RCIA - ED. 99 - OUTUBRO 2013
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CRÔNICA<br />
LUÍS CARLOS B<strong>ED</strong>RAN *<br />
VIAGENS<br />
Raptado! foi parar na Ilha do Tesouro de onde escapou para se encontrar com o Robinson<br />
Crusoe que não via a hora de ser salvo para voltar à civilização, mas, ainda desassossegado,<br />
enveredou heroicamente pela legião estrangeira, em pleno deserto saariano<br />
e se deixou envolver honrosamente pelo ‘beau geste’ e pelo ‘beau sabreur’.<br />
Viajou pelo Curdistão bravio e mergulhou nas profundezas do mar por 20.000 léguas<br />
submarinas; andou de trem pelo expresso do oriente à procura do falcão maltês, guardado<br />
pelo cão dos Baskervilles; com o pele vermelha Winnetou, ao lado do último dos<br />
mohicanos, desceu o Mississipi com os amigos Tom Sawyer e Huckleberry Finn. Foi depois<br />
de muito tempo que descobriu a democracia na América, mas não sem antes ter dado<br />
a volta ao mundo em 80 dias, não se recordando mais se antes ou depois da viagem da<br />
Terra à Lua.<br />
Jovem professor, viajou à roda de seu quarto; filosoficamente constatou os paradoxos<br />
do mundo; notou que nada havia de novo no front ocidental e aí então se embrenhou na<br />
selva até encontrar Macunaíma. Não só o encontrou, como também desbravou os sertões<br />
e assistiu o Quarup.<br />
Continuou a viajar pelo mundo, mas agora em companhia do lobo do mar pelo Beagle,<br />
por mil e uma noites. Foi quando descobriu a origem das espécies, contrariando a Bíblia e<br />
o Alcorão. Então enveredou pelos diálogos, surpreendeu-se com a ética a Nicômaco, até<br />
chegar ao ser e ao nada. Entrou de sursis, realizou uma série de confissões, viu o mundo<br />
como vontade e representação, retornou à política, perdeu a vontade de potência e criticou<br />
a razão pura e a razão prática.<br />
Foi aí que se encontrou com Marx e Deus no 18 brumário e então se perguntou, na<br />
casa grande e senzala, por que era ou não sociólogo; descobriu as raízes do Brasil, a casa<br />
e a rua, o povo brasileiro, teve a visão do paraíso, das elites e da sociedade. Chocou-se<br />
com os delitos e as penas, viu a luta pelo direito e constatou a inutilidade das leis.<br />
Achou tudo uma divina comédia e na comédia humana, uma guerra e paz permanente<br />
nas ligações perigosas, com o inesquecível D. Quixote. Ouviu sermões na nova floresta,<br />
viu a estrela da vida inteira, o leopardo e os noivos no crepúsculo dos deuses. Aí<br />
então enterrou seu coração na curva do rio, marchou para o oeste junto com os índios da<br />
serra Roncador Xingu, com os bichos, com o guarani, com Ubirajara e Iracema.<br />
Mas foi nos quatro gigantes da alma e no contraponto que teve medo das portas<br />
da percepção e do céu e inferno. Subiu a montanha dos sete patamares, a montanha<br />
mágica, descobriu os tesouros das minas do rei Salomão e encontrou o paraíso perdido<br />
em Shangri-La. Apesar da perfeição, da angústia e das vidas secas, acabou por encontrar<br />
também a pureza.<br />
Nesse meio tempo viu passar a cinza das horas e, na história, a ascensão e a decadência<br />
de Roma; escolheu Sofia, viu o eclipse de Deus, fez orações e meditações. Nos seus<br />
diálogos, discorreu sobre o método, constatou a velhice do padre eterno e a condição<br />
humana.<br />
Já mais para o fim, na senilidade, em nova polêmica, encontrou a velhice e a amizade.<br />
Retornou às origens da vida, ao mundo da lua, com a negrinha nas cidades mortas. Uma<br />
miscelânea só.<br />
Sorveu palavras preciosas, / Sentiu seu ânimo mais forte; / Esqueceu-se de que era<br />
pobre, / E que era apenas pó. / Dançou em dias sombrios, / E essa conquista de asas /<br />
Lhe veio apenas de um livro. Que liberdade / traz um espírito sem peias! (Emily Dickinson).<br />
*Sociólogo e articulista da Revista &<br />
Comércio e Indústria de Araraquara<br />
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