
Para praticar esta virtude com este grau enérgico de<br />
confiar, quando todas as impressões de caráter sobrenatural<br />
se apagam em nós para nos provar, a intercessão do<br />
Beato Stefano Bellesini que, com certeza, foi exímio nisso,<br />
nos é muito favorável. Eu rezo a ele mais de uma vez<br />
por dia, e recomendo muito que rezem também.<br />
A atitude dele nessa imagem de cera que reveste suas<br />
relíquias é muito calma, tranquila, de quem já está elevado<br />
às tranquilidades eternas do Céu.<br />
v<br />
(Extraído de conferência de 9/11/1988)<br />
1) Do latim: bela como a Lua, incomparável como o Sol (Ct 6, 10).<br />
2) * 1774 - † 1840.<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
Imagem do Beato Stefano Bellesini<br />
Em uma capela contígua à igreja encontra-<br />
-se um altar com os restos mortais do Bem-<br />
-aventurado Stefano Bellesini, sacerdote<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> reza diante do afresco da Mãe do Bom Conselho e das<br />
relíquias do Beato Stefano Bellesini, em setembro de 1988<br />
35
Refúgio dos Pecadores<br />
Francisco Lecaros<br />
M<br />
aria Santíssima é o refúgio perene,<br />
contínuo, que jamais se fecha a<br />
qualquer espécie de pecadores. Está<br />
na grandeza de Nossa Senhora ser um imenso<br />
e perfeito refúgio, porque tudo n’Ela excede a<br />
nossa capacidade de cogitação.<br />
Um porto é um abrigo contra o mar revolto,<br />
e um navio encontra ali um refúgio. Dizemos<br />
que esse refúgio é tanto maior e mais esplêndido<br />
quanto mais navios couberem nele.<br />
Em uma enseada como a do Rio de Janeiro,<br />
por exemplo, onde não sei quantas esquadras<br />
poderiam entrar e sentirem-se completamente<br />
protegidas contra o mar bravio, vemos uma<br />
grandeza, uma magnificência e um esplendor<br />
incomensuráveis.<br />
A Santíssima Virgem é assim. Ela pode dar<br />
refúgio a pecadores cujos pecados atingem um<br />
tamanho inimaginável, ingratidões inconcebíveis,<br />
insondáveis. Desde que a alma se volte<br />
para esta boa Mãe, Ela cobre tudo e aceita<br />
de dar toda espécie de perdão para toda espécie<br />
de pecados. Maria é, portanto, o refúgio<br />
por excelência.<br />
Se sentirmos tristeza por notarmos que temos<br />
alguma culpa, devemos dizer a Ela:<br />
“Temos culpa, é verdade. Mas Vós sois o Refúgio<br />
dos Pecadores, e está na vossa grandeza,<br />
ó minha Mãe, tomar os meus pecados e defeitos,<br />
e abrir para eles como que um porto para<br />
me defender do alto-mar das consequências<br />
interiores e exteriores das minhas desordens. À<br />
vossa grandeza corresponde também a grandeza<br />
de vossa misericórdia. Vós tereis pena de<br />
mim e me acolhereis.”<br />
(Extraído de conferência de 5/9/1970)<br />
Virgem dos Desamparados<br />
Basílica de Santa Maria do<br />
Pi, Barcelona, Espanha