RCIA - ED. 92 - MARÇO 2013
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crônica<br />
LUÍS CARLOS<br />
B<strong>ED</strong>RAN*<br />
DON RIGOBERTO<br />
Don Rigoberto tem umas ideias esquisitas. Ele pediu para um arquiteto projetar sua<br />
casa, mas de tal forma que enfatizasse menos o conforto das pessoas do que a sua biblioteca,<br />
onde deveriam caber apenas 4.000 livros. Nem mais e nem menos. Numerus<br />
clausus. E é fundamental que tenha uma lareira, para que, à medida que fosse adquirindo<br />
novos livros, os outros lá seriam queimados. Uma “crítica literária radical e combustível”.<br />
Disse que chegou a essa conclusão porque mais importantes são os livros do que<br />
as pessoas.<br />
Ele não se comove com a preservação da Natureza, nem com a do meio ambiente;<br />
não gosta de praia nem de mato. Gosta mesmo é da cidade. As árvores, os bosques, os<br />
rios só têm sentido se “passam pelo crivo da civilização” e se transformam em livros,<br />
quadros, cinema ou televisão. A Natureza, ao natural, com pernilongos, mosquitos e lama<br />
é incompatível com os prazeres refinados do homem.<br />
Concorda com uma professora de genética de que não existem apenas dois sexos e<br />
sim pelo menos cinco: além do homem e da mulher, o homem-mulher, a mulher-homem<br />
e o hermafrodita. Não se deve combater a liberdade humana, a soberania individual - com<br />
relação ao sexo - porque fica na esfera do indivíduo, que é incompatível com o rebanho.<br />
É contra a circuncisão religiosa e a ablação clitoriana dos africanos islâmicos. E que as<br />
“ideologias que criaram formas de opressão igualitária são piores que os despotismos<br />
contra os quais pretendiam se insurgir”. Por isso também é contra o feminismo.<br />
Considera a “prática dos esportes em geral, e o culto da prática dos esportes em<br />
particular, formas extremas da imbecilidade que aproximam o ser humano do carneiro,<br />
dos gansos e da formiga, três instâncias agravadas do gregarismo animal”. Para ele o que<br />
valem são os esportes de mesa (excluído o pingue-pongue) e os de cama. Pois a cultura<br />
contemporânea transformou os esportes em “obstáculos ao desenvolvimento do espírito,<br />
da sensibilidade e da imaginação (e, portanto, do prazer)”.<br />
E nem se alegue que na Grécia antiga os esportes eram um fim. Não eram. Eram<br />
meio para enriquecer o prazer dos humanos, em todos os aspectos. Embora a prática dos<br />
esportes também possa ter um aspecto místico em algumas civilizações, entende que os<br />
exercícios e as competições físicas não aproximam os homens do divino; ao contrário,<br />
os afastam do sagrado e do religioso, os embrutecem, pois “saciam seus instintos mais<br />
ignóbeis: a vocação tribal, o machismo, a vontade de dominação, a dissolução do eu individual<br />
no amorfo gregário”. Não existe a mens sana in corpore sano e pergunta: “quem<br />
disse que a mente sã é um ideal desejável?”. Isso é convencional e sem imaginação.<br />
“O ‘espírito esportivo’ mascara um assassino potencial disposto a exterminar árbitros,<br />
queimar todos os torcedores do outro time, devastar estádios e as cidades que os<br />
hospedam. Tudo para que seu clube carregue uma copa de prata falsa ou para ver seus<br />
onze ídolos trepados num pódio, flamejantes de ridículo dentro de seus calções e camisetas<br />
listradas, com as mãos no peito e os olhos inflamados cantando um hino nacional!”.<br />
Don Dagoberto é contra o Rotary, Maçonaria, Lyons, entre outras associações que<br />
promovem a solidariedade humana, a beneficência pública, o espírito cívico e a assistência<br />
social, porque elas implicam numa “desinvidualização completa, pois promovem a<br />
extinção do reinado do indivíduo, livre e soberano. Levam a uma robotização do homem<br />
e ao obscurantismo. E as reuniões semanais de seus membros, com seus ágapes noturnos<br />
e os serões de confraternização, apenas servem para contar fofocas, piadas sujas e falar<br />
mal dos ausentes, sem dó. E também de pretexto de primeira ordem para ficar de fora sem<br />
alarmar a mulher...<br />
É agnóstico, mas contra o ateu e o crente; contra as religiões porque elas abdicam a<br />
independência individual de cada um, pois existe sempre nelas um censor, um fanático,<br />
as “fogueiras e as tenazes da inquisição” e contra a “institucionalização dos sentimentos<br />
e da fé, mas a favor dos sentimentos e da fé”.<br />
Essas são as teorias (entre outras, mais pesadas, que, por pudor, em respeito ao leitor<br />
e à leitora, deixo de citá-las) de Don Rigoberto, personagem da obra de Mário Vargas<br />
Llosa, Os Cadernos de don Rigoberto. Um brilhante escritor peruano. Pura ficção...<br />
*Luís Carlos Bedran<br />
Sociólogo, jornalista e articulista da Revista Comércio & Indústria