CRÔNICA LUÍS CARLOS B<strong>ED</strong>RAN * VIAGENS Raptado! foi parar na Ilha do Tesouro de onde escapou para se encontrar com o Robinson Crusoe que não via a hora de ser salvo para voltar à civilização, mas, ainda desassossegado, enveredou heroicamente pela legião estrangeira, em pleno deserto saariano e se deixou envolver honrosamente pelo ‘beau geste’ e pelo ‘beau sabreur’. Viajou pelo Curdistão bravio e mergulhou nas profundezas do mar por 20.000 léguas submarinas; andou de trem pelo expresso do oriente à procura do falcão maltês, guardado pelo cão dos Baskervilles; com o pele vermelha Winnetou, ao lado do último dos mohicanos, desceu o Mississipi com os amigos Tom Sawyer e Huckleberry Finn. Foi depois de muito tempo que descobriu a democracia na América, mas não sem antes ter dado a volta ao mundo em 80 dias, não se recordando mais se antes ou depois da viagem da Terra à Lua. Jovem professor, viajou à roda de seu quarto; filosoficamente constatou os paradoxos do mundo; notou que nada havia de novo no front ocidental e aí então se embrenhou na selva até encontrar Macunaíma. Não só o encontrou, como também desbravou os sertões e assistiu o Quarup. Continuou a viajar pelo mundo, mas agora em companhia do lobo do mar pelo Beagle, por mil e uma noites. Foi quando descobriu a origem das espécies, contrariando a Bíblia e o Alcorão. Então enveredou pelos diálogos, surpreendeu-se com a ética a Nicômaco, até chegar ao ser e ao nada. Entrou de sursis, realizou uma série de confissões, viu o mundo como vontade e representação, retornou à política, perdeu a vontade de potência e criticou a razão pura e a razão prática. Foi aí que se encontrou com Marx e Deus no 18 brumário e então se perguntou, na casa grande e senzala, por que era ou não sociólogo; descobriu as raízes do Brasil, a casa e a rua, o povo brasileiro, teve a visão do paraíso, das elites e da sociedade. Chocou-se com os delitos e as penas, viu a luta pelo direito e constatou a inutilidade das leis. Achou tudo uma divina comédia e na comédia humana, uma guerra e paz permanente nas ligações perigosas, com o inesquecível D. Quixote. Ouviu sermões na nova floresta, viu a estrela da vida inteira, o leopardo e os noivos no crepúsculo dos deuses. Aí então enterrou seu coração na curva do rio, marchou para o oeste junto com os índios da serra Roncador Xingu, com os bichos, com o guarani, com Ubirajara e Iracema. Mas foi nos quatro gigantes da alma e no contraponto que teve medo das portas da percepção e do céu e inferno. Subiu a montanha dos sete patamares, a montanha mágica, descobriu os tesouros das minas do rei Salomão e encontrou o paraíso perdido em Shangri-La. Apesar da perfeição, da angústia e das vidas secas, acabou por encontrar também a pureza. Nesse meio tempo viu passar a cinza das horas e, na história, a ascensão e a decadência de Roma; escolheu Sofia, viu o eclipse de Deus, fez orações e meditações. Nos seus diálogos, discorreu sobre o método, constatou a velhice do padre eterno e a condição humana. Já mais para o fim, na senilidade, em nova polêmica, encontrou a velhice e a amizade. Retornou às origens da vida, ao mundo da lua, com a negrinha nas cidades mortas. Uma miscelânea só. Sorveu palavras preciosas, / Sentiu seu ânimo mais forte; / Esqueceu-se de que era pobre, / E que era apenas pó. / Dançou em dias sombrios, / E essa conquista de asas / Lhe veio apenas de um livro. Que liberdade / traz um espírito sem peias! (Emily Dickinson). *Sociólogo e articulista da Revista & Comércio e Indústria de Araraquara - 70 -
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