08.11.2019 Views

RCIA - ED. 92 - MARÇO 2013

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

crônica<br />

LUÍS CARLOS<br />

B<strong>ED</strong>RAN*<br />

DON RIGOBERTO<br />

Don Rigoberto tem umas ideias esquisitas. Ele pediu para um arquiteto projetar sua<br />

casa, mas de tal forma que enfatizasse menos o conforto das pessoas do que a sua biblioteca,<br />

onde deveriam caber apenas 4.000 livros. Nem mais e nem menos. Numerus<br />

clausus. E é fundamental que tenha uma lareira, para que, à medida que fosse adquirindo<br />

novos livros, os outros lá seriam queimados. Uma “crítica literária radical e combustível”.<br />

Disse que chegou a essa conclusão porque mais importantes são os livros do que<br />

as pessoas.<br />

Ele não se comove com a preservação da Natureza, nem com a do meio ambiente;<br />

não gosta de praia nem de mato. Gosta mesmo é da cidade. As árvores, os bosques, os<br />

rios só têm sentido se “passam pelo crivo da civilização” e se transformam em livros,<br />

quadros, cinema ou televisão. A Natureza, ao natural, com pernilongos, mosquitos e lama<br />

é incompatível com os prazeres refinados do homem.<br />

Concorda com uma professora de genética de que não existem apenas dois sexos e<br />

sim pelo menos cinco: além do homem e da mulher, o homem-mulher, a mulher-homem<br />

e o hermafrodita. Não se deve combater a liberdade humana, a soberania individual - com<br />

relação ao sexo - porque fica na esfera do indivíduo, que é incompatível com o rebanho.<br />

É contra a circuncisão religiosa e a ablação clitoriana dos africanos islâmicos. E que as<br />

“ideologias que criaram formas de opressão igualitária são piores que os despotismos<br />

contra os quais pretendiam se insurgir”. Por isso também é contra o feminismo.<br />

Considera a “prática dos esportes em geral, e o culto da prática dos esportes em<br />

particular, formas extremas da imbecilidade que aproximam o ser humano do carneiro,<br />

dos gansos e da formiga, três instâncias agravadas do gregarismo animal”. Para ele o que<br />

valem são os esportes de mesa (excluído o pingue-pongue) e os de cama. Pois a cultura<br />

contemporânea transformou os esportes em “obstáculos ao desenvolvimento do espírito,<br />

da sensibilidade e da imaginação (e, portanto, do prazer)”.<br />

E nem se alegue que na Grécia antiga os esportes eram um fim. Não eram. Eram<br />

meio para enriquecer o prazer dos humanos, em todos os aspectos. Embora a prática dos<br />

esportes também possa ter um aspecto místico em algumas civilizações, entende que os<br />

exercícios e as competições físicas não aproximam os homens do divino; ao contrário,<br />

os afastam do sagrado e do religioso, os embrutecem, pois “saciam seus instintos mais<br />

ignóbeis: a vocação tribal, o machismo, a vontade de dominação, a dissolução do eu individual<br />

no amorfo gregário”. Não existe a mens sana in corpore sano e pergunta: “quem<br />

disse que a mente sã é um ideal desejável?”. Isso é convencional e sem imaginação.<br />

“O ‘espírito esportivo’ mascara um assassino potencial disposto a exterminar árbitros,<br />

queimar todos os torcedores do outro time, devastar estádios e as cidades que os<br />

hospedam. Tudo para que seu clube carregue uma copa de prata falsa ou para ver seus<br />

onze ídolos trepados num pódio, flamejantes de ridículo dentro de seus calções e camisetas<br />

listradas, com as mãos no peito e os olhos inflamados cantando um hino nacional!”.<br />

Don Dagoberto é contra o Rotary, Maçonaria, Lyons, entre outras associações que<br />

promovem a solidariedade humana, a beneficência pública, o espírito cívico e a assistência<br />

social, porque elas implicam numa “desinvidualização completa, pois promovem a<br />

extinção do reinado do indivíduo, livre e soberano. Levam a uma robotização do homem<br />

e ao obscurantismo. E as reuniões semanais de seus membros, com seus ágapes noturnos<br />

e os serões de confraternização, apenas servem para contar fofocas, piadas sujas e falar<br />

mal dos ausentes, sem dó. E também de pretexto de primeira ordem para ficar de fora sem<br />

alarmar a mulher...<br />

É agnóstico, mas contra o ateu e o crente; contra as religiões porque elas abdicam a<br />

independência individual de cada um, pois existe sempre nelas um censor, um fanático,<br />

as “fogueiras e as tenazes da inquisição” e contra a “institucionalização dos sentimentos<br />

e da fé, mas a favor dos sentimentos e da fé”.<br />

Essas são as teorias (entre outras, mais pesadas, que, por pudor, em respeito ao leitor<br />

e à leitora, deixo de citá-las) de Don Rigoberto, personagem da obra de Mário Vargas<br />

Llosa, Os Cadernos de don Rigoberto. Um brilhante escritor peruano. Pura ficção...<br />

*Luís Carlos Bedran<br />

Sociólogo, jornalista e articulista da Revista Comércio & Indústria

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!