16.12.2019 Views

Revista Curinga Edição 27

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

Revista Laboratório | Jornalismo | UFOP | Junho de 2019 | Ano IX | 27ª Edição

CURINGA

DOSSIÊ

Cultura

Extrativista

Força, movimento e vidas.


Expediente

Curinga é uma publicação da disciplina laboratório

Integrado II: Grande Reportagem. Revista produzida

pelos alunos do curso de Jornalismo da UFOP.

Instituto de Ciências Sociais Aplicadas (ICSA)

Departamento de Jornalismo (DEJOR)

Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP)

Professores responsáveis

Flávio Pinto Valle (Fotografia)

Frederico Tavares - 11311/MG (Texto)

Michele Tavares - 0001195/SE (Visual)

Editor Chefe (Impresso)

Matheus Queiroz

Editor de Audiovisual

Uriel F. M. Silva

Editor Chefe (Web)

Vitório Diniz Damasceno

Editora de Fotografia

Thais Silva

Editora de Site

Karine Pereira Bibiano

Editor de Visual

Wallace Vertelo

Editora de Sonora

Iris Ventura

Mídias Sociais

Antônio Iannuzzi

Editores e Revisores de Texto

Ivan Vilela e Silva

Fernanda Walmer

Repórteres

Adrienne Pedrosa

Ana Clara Delella

Amanda Alves

Bárbara Alvina

Carolina Carvalho Durval

Catharina Mello

Clara Lemos

Franciele Maria da Silva

Glauciene Oliveira

Hannah Carvalho

Isabela Peres Rigatto

Jean Lourenço

Joice Valverde

Julia Massa

Larissa Chaves Soares

Larissa Helena

Letícia Lopes de Souza

Marcelo Cardoso

Márcio Gomes Martins Júnior

Narrian Gomes Gonçalves

Rômulo Soares

Samuel Senra Campos

Sofia Fuscaldi Cerezo

Stefanny Inácio Rolim

Capa e contracapa:

Fotos de Uriel F. M. Silva

Design de Wallace Vertelo

Capas das editorias:

Fotos de Thais Silva e Uriel F. M. Silva

Texto de Ivan Vilela e Silva

Design de Wallace Vertelo

Monitoras:

Laryssa Gabellini

Thalia Gonçalves

Agradecimentos:

Sofia Sarmento

Secretárias do Dejor

Divisão de Transportes (Proad)

Endereço

Rua do Catete, 166 - Centro

35420-000, Mariana - MG

Impressão

MJR EDITORA GRÁFICA

Rua Carlos Pinheiro Chagas, 138 - Ressaca

32.113-460, Contagem - MG

Telefone: (31) 3357-5777


Entrevista

Joenia Wapichana

Página 5

Perfil

Miguel Burnier

Página 12

Reportagem

Força humana

Página 16

Reportagem

Prostituição

Página 24

Reportagem

Símbolos negros

Página 32

Reportagem

Mineração de dados

Página 42

Reportagem

Superdependência

Página 50

Reportagem

Exploração turística

Página 60

Reportagem

Alternativas sustentáveis

Página 66

Reportagem

Retaguarda da moda

Página 72

Resistência indígena

Fotorreportagem

Página 78


Editorial

Três anos após o rompimento da Barragem de Fundão, das mineradoras

Samarco e Vale, em Mariana (MG), considerado o maior crime ambiental

do país, ocorrido em novembro de 2015, o Brasil é surpreendido com

mais um desastre. Dessa vez, Brumadinho, cidade localizada na região

metropolitana de Belo Horizonte, vivenciou, em janeiro deste ano, outro

crime de rompimento de barragem, também pertencente à Vale, que

deixou, até então, 240 pessoas mortas e 32 desaparecidas. Além disso, 125

hectares de florestas foram devastados, ou seja, mais de um milhão de

metros quadrados de mata nativa foram embora com a enxurrada de lama.

Todos esses acontecimentos, atrelados à falta de fiscalização que

colocam em risco a vida de milhares de trabalhadores e moradores das

regiões de mineração, evidenciam as preocupações geradas a partir da

cultura extrativista que se encontra intrínseca na sociedade. Para além

dessas situações, nascem preocupações acerca da vivência dos cidadãos do

nosso país, das leis e reformas que atingem os trabalhadores, da rotina

trabalhista e, principalmente, da conservação e sustento do meio ambiente.

A edição 27 da Curinga surge, então, em Mariana, berço de um dos

maiores crimes ambientais do mundo. Nasce na cidade que convive com

os grandes impactos sociais e demográficos devido ao rompimento de

uma barragem de rejeitos de minérios. E, foi vendo esta realidade de

perto, que entendemos a importância de se discutir, refletir e debater os

efeitos do extrativismo no nosso cotidiano. Afinal, tudo o que usamos

e fazemos, direta ou indiretamente, faz parte dessa cultura construída

ao longo dos anos. Erguer a consciência de que vivemos sob uma lógica

extrativista se mostrou um desafio, mas se fez um exercício necessário

para compreendermos o método de funcionamento de muita das coisas

que nos regem enquanto comunidade.

Em razão disso, as páginas deste dossiê, por meio de um redesenho

do projeto gráfico da Curinga, te convidam a pensar nesse tema que se

faz tão presente nos dias de hoje, mesmo sendo tão antigo. Te convidam

a refletir sobre força do trabalho, exploração do corpo humano e

as consequências da rotina laboral. Te convidam a discutir sobre as

ideias de movimento e deslocamento de estruturas sociais, políticas e

econômicas. Por fim, te convidam a conhecer a força da resistência e

como ela ainda permanece presente hoje.

A partir do cerne do conceito de extrativismo, percebemos que ele

atua na vida das pessoas muito além da perspectiva ambiental. Dessa

forma, descobrimos e documentamos que a prática toca em questões

como a apropriação cultural, a exploração do trabalho humano e do

turismo histórico, o uso do corpo da mulher no contexto da prostituição,

a superdependência da extração de minérios, a atuação dos ativistas

ambientais, o slow-fashion como alternativa para a massiva produção

de roupas, dentre outros contextos.

Assim, colocamos em evidência em cada uma das nove reportagens,

da entrevista e do perfil, o nosso foco e atenção nas pessoas com as quais

conversamos, debatemos e, acima de tudo, aprendemos, pois o ofício do

jornalismo nos permite, além de transmitir informações, que aprendamos

com o próximo. E é isso que desejamos a vocês. Boa leitura!


Joenia

Wapichana

Texto de Ivan Vilela e Silva

Fotografias de Thaís Silva

Design de Vitório Diniz Damasceno

Joenia conversou com a equipe da Curinga em seu

gabinete, no Anexo IV da Câmara dos Deputados,

em Brasília. Eleita em 2018, é a primeira

Deputada Federal (REDE) indígena da história do

país. Graduou-se em Direito pela Universidade Federal

de Roraima (UFRR) em 1997, tornando-se a primeira

indígena a atuar como advogada no Brasil. Foi também

a primeira presidente da Comissão de Direitos dos

Povos Indígenas, da Ordem dos Advogados do Brasil

(OAB), e pautou sua luta nas demarcações de terras.

Recebeu a Ordem do Mérito Cultural, pelo extinto

Ministério da Cultura, e o Prêmio de Direitos Humanos

da Organização das Nações Unidas (ONU). Confiante,

Joenia expõe e reflete sobre questões que atingem toda

a população brasileira, principalmente a indígena.


Cultura Extrativista

Entrevista

Como é pra você ser uma mulher indígena, a

primeira a ocupar uma cadeira na Câmara dos

Deputados, num país que é fortemente racista

e também misógino?

Um desafio constante. O fato de ser indígena já é

um desafio. Todo dia a gente encontra barreiras. Eu

digo que o Brasil não só é um país racista. É para

nós classista, machista e soma, agora, o racista.

Tenho sempre tentado me colocar um pouco nesse

desafio, de fazer com que a cada dia sejamos mais

reconhecidos pela sociedade brasileira, que a gente

possa mudar esse comportamento e entender

que a diversidade cultural existe no Brasil. Que nós

temos direitos específicos e que o que nos difere em

relação aos direitos humanos é uma relação cultural.

Essa diferença cultural foi garantida em termos de

exercício de direitos e as pessoas não conseguem

entender toda essa dinâmica, essa convivência com

o diferente. Se você não consegue compreender,

tem que respeitar. Se não na essência humana, tem

que respeitar em lei. Porque desrespeitar o outro,

provocar o ódio racial, é crime. Então vamos ter que

mudar um pouco o comportamento.

Você é membro da Comissão de Constituição e

Justiça da Câmara e se mostra contra a forma como

tem sido elaborada a Reforma da Previdência

proposta pelo Governo Bolsonaro. Por quais

motivos você é contra?

A minha posição foi que aquela proposta tem vícios e

erros que colocam em risco a constitucionalidade do

texto. Você espera que depois de contribuir durante

toda a sua vida como trabalhador, você chegue a um

determinado momento e tenha o direito de ter um

pouquinho de tranquilidade, desfrutar da sua família

e poder descansar. Mas não quando estiver quase

morrendo, né, porque não faz sentido pra ninguém.

Então, a gente viu que, no texto, isso colocaria uma

série de barreiras que poderiam limitar esse seu

direito, e poderia colocar também em risco o próprio

direito de um benefício social e público.

A perda de direitos é um dos principais pontos

discutidos sobre a Reforma, quais desigualdades

aparentes você destacaria?

Quando você tenta emplacar um regime de

capitalização, que deveria ser um dever do Estado,

e passa a condicionar um processo de privatização,

essa ação só vai favorecer à classe empresarial e

aos bancos. A questão da idade, por exemplo, meu

posicionamento foi contra as regras de transição,

porque elas não estão claras. Se começa a viger

a nova Reforma, ela coloca em risco esse direito

[da aposentadoria]. Eu tenho defendido muito

a questão das aposentadorias rurais, porque os

povos indígenas estão dentro dessa categoria e

nós sabemos que o nosso Brasil é muito grande e

tem diferentes realidades. A vida no campo começa

muito cedo. As pessoas acordam quatro horas

da manhã. Eu sei disso por causa da vivência em

comunidade indígena. Então, nossas condições de

vida são diferentes, as pessoas envelhecem mais

rápido e são expostas a situações que são distintas

do núcleo urbano. Você não pode comparar a idade

que se tem pra aposentar da mesma forma que

o urbano. No meio rural, as pessoas estão mais

vulneráveis a doenças e muitas vezes a expectativa

de vida é muito [menor], não chega nem a 60 anos,

porque não tem atendimento médico. Não sou contra

uma reforma, mas tem que ser uma que não venha

penalizar os mais pobres, que venha justamente

para colocar em pé de igualdade outras categorias.

O cálculo que o governo apresentou, de um trilhão

a ser poupado, não me convenceu. E, mais ainda,

6


esconder informações da gente dizendo que eram

sigilosas? Qual é o sentido de se justificar a quebra

de privilégios, a economia de um trilhão e não

poder dar a nós o direito de informação para poder

avaliarmos e sermos convencidos dos dados? De

onde surgiria [a economia], se realmente vai só sair

dos mais pobres, dos mais vulneráveis, de quem

recebe de um a dois salários mínimos? Tem que

sair uma Reforma da Previdência que seja justa,

igualitária, e que realmente combata os privilégios.

Uma reforma em outras categorias tem que ser

analisada também.

A comissão externa do MEC, da qual você é membro,

discute as políticas educacionais adotadas pelo

atual governo, e levou à demissão do então Ministro

Ricardo Vélez Rodríguez. Mas, apesar disso, as

políticas foram mantidas e, recentemente, o

Governo revelou um contingenciamento de gastos

que atinge tanto o Ensino Básico quanto o Superior.

Como você vê essa situação?

Uma falta de planejamento para a educação e

uma falta de identificar prioridades por parte do

Governo. Eu acredito que a educação devia ser um

direito prioritário a ser trabalhado, ter uma visão de

investimento e não de gastos. Porque é isso que o

Governo parece que vê: a educação como um gasto,

como uma despesa a ser tolerada. Mas a gente

deveria mudar esses valores, ver que a educação

é uma estratégia pra gente avançar em termos de

direitos, de uma plano de desenvolvimento para

o país e uma estratégia nas questões econômicas

no sentido de valorizar todos os níveis de ensino.

Eu acredito que o Ministro da Educação, Abraham

Weintraub, depois que teve toda essa repercussão,

não me convenceu e, inclusive, merecem ser

rechaçadas as explicações que foram dadas. Até

mesmo foram publicadas matérias na imprensa

dizendo que ele estaria contingenciando os recursos

das Universidades e Institutos Federais porque

haveriam balbúrdias nas instituições e ele não

explicou que balbúrdias seriam essas. Não justificou,

também, por quais motivos ele resolveu fazer os

cortes, porque pra mim, contingenciamento é corte.

Então, a impressão que eu tenho é de que ele quer

mudar um pouco, inclusive a história do país, através

da educação, dizendo que algumas disciplinas não

podem mais. As faculdades de Sociologia, Filosofia

vão acabar porque são uma liberdade de pensar.

As universidades e as escolas são estratégia para

formar opinião, são os meios que a sociedade tem de

exercer e exercitar seu pensamento, ter mais críticas

sobre o país, sobre os seus direitos. Eu vi e senti que

é uma intervenção no pensamento das pessoas para

não terem acesso a determinadas situações. É uma

falta de planejamento, uma falta de prioridade e uma

falta de respeito com o povo brasileiro.

Eu não concordo com mineração,

“ principalmente em terras indígenas.

Você também é membro da CPI de Brumadinho

(MG), e seu primeiro Projeto de Lei é inspirado

nesse caso e em outros casos como o de Mariana

(MG). Como você vê a situação das barragens de

mineração no Brasil?

É preocupante porque estou vendo cada vez mais

que estão flexibilizando. A gente não conseguiu

nem implementar as normativas que já existiam em

termos de impactos, em termos de prevenções.

Mariana aconteceu antes de Brumadinho e lá a gente

ainda não tem o direito das pessoas de reparação.

Falta uma segurança do que realmente se teve e

EDIÇÃO 27 | CURINGA

7


Cultura Extrativista

Entrevista

uma justa compensação pelo que aconteceu. E

agora, esse ano, veio Brumadinho. Já havia um alerta

que havia questões erradas e, novamente, se repete.

Mesmo com esses dois casos super graves que

aconteceram, há uma insistência muito grande de

mineração e esse é um dos motivos que me levaram

a propor uma pena mais severa. Afinal, a minha

proposta com a PL 570 é justamente tornar crime

hediondo esse tipo de prática quando coloca em

risco o ecossistema e a saúde humana. No Projeto

de Lei, a saúde humana foi pensada, tanto nos que

perderam suas vidas, quanto nas comunidades

indígenas. Isso porque em Mariana teve os Krenak,

e em Brumadinho os Pataxó Hã-Hã-Hãe, que foram

removidos e hoje não estão ali. Nessa linha, é preciso

tornar visível esse tipo de discussão. Eu não concordo

com mineração, principalmente em terras indígenas.

Mariana e Brumadinho já são casos concretos, fato

acontecido. A gente precisa repensar a exploração

dos recursos hídricos e nos procedimentos que a

lei ainda inclui. E também nesses retrocessos em

termos da política ambiental, onde vemos cada vez

mais flexibilizações dos licenciamentos ambientais

para esses empreendimentos.

E quais medidas deveriam ser tomadas?

Eu acredito que a gente precisa pensar em termos

de uma fiscalização mais permanente sobre as

atuações das empresas e ter um olhar especial

para a população que depende delas. A questão

dos recursos hídricos me interessa um pouco mais

porque eu sempre tenho em mente que a água

não fica parada em determinada área. A água se

vai. Então muitos acreditam que o problema é só

aquele lá de Brumadinho e pronto, mas pessoas

que estão ali mais próximas e também mais

distantes vão ser atingidas por essa contaminação,

pelo rejeito. E a gente não pode deixar a impunidade

correr. A gente não pode deixar injustiças. Tem que

dar assistência aos trabalhadores e às vítimas. É

um dever do Estado intervir e não deixar outros

desastres. A gente tá vendo os profissionais da

área, os engenheiros, pessoas que são peritas no

assunto e o alerta que eles deixaram em Mariana.

Tudo isso está alertando agora pra Brumadinho.

Outras barragens podem se romper, então ações

devem ser tomadas de imediato.

Atualmente, vemos, na Amazônia principalmente,

um extrativismo travestido de progresso. Como

você vê e quais são os riscos para Amazônia?

Eu não chamaria isso de extrativismo, eu chamaria

de uma degradação crescente. Uma exploração

em relação aos recursos hídricos. Porque, no

extrativismo, você coleta e você deixa a árvore

em pé. É isso que eu entendo por extrativismo. Os

indígenas são extrativistas por natureza. Há povos,

por exemplo, os Waiwai, que vivem da questão da

castanha, que era castanha-do-pará, hoje castanhado-brasil,

e que se tira, usa, troca, vende, mas

mantém em pé a árvore. Esse projeto para explorar

os recursos da Amazônia incentiva o desmatamento

e outros impactos ambientais. A Amazônia tem sido

vista com um olhar em relação à exploração, sem

conservação. Exemplo disso é quando se constrói

uma hidrelétrica, que provoca vários e sérios danos

ambientais, não somente para biodiversidade, mas

para os seres humanos também. Além da questão

da mineração, que sempre tem tido uma tentativa

de regularizar, principalmente em terras indígenas.

Até agora, as mudanças do Código Florestal são

tentativas de anistiar os que provocam os danos

ambientais, dando prêmios para eles. É desvalorizar

aquele que protege, o extrativista, o que conserva, e

valorizar e perdoar aquele que já provocou o dano,

que não pode ser mensurado e tampouco reparado.

Então, a gente vê uma inversão dos valores na

política de preservação da Amazônia.

E como pensar alternativas?

A gente não enxerga alternativas. Nós [o país]

não vemos que a Amazônia pode, sim, ser uma

estratégia de economia. Temos um vasto potencial

em relação à diversidade que não é conhecida ainda,

tampouco explorada e valorizada. Nós temos vários

conhecimentos dos povos tradicionais indígenas

e o turismo ecológico. Não há investimento, não

há uma discussão. Não existe alternativa, inclusive,

na questão energética. Temos fontes de energias

renováveis, energias mais limpas, como a eólica, e

não é valorizada. Não protegem mais mananciais,

não discutem sobre matas ciliares, florestamento e

sobre proteção das áreas de conservação naturais.

Só querem ver inundação, acabar a biodiversidade,

assim, daqui a pouco não tem nem mais água potável,

que é o grande potencial da Amazônia. Enfim, existe

uma desvalorização em termos disso.

A cultura dos indígenas é, muitas vezes, usada

como fantasia em momentos como o carnaval.

Como você vê essa apropriação, principalmente

por parte do capitalismo?

Não fazendo uma imagem pejorativa, não

deturpando a história, não colocando o indígena

numa situação pejorativa, tentando levar maior

discriminação, eu não vejo problema de usar

plumas, que não seja de animais, lógico. Até gostaria

que contassem a história real dos povos indígenas.

8


Mas tem os limites jurídicos de usar esse tipo de

informação e esse tipo de adereço também.

O Governo promove uma política de demarcação

de terras que vai contra o que o Supremo Tribunal

Federal (STF) decidiu como correta, baseado

principalmente no caso da Raposa Serra do Sol.

Como você vê essa situação?

Inconstitucional. Existe um dever do Estado em

reconhecer e demarcar as terras indígenas e ele

tem que cumprir a lei. Não existe nenhuma decisão

contrária no Supremo e o Congresso aprovou a

nossa Constituição, que está em vigência. Então, o

Governo tem que cumprir. Eu vejo que existe uma

forte pressão, inclusive a Medida Provisória (MP) 870

atua como uma tentativa de negar os direitos, uma

forma do Governo Bolsonaro de tentar emperrar a

demarcação de terras indígenas no Brasil. Inclusive

deixou clara já essa mensagem durante a campanha

dele, quando disse que “nenhum milímetro mais de

terras seria demarcado”. As pessoas achavam que

ele não ia chegar a tal ponto, mas ele tá chegando.

Não são só ameaças, são fatos concretos, são

questões que ele já fez. Então, as autoridades devem

tomar posicionamento.

Você lutou pela volta da Fundação Nacional do

Índio (Funai) como responsável pela demarcação

de terras indígenas e foi uma causa vitoriosa ( MP

870). Você acredita que a luta vai continuar sendo

somente contra os retrocessos que tem acontecido

ou é possível consolidar avanços?

Eu sempre penso na esperança e que é possível

a gente fazer nossas proposições positivas. Não

ficar somente na defensiva. A gente tem trabalhado

bastante em sensibilizar alguns parlamentares,

em tentar mostrar que não somos empecilho ao

desenvolvimento do país. Que nós estamos aqui

como uma sociedade brasileira, sujeitos de direitos,

que precisam ter políticas públicas, e nisso a gente

precisa avançar. Temos muito receio desse Governo,

que já veio desmontando uma série de direitos, uma

série de estruturas que a gente tinha um amparo

e conquistas de 30 anos dos povos indígenas. Por

exemplo, a MP 870, que a gente considerou uma

afronta e retrocesso. Além de outras políticas, como

a política socioambiental, a questão dos direitos

sociais, a questão da participação social em termos

de tomadas de decisões e controle social. Estão

havendo retrocessos, não por parte do Congresso,

mas sim por parte do Poder Executivo. Estou vendo

que aqui onde eu estou, agora, talvez tenha espaço

de diálogo e de tentar fazer com que se avance.

EDIÇÃO 27 | CURINGA 9


Mundo

em mim

Força

Para além do que é dito no dicionário,

a palavra “força” carrega em sua

substância o valor de uma sociedade

inteira. A sociedade brasileira, por sua

vez, se mostra persistente em enfrentar

as labutas do cotidiano e se insere cada

vez mais em comunidade por meio do

trabalho. Cada qual com sua maneira,

personalidade e jeito, as pessoas vão

construindo suas carreiras, trajetórias

e, principalmente, suas fortes histórias

individuais e coletivas.



Miguel Burnier

resiste

O maior distrito em extensão territorial de Ouro Preto convive com

o êxodo populacional provocado pela dependência à atividade

mineradora, mas afirma a luta pela sua memória.


Texto de Fernanda Walmer

Fotografias de Karine Bibiano

Design de Matheus Queiroz

A

o sul do Quadrilátero Ferrífero, no estado de

Minas Gerais, com área de aproximadamente

7000 Km², que se configura como a mais

importante província mineral do país. Nas linhas que

ligam Itabira, Mariana, Congonhas e Itaúna, onde se

baseou os vastos depósitos de minério de ferro, e se

constituiu como marco da interiorização da ocupação

portuguesa no século XVIII, me encontro. São Julião,

lugar da terra brilhante, caminho da riqueza do Brasil.

E de encontros, eis o primeiro: 1880, época em que

o transporte do país realizava-se por tropas de burros,

o engenheiro chefe da primeira Estrada de Ferro do

Brasil, Miguel Noel Nascentes Burnier, chegou. Vi ali

um novo horizonte trazido nos trilhos do trem, e de

São Julião ficou a lembrança, pois em 17 de dezembro

de 1948, por força da Lei Estadual nº 336, passei a me

chamar Miguel Burnier.

Distrito de Ouro Preto, a 40 Km da sede, me tornei

um dos mais importantes pontos de entroncamento da

estrada de ferro no Brasil. Em 1884, vi inaugurada a

Estação Ferroviária, por onde passava toda a mão de

obra e materiais necessários para a construção de Belo

Horizonte. A transferência da capital mineira, de Ouro

Preto para BH, teve toda que desembarcar aqui. Eu era

o que ligava esses lugares ao Rio de Janeiro e ao resto

do mundo. Mas de todas as chegadas, a que mais me

animava era a dos trabalhadores e suas famílias. Eram

vida e transformação trazidos na mala.

Foi implantada aqui, pelo Barão Ludwing Von

Eschwege, a primeira siderúrgica do Quadrilátero

Ferrífero, por volta de 1812. Mas foi só o começo.

Depois disso, os olhos das empresas de extração se

voltaram para mim.

Em 1893, quando era grande a dificuldade em se

conseguir ferro, seja para as atividades rurais ou para

a manutenção da ferrovia, Carlos Wigg, comendador

e empreendedor da época, comprou a maior parte

de minhas terras e, junto com os engenheiros J.

Gerspacher e Amaro da Silveira, instalou o alto-forno

da Usina Wigg, localizado a quinhentos metros da

Estação Ferroviária. Minhas minas antiquíssimas de

minério de manganês, extraído por lavra subterrânea,

era o que alimentava os fornos da Usina Wigg,

produtora de ferro-gusa. Siderurgia e Ferrovia

nascendo juntas no Brasil, nos braços da minha terra.

EDIÇÃO 27 | CURINGA

13


Cultura Extrativista

Miguel Burnier

Esvaziamento refletido na estrutura

Construções abandonadas tomam cada

vez mais espaço no distrito esquecido pela

Prefeitura de Ouro Preto.

Os caminhos por onde antes só passavam

animais de carga com materiais diversos,

receberam os desenhos de pegadas. A quantidade

de gente que se instalava aqui para trabalhar com

a mineração foi aumentando. Dos imigrantes, os

italianos e portugueses foram os que chegaram

em maior número. Os homens que vinham a

trabalho traziam suas famílias. Aprendi que

todos aqueles corpos carregavam mais do que as

obrigações do ofício, expressavam fé. E eu não

era só a casa dessas manifestações de fé, era

parte delas. A religiosidade virou o centro da

vida social dos trabalhadores.

Carlos Wigg lidava com os engenheiros, diretores,

empregados especializados e com os trabalhadores

contratados temporariamente. Dona Alice Wigg, sua

esposa, era mais carismática, tinha mais “jeito”, e

se dedicava quase unicamente aos trabalhadores

contratados em caráter permanente, operários

e suas famílias. Famílias muito simples. Muitas

constituídas aqui, sob os meus olhos.

A morte de Carlos Wigg, em 1931, impactou o

quadro econômico que vinha fragilizado devido a

crise mundial de 1929. Perdia um filho e me prepara

para ver os outros enfrentando um período de crises

e conflitos nas relações trabalhistas.

A usina Wigg, desativada em 1969, foi assumida

no mesmo ano pelo grupo Votorantim que, em

seguida, inaugurou a Siderúrgica Barra Mansa,

destaque na produção de ferro, extração de minério

e brita, produção de carvão e reflorestamento. Esta,

manteve suas atividades até 1996. O seu fechamento

nos imprimiu grande retrocesso econômico e

ocasionou as minhas dores mais profundas.

Com a perda de seus empregos, muitas famílias se

viram obrigadas a sair daqui. A dependência extrativista

sob a qual minhas terras vislumbraram seu apogeu,

também significou minha degradação ambiental.

Essas partidas não levavam apenas a presença e as

histórias, mas um pedacinho de cada um que formou

a cultura deste lugar. Foram-se também as vitórias

dos times Atlética Siderantim e Estrela Azul Futebol

14


Clube, que deixaram centenas de troféus. Foram-se

as manifestações do Congado Santa Efigênia e Nossa

Senhora do Rosário. Não aconteciam mais todas as

festas religiosas que uniam quase toda a região. Os

caminhões de mudança que diariamente chegavam

e saiam pelas minhas estradas pareciam me

arrancar dos braços os filhos, depois de uma vida

inteira de carinhos e cuidados.

Ouvi a Suely dizer que deixava muitas alegrias

e dores para trás, e mal sabe ela que ainda guardo

cada momento comigo. Dos quase 3 mil habitantes,

ficaram cerca de 300, seja pelos motivos secretos que

forem, ou até pela impossibilidade de escolher levar a

vida em outro lugar.

Seu Tuia, meu amigo há 76 anos, diz que a

tranquilidade deste lugar não há em outro. E nós dois

sabemos que a paz é uma conquista.

O menino Cristian, que vi nascer e crescer,

reconhece às vezes se incomodar com a falta: falta de

um mercadinho, de uma loja, de uma padaria… falta

dos amigos da mesma idade que se mudaram. Mas logo

completa afirmando gostar de viver aqui.

A companheira Elenice, que trabalha na única

escola que temos, entende esse chão como seu,

mas sabe que sem apoio do poder público é muito

difícil nos reestruturar.

Meu percurso está entrelaçado com o dessa gente.

Apesar de não ter uma rede de comércio ou uma

estrutura mais completa de lazer, algumas iniciativas,

como as do Projeto Estação Cultura, nos ajudam a andar

pra frente e a recuperar cada vez mais da nossa própria

história, revelando que a tranquilidade ainda mora aqui.

Minha ocupação urbana permanece associada à

exploração de recursos naturais. Depois da Barra Mansa,

chegou a Gerdau Açominas, em 2004. Retomada a

fonte de empregos, veio a possibilidade de um respiro.

Continuo rendendo muito à Ouro Preto e às empresas

que aqui se instalam. Não é demais pedir o retorno justo

da Prefeitura, para o meu povo, de todo esse dinheiro

que é fruto do trabalho deles.

*Informações retiradas da obra “Miguel Burnier - Marcas

Históricas”, de Alenice Baeta e Henrique Piló (2012).

EDIÇÃO 27 | CURINGA 15


A Cultura do Extrativismo

Extrativismo da força humana

Extrativismo da

Cultura Negra

Ectem. Ciene consequis aditam etus volupiderae etus ne poribustem quideliquat

quas maionsequam, consed maximolum experae plitis nat.Mintotatincta si

blate quas estianiendi quam que nimaios simenda nd

2


Além

dasForças

As engrenagens da exploração e da precarização

no mundo do trabalho fazem homem

e máquina reduzirem-se a um só.

Força (Dicionário Priberam da Língua Portuguesa)

1.agente físico capaz de alterar o estado de repouso

ou de movimento uniforme de um corpo material

[subs. feminino]. 1.1. qualidade do que é forte;

robustez, vigor físico.

Trabalho (Dicionário Priberam da Língua Portuguesa)

1.conjunto de atividades, produtivas ou criativas, que

o homem exerce para atingir determinado fim. [subs.

masculino]

1.1. tarefa a cumprir; serviço.

1.2. aquilo que é ou se tornou uma obrigação ou

responsabilidade de alguém; dever, encargo.

Força de Trabalho (Enciclopédia virtual)

2. Por força de trabalho entende-se a capacidade

possuída pelo conjunto de indivíduos que participam

no decurso do processo econômico, detentores

das capacidades físicas e mentais já existentes no

corpo humano ou adquiridas através da experiência

e da formação de base acumulada de geração em

geração, e que o homem põe em movimento ao

produzir valores de uso.

Texto de Julia Massa

Fotografias de Narrian Gomes

Design de Marcelo Cardoso

A

força do trabalhador é aquela que opera

máquinas, produz mercadoria e conteúdo,

modifica o estado de movimento de um corpo

material e de seu próprio corpo também. Uma força

de trabalho essencial ao desenvolvimento produtivo

de qualquer sociedade, extraída e nem sempre (ou

quase nunca) reposta. Esses agentes produtores,

como são chamados em nossa sociedade, doam força

física e mental, tempo e habilidades, e se tornam

parte do processo de produção, sendo vistos como

mão de obra e não como seres humanos. Validam seu

trabalho e tempo como uma máquina de produção,

colocam valor no ser humano como um códico de

barras valida um produto. Essa superexploração está

presente em nosso país de maneira muito evidente

desde a época da escravidão, extremamente forte em

Minas Gerais com a mineração. No período de 1978

e 1800, escravos eram anunciados em jornais junto

a cavalos e máquinas da época. O teórico Friedrich

Engels, no prefácio da obra “Trabalho Assalariado e

Capital”, explica bem essa troca falsa entre sistema e

indivíduo quando diz “o que o operário vende não é

propriamente o seu trabalho, mas sim a sua força de

trabalho, cedendo ao capitalista, temporariamente,

o direito de dispor dela”. São trabalhadores de

diferentes áreas que enfrentam desafios diários para

conciliar essa realidade de sobretrabalho com sua

vida familiar, saúde mental e bem estar.

EDIÇÃO 27 | CURINGA

17


Cultura Extrativista

Força humana

Um dia a dia em descompasso

Caminhos

As demandas do trabalho de

José* exigem dele e da família

decisões difíceis e impactantes.

18

284 quilômetros, quatro horas e 34 minutos de

viagem são a distância e tempo que separam José*, 46

anos, de sua família devido à sua jornada de trabalho.

Técnico em metalurgia, casado e pai do João*, de 6

anos. A tendência é ver a esposa e o filho de 15 em

15 dias. Há dois anos morando longe da família e seis

meses trabalhando pela Projem, uma gerenciadora

e fiscalizadora de obras, José mora em Conceição do

Mato Dentro, região central de Minas Gerais, enquanto

seus familiares residem em Mariana.

A Projem trabalha por demanda, ou seja, onde

há obra há trabalho e, consequentemente, a mão de

obra de José, mesmo que para isso tenha que deixar

a família. Não é por desejo, e sim por necessidade.

Durante os 27 anos em que morou e trabalhou na

cidade de Mariana, José prestou serviços para Vale e

Samitri (atual Samarco), empresas especializadas na

extração de minérios. Ele teve toda sua vida profissional

pautada na mineração, trabalhando na área desde os

14 anos, quando entrou na Vale por meio do Serviço

Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai). Em

2015, José se tornou um dos 10 milhões de brasileiros

desempregados, segundo dados da Pesquisa Nacional

por Amostra de Domicílio (Pnad), em uma pesquisa

divulgada pelo IBGE em novembro daquele ano.

Com um filho pequeno para criar, após quase um ano

procurando emprego em Mariana, sem a segurança de

saber outro ofício, recebeu a proposta de se mudar em

prol do trabalho e disse sim.

A realidade é que, mesmo quando morava com

sua família, a convivência entre eles nem sempre era

próxima, pois, de 1993 a 2015, a jornada de trabalho

de José era por turno. Por 12 anos, sua rotina esteve

em desencontro com a de sua família, ou seja,

quando ele ia dormir, a casa acordava. “A partir do

momento que você trabalha de turno, você fica em

descompasso com o normal”, afirma.

Agora que está longe, dormem e acordam em

horário semelhante, mas a distância física gera tensões.

A saudade é forte para uma família que, mesmo

convivendo com chegadas e partidas constantes, é

próxima e afetiva. Aparecida*, com quem é casado há 10

anos, relata a dificuldade em ter o marido ausente. “Eu

senti muito e tinha que dar apoio a ele também, porque

ele não sabia o que fazer. Agora a gente está começando

a acostumar, mas ainda sente muita falta porque nós

somos uma família bem unida”. João, ainda jovem,

passou por um período de grande agitação quando o

pai se mudou. Triste e nervoso com as transformações

rápidas no dia a dia da família, precisou da ajuda de um

psicólogo para se adaptar.

O desejo da família é a estabilidade de José no atual

emprego, para que todos possam se mudar e morar

juntos em uma nova fase. Quando questionado sobre

a ideia de mudar de cidade, João se alegra: “Legal,

ver o papai todo dia”. Com 46 anos, ele é um dos

7,443 milhões de brasileiros que, segundo o Instituto

Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), trabalham

ou estudam fora das cidades onde vivem suas famílias.

Um grande número que carrega grandes batalhas,

cheias de saudade, angústias, conquistas e histórias.


O intervalo intrajornada que antes era

regulamentado em 1h, utilizada para descanso

e alimentação, foi reduzido pela metade e pode

ser feito em 30min.

A jornada diária que antes estipulava o máximo

de 8h, agora permite 12h seguidas de trabalho,

com 36h de descanso posteriores, desde que

se enquadre nas 44h de trabalho por semana

e 220 mensais, podendo ser realizadas até 2h

extras por dia.

As leis trabalhistas asseguram 30 dias de férias

ao trabalhador durante o ano, esse tempo

podia ser dividido em duas vezes, dando ao

empregado um tempo minimamente justo de

descanso por férias tiradas. Agora, a divisão

pode ser feita em 3 vezes, uma de 15 e outra

que divide os dias restantes, da maneira como a

empresa achar melhor.

Ocorreu o fim da obrigatoriedade da contribuição

sindical. Anteriormente, pagava-se mensalmente

o valor de um dia do trabalho do mês. Após

a reforma, o trabalhador só paga para sua

categoria se quiser. Isso enfraquece os sindicatos

e movimentos que promovem melhorias em

relação aos direitos trabalhistas.

A Reforma A reforma

Em 13 de julho de 2017, a Consolidação das

Leis do Trabalho (CLT) foi alterada pela Lei 13.467,

mais conhecida como Reforma Trabalhista. A

reforma tem uma amplitude incalculável em mais

de cem medidas que mudam a CLT. O presidente da

época, Michel Temer, divulgou um vídeo em suas

redes sociais dizendo que a nova lei ampliaria os

horizontes do trabalhador brasileiro. Ele ainda

afirmou que “18 milhões de pessoas, que hoje

trabalham precariamente, na informalidade, terão

seus direitos assegurados graças a essa nova lei”.

Ora, vamos com calma. Se por um lado as mudanças

da reforma foram celebradas por algumas categorias,

a verdade é que a maioria das pessoas sente na

pele os efeitos reais das modificações nos direitos

referentes ao âmbito do trabalho.

Ao que tudo indica, as previsões de Temer não foram

bem sucedidas. Em maio de 2018, onze meses após a

consolidação da lei, o índice de desemprego no país

bateu seu recorde. Segundo dados do Instituto Brasileiro

de Geografia e Estatística (IBGE), 22,7 milhões de

brasileiros estavam desempregados. O professor da

Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV),

Paulo Sérgio João, especialista em Direito Trabalhista,

disse em entrevista ao portal da fundação, em fevereiro

de 2019, que não é por meio dessa lei que se terá um

aumento de emprego no Brasil, uma vez que, em termos

de custo, a diferença foi mínima para a maioria das

empresas e não trouxe muitas mudanças. Ele explica

ainda que, “objetivamente, a lei não é suficiente para

impactar a contratação de trabalhadores, porque se

não houver desenvolvimento econômico, se não houver

crescimento das empresas, dificilmente vamos conseguir

algum crescimento”. Além disso, não é suficiente

que haja a diminuição de números se as condições de

trabalho não favorecerem ao trabalhador.

As alterações que não pesaram tanto para as

grandes empresas afetaram de forma diferente a

grande massa de trabalhadores do país. Nem toda

mudança altera para melhor as estruturas. No

caso da reforma trabalhista, a diminuição do peso

da lei gerou o aumento do peso da relação entre o

trabalhador e o empregador, pois dá mais abertura

para que a força e o tempo sejam explorados nos

vínculos empregatícios. Segundo Clemente ganz

Lúcio, diretor do Departamento Intersindical de

Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese),

em entrevista ao jornal O Globo, a reforma gera

desequilíbrio entre capital e trabalho e cria

“mecanismos estruturais de redução do custo

do trabalho e, junto com a terceirização e outras

medidas em curso, cria um ambiente favorável à

fragilização estrutural das relações do trabalho”,

ele explica. Além disso, o aumento de turnos e a

alteração nos períodos de descanso do empregado

possibilitou a precarização das condições de

trabalho em muitas situações. Tudo isso gera fortes

consequências ao indivíduo.

EDIÇÃO 27 | CURINGA 19


Cultura Extrativista

Força humana

Quanto VALE o seu trabalho?

“Durante alguns dias ouviam-se nas entranhas da

rocha os gemidos de muitas dessas vítimas soterradas

pelos desmoronamentos. Frustrados os serviços de

socorro, quando não houve mais esperança de salvar

os vivos sepultados pela catástrofe por impossibilidade

absoluta de atravessar a massa rochosa que os separava

de fora, a solução mais humana que se encontrou

para minorar os seus sofrimentos foi inundar a mina

com as águas das máquinas exteriores e fazer perecer

por asfixia os que teriam de morrer por inanição

angustiosíssima. E lá estão enterradas naquele

gigantesco túmulo de rocha as centenas dos mineiros

infelizes que encontraram a morte perfurando as

entranhas da terra para lhe aproveitar os tesouros”.

Assim foi narrado o desmoronamento de uma

mina de ouro em Itabira da Serra, província de Minas

Gerais, no ano de 1884, pelo político e escritor mineiro

Antônio Olynto dos Santos Pires. 135 anos depois,

na cidade que hoje se chama Itabirito, a realidade

mineradora ainda é muito forte, assim como em

Ouro Preto, Mariana e distritos que torneiam essa

região. O que também é forte, é a maneira como

a mineração conduz o cotidiano de boa parte da

população e traz consequências nem sempre positivas

para o trabalhador que tira dela seu sustento, como

o rompimento da barragem em Mariana - MG e os

diversos déficits que o evento trouxe consigo. 2015

ficou marcado por altas taxas de desemprego na

mineração, tendo no primeiro trimestre do ano quase

cinco mil vagas de emprego fechadas e mais de 8 mil

em um ano (dados IBGE). No Brasil, três milhões de

pessoas são empregadas na atividade mineradora, e

desses, 1.5 milhões são terceirizadas e 500 mil dos

trabalhadores têm carteira assinada.

Em Minas Gerais, segundo dados do Minas Guide

(2018), um guia de economia mineiro, o setor equivale

a 8% da atividade econômica do estado e emprega

diretamente quase 50 mil trabalhadores, em toda a

cadeia extrativista. Entre eles, estava Antônio*. Dos

52 anos de idade, 22 foram dedicados à Vale. Operador

de equipamentos, operador de instalação mecanizada

e operador de produção, Antônio fez da mineração

seu ofício e conhece bem a extração, as máquinas, as

implosões e as consequências físicas e psicológicas

que essa realidade pode causar. Transitou por mais de

um setor na empresa, operou tratores, puxou cabos

de alta tensão, realizou detonações nas minas, inalou

enxofre. Hoje, nove anos depois, ainda sofre com os

danos na coluna causados pelo trabalho constante nas

máquinas de mineração. Além disso, ele sente com o

tormento mental e com os efeitos dos antidepressivos

necessários por conta da demissão e, também, pela

morte da esposa na mesma época. Os tantos anos

de sobrecarga de trabalho e a ausência no ambiente

familiar pesam hoje nas reflexões sobre os anos de

Vale e nas perspectivas futuras. Antônio foi peça de

um jogo de interesses, de uma lógica capitalista e

extrativista, agente de um processo de trabalho que

atribui ao trabalhador o mesmo, ou menor valor,

que uma máquina.

O segmento minero-siderúrgico está inserido

na história mineira e, não à toa, está presente até

no nome do Estado. Mas poderia ter vários outros

nomes: Antônio, João, Paulo, Maria, Lúcia. Os nomes

que operam as máquinas, que entram nas minas, que

puxam os cabos, que inalam o enxofre. Em Minas

Gerais são extraídos minério de ferro, bauxita, fosfato,

manganês, alumínio, potássio, zinco, ouro e outros.

A Fundação Jorge Duprat e Figueiredo (Fundacentro)

constatou que, de 2000 a 2010, o índice médio de

acidente de trabalho no Brasil foi 8,66%. Já o indicador

médio de acidente da mineração em Minas Gerais,

segundo o mesmo instituto, foi de 21,99%, quase três

vezes maior que a média nacional. Minas e Mineração

andam em paralelo constante desde o início do

estado. O Historiador Douglas Aparecido, pesquisador

e assessor especial da Pró Reitoria de Extensão da

Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop), explica

que o ano de 1696 foi um marco historiográfico, pois

nesta data são encontradas as primeiras pepitas de

ouro na região. Os escravos africanos foram trazidos

para cá por já dominarem as técnicas de mineração do

ouro. “A escravidão no modelo europeu, objetifica e

coisifica as pessoas transformando elas em uma espécie

de ‘máquina animada’. Essas pessoas estavam ali para

o tempo todo funcionar como os seus proprietários

queriam”. Para que o indivíduo valesse o preço pago

por ele, deveria ser explorado até o limite. Cerca de

18 horas de trabalhos diários que resultava em baixa

expectativa de vida. Assim, aos 30 anos, o escravo já

era considerado uma peça improdutiva e como uma

máquina, perdia a utilidade para seu senhor. 323

anos depois, o extrativismo da força humana ainda

acontece. Está velado. Hoje em dia o trabalhador se

torna parte da máquina, ganha prazo de validade,

assim como as máquinas que opera.

Além disso, é substancial lembrar que estes

trabalhadores estão em sua maioria em ambientes

de risco. Em cinco de novembro de 2015, a barragem

da Vale em Bento Rodrigues, distrito de Mariana

se rompeu. A lama passou destruindo a natureza,

levando casas e vidas. Recentemente, em 25 de

janeiro deste ano, o crime se repete no rompimento da

barragem de Brumadinho, deixando pelo menos 179

mortos dos quais 131 seguem desaparecidos, em sua

maioria, trabalhadores. Dos vários alertas que vieram

após estes rompimentos, o risco de rompimento

da mina da vale em Barão de Cocais, é o que mais

assusta. “O rompimento do talude vai acontecer. Há

uma questão imponderável se esse rompimento do

talude na cava, se ele vai afetar a barragem. Isso não é

possível precisar”, explica Germano Vieira, Secretário

de meio Ambiente de Minas Gerais. Dessa forma,

além de todos os riscos à saúde oferecidos no dia a

dia, a tensão de correr risco de vida constantemente

afeta o psicológico desses trabalhadores.

20


Antônio traz relatos de como era seu dia a

dia enquanto trabalhador da mineração,

assim como as consequências físicas e

psicológicas que essas vivências deixaram e

a maneira que escolheu lidar com tudo isso.

Qual era seu horário de trabalho?

De 7h às 16h e às vezes ainda fazia hora extra

até às 19h. Muitas vezes quando eu tinha prova,

não dava tempo de estudar. Já chegaram a me

falar que estudo pra mim não significava nada.

A gente tem que escutar, passar por cima.

A empresa prepara o trabalhador para a

realidade diária que ele enfrenta?

Todo dia, na hora de chegar, tem aquele

impacto de você receber novidades, mas

por interesse deles. Então a gente vê que

o trabalhador de turno tem 5 minutos pra

praticamente pegar suas coisas e você tem

que treinar seu psicológico para não esquecer

o abafador, capacete, luva, porque você

não podia esquecer. era todo esse trabalho

pra te preparar pro trabalho, mas não tinha

aquele trabalho pra te preparar fisicamente

para o que você ia enfrentar ali. Então todas

as preocupações deles eram voltadas pro

trabalho, e nunca para o trabalhador.

A empresa prepara o trabalhador para a

realidade diária que ele enfrenta?

Coluna. Foi desgaste decorrente do trabalho.

No fim o trabalhador sempre leva a pior, a

empresa não quer saber se você tá doente,

ela não quer te recuperar, ela quer recuperar

o equipamento que gera produção. A dor

atrapalhou inclusive o meu psicológico.

Quando ela vem, você não consegue sonhar.

Como você lida com as consequências

negativas que todos esses anos na

mineração te trouxeram?

Eu sabia que todas as coisas negativas que

estavam acontecendo comigo em casa eram

devido a empresa, eu via que vinha de lá.

Muitas coisas eu escondia e com o tempo eu

fui me defendendo a respeito de muitas coisas,

passando por cima. Porque, pra gente vencer

tem que ser assim: uns falam não, você fala sim.

Eu acredito que se a empresa tivesse tido um

pouco de paciência, se cuidasse dos funcionários

como eles cuidam dos equipamentos deles, eles

conseguiam me recuperar. Eu estava lá até hoje,

porque eu insistia em trabalhar.

EDIÇÃO 27 | CURINGA 21


Cultura Extrativista

Força humana

Dedicação

Um espaço grande e pouco

acolhedor, porém bastante

familiar para A. C. após

tantos plantões.

Foto: Autor anônimo

Às vezes fico alguns dias sem falar com meus pais. Quando

pergunto porque não ligaram, eles me respondem que não

sabem se estou trabalhando ou dormindo.

A. C. Carioca

22


A vida pela vida

Dos 40 anos já vividos da vida de A. C. Carioca,

muitos deles são relacionados à profissão. Enfermeira

há 12 anos e atualmente trabalhando em um grande

hospital de Belo Horizonte, dedica horas de trabalho

semanais em plantões de 12h por 36h, com quatro

folgas por mês. Números que acarretam em “cansaço

físico e mental”, como ela descreve grande parte

de seu ofício. Atuando na Unidade Coronariana,

responsável por pacientes com problemas cardíacos,

ela lida com a instabilidade de quadros clínicos que

podem se agravar muito de um momento para o

outro. Interagir com a saúde de outras pessoas não é

tarefa fácil, e sentir-se responsável por elas acarreta

uma sobrecarga nos profissionais da saúde, bastante

difícil de lidar na maioria das vezes.

Em uma pesquisa publicada na 22ª edição da

Revista Latino Americana de Enfermagem, em 2014,

pesquisadores da Escola de Enfermagem de Ribeirão

Preto explicam que muitas das preocupações

com a exploração emocional e as consequências

que a realidade da profissão podem gerar em sua

vida pessoal partem do forte contato com seus

pacientes que estão em situações delicadas, isto

é, “questionamentos relativos à maneira como

eles conseguem suportar situações desgastantes,

principalmente pela constante convivência com o

sofrimento, dor, a morte e tantos outros sentimentos

e reações desencadeadas pelo processo de doença.

Essa angústia está, de fato, presente na realidade de

A. C. Recentemente ela acompanhou de perto o óbito

de um de seus pacientes e o sofrimento da família.

Mas, ao mesmo tempo que lidar com as perdas é

algo difícil, poder confortar o outro possibilita o

alento pessoal, “No final, mesmo diante da dor da

perda, a esposa me abraçou e agradeceu por tudo que

tentamos fazer pelo marido dela”, afirmou Pipoca.

Trabalhando em plantões agitados, o reflexo da

intensidade desses turnos é evidente em sua vida

pessoal. Não é raro dizer “não” para os encontros de

amigos, seja pelo cansaço ou para poupar energia para o

plantão seguinte. O contato com a família, que mora em

Mariana, MG, também tem se estreitado. Ela vai para

a cidade quando as folgas coincidem, mas eles sentem

falta do relacionamento diário, mesmo que à distância:

“Às vezes fico alguns dias sem falar com meus pais e

quando pergunto porque não ligaram me respondem

que não sabem se estou trabalhando ou dormindo”,

explica. Um estudo realizado pelo IBGE (2015) sobre

trabalhadores do ramo da saúde no país, consultou um

expressivo número de pessoas, incluindo auxiliares e

técnicos de enfermagem, enfermeiros com nível superior

e profissionais aposentados. Segundo os resultados, 66%

dos entrevistados afirmam sofrer desgaste profissional e

80% são técnicos e auxiliares de enfermagem.

A.C.Carioca está entre essas pessoas que dedicam

praticamente todo o seu tempo ao cuidado de outras

vidas, seguindo à risca o juramento que fez no dia de

sua formação: “Juro dedicar minha vida profissional

a serviço da humanidade, respeitando a dignidade

e os direitos da pessoa humana, exercendo a

Enfermagem com consciência e dedicação…”. Entre

um plantão e outro, Ana tenta organizar sua rotina,

buscando o melhor para a saúde de seus pacientes,

que nem sempre é o melhor para ela.

A.C.C, José, Antônio, e milhares de outros

brasileiros estão inseridos nessa realidade que extrai do

trabalhador a sua força em múltiplos aspectos. Força

física, psicológica, força de vontade para vencer a batalha

diária de um sistema capitalista que parece ignorar a

sensibilidade que diferencia e coloca um abismo entre

homem e máquina. Tenta-se também, aumentar o

tempo de produção desse homem máquina, mas não se

importam e muito menos se responsabilizam quando

uma pane faz com que parem de funcionar e postergam

sem pena o tempo de descanso.

Em fevereiro de 2019, o texto da Reforma da

previdência, escrito pelo atual ministro da economia

Paulo Guedes, foi entregue ao Congresso Nacional

pelo atual presidente e apoiador da reforma

Jair Bolsonaro. Na proposta, a idade mínima de

aposentadoria do trabalhador homem, que é de

60 anos, passa a ser 65, e da mulher, que é de 55

anos passa a ser 62. No sistema atual, que é o de

repartição, o trabalhador é a base de sustento para

o aposentado. No proposto, chamado sistema de

capitalização, o trabalhador coloca o dinheiro no

banco compulsoriamente e não há a garantia de que

o percentual recebido seja equivalente ao que foi

depositado quando o indivíduo se aposentar.

Após 25 anos, o tempo mínimo de contribuição,

o empregado receberá esse valor, que provavelmente

será baixo. André Mourthé, professor de Economia

da UFOP, explica que, não por acaso, quem escreveu

a reforma foi um bancário, uma vez que os bancos

lucram aplicando o recurso que fica com eles. Levando

em consideração que a maioria da população ganha

pouco e/ou não possui carteira assinada, na proposta

do Governo esses indivíduos estarão completamente

ao “Deus dará” quando chegar o momento de se

aposentar. Para o professor, isso é inadmissível.

“Precisamos sim fazer uma proposta

previdenciária, mas não a do Guedes. A repartição é

muito mais ajustável, humana e socialmente justa”,

afirma Mourthé. O sistema não valoriza o trabalhador

e não funciona sem ele. Em 1977, o músico baiano

Raul Seixas bem explicou: “O empregado não saiu pro

seu trabalho, pois sabia que o patrão também não tava

lá. Dona de casa não saiu pra comprar pão, pois sabia

que o padeiro também não tava lá. E o guarda não saiu

para prender, pois sabia que o ladrão não estava lá. E

o ladrão não saiu para roubar, pois sabia que não ia

ter onde gastar. No dia em que a Terra parou”. Porque,

sem o trabalhador, nada vai funcionar.

*Foram utilizados nomes fictícios para proteger as fontes.

EDIÇÃO 27 | CURINGA 23


O corpo (delas)

na cidade

As relações das mulheres que trabalham com a prostituição não se

limitam aos clientes. Antes, há a conexão do corpo com a sociedade e

a partir dela, os prazeres e os problemas.


Baixo Centro

Ali toda a metrópole está escancarada em sua essência

mais crua: o comércio, o trânsito, a prostituição, enfim,

a vida de quem habita ou transita por essa região. Rua

Guaicurus de dentro do carro, BH – MG.

Texto de Letícia Lopes de Souza

Fotografias de Larissa Helena

Design de Bárbara Alvina

Quando se pensa em prostituição, das ruas aos

quartos de Hotel, em qualquer lugar do Brasil,

o significado do corpo é ambíguo. Na realidade

das mulheres que o usam como instrumento de

trabalho podem estar envolvida a luta delas por

reconhecimento, respeito, saúde, quebra de tabus e,

também, uma forma de encontrar prazer.

Segundo o antropólogo e filósofo Le Breton, o corpo

é o meio pelo qual se evidencia a construção de uma

interação com o mundo. Então, quando dizemos sobre

a forma como os corpos são usados, explorados ou

amados, dizemos sobre nós, sobre a nossa capacidade de

reconhecer as relações, os direitos, as falhas e, sobretudo,

os limites que nos pertencem.

EDIÇÃO 27 | CURINGA

25


Cultura Extrativista

Prostituição

A sociedade escolheu, entre outras, as palavras

‘’zona’’, ‘’puteiro’’, ‘’sobe-desce’’ para se referir aos

hotéis de prostituição. Ao subir as escadas de um

dos 28 hotéis da rua Guaicurus, em Belo Horizonte,

carregamos previamente a ideia de que a profissão de

prostituta tem relação direta com o uso e/ou com a

exploração dos corpos.

Na capital mineira, a marginalizada região do

baixo centro é o local de trabalho de cerca de três mil

mulheres, conforme contabiliza Flávio Dornas, dono

de um dos hotéis que conhecemos durante a apuração.

O cotidiano simples, o comércio apelativo e o trânsito

caótico compõem o cenário do lugar que recebe, por

dia, aproximadamente cinco mil homens à procura do

que as garotas de programa podem oferecer: do sexo a

simples trocas de palavras.

Os dados disponibilizados, em 2018, pela Fundação

Mineira de Educação e Cultura (Fumec), revelam que

1,5 milhões de pessoas se prostituem no país. O número,

apesar de ser alto, não assegura a regulamentação desse

tipo de trabalho, cuja situação é precária e passa como

que despercebida pela Legislação brasileira.

Ao contrário do que muitas pessoas acreditam,

prostituir-se não é crime. O recém-extinto Ministério

do Trabalho reconheceu a profissão em 2002. Dez

anos após, a proposta de Lei 4.211/12 , que ficou

conhecida como Lei Gabriela Leite - em homenagem

à prostituta brasileira de São Paulo, que morreu

26


Espaço Urbano

Os mundos da prostituição coexistem, de

modo que, sejam delimitados e confinados.

Rua Guaicurus vista de cima, BH– MG.

de câncer, em 2003 -, tentava regulamentar a

profissão, a fim de assegurar direitos trabalhistas

também aos profissionais do sexo.

A proposta de Lei Gabriela Leite, que não chegou

a ser votada pelo Congresso, não esclarece todos os

significados da palavra exploração. Ela também nada

diz acerca da exploração do corpo, sobretudo, do corpo

da mulher, sendo que é perceptível que, com seu uso

excessivo, ocorre a falta de acesso à saúde, o baixo

pagamento e a desvalorização do trabalho, como os

problemas mais frequentes das mulheres sujeitas a ele.

Os salários e pagamentos na região da Guaicurus,

segundo Flávio Dornas, varia de R$5,00 a R$15,00, “para

começar”. Depois, dentro do quarto, de acordo com

os desejos do cliente e da disponibilidade da garota de

programa, os valores podem ir aumentando. Para A.,19

anos, o preço pelo trabalho que se oferta é baixo, e ela

considera isso - sim - como uma forma de exploração.

“A gente só se sente explorada, quando sai e vê que não

vale só isso”. Mesmo fazendo seus próprios horários,

por causa do valor recebido por cada programa, as

profissionais precisam atender quantos clientes a sua

necessidade financeira pede.

A., é uma garota de programa que está vinculada

a um site que divulga seu trabalho na internet.

Prostituta há um ano, ela já trabalhou no “sistema

de cafetinagem”, no qual a garota de programa paga

um aluguel para pertencer a uma casa, e diz que

nele as chances de ser explorada são muito maiores.

“Os horários são eles que escolhem, que atendem os

telefones, a gente é obrigada a trabalhar menstruada,

querendo ou não. Temos metas e elas precisam ser

cumpridas”. Hoje, trabalhando de forma autônoma, ela

relata outra situação: “atendo no máximo 3 homens

por dia. Pelo meu bem-estar e pelo do cliente”.

A sexóloga Bruna Coelho, ao contextualizar a

prostituição como uma profissão complexa em todos os

âmbitos, chama a atenção para os danos psicológicos

que podem ser desencadeados. “O nosso corpo tem

limites. Como elas se cuidam subjetivamente e

psicologicamente?”, ela questiona.

Foi a partir de uma inquietação como essa que o

Coletivo de Belo Horizonte, Clã das Lobas, começou.

Tamires, garota de programa que integra o grupo

formado por prostitutas surgido dentro de um dos Hotéis

na Rua Guaicurus, em 2018, percebeu, entre as colegas

de trabalho, a necessidade de cuidado psicológico. Desse

modo, são organizadas palestras, encontros e passeios

guiados pela região para desmistificar questões sobre

a prostituição e arrecadar dinheiro para o coletivo.

“Sempre tivemos apoio para a saúde. Mas da cintura pra

baixo. É preciso pensar a saúde mental”, justifica.

A sexóloga Bruna diz que, como as garotas de

programas são marginalizadas, elas psicologicamente

podem sofrer com o afastamento social e a quebra

de vínculos. Essa situação reverbera em solidão,

depressão e culpabilização. “Há muitas prostitutas

que ficam dependentes de substâncias em virtudes

de certos vazios que têm que enfrentar. Há as que

enfrentam questões existenciais, pois a profissão

envolve um contato carnal e físico e, mesmo que

estejam acostumadas, nem sempre estão preparadas”.

EDIÇÃO 27 | CURINGA

27


Cultura Extrativista

Prostituição

Pensando mais na saúde física, Laura Maria do

Espírito Santo, nome dito por ela mesma com orgulho,

ex-prostituta, se tornou vice-presidente da Associação

das Prostitutas de Minas Gerais (Aspromig). Uma das

responsáveis pela distribuição de camisinhas na região

da Guaicurus, Laura relata sobre o preconceito que a

sociedade tem no que diz respeito à saúde da mulher

garota de programa. Segundo ela, o índice maior

de doenças não está nos hotéis, mas nas ruas. “São

pouquíssimos casos de doenças por aqui. O homem [é]

quem vem da rua com a doença e traz pra cá, mas a

maioria delas [as garotas de programa] estão conscientes

de que tem que usar o preservativo. Quando os homens

sugerem sem camisinha elas riem da cara dele”, conta.

Tamires, Clã das Lobas, também comentou que

um dos desafios em lidar com a saúde física vem do

preconceito social, que gera vergonha nas garotas de

programa em procurarem um médico e conversarem

abertamente com ele sobre os seus problemas. “Nós

precisamos chegar no médico e falar que somos

garotas de programa, porque temos demandas que

são diferentes”, afirmou.

Além de distribuir os preservativos, a Aspromig

oferece testes gratuitos e instantâneos de HIV, para

diagnosticar a Aids, e ISTs. Também, a entidade

estabelece diversas parcerias com estudantes de

Universidades públicas e privadas, atuantes nessa

área da saúde, que oferecem testes, consultas

preventivas e psicológicas.

A importância de que haja projetos que vão até

as garotas de programa nos hotéis, como fazem a

Associação e o Coletivo, está muito ligada à itinerância

no atendimento por parte dessas trabalhadoras.

Como a maioria não trabalha em locais fixos, os

tratamentos são dificultados, tornando isso uma

outra questão para a saúde delas.

Laura Maria conta que a Associação começou

porque havia muitos casos de violência e que as

“meninas”, como ela chama as garotas de programa,

eram muito recriminadas. “Começamos para cuidar e

levantar a autoestima delas”.

Na tentativa de dar segurança às profissionais, a

Aspromig, que tem parceria com a Polícia Militar, em

reunião, solicitou aos donos de hotéis a instalação de

câmeras e detectores de metais na entrada dos locais

de trabalho delas. “Aqui nós é que mandamos, se não

colocar [câmeras e detectores], a gente denuncia. Aí

a violência diminuiu”.

As situações de violência e exploração contra as

prostitutas, embora saibamos que existam, não são

denunciadas. Adriana Pereira, delegada da Delegacia

de Polícia Civil, Delegacias e Distritos Policiais em

Ouro Preto, diz que, desde que assumiu o cargo, não

se lembra de nenhuma denúncia. Para ela, os registros

oficiais não chegam até a polícia pelos motivos de

vergonha, medo e, principalmente, pela falta de

conhecimento dos direitos. Contudo, não há nenhum

procedimento específico para garotas de programa

violentadas, e, segundo Adriana, o procedimento dado

a elas é o mesmo direcionado a todas as mulheres, com

a abertura de um inquérito e uma investigação.

Quanto aos termos de tratamento direcionados

às mulheres que trabalham com sexo, há variedades.

No dicionário, a palavra puta é qualquer mulher de

conduta ludibriosa que está entregue à libertinagem. No

significado real, dado pelo senso comum, puta é, para

a maioria, um nome pejorativo destinado às mulheres

que trabalham com a prostituição e, ainda, mulheres

que se comportam de forma contrária ao definido pelo

conservadorismo. Mas, para outras pessoas, a palavra

puta assume o significado de empoderamento no sentido

de tornar positiva uma palavra que é negativa.

Laura Maria é uma das garotas de programa que

não gosta de ser chamada de puta. Assim como ela,

A. e Tamires também não se sentem confortáveis

quando mencionamos esse termo. Profissionais do

sexo, garotas de programa e até baby (nome dado às

prostitutas de luxo) são as maneiras de tratamento

preferidas por elas. Caroline, que está na “vida” há

três anos, diz que não se importa com a nomenclatura:

“O nome disso é puta. Se quiser, até piranha”. Pois,

para ela, sua profissão é simples: “ganhar dinheiro,

prestar serviço e correr riscos”.

Uso do corpo ou exploração?

A recorrente discussão sobre a exploração e o

uso do corpo na prostituição que ocorre fora dos

prostíbulos, nas redes sociais e nos congressos, traz

palavras- chave como “direito”, “mercantilismo”,

“escolha”, “regulamentação” e “legalização”. As

diversas opiniões dadas pelas garotas de programa,

mulheres ativistas, membras do coletivo e, até mesmo,

homens, dizem sobre a maneira como a sociedade lida

com o corpo feminino e o trabalho. Seja qual for a

opinião, segundo as nossas entrevistadas, ela está

28


carregada de estereótipos e tabus a respeito não só da

profissão, mas também do corpo da mulher.

A sexóloga Bruna conta que o sexo, desde

antigamente, é visto como uma ameaça à ordem social

e atuante como uma prática potencializadora do corpo.

O casamento por exemplo, era a única ocasião em que

o sexo era aceitável, porque já estava estabelecido por

meio do matrimônio uma maneira de controlar a ação

corporal. “Toda a visão sobre o sexo foi construída visando

ao controle dos corpos”. As mulheres que desobedeciam

essa ordem eram vistas como bruxas e sofriam duras

consequências. Até hoje, essa ideia reverbera diversas

impressões negativas às mulheres e, principalmente,

às prostitutas. Pois, além de desobedecerem a ordem

fazendo sexo fora do casamento, elas ainda cobram por

ele, e por isso, são multiplicadamente rechaçadas.

Então, prostituir-se significa o alcance da liberdade

sexual e social? Não exatamente. Todas as entrevistadas,

embora consigam se sentir minimamente confortáveis

na profissão, não a escolheram por simples vontade

de se prostituir. Há problemas de diversas naturezas,

subjetivas e não subjetivas, que fazem com que essa

mulheres entrem para a prostituição.

A ativista e jornalista Meghan Murphy, em artigo

no site QG Feminista (2017), defende a ideia de que “as

indústrias do sexo existem não por causa das ‘escolhas’

das mulheres, mas por causa das escolhas dos homens e

a consequente falta de escolha das mulheres”.

Assim, Murphy lembra “que a prostituição existe

porque homens querem ter acesso ao corpo de pessoas

para quem eles não devam responsabilidade.” Seguindo

esse pensamento, podemos dizer que a prostituição é

considerada uma forma de exploração.

É uma profissão como qualquer outra.

“ Um dia pelo outro. Tem prós e contras.

Tamiris ”

“Existem mulheres na prostituição que estão ‘bem’,

e você pode achar um bom número de mulheres online

que dirão exatamente isso. Mas existem incontáveis

mulheres na prostituição que definitivamente não

estão bem - aquelas cujos cafetões não as permitem

conversar com os jornalistas. Vale a pena considerar as

vozes que não estão presentes online, nesse chamado

‘debate sobre o trabalho sexual’, e nos perguntar o

porquê de sua ausência”.

A discussão, como se pode ver, é infindável e

necessária. Falar sobre prostituição é falar sobre

atualidade, direito e cuidado ao corpo feminino.

Representação

A presença da prostituição na Guaicurus é uma relação “sócio espacial”, ela influencia no ambiente e é influenciada por ele. Da esquerda para direita:

pintura feita por artistas de Manaus em homenagem a Nice, ex-prostituta e atual cozinheira na região; publicidade de hotel colado em poste.

EDIÇÃO 27 | CURINGA

29


Cultura Extrativista

Prostituição

Bruna Surfistinha: aquela que deu certo

É assim que a escritora, DJ, roteirista e

empresária Raquel Pacheco, 34 anos, exgarota

de programa que ficou conhecida como

Bruna Surfistinha se descreve. Em entrevista à

Curinga, Raquel comenta as vivências de uma

prostituta que conheceu a fama por meio da

“profissão que mais sente na pele a sociedade

machista na qual vivemos”.

Como é ser uma garota de programa no Brasil?

Como o país trata esse tema?

Ser garota de programa no Brasil é seguir uma

profissão não reconhecida pela maioria e sentir

o peso gigante de um estereótipo. Da época

que me prostituí até o momento, embora não

viva mais diretamente na prostituição, percebo

que houve mudanças, mas ainda assim há um

preconceito velado. Infelizmente, muitos ainda

enxergam as prostitutas como mulheres que

querem a tal “vida fácil”. Não há empatia por tais

profissionais e talvez seja ainda a profissão que

mais sinta na pele o machismo da sociedade.

Você consegue dar um motivo para esse

preconceito? Mesmo não sendo mais garota

de programa, você já foi ou é alvo dele?

Boa parte do preconceito é por conta do

machismo da sociedade em que vivemos. A

visão dos preconceituosos é que a mulher que

se prostitui é apenas um pedaço de carne,

como se vender o corpo fosse apenas o que

saiba fazer. É preciso mostrar o lado humano

dessas mulheres, na tentativa de conquistarem

mais respeito, afinal, são pessoas que sentem

dores e amores, com sonhos e planos de vida,

enfim, nem melhores nem piores a ninguém, são

apenas mulheres que estão por um momento

vendendo não o corpo, mas seu tempo, para

proporcionar prazer a desconhecidos. Elas

têm coragem e necessidade de cobrar por

isso. Até hoje sofro preconceito, menos do que

enfrentei no início, mas ainda sinto na pele sim,

no entanto não me incomoda mais, aprendi a

lidar com esta situação.

Levando em conta a sua vivência, qual o maior

problema da prostituição e/ou de ser uma

garota de programa?

São vários problemas, mas o maior deles

acredito que seja ter que encarar uma vida dupla

como acontece com a maioria que tem medo de

assumir a profissão aos familiares e amigos por

medo da reação deles e, consequentemente,

sofrer rejeição, preconceito e abandono pelas

pessoas que mais amam. Trabalhei com muitas

mulheres que tinham a prostituição como o

maior segredo da vida delas, inclusive algumas

eram casadas, mas os maridos nem sonhavam

o que elas faziam durante o dia. A prostituição é

um mundo de mentiras e com um lado sombrio

muito grande, é preciso ter coragem.

Considerando o corpo como ferramenta de

trabalho, você acha que na prostituição ele

seja, de alguma forma, explorado?

De fato o corpo é a principal ferramenta de

trabalho para as garotas de programa, em

segundo lugar é a saúde, a qual todas tomam

muito cuidado. Acredito que as prostitutas

se cuidam mais do que muitas mulheres que

não são, se preocupam em usar camisinha,

pois sabem do risco grande que correm por

ter diversos parceiros diariamente. Sobre os

limites, cada uma impõe o que concorda ou

não, acaba sendo “meu corpo, minhas regras”.

Todas sabem, ou deveriam saber que embora

estejam ganhando dinheiro para proporcionar

prazer, não são obrigadas a nada. Nenhuma

mulher é obrigada, por que com as prostitutas

deveria ser diferente?

Você acredita que a sensação de exploração é

a mesma para todas as garotas?

A exploração está muito mais associada às que

trabalham para algum cafetão. Eu trabalhei para

quatro e me sentia explorada demais, assim

como via o sofrimento das minhas colegas

por conta disso. Além de ter que pagar no

mínimo 40% do valor do cachê ao cafetão, há

outras questões também, eu tive que trabalhar

queimando de febre, com dores, menstruada,

triste, enfim, não existia justificativa alguma para

não poder trabalhar.

Quando você decidiu que não seria mais

garota de programa e por quê?

Iniciei meu ano de 2005 já decidida que seria o

último ano na prostituição, eu já estava cansada

e não sentia mais prazer algum em estar naquele

mundo, já tinha feito tudo o que tinha vontade,

vivi três anos com intensidade. Meus conflitos

internos se tornaram mais fortes dentro de

mim do que a vontade de continuar ganhando

bastante dinheiro fazendo sexo. A vida de

uma garota de programa geralmente é muito

solitária, vivemos naquele mundo de mentiras,

temos vários homens durante a jornada de

30


trabalho, mas ao mesmo tempo que temos

muitos, acabamos não tendo ninguém. Cheguei

no meu limite físico e emocional para lidar com

diferentes tipos de homens.

Com a chegada da fama, do livro, do filme,

quais foram as principais mudanças na sua

vida?

Nunca tive pretensão de fama! Fama para mim

era algo que passava longe do meu objetivo

de vida pois eu sempre fui tímida demais para

encarar câmeras. A repercussão do do blog

que fiz em 2013, falando sobre minha história

de vida e depois, sobre a relação com os

clientes, foi muito rápida e grande. Em poucos

dias, comecei a receber clientes que diziam

que eram meus leitores.

Sempre lidei com a fama de uma maneira muito

tranquila, com os pés no chão. Tem um lado muito

gostoso, mas a fama tem um lado que quem

está de fora, dificilmente enxerga. Não é a toa

que muitos famosos enfrentam depressão, têm

as drogas como fuga, não é tão simples como

parece ser. Eu tive muita sorte por ter colhido

tantos frutos bons neste período todo e sei que

marquei uma geração. Já faz 15 anos que sou

conhecida como a Bruna Surfistinha e mesmo

longe dos holofotes, sou reconhecida em todos

os lugares que vou, não passo despercebida.

Valorizo muito o reconhecimento do meu público.

Acabei sendo a pioneira no Brasil, sendo a

primeira garota de programa dando a cara à

tapa para a sociedade, sem medo.

Sabemos que, ao falar de prostituição, a mídia

ainda traz uma abordagem marginalizada da

profissão. Com as produções que trouxeram

seu protagonismo (e sua versão dessa

realidade), você acha que as garotas de

programas se sentiram representadas?

Acredito que o filme ajudou demais a quebrar

boa parte do preconceito. Muitas pessoas até

hoje comentam comigo que começaram a

enxergar a prostituição de uma nova maneira

após o filme, com mais respeito. O filme

mostrou a realidade, não vende como “vida

fácil” porque não é. As cenas de sexo poderiam

ser representadas apenas por galãs, mas fugiria

completamente do que acontece de fato. A série

mostra o lado humano com mais intensidade

comparando com o filme.

A mídia em geral mostra a garota de programa

estereotipada de certa maneira, talvez porque

o público aceite melhor assistir quando é desta

maneira. Acabei quebrando este estereótipo e

é por isso que minha história despertou tanta

atenção. Acredito sim que muitas garotas de

programa se sentem representadas por mim.

Não todas, porque é impossível agradar toda a

classe, mas pela maioria, posso afirmar que sim.

Guaicurus

A prostituição não tem rostos. Ela tem lugares.

Há mulheres cis, trans, negras, gordas, de todos os

jeitos, e que não seguem um padrão ou estereótipo.

31


Uma cultura assenhorada

pelo mercado

Quando os símbolos da cultura negra são apropriados e ressignificados

pela indústria cultural , transformando-se em produtos para consumo,

promove-se uma desigualdade: a marginalização de uma etnia.

Texto de Franciele Silva, Jean Lourenço e Rômulo Soares

Fotografias de Franciele Silva e Rômulo Soares

Design de Franciele Silva

A

festa de aniversário da diretora da Vogue Brasil,

Donata Meirelles, realizada em fevereiro de

2019, contou com mulheres negras vestidas

de “mucamas” e decoração que remetia ao Brasil

escravocrata. Eventos recentes como esse suscitaram

discussões éticas envolvendo a apropriação de culturas.

Mas o que é, de fato, apropriação cultural?

Para José Arlindo do Nascimento, Assistente Social

e Especialista em Igualdade Étnico Racial na Escola,

pensar a apropriação cultural é fazer uma análise de

complexidade. “Até o termo apropriar perpassa pelo

estranhamento, pois você se apropria de algo a que

acha ser simplesmente de seu domínio. Em termos de

cultura o debate tem que perpassar por aquilo que está

no âmbito privado e público.”

A cultura afro e afro-descendente é reconhecida

pela Lei 10.639, aprovada em dezembro de 1996,

identifica a contribuição do povo negro nas áreas

social, econômica e política pertinentes à História

do Brasil. Contudo, essa cultura é constantemente

esvaziada de seu significado. No histórico de nosso

país, o uso da força física e as imposições da vontade

da Casa Grande (homens brancos que escravizaram

negros entre os séculos XVI e XIX) na organização da

sociedade evidenciam as raízes do racismo.

A abolição da escravidão, em 1888, por meio

da assinatura da Lei Áurea, e um ano depois, a

Proclamação da República, não modificaram, na prática,

os argumentos da diferença racial para a dominação

de pessoas. “Desde a escravidão esta ideologia [da

supremacia racial] vinha sendo impregnada na vida

desta sociedade. Quando pensamos no termo escravidão

e colonização sem levar as diásporas africanas como

experiência humana, negamos a história dos povos

que se reconstruíram como territorialidade nestes

espaços contraditórios”, afirma Arlindo. Com isso, a

diminuição do negro e tudo que faz parte da sua cultura

é essência do racismo e também é ferramenta das esferas

dominantes na luta de classes. “O racismo é a peça chave

para entendermos o alijamento dos corpos negros tanto

nos espaços públicos quanto privados. A inferiorização

da cultura negra é estratégia para atuar como forma de

controle, de frear o crescimento ou ascensão dos setores

estigmatizados”, complementa.

Para o Assistente Social, o debate do país

miscigenado e intercâmbio de culturas, é uma das

formas de velar o racismo.“Acho muito perigoso pensar o

Brasil como um país miscigenado. A miscigenação é um

fenômeno cultural que demarcou as relações sociais e

ainda prevalece na atualidade. Antes dela acreditava-se

que para o desenvolvimento fosse necessário apagar as

imagens de um Brasil escravizado,” diz.

Nos dias de hoje, há um enaltecimento dessa

miscigenação, observada sobretudo na difusão de

produtos culturais pelo mercado. Historicamente, os

símbolos negros são formas de resistência, de luta contra

a dominação. Uma vez incorporados pela lógica do

consumo, a identidade desses símbolos é ressignificada

e simplificada sendo extraída, esvaziada e transformada

em mercadoria com uma roupagem branca. Por isso, não

se trata apenas de dizer o que é coisa de preto e coisa de

branco, e sim de reconhecer uma luta identitária.


Manifesto

Ato contra a apropiação e apagamento da

cultura negra pela indústria cultural.

Foto: Franciele Silva

EDIÇÃO 27 | CURINGA 33


Cultura Extrativista

Símbolos Negros

Vestuário negro sem corpos negros

O uso de elementos do vestuário afro pela indústria

da moda tornou ponto central de calorosos debates. No

ano de 2015, a cantora Miley Cyrus e a empresária e

modelo Kylie Jenner, ambas estadunidenses e brancas,

foram criticadas por usarem dreadlocks (penteado

tradicionalmente da cultura negra que consiste em

mechas de cabelos entrelaçadas em forma cilíndrica).

Em 2016, a Revista Vogue promoveu como temática

para seu tradicional baile de carnaval, a “África”,

trazendo como anúncio: “Para quem ainda não tem

fantasia, o nosso guia fashion africano te ajuda a se

embelezar para o Baile da Vogue 2016”. Já em 2017, o

debate se formou quando a estudante branca Thauane

Cordeiro acusou uma mulher negra de a repreender por

estar usando turbante; a estudante, a partir do ocorrido,

resolveu fazer um post no Facebook, lançando a hashtag

com a mensagem “vai ter todos de turbante sim”.

O apoderamento de elementos do vestuário negro é

um assunto que ultrapassa um entendimento pessoal.

O turbante, por exemplo, é um importante símbolo de

luta contra a discriminação e afirmação da identidade

afro-brasileira, como ressalta a historiadora e africanista

Sidnéia Santos. “É difícil explicar às pessoas brancas

como esses elementos são dotados de significado. É

difícil explicar que aquilo que ela está usando é de uma

cultura que não é dela, que é uma cultura de luta, de

resistência, de visibilidade, porque durante muito tempo

nós ficamos invisíveis. Não que uma mulher branca

não tenha o direito de usar o turbante, ela pode até

usar, mas o turbante tem um outro significado e não é

simplesmente um enfeite”, explica.

Não que uma mulher branca não tenha o

direito de usar o turbante, ela pode até usar,

mas o turbante tem um outro significado e

não é simplesmente um enfeite.

Sidnéia Santos

Foto: Franciele Silva

Padrão de Beleza

Dotadas de significados as peças do

vestuário negro são apropiadas e

expostas nas passarelas trajadas em

corpos padronizados.

34


O vestuário negro carrega significados, são formas

de empoderamento e resistência contra a dominação.

Diante de acontecimentos que têm a apropriação

cultural como pano de fundo, que demandam com mais

frequência novas discussões, é importante entender que

não se trata apenas de estética, mas de história e de

apropriação da cultura de uma minoria.

A representatividade negra na indústria cultural é

necessária para criar um sentimento de pertencimento,

porém o que vemos são sujeitos culturais sem histórias,

como aponta José Arlindo. Ele destaca que o que rege

a indústria cultural é a cultura de massa, que valoriza

o múltiplo sem levar em conta as singularidades

ou vice-versa: “quando pensamos somente a partir

desta dualidade como princípio acabamos por aceitar

a individualização das relações sociais. Neste caso,

despolitizamos os processos da vida social, como é o

caso da indústria cultural”.

Aliada à publicidade e à mídia, a indústria da moda

vende esses elementos como acessórios que, ocupando

outros corpos, passam a ser considerados cool, fashion.

“Uma marca vai lá, pega todas as miçangas das tribos

africanas e põe na loja valendo mais de cem dólares. Aí

vem as modelos branquelas esqueléticas desfilando com

aquilo e não se preocupam nem em contar a história nem

nada. E essas coisas ficam sendo tidas como normal. A

mulher branquinha faz lá uma trança e aí é: que linda,

deixa eu tirar uma foto, mas, quando é a mulher negra

é: isso fede? ”, critica Sidnéia.

Moldados a uma cultura branca, são reconstruídos

com uma carga positiva quando trajados a corpos

brancos, mas, em corpos negros, que são donos desses

elementos, voltam a ter uma carga negativa. Tendo

como modelo um padrão eurocêntrico onde a beleza

é caracterizada pelo tom de pele branco, estatura alta

e manequim magro, a moda acaba sempre buscando

esses estereótipos. Esse cenário pode ser observado

quando se quantifica o número de modelos negros

no casting (palavra originada do inglês, no universo

da moda se refere ao processo de seleção de elenco

para desfiles, ensaios e campanhas publicitárias) das

principais agências de modelos do Brasil, classificadas

segundo o Site Oficial dos Profissionais da Moda

Brasileira, MODELSBRASIL.com.

Os dados de 2019 disponíveis revelam que na Agência

Ford Models, de um total de 225 modelos femininas,

cerca de 13% são negras (30 modelos); já de 94 modelos

masculinos, cerca de 11% são negros (10 modelos). Na

Agência Mega Model Brasil, também de 225 modelos

femininas, 30 delas são negras. Já de 127 modelos

masculinos, por volta de 7% são negros (9 modelos). É

notório os baixos números de representantes negros

no elenco dessas agências, o que reforça ainda mais

o apagamento da identidade afro diante um mercado

da moda que expõe para fins comerciais os elementos

estéticos dessa cultura.

O vestuário afro está nas passarelas, contudo, sem

seus representantes. Essa situação se estende a outros

lugares, como nas festas de carnaval, onde é recorrente

o blackface (surgido no começo do século XIX, nos

Estados Unidos, o blackface, em português rosto negro,

consiste em uma caracterização racista com estereótipos

atribuídos aos negros: rostos pintados de preto e

lábios pintados de vermelho; feita por atores brancos).

Testemunha de uma situação de blackface ocorrido

durante o carnaval deste ano da cidade histórica de Ouro

Preto, Sidnéia relata o ocorrido: “Esse ano eu xinguei

uma moça na praça Tiradentes, porque ela estava vestida

de ‘negra maluca’, de ‘black face’. Eu parei de frente para

ela e falei: - eu não sou uma fantasia de carnaval. Ela

olhou para mim, abaixou a cabeça e foi para o meio do

povo. Mas a minha vontade era de registrar um boletim

de ocorrência naquele momento. E será que a polícia

ia me compreender? Será que eles iriam compreender

aquilo que eu estava dizendo? Porque a mulher estava

se fantasiada de mim, com cabelo crespo, a pele preta, o

batom bem escandaloso, um vestido cheio de cor. E eles

acham que isso é normal, eles acham que a gente tem

que concordar com isso”, desabafa.

Esse ano eu xinguei uma moça na Praça

Tiradentes, porque ela estva vestida de

negra maçluca, de black face.

Sidnéia Santos

EDIÇÃO 27 | CURINGA

35


Cultura Extrativista

Símbolos Negros

Gourmetização da comida africana

Na culinária brasileira também houve um processo

de apagamento das tradições de origem africana. As

mulheres negras escravizadas, por exemplo, vendiam

alimentos nas ruas levando tabuleiros, geralmente

com carnes, frutas, hortaliças e uma gama de produtos

difundidos na rotina dos cidadãos da época. Conhecidas

como “escravas de ganho”, porque realizavam tarefas

remuneradas a terceiros e adquiriam parte do dinheiro,

essas mulheres mantinham algumas práticas econômicas

e culturais que preservavam o elo com a África.

A partir dos processos de mistura de etnias e de novas

formas de organização e racismo estrutural, a comida

africana trazida para o Brasil foi sendo invisibilizada à

medida que seus ingredientes foram apropriados em

diversos contextos. Para a professora de gastronomia do

Instituto Federal de Minas Gerais (IFMG) e especialista

no projeto Memória e Identidade de receitas das

mulheres negras de Ouro Preto, Luanda Demarchi, o que

vem da comida africana nunca se destaca como tal. A

exemplo, temos o quiabo e o inhame, que são alimentos

típicos do continente africano.

Foto: Franciele Silva

36


A pesquisadora acredita que é complexo mensurar

como se deu a influência africana na comida brasileira

porque ela era feita por mulheres escravizadas a mando

das senhoras e senhores brancos, que contribuíram

para o esvaziamento dos sentidos. “Até onde as escravas

que estavam na cozinha mudaram receitas a mando

de Sinhás, colocaram outros temperos ou utilizaram

produtos diversos da horta?”, questiona Demarchi.

Hoje, existe um distanciamento da culinária

africana e da memória porque muito se perdeu nos

ensinamentos transmitidos de forma oral, de cozinheira

para cozinheira, de negra para negra, de mãe para a

família. E pouco se preservou dos cadernos de receitas

mais antigos, principalmente de origens afros.

Martinha Luiza de Jesus, moradora de Ouro Preto,

que há 40 anos trabalha como cozinheira, diz que

ocorreram várias mudanças no fazer culinário. “Na

roça a gente só jogava os ingredientes na panela e

pronto, agora mudou, se você fizer uma comida igual

antigamente ninguém come. O quiabo, por exemplo, na

roça a gente fazia do nosso jeito.”

Os pesquisadores Javier Lishchitz e Juliana

Bonono, autores do artigo “As quitandeiras de Minas

Gerais: mémorais brancas e memórias negras”, de

2015, publicado na Revista Ciências Sociais Unisinos,

ressaltam as diferentes memórias a partir de entrevistas

com as mulheres que exercem o ofício de quitandeiras.

O estudo concluiu, por meio de uma pesquisa de campo

realizada em cidades do interior de MG, entre os anos

de 2012 e 2014, que na dissolução de um grupo social

também se dissolve suas memórias. Tanto nas listas

das Prefeituras que contabilizavam cozinheiras, quanto

em festivais das cidades, quase não havia presença de

quitandeiras negras. Ou seja, a herança cultural que

está sendo construída nas estruturas sociais de poder

excluem parte dessas produtoras.

Apesar das transformações no paladar do brasileiro,

é importante resgatar a memória de pratos tradicionais,

reconhecer de onde vem essa cozinha de comunidade,

onde Demarchi ressalta: “O gosto brasileiro em alguns

lugares, principalmente nas regiões onde houve muito

forte a escravidão, é um gosto de mãos africanas.”

Quiabo e Inhame

Ingredientes que hoje compõem

muitos pratos da cozinha brasileira

de maneira gourmetizda, são de

origens africanas.

EDIÇÃO 27 | CURINGA 37


Cultura Extrativista

Símbolos Negros

Foto: Rômulo Soares

Instrumentos africanos

Acrescentados a outros ritmos

musicais acabam tendo suas

origems mascaradas por um

viés mercadológico.

A venda do ceticismo sonoro

A cultura do samba e da capoeira, no início do século

XX, eram proibidos. Mas em 1930, Getúlio Vargas,

com a ideia de nacionalismo, trouxe a possibilidade

da valorização da cultura como um produto brasileiro.

Com isso, o samba e a capoeira começaram a ser

entendidos como manifestação cultural nacional. O

que entendemos dessa “valorização”, acabou sendo

uma forma de apropriação da cultura do negro,

onde essa, que antes era perseguida, começou a ser

moldada num caráter de embranquecimento. Trazendo

para cenas atuais, o mesmo vem acontecendo com

culturas marginalizadas, como o funk e o hip hop, que

são movimentos culturais que vão além da música.

Para Diego Fernandez, professor de música e proprietário

da escola de música Samba Preto da cidade de

Ouro Preto, os movimentos culturais artísticos negros

não ganham visibilidade até que se perceba um interesse

mercadológico em cima dele. “O Racionais Mc’s no final

da década de noventa, através de um tipo de produção

feito por eles mesmos, atraiu e alcançou uma grande

quantidade de venda de discos. Isso chamou atenção

das gravadoras de discos, pois foram os primeiros a

viralizarem, produzindo por eles mesmos e vendendo

para os ‘parças’. Com certeza, eles tinham uma oposição

sobre a grande mídia, e isso fez uma apropriação, pois

mercadologicamente, as gravadoras sentiram que havia

demanda nacional juvenil para o rap. Então a Globo,

por exemplo, lançou o Gabriel O Pensador como um

representante da cultura do rap, porém palatável aos

ouvidos do consumidor, retirando assim, a relação com

38 42


Brechtiana - Nei Lopes

[para Abdias Nascimento]

a comunidade. O mesmo ocorreu quando a Anitta

veio como representante do funk carioca, e acaba que

ao decorrer das coisas, ocorreu um embranquecimento

cultural dela, daí ela foi caminhando mais para o pop”.

Englobando mais outros gêneros musicais em que se

utiliza instrumentos da cultura negra, principalmente

os de percussão, é interessante visualizar a quantidade

desses instrumentos na música sertaneja, no rock e no

pop. Entretanto, o que muitos admiradores de artistas

desses gêneros não sabem, é a verdadeira relação

originária de determinado tipo de som. Diego destaca a

relação religiosa em que se nasceu determinado tipo de

técnica musical, o som e o próprio instrumento em si.

“A música tem uma ligação religiosa, a música que veio

da áfrica tem uma conotação religiosa, assim como a

indígena. Nas tradições do Congado, o tambor é sagrado.

Na tradição religiosa de matriz africana, os instrumentos

percussivos são sagrados. Na tradição da capoeira é

a mesma coisa com o berimbau. Isso é herança de

geração em geração, nós trouxemos a cultura rítmica de

instrumentos africanos. Quando eu vou ensinar algum

ritmo, alguma música da cultura africana, eu tenho que

falar com todo respeito aqui na escola. É patrimônio,

entende?”, disse o músico.

Tempos em que questões sociais, como o preconceito

racial, são tão debatidos e lembrados, a atuação da

industria é tão forte que mostra como o racismo está

enraizado ainda no mundo todo. Culturas periféricas

continuam marginalizadas. A luta de classes muda

conforme a atualidade, assim como a globalização.

Mas, o que ainda permanece, como evidencia o

poema Brechtiana (Poétnica, p. 31-32); do advogado,

compositor, escritor, poeta, contista, sambista,

pesquisador da cultura afro-brasileira e teatrólogo, Nei

Lopes, é a separação de faraós e pirâmides do contexto

africano, é a usurpação da cultura afro já que, os

africanos para muitos não são capazes de criar.

Desse modo, a questão não é, precisamente, coibir

alguém, arbitrariamente, e dizer o que um indivíduo

deve ou não fazer, mas explicar o contexto das ações

que ele promove, e o que isso reproduz. Todos devem

estar conscientes do que usam, do que ouvem e,

principalmente, do que reproduzem, pois, na verdade,

uma dessas coisas pode estar, justamente, acabando

com a cultura que produziu determinado produto e

reforçando ainda mais um processo descriminatório.

Primeiro,

Eles usurparam a matemática

A medicina, a arquitetura

A filosofia, a religiosidade, a arte

Dizendo tê-las criado

À sua imagem e semelhança.

Depois,

Eles separaram faraós e pirâmides

Do contexto africano –

Pois africanos não seriam capazes

De tanto inventiva e tanto avanço.

Não satisfeitos, disseram

Que nossos ancestrais tinham vindo de longe

De uma Ásia estranha

Para invadir a África

Desalojar os autóctones

Bosquímanos e hotentotes.

E escreveram a História a seu modo.

Chamando nações de “tribos”

Reis de “régulos”

Línguas de “dialetos”.

Aí,

Lançaram a culpa na escravidão

Na ambição das próprias vítimas

E debitaram o racismo

Na nossa pobre conta.

Então,

Reservaram para nós

Os lugares mais sórdidos

As ocupações mais degradantes

Os papéis mais sujos

E nos disseram:

– Riam! Dancem! Toquem!

Cantem! Corram! Joguem!

E nós rimos, dançamos, tocamos

Cantamos, corremos, jogamos.

Agora, chega!

LOPES, Nei. Poétnica. Rio de Janeiro: Mórula, 2014.

EDIÇÃO 27 | CURINGA

39


Travessia

Movimento

Como em um compasso de transição,

os processos explicam os fenômenos

da sociedade. Explicam como o externo

age para com as pessoas e, da mesma

forma, demonstram como agimos

influenciando o meio. Mostram como

tratamos informações e transformamos

o bruto em resultados. Tudo isso, movido

por um desejo da própria sociedade.




Vidas

decodificadas

Na internet, tudo o que você procura, curte, acessa, publica, compartilha,

cria e até mesmo o que é gerado por terceiros sobre você é armazenado.

A mineração de dados é uma realidade, mas também um risco invisível.

Texto de Hannah Carvalho, Isabela Rigatto e Larissa Chaves

Fotografias de Hannah Carvalho

Design de Hannah Carvalho

Nossos dados pessoais sempre foram atraentes

para o mercado. Afinal, com informações

precisas dos consumidores é possível criar

estratégias de vendas mais eficientes, além de pensar

em propagandas voltadas às características do cliente.

Atualmente, os brasileiros passam um total médio

de 9h e 29 min diários na internet em seja qual for o

dispositivo, bem acima da média global de 6h e 42 min,

segundo o relatório Digital in 2019, sobre consumo

de internet e redes sociais no mundo, elaborado pelas

empresas de marketing digital We Are Social (Reino

Unido) e pela Hootsuite (EUA).

Nas redes sociais, o Brasil ocupa o segundo lugar

em termos de horas gastas por dia: 3h e 34 min,

ficando apenas atrás das Filipinas, que consome 4h

e 12 min. Os internautas brasileiros têm, em média,

9,4 contas. Desses, 130 milhões estão no Facebook e

69 milhões no Instagram. A penetração da Internet

atingiu 70% do país, ultrapassando a média global de

57%. Mais de 149 milhões, dos quase 212 milhões de

habitantes, são usuários de internet.

A mesma pesquisa, aponta que até janeiro

de 2019, a quantidade de pessoas com acesso à

internet aumentou em 10 milhões, ou seja, uma

expansão de 7,2% em relação ao relatório de

2018. Não é à toa que grande parte das principais

plataformas como Facebook, Instagram, Twitter

são gratuitas, atraindo ainda mais internautas.

Esse crescimento expressivo do número de usuários

vem transformando o ambiente virtual em um

grande instrumento de coleta de dados e análise

invisível do nosso comportamento.

Segundo Jefrey Sobreira, Engenheiro da Computação

e Chief Technology Officer - CTO, (profissional responsável

por cuidar de todas as ações que dizem respeito à

infraestrutura tecnológica) da Capitual.com, essas

empresas perceberam que não conseguiram uma renda

efetiva com a cobrança de taxas para fazer login, posts e

comentários e encontraram na venda de anúncios uma

possibilidade de obtenção de lucro. Já que cobrar pelo uso

dessas ferramentas poderia acarretar a perda significativa

de seus usuários. Sobreira exemplifica esse cenário de

forma enfática: “se o serviço é gratuito, você é o produto”.

Em um mundo onde empresas ganham dinheiro com a

venda dos nossos dados, a partir do monitoramento não

só das nossas redes sociais, mas de praticamente tudo que

executamos em nossos celulares, tablets e computadores.

Google, Amazon, Twitter, Microsoft e Facebook

são exemplos de empresas detentoras dos dados

gerados via internet. Tarcízio Silva, cofundador do

Instituto Brasileiro de Pesquisa e Análise de Dados

(IBPAD), analisa o processo da plataformização da

web realizado por essas instituições. Enquanto

empresas como o Facebook possuem todos os

dados em seus ambientes e até grande quantidade

de informações de outras páginas da web, no qual

poucas têm acesso aos sistemas de autenticação

e login de milhões de outros sites. “É um tipo de

poder gigantesco e as principais empresas destes

segmentos mantém grupos de pesquisadores,

formados pelas melhores universidades do mundo,

para estudar o comportamento humano, criar

sistemas de incentivo ao acesso e até modulação do

comportamento”, explica Tarcízio.

EDIÇÃO 27 | CURINGA

43


Cultura Extrativista

Mineração de dados

Todos esses aplicativos usam a mineração de

dados a favor da geração de capital, ou seja, essas

empresas coletam o conteúdo que disponibilizamos

nas redes ao responder pesquisas, posts, curtidas

e criam um banco de informações. A partir disso,

cada internauta é interpretado com um tipo de

perfil comportamental. Por exemplo, se você digita o

nome de determinada loja na barra de pesquisas na

internet, vai passar a ver publicidades com segmentos

relacionados, que mais tenham a ver com seu perfil,

ou seja, anúncios dessa mesma empresa ou de outras

que sigam a mesma linha de produção, com valor

médio parecido e linha estética próxima. Segundo

Tarcízio, “isto significa uma capacidade ímpar e

inédita de previsão de desejos de consumo que pode,

sim, gerar problemas derivados do consumismo

como endividamento, ansiedade e alienação social”.

Todas as possibilidades do mundo digital fez com

que se criasse um universo de sedução em torno da

internet, capaz até mesmo de nos fazer esquecer dos

perigos da rede. De acordo com os pesquisadores

Giovanna Abreu e Marcos Nicolau, do Programa de Pós-

Graduação em Comunicação da Universidade Federal

da Paraíba, estamos nos submetendo, sem perceber,

a novas formas de servidão vinculadas à internet. “Ao

compartilharmos informações pessoais tão livremente,

sujeitamo-nos a uma forma de servidão digital na qual

os modernos barões dos dados são as empresas e os

governos que os detêm, extraindo as informações de

seus interesses”, explicam em sua pesquisa publicada na

revista Cultura Midiática do programa de pós-graduação

em Comunicação da Universidade Federal da Paraíba em

janeiro de 2017 no artigo “Big Data, advertising and the

scored consumer: the case of the series House of Cards” .

Nos tornamos tão vulneráveis que até mesmo as

informações que geramos sobre nós podem ser usadas

contra nós. A partir de uma consulta em sites que

tratam de proteção ao crédito e empréstimos, pode-se

sugerir que o usuário seja um potencial inadimplente.

Isso pode ser usado para negar a compra de

determinado bem só pelo fato de ter pesquisado, ou

seja, basta que você ligue o celular para que saibam

onde está e até mesmo o que pretende fazer.

Entender, então, como o processo de coleta das

informações que geramos no mundo virtual se dá a partir

da mineração de dados é de extrema importância. Uma

vez que essas informações podem nos ajudar a saber

como nos proteger e a cobrar mecanismos efetivos de

fiscalização que assegure nossos direitos. Vale ressaltar,

que nossos dados pessoais são resguardados por lei e

qualquer empresa que viole isso está sujeita a punição.

Como os dados são minerados

Você já deve ter se perguntado de que maneira o

computador faz todas as tarefas exatamente como

você pede. A resposta para esta pergunta é mais

simples do que parece: ele segue as instruções que

você passa. Mas para que ele consiga captar o que

você comunica, ele precisa de uma linguagem mais

específica. Para fazer esta interpretação entre homem

e máquina, foram desenvolvidas as linguagens de

programação. Estas linguagens utilizam uma lógica

para serem escritas e é aí que entram os algoritmos.

Um algoritmo é basicamente uma receita que mostra

passo a passo os procedimentos necessários para a

resolução de uma tarefa. Ele não responde a pergunta

“o que fazer?”, mas sim “como fazer?”. Em termos

mais técnicos, um algoritmo é uma sequência lógica,

finita e definida de instruções que devem ser seguidas

para resolver um problema ou executar uma tarefa. A

Doutoranda em Comunicação pela Universidade Federal

de Minas Gerais (UFMG), Amanda Chevtchouk Jurno,

com estudo sobre Facebook e algoritmos, comenta

sobre o processo de mineração de dados na rede social.

Ela garante que mesmo que haja a leitura do termo de

compromisso ao criar uma conta, os termos são muito

genéricos e pode não ficar claro ao usuário que os seus

dados estão sendo totalmente captados por aquele

sistema. Um exemplo da “consequência” disto, é que

as curtidas, comentários, em páginas e posts nesta

plataforma, geram informações para que outros dados

surjam, como anúncios de produtos e serviços dispostos

pela tela em meio às publicações, por exemplo.

Durante o processo de mineração de dados, diversas

técnicas devem ser testadas e combinadas a fim de

que comparações possam ser feitas e, então, a melhor

técnica (ou combinação de técnicas) seja utilizada. O

método chamado Regra das Associações (Association

Rules) é um exemplo. Ele consiste basicamente em

identificar a relação dos itens mais frequentes em um

determinado conjunto de informações, permitindo

obter resultados como: se um indivíduo se interessa

pela compra de leite e pão, ele também se interessaria

44


em comprar manteiga. A mineração de dados abrange,

assim, a seleção dos métodos a serem utilizados para

detectar padrões nos dados a partir de cada pessoa.

Parte desse processo está na busca por indicadores de

interesse em uma forma particular de representação,

juntamente com a procura pelo melhor ajuste dos

parâmetros de um algoritmo para realizar uma tarefa.

“O Google consegue rastrear todo o seu trajeto, todo

o seu percurso quando você passa por algum lugar, sua

frequência de visitas a um lugar ou outro, a partir do

seu GPS. Você não necessariamente está conectado

na plataforma, mas ele continua salvando suas

informações”, afirma a pesquisadora Amanda.

Para que se possa usar os dados é preciso avaliá-los, e,

apesar do processo de extração remeter a algo automático,

ele não acontece somente por meio de máquinas. Ainda

que sejam encontradas diversas ferramentas que nos

auxiliam na execução dos algoritmos de mineração, os

resultados precisam de uma análise humana.

Empresas de multimídia e telecomunicações podem

usar modelos analíticos para dar sentido a milhões

de dados de clientes, prever seus comportamentos e

oferecer campanhas altamente segmentadas e relevantes.

Algoritmos automatizados ajudam os bancos a

entenderem sua base de clientes, bem como as bilhões de

transações no coração do sistema financeiro. A mineração

de dados auxilia as empresas do setor a alcançarem uma

visão melhor dos riscos de mercado, detectar fraudes

rapidamente, gerenciar obrigações de conformidade

normativa e obter retornos ideais sobre seus investimentos

de marketing. Possibilitando, que os especialistas da área

da tecnologia concentrem seus esforços apenas em partes

mais expressivas dos dados coletados.

O livro “Cultura Digital, internet e apropriações

políticas: experiências, desafios e horizontes”,

organizado por João Paulo Mehl e Sivaldo Pereira da

Silva em 2017, conta com estudos que explicam a

digitalização da informação e a dataficação (tornar

um negócio já existente em um “negócio de dados”)

dos processos de comunicação se tornaram hoje parte

inevitável da cultura contemporânea. Segundo afirma

Sivaldo Pereira, no segundo capítulo da obra, “os

indivíduos se transformaram, na prática, em produtores

diários de inputs que alimentam diversos sistemas de

captação de informação, ainda que nem sempre se

deem conta disso”. Os algoritmos nos ajudam, além

de encontrar informações, a estabelecer conexões

Rastros Digitais

Os anúncios são exibidos com base

nas buscas que realizamos na internet.

EDIÇÃO 27 | CURINGA

45


Cultura Extrativista

Mineração de dados

É necessário questionar e implantar

leis e projetos que garantam o sigilo

da informação e o direito da posse e

armazenamento de dados pessoais.

entre pessoas e das pessoas com artefatos culturais; e

fornecem significados que influenciam a forma como

entendemos e conhecemos o mundo.

Diversos instrumentos foram desenvolvidos no

intuito de tornar a aplicação da mineração de dados

uma tarefa menos técnica e, com isso, possibilitar que

profissionais de outras áreas possam fazer uso dela.

Um grande exemplo, é o Google Analytics, ferramenta

capaz de analisar como o usuário se comporta no

site de uma empresa, quanto tempo ele permanece

naquela página, em que abas clica.

O Analytics também monitora outros ambientes

virtuais e disponibiliza praticamente tudo o que

as pessoas conectadas acessam, as páginas mais

procuradas, conversões, dispositivos, a localização dos

usuários, faixa etária, e muitos outros dados.

Se o serviço é gratuito, você é o produto.

“ ”

Jefrey Sobreira

Ao mesmo tempo em que esses tipos de ferramentas

trazem benefícios para grandes empresas e pequenos

empreendedores que passaram a conseguir mensurar

seu público alvo, nós consumidores perdemos nossa

privacidade e nos tornamos alvo da aplicação de todas

essas técnicas com intuito de induzir ao consumismo.

Segurança cibernética e direitos digitais

Diante da quantidade de informações que

colocamos na internet, as autoridades tiveram que

criar leis contra crimes cibernéticos que ocorrem por

meio da mineração de dados. A partir da visão do

consumidor sobre a captação de dados pessoais, é

compreensível pensar que este perde a privacidade.

Nesse caso, é necessário questionar e implantar leis

e projetos que garantam o sigilo da informação e o

direito da posse e armazenamento de dados pessoais

para, assim, proteger os usuários da exploração e do

constrangimento no ambiente digital.

Duas regulamentações importantes sobre crimes

digitais foram sancionadas em maio e novembro de

2012, respectivamente, no Brasil. A primeira é a Lei dos

Crimes Cibernéticos (Lei n° 12.737/2012), conhecida

como Lei Carolina Dieckmann, que qualifica crimes de

hackeamento e invasão de outros desktops, roubos de

senhas e de dados, e a violação destes para divulgação

de informações, tais como fotos, vídeos e mensagens

pessoais. A pena para esses crimes é de três meses a

cinco anos, dependendo do delito cometido. O Projeto

de Lei (PL) já estava proposto antes do crime que

divulgou cerca de 36 fotos íntimas e conversas privadas

da atriz copiadas do seu e-mail pessoal. O hacker exigiu

cerca de 10 mil reais para que nada fosse publicado e

Carolina o denunciou à polícia. A pressão da mídia e a

influência da atriz fez com que a Lei fosse sancionada

no governo da ex-presidenta Dilma Rousseff.

A segunda é a Lei n° 12.735/2012, que modifica

o Código Penal para criminalizar atos realizados

em sistemas digitais e eletrônicos praticados contra

sistemas informatizados. Ela torna crime a clonagem

de dados de cartão de crédito ou débito e determina

que os órgãos da Polícia Judiciária criem uma

Delegacia especializada para crimes digitais. Relatada

pelo deputado Eduardo Azeredo, do Partido da Social

Democracia Brasileira (PSDB), a Lei ficou conhecida

como Lei Azeredo, sendo oriunda do PL da Câmara dos

Deputados de nº 84, de 1999. Ela visava incluir diversas

tipificações de crimes no Código Penal que não foram

aprovadas antes, ficando em tramitação por cerca de

treze anos até a sanção presidencial.

O professor do curso de Direito da Universidade

Federal de Ouro Preto (Ufop) e coordenador do

Núcleo de Estudos do Direito do Consumidor, Felipe

Comarela Milanez, relata quais as medidas cabíveis

no caso de clonagem de cartão de crédito ou débito.

“É fundamental que o consumidor adote medidas

de prevenção, como o cancelamento do cartão. Caso

a divulgação de dados pessoais resulte em alguma

lesão à honra e/ou imagem do consumidor, ou ainda

em danos de natureza patrimonial, poderá entrar com

ações judiciais contra os administradores do banco

de dados que deveriam resguardar as condições de

segurança e sigilo dos dados pessoais coletados”,

explica. Ainda segundo ele, além dessas medidas, o

consumidor poderá buscar o Ministério Público para

que, sendo o caso, apure a ocorrência de eventuais

ilícitos de natureza civil e criminal.

Há também a Lei do Marco Civil (Lei n° 12.965/2014)

da Internet, proposta em 2011, que regula os direitos e

deveres dos internautas protegendo os dados pessoais e

a privacidade do usuário. Diferente do que pensam, o

Marco Civil não tem o objetivo de controlar a internet

46


e o modo como a utilizam e sim o de definir princípios,

garantias, direitos e deveres para os internautas

brasileiros. A Lei, que foi sancionada em 23 de abril

de 2014, no governo Dilma Rousseff, busca reforçar o

direito à privacidade e à liberdade de expressão, que já

é garantida para o cidadão pela Constituição Federal

e inclui, segundo o Art. 7, o acesso à internet como

“essencial ao exercício da cidadania”.

O Marco Civil distingue as empresas provedoras de

dados em duas: as que geram conexão a internet, por

exemplo as companhias de telecomunicações; e as de

acesso à internet, tais como as redes sociais, o Google,

entre outros sites. Os dois tipos de provedores “não serão

responsabilizados civilmente por danos decorrentes

de conteúdos gerado por terceiros”, com exceção do

provedor de acesso a internet, que será responsabilizado

caso não tire o conteúdo do ar após a ordem judicial, de

acordo com o Art. 14 da Constituição Federal. O Marco

Civil consegue, assim, promover a retirada de conteúdos

do ar mediante ordem judicial solicitada pela vítima de

crime cibernético, com exceção de fotos íntimas vazadas,

em que a retirada pode ser solicitada ao próprio site ou

domínio em que estão hospedadas.

Segundo Felipe Comarela os principais direitos dos

usuários em relação a proteção dos dados na internet

são: inviolabilidade da intimidade e da vida privada,

sua proteção e indenização pelo dano material ou

moral decorrente de sua violação; inviolabilidade e

sigilo do fluxo de suas comunicações pela internet;

inviolabilidade e sigilo de suas comunicações privadas

armazenadas; exclusão definitiva dos dados pessoais

que tiver fornecido a determinada aplicação de

internet, a seu requerimento; aplicação das normas

de proteção e defesa do consumidor nas relações de

consumo realizadas na internet.

A Lei n° 13.709, de 14 de agosto de 2018, promove

mudanças significativas em relação a proteção de

dados pessoais a partir do Marco Civil da Internet.

A Lei, que foi aprovada, em seu Art. 1º, dispõe

sobre “o tratamento de dados pessoais, inclusive

nos meios digitais, por pessoa natural ou por

pessoa jurídica de direito público ou privado, com

o objetivo de proteger os direitos fundamentais de

liberdade e de privacidade e o livre desenvolvimento

da personalidade da pessoa natural”. Contudo,

Felipe Comarela conta que a nova regra só entra em

vigor a partir de 14 de fevereiro de 2020 para que as

empresas tenham tempo suficiente (18 meses) para

se adaptar às novas regras estabelecidas.

O público infantil em frente às telas

A percepção de que a internet é o lugar onde cada

movimento pode ser rastreado, reforça o cuidado

necessário em relação às crianças e adolescentes que

a utilizam. O perigo da exploração sexual infantil por

meio da web é assunto desde que as redes sociais se

popularizaram, sendo comum ver matérias alertando

sobre os riscos de permitir os menores de participarem

de bate-papos online, ou marcarem encontros com

desconhecidos. Este tipo de ameaça ainda existe, até

porque nunca foi tão fácil ser monitorado.

Hoje, um fator que pode ser observado com

facilidade em relação às crianças que utilizam a

internet é a vulnerabilidade que elas se encontram

diante dos anúncios de publicidade. Os canais do

YouTube voltados para o público infantil somam

milhões de acessos. Nesta plataforma, propagandas

aparecem no início da maioria dos vídeos, e às

vezes, durante, quando o próprio apresentador ou

apresentadora faz a divulgação da marca/produto.

No Brasil, os irmãos Felipe e Luccas Neto têm em

seus canais conteúdos voltados para crianças, onde

acumulam mais de 50 milhões de seguidores, sendo

o segundo e o terceiro maiores youtubers do país.

Com o sucesso e a influência sobre este público, os

irmãos conseguem lucrar com a venda de produtos

da marca própria e também de outras marcas. A

rede Neto´s de coxinha, criada por Felipe e Lucas,

tem quiosques franqueados em vários shoppings

do Rio de Janeiro. A busca pela linha infantil do

Botafogo cresceu 500% após dois dias de uma ação

dos Neto, que investem em patrocínio para o time.

O sucesso dos influenciadores digitais não significa

a ausência de desaprovação. Os nomes da dupla já

geraram críticas de educadores e foram alvos de processo

judicial. Em 2018, os irmãos Neto foram advertidos

pelo Conselho Nacional de Autorregulamentação

Publicitária (Conar) por fazer publicidade velada,

que é quando se faz propaganda sem aviso prévio ao

público. No mesmo ano, os vídeos de Lucas comendo

guloseimas em volumes exagerados, como na ocasião

em que encheu uma banheira com chocolate, foram

tidos como influência a uma alimentação prejudicial

EDIÇÃO 27 | CURINGA

47


Cultura Extrativista

Mineração de dados

à saúde infantil. Após as polêmicas, Felipe afirmou à

imprensa ter contratado uma equipe de pedagogos e

apagou diversos vídeos nos quais ele disse que incluíam

palavrões ou conteúdos inapropriados.

Sobre as estratégias que as empresas utilizam na

web para segurar o público infantil, a professora da

Ufop e pesquisadora de estudos de gênero e infância,

Karina Gomes Barbosa, explica que elas trabalham

intensamente com algoritmos, por meio de vídeos

sugeridos e produtos relacionados. A estratégia

seria criar redes de consumo interminável, onde

quando um produto “termina” sempre tem outro a

consumir. A docente diz que algumas plataformas

criam “primeiras páginas”, ou “homes” planejadas

e de fácil navegação para fidelizar as crianças. Essas

“recomendações” são geradas a partir da observação e

estudo dos hábitos de consumo deste público. Assim,

quanto mais se consome, mais dados são gerados.

Além disso, Karina aponta que companhias como a

Netflix (serviço que conta com um catálogo de milhares

de filmes e séries de TV que podem ser acessados

através de várias plataformas, como notebooks, tablets

e smartphones) têm uma estratégia de estreias que é

invasiva para as crianças: seus lançamentos, como, por

exemplo, a série animada “Super Monstros”, de 2018,

aparece inúmeras vezes nas telas dos perfis “kids” da

plataforma. Desta maneira, fica quase inevitável assistir

ao que a empresa propõe, visto que muitos produtos estão

escondidos e outros são ostensivamente divulgados.

A professora afirma que essas empresas não vendem

apenas produtos audiovisuais, mas também publicidade.

“Assim, ao entrarem nesses relacionamentos com essas

companhias, as crianças já crescem com hábitos de

consumo, gostos, preferências, dados pessoais (como

nome e aniversário) e local de residência completamente

mapeados. As companhias estão aptas a oferecerem

produtos selecionados para cada perfil de consumo

cada vez mais cedo, e uma variada gama deles, visto que

os dados coletados são muito amplos”, declara. Além

disso, Karina lembra que estas empresas estão aptas,

também, a oferecerem esses dados a terceiros, como já

é feito com dados de usuários adultos.

O professor Felipe Comarela, que estuda consumo,

vulnerabilidade e desenvolvimento econômico, fala das

leis de proteção à criança e ao adolescente que podem

ser aplicadas em caso de publicidade abusiva. Ele cita,

além do tratamento certificado pelo Código de Defesa

do Consumidor, a Resolução nº 163, de 13 de março de

2014, do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e

do Adolescente (CONANDA), que considera abusiva

a prática do direcionamento de publicidade e de

comunicação mercadológica à criança, com a intenção

de induzi-la ao consumo de qualquer produto ou serviço

e utilizando-se, dentre outros, dos seguintes aspectos:

“linguagem infantil, efeitos especiais e excesso de cores;

trilhas sonoras de músicas infantis ou cantadas por

vozes de criança; representação de criança; pessoas ou

celebridades com apelo ao público infantil; personagens

ou apresentadores infantis; desenho animado ou

de animação; bonecos ou similares; promoção com

distribuição de prêmios ou de brindes colecionáveis

ou com apelos ao público infantil; e a promoção com

competições ou jogos com apelo ao público infantil”.

Felipe Comarela reforça ainda, que a violação desta

norma pode ocasionar a instauração de inquérito pelo

Ministério Público e resultar, sendo o caso, em ações

judiciais destinadas à empresas e imposição de penalidades

pelo descumprimento das normas de proteção da criança

contra práticas de persuasão para o consumo.

Karina dá dicas para que os responsáveis consigam

manter os menores mais protegidos ao usarem as redes.

“O primeiro conselho é sempre monitorar diretamente os

conteúdos, as regras de privacidade, quais dados a criança

ou adolescente está cedendo, e decidir como família se

aquilo será ou não cedido. Isso não é fácil, requer tempo

e literacia de mídia por parte dos cuidadores. Além disso,

os cuidadores precisam conversar com as crianças sobre

privacidade e consentimento. Consentimento também

tem a ver com o que eu consinto entregar de minha

subjetividade a essas companhias”.

As alternativas de navegação mais seguras, antivírus

potentes, podem auxiliar na proteção dos dados do

público infantil. A pesquisadora Karina argumenta

que decisões como a idade certa para um perfil em

redes sociais; a idade para um celular próprio; quando

permitir a TV ou computador no quarto; monitorar

publicações em redes sociais; são indispensáveis. Ela

enfatiza que, quando essas crianças crescerem, já

haverá um enorme rastro digital delas deixado por

adultos, dos quais elas não tiveram nenhum poder

de decisão. “Essa responsabilidade é nossa, como

cuidadores. O que queremos que as companhias

saibam a respeito de nossas crianças?”, indaga.

48


Publicidade Infantil

A tecnologia deixa as crianças mais

expostas a situações de consumo.

EDIÇÃO 27 | CURINGA

49


Raízes no

Extrativismo

Do extrativismo colonialista ao capitalismo moderno, a exploração globalizada de matéria-prima

fácil segue gerando novos tipos de superdependência econômica, sobretudo em países

onde os recursos naturais são abundantes e a mão de obra é barata.


Texto de Samuel Senra Campos

Fotografias de Clara Lemos

Design de Ana Clara Delella

O

sociólogo polonês Zygmunt Bauman já abordava

em sua obra “Globalização, as consequências

humanas”, de 1999, o conceito de “proprietários

ausentes” para tratar dos efeitos da globalização e

do capitalismo moderno. Não é surpresa que muitas

empresas se movem para onde encontram e recebem

melhores condições e oportunidades, sem compromisso

socioeconômico com as comunidades que as recebem, a

não ser pelo que estiver previsto em legislação.

O Doutor em História Cultural pela Universidade

Estadual de Campinas (Unicamp) e professor da

Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop), Luiz

Estevam Fernandes, comenta o caso da “cidade” de

Fordlândia, situada no Pará (PA). Atualmente um

distrito, ela foi fundada em 1928 por Henry Ford

mediante concessão do Estado para a exploração e

posteriormente o plantio de seringueiras, que serviam

para a fabricação de pneus automotivos. Só que sua

execução equivocada fez com que as árvores nascessem

muito próximas entre si, o que causou a proliferação

de pragas. Essa atividade também foi levada para a

Ásia, onde eram plantadas em modo cartesiano, com

uma seringueira espaçadamente ao lado da outra,

rendendo maior produtividade.

Mesmo com um sistema de tratamento de

água, escolas, hospitais, aproximadamente setenta

quilômetros de estrada ao redor, estação de rádio,

telefonia, escritórios, galpões e mais de duas

mil casas para os trabalhadores seringueiros,

isso na década de 1930, o fato de dependerem da

monocultura tornou a economia da região suscetível

a abalos diante de novos concorrentes, tecnologias e

processos. Nos anos seguintes, o látex foi substituído

por derivados do petróleo na constituição da

borracha para o pneu do automóvel, tornando a

extração e plantio da seringueira em Fordlândia

inviáveis economicamente.

A Ford retira oficialmente suas atividades da cidade

no ano de 1945. Em acordo com o Governo Federal

Brasileiro, a empresa recebeu o pagamento de US$250

mil pela compra da estrutura deixada na região. O

distrito ainda existe com cerca de dois mil habitantes,

correspondente a um terço da população no auge da

produção da borracha, e faz parte do município de Aveiro.

Sua economia é baseada na agricultura, entretanto

as investidas para um futuro promissor ficaram nas

estruturas abandonadas de sua indústria manufatureira.

EDIÇÃO 27 | CURINGA

51


Cultura Extrativista

Superdependência

Mina de Passagem

Localizada na cidade de

Mariana, a extração ocorreu

do séc. VXIII até 1954, onde

foram retiradas mais de 35

toneladas de ouro.

O Berço Colonialista

O professor Luiz Estevam estima que durante o

período colonial europeu, somente no século XVIII,

cerca de seiscentos mil portugueses vieram para

o Brasil à procura de ouro, sem contar o número de

africanos trazidos à força. Eles iriam encontrar esse

metal precioso em abundância no território onde hoje

está localizado o estado de Minas Gerais. Fernandes

afirma que, entre os séculos XVII e XIX, os exploradores

extraíram algo em torno de seis mil toneladas do metal,

só em São Paulo. Isso foi mais do que a quantidade

retirada na região de Mato Grosso no mesmo período,

e metade do que foi na de Goiás, mas nada comparado

ao encontrado em solo mineiro.

O Doutor em Gerenciamento Ambiental pela University

of Wales, no País de Gales, e professor do curso de Engenharia

de Minas da Ufop, Hernani Mota de Lima, aponta que

durante cinquenta anos de exploração extrativista nessa

região foi encontrado mais ouro do que em duzentos anos

de exploração colonial nas Américas. A descoberta desse

recurso natural no Estado mudaria a economia portuguesa

de maneira geral, como também transformou e constituiu

a hoje conhecida Região dos Inconfidentes, localizada na

zona central de Minas Gerais.

O grande boom econômico dessa extração elevou Ouro

Preto, antiga Vila Rica, ao posto de uma das cidades mais

economicamente poderosas do mundo naquele período.

Em passagem pelo campus da Ufop em Mariana, Minas

Gerais, onde ministrou uma palestra sobre os 500 anos da

Reforma Protestante, no Instituto de Ciências Humanas

e Sociais (ICHS), em 2017, o Doutor em História Social e

professor da Unicamp, Leandro Karnal, comentou sobre o

fato de ter sido Ouro Preto, e não Nova York, nos Estados

Unidos, a grande metrópole das Américas no século XVIII,

assim como um século atrás havia sido Potosí, na Bolívia.

Ainda que tenham levado incontáveis toneladas desse

metal precioso, os colonizadores puderam propiciar a criação

de um patrimônio histórico e cultural nessas cidades, o que

foi o caso da construção de igrejas barrocas, por exemplo.

Fernandes ilustra que Mariana foi a primeira cidade planejada

pelos portugueses nas Américas, no século XVIII. Riquíssima,

era cheia de igrejas, ruas calçadas, uma série de coisas. Ouro

Preto recebeu, no ano de 1876, por iniciativa de Dom Pedro

II, a criação de uma Escola de Ensino Superior – a Escola

de Minas de Ouro Preto –, que originaria posteriormente a

Universidade Federal de Ouro Preto, em 1969.

Essas transformações na região só aconteceram

porque naquele período era inviável que os

exploradores regressassem com frequência às suas

terras natais. A cada vez que uma pessoa entrava

em um barco no século XVI, por exemplo, a chance

que ela tinha de morrer era de 50%, argumenta

Luiz Estevam. Então ao virem explorar a terra,

tornava-se natural que fizessem riquezas e que aqui

permanecessem. O professor Hernani Lima comenta

que naquele tempo o mineiro queria ficar perto da

mina dele. “Nós temos uma relação muito próxima

com as minas”, afirma. Hebe Rôla, marianense e

também professora emérita do curso de Letras da

Ufop, ilustra que esse vínculo com a mineração

perdura até no nome dos que nascem no Estado, pois

são denominados “mineiros”.

Uma viagem de Portugal ao Brasil hoje, com

distâncias superiores a mais de sete mil quilômetros,

pode demorar menos de 10 horas, viajando-se

confortavelmente sobre o oceano Atlântico. Com o

encurtamento da distância, essa lógica e sentimento de

identidade compulsório com a terra não permaneceram

exatamente os mesmos. Hoje um engenheiro vem ao

Brasil, fica até a implementação de uma plataforma de

petróleo ou de uma mina e rapidamente é mandado

para Mumbai ou para a África. As pessoas circulam o

mundo, não havendo mais a ideia de permanência

ou pertencimento imutável, elucida o professor de

História Luiz Estevam.

52


11 de Setembro

Henecto et essimin ctecaeped

que nonsequatur? Ratiorero est

quis sus, te coruUdi cus debis

res est mo blam

É tudo sobre o petróleo

A atual situação econômica e política da

Venezuela tem características colonialistas,

assentadas muitos séculos atrás, de modo similar

à história do Brasil e outros países da América.

A venezuelana Livia Vargas González, professora

da Universidade Central da Venezuela (UCV) e

estudante da pós-graduação da Ufop, com pesquisa

sobre a História da Venezuela no século XX,

argumenta que as atividades extrativistas também

estiveram presentes na caracterização de sua

terra natal já no período colonial. Ela conta que a

região, conhecida popularmente por Eldorado, era

explorada pela existência de pérolas, ouro e prata.

O petróleo foi “descoberto” em 1914, porém os

indígenas já o conheciam como “mene”.

É durante o governo do primeiro ditador

venezuelano, Juan Vicente Gómez, entre os anos 1908

a 1935, que se tem início a política de exploração desse

combustível fóssil no país. Entre as décadas de 1910 a

1930, empresas estadunidenses começaram a explorar

o petróleo na região. A economia venezuelana, que

era dedicada fundamentalmente ao plantio de café,

de cacau e de açúcar, assistiu ao declive desses

mercados em paralelo à ascensão petrolífera. Assim,

desde então, a economia da Venezuela naturalmente

se concentrou nessa prática extrativista, por meio da

exploração das petroleiras no país.

González elucida que o petróleo gera muita renda,

sem necessariamente criar retorno em outros

segmentos da economia. É muito dinheiro em caixa

com pouco investimento e diversificação. Como

exemplo disso, toda a política de transporte público na

Venezuela passou a ser pensada a partir do petróleo.

Sistemas de ferrovias existentes no país foram

abandonados, como também os projetos ferroviários

que faziam o transporte dos produtos agrícolas. Cada

vez mais foram nutridos estímulos para a indústria

petrolífera, como a maior utilização de carros

movidos a gasolina, pneus e todos os produtos com

derivados desse recurso mineral.

As políticas para a tentativa de nacionalização do

petróleo, explorado majoritariamente por empresas

dos EUA, tiveram início em governos da segunda

metade do século XX. O processo se deu com base num

antigo decreto de Simón Bolívar, revolucionário na luta

pela independência de países da América Latina, que

reivindicou à nação venezuelana, no século XIX, a posse

de tudo aquilo que estivesse em seu subsolo. A partir

de 1974, no governo de Carlos Andrés Pérez, do Partido

Social Democrata Venezuelano, Acción Democrática (AD),

houve um processo de nacionalização do petróleo, o que

possibilitou um boom econômico no país.

Após esse período, toda a renda da extração petrolífera

pertencia ao Estado, gerando uma ilusão de bem-estar

social muito grande, ainda que se tenha introduzido

investimentos na educação, na saúde e principalmente

EDIÇÃO 27 | CURINGA

53


Cultura Extrativista

Superdependência

VENEZUELA

Entenda as consequências da dependência da

importação de produtos primários e secundários.

Em setembro de 2018, mais de

330 mil

pessoas estavam em risco

devido a falta de medicamentos

Cerca de 80 mil pessoas

com HIV, 32 mil com

câncer ou precisando de

diálise e 4 milhões com

diabetes e hipertensão não

receberam tratamento.

As importações de alimentos

caíram para apenas

2,46 bilhões

de dólares em 2018. Em 2013

eram 11,2 bilhões.

Devido à desnutrição,

cerca de 22% das

crianças menores de

cinco anos não cresceram

nem desenvolveram seus

organismos normalmente.

De acordo com a Pesquisa

Nacional sobre condições

de vida, houve aumento

de 31% na mortalidade

geral de 2017 a 2018,

correspondendo a mais de

40 mil mortes.

Fontes: CodeVida Venezuela (2019);

Federação Médica Venezuelana (2018);

Pesquisa Nacional sobre condições de vida

(2019); Relatório Anual da ONU (2019).

no combate às desigualdades sociais. Sem um plano

para a diversificação econômica, esse crescimento não se

tornou sustentável, já que o valor desse recurso natural no

mercado é bastante oscilante.

O Doutor em Desenvolvimento Econômico

pela Unicamp e professor de Economia da Ufop,

André Mourthé de Oliveira, afirma que é possível

existir diversificação dentro de um mesmo setor,

desde que a cadeia produtiva esteja integrada,

como, por exemplo, o petróleo às suas cadeias

petroquímicas. Ele explica que o preço da matériaprima

bruta é de natureza flutuante, porém os

produtos derivados dela são muito mais estáveis.

Assim, o investimento em tecnologia, como forma

de sofisticar a cadeia produtiva, torna-se fator

essencial para que as consequências negativas

dessa superdependência sejam atenuadas.

Outra variável relacionada à histórica instabilidade

econômica da Venezuela são os acordos internacionais

firmados, acondicionando a economia do país nessa

prática extrativista. Os Estados Unidos manteriam

acordos econômicos essenciais com os venezuelanos,

desde que o país dedicasse toda a sua capacidade

industrial à extração petrolífera. Isso resultou

basicamente em retirar o petróleo bruto do subsolo

com destinação à exportação, quase sem refino. Em

troca desse assujeitamento, a Venezuela gozaria de

certa estabilidade econômica e social, sem precisar

se preocupar com alternativas para sua economia.

Durante as várias turbulências enfrentadas pela

economia da Venezuela a partir dos anos 1980 e 90, em

razão de oscilações negativas no preço desse recurso

mineral no mundo, empresas estadunidenses desse

segmento se empenharam diante de seus interesses

para a realização de um processo de privatizações no

país, rejeitado por Hugo Chávez, presidente em exercício

a partir de 1999, pelo Partido Socialista Unido da

Venezuela (PSUV), o que também se caracterizou como

uma disputa econômica e política por petróleo.

Fato é que a economia do país passou a importar

todo tipo de produto para o consumo diário da

população. “Ah! Tem petróleo! Tem dólar! Então vamos

comprar arroz quando a Venezuela produzia arroz.

Vamos comprar açúcar, quando a Venezuela produzia

açúcar. Vamos comprar farinha de milho branco, que

é fundamental para a nossa ‘alimentação’, e agora a

gente compra farinha de milho amarela, que é a que

chega dos brasileiros, mas que não tem nada a ver”,

exemplifica Livia González ao abordar o processo

de substituição da produção agrícola no país pela

produção unicamente concentrada em petróleo.

Assim como em anos anteriores, o petróleo

bruto correspondeu a mais de 80% das exportações

venezuelanas em 2017, segundo índice do Observatory

of Economic Complexity (OEC). Esse processo de

desindustrialização em outras áreas da economia,

evidentemente, colaborou para o aprofundamento da

crise, possibilitada por sanções políticas dos EUA, que

54


proibiram empresas estadunidenses de negociar com a

Petróleos de Venezuela (PDVSA) – estatal venezuelana

fundada no ano de 1976 como parte do projeto de

nacionalização de seu petróleo. Esses embargos congelaram

ativos da estatal nos Estados Unidos, o que afetou o acesso

do governo venezuelano a recursos que tornam possível

o abastecimento de itens básicos para consumo no país.

Por não possuir indústrias suficientes nos segmentos de

alimentos e remédios, a Venezuela tem de importar todos

eles. Os embargos também afetaram a importação de

produtos químicos que transformam o petróleo pesado

em uma concentração mais leve para ser transportado nos

oleodutos da estatal venezuelana.

Infelizmente, tem uma recolonização do

nosso país. Porque, com o extrativismo,

perdeu-se muito da sua soberania.

Recentemente, através do decreto nº 2.248,

promulgado no dia 24 de fevereiro de 2016, centenas de

empresas de vários países receberam autorização para

explorar recursos minerais numa região denominada

Arco Mineiro do Orinoco (AMO), correspondente a 12%

do território venezuelano. Por terem essas garantias

extraconstitucionais, as empresas multinacionais

exploradoras não precisam cumprir as leis da constituição

da Venezuela. São empresas estrangeiras possuidoras de

capital frente a um Estado venezuelano cujos recursos

estão bloqueados. “Por não ter normativa laboral, eles

impõem tudo!”, explica González em tom de denúncia.

“É uma exploração que está destruindo nossas reservas

de água, e isso tudo está acontecendo agora. Tem o

genocídio das populações indígenas, que estão sendo

afastadas das suas terras. É tudo isso, essa é a política

para resolver a nossa crise hoje! Não há aprofundamento

mais. Então, infelizmente, tem uma recolonização

do nosso país. Porque, com o extrativismo, perdeu-se

muito da sua soberania”, completa.

Comunidade do minério

Lívia Gonzáles

Assim como o petróleo, o valor do minério de ferro

é atrelado à questões geopolíticas internacionais. A

lógica de negócios do mercado financeiro está, desde

a década de 1980, cada vez mais rápida e instantânea.

Negociações bilionárias são realizadas todos os dias entre

investidores de todas as partes do planeta, em transações que

só se tornaram possíveis devido aos avanços tecnológicos. É

nesse universo que os recursos naturais são comercializados,

através de um sistema de commodities.

A commodity é basicamente uma grande quantidade

definida (normalmente a tonelada) de uma matéria-prima

essencial, podendo ser o petróleo (barril), grãos ou minério,

entre outros produtos manufaturados, com baixo nível de

industrialização, produzida em larga escala e sem tantas

distinções entre marcas. Podendo também ser negociada

no mercado financeiro, sem que se tenha produzido ou

de fato adquirido esses produtos fisicamente. O valor das

commodities é regulado por uma relação de oferta e demanda

internacionais, sobretudo influenciado por questões

geopolíticas, associadas a acordos entre governos e às

negociações nas bolsas de valores.

A tonelada do minério de ferro, por exemplo, chegou

a ser comercializada no mercado acima de US$180 em

2011. Pelo excesso de oferta e também pela aposta de que a

demanda chinesa por esse recurso diminuiria, essa mesma

tonelada passou a ser vendida abaixo de US$50 em 2015,

valor aproximadamente três vezes menor em quatro anos,

segundo índice divulgado pela agência Reuters. Em palestra

realizada no Instituto Federal de Minas Gerais (IFMG),

no campus de Ouro Preto, em que foi abordada a atual

conjuntura econômica mundial, o escritor e educador Emílio

Gennari explicou o crescimento da China, que nas últimas

três décadas alcançou uma média de 10% do seu PIB e

que agora entrou num processo de desaceleração natural

de sua economia, com crescimento anual na casa de 6,5%,

respeitando a premissa de que um crescimento daquela

magnitude não duraria para sempre.

Muitos são os motivos para essa desaceleração, causada

também por uma mudança estratégica do governo chinês

com propósito de fomentar o consumo em seu mercado

interno. Outro fator para essa decisão foi a consciência de

que o êxodo rural chinês para os grandes centros urbanos e

industriais talvez não supra a necessidade de mão de obra

no futuro. De qualquer modo, para a economia mundial,

é preferível que o recuo do gigante chinês seja lento e

gradual ao invés de uma ruptura ou colapso econômico, o

que causaria danos profundos também em seus parceiros

comerciais, principalmente o Brasil.

Devido a essas questões geopolíticas, que impulsionaram

a variação negativa no preço do minério de ferro no mundo,

cidades como Mariana tiveram sua economia e arrecadação

tributária afetadas. Como foi o caso da Compensação

Financeira pela Exploração de Recursos Minerais (CFEM)

EDIÇÃO 27 | CURINGA

55


Cultura Extrativista

Superdependência

No caso de Mariana, principalmente após

o rompimento da barragem de Fundão

em 2015, o movimento do comércio da

cidade também foi afetado.

destinada ao município marianense. Os valores arrecadados

na cidade passaram de R$ 89,6 milhões em 2013 para

R$ 23,5 milhões em 2016, índice três vezes abaixo, de

acordo com a Prefeitura. Com o advento da lei Federal

nº 13.540 de 2017, que alterou as alíquotas de incidência

para recolhimento da CFEM de 2% do resultado líquido

da exploração minerária para 3,5% do faturamento bruto,

foram recolhidos R$ 61,8 milhões em 2018, quantia ainda

inferior ao alcançado cinco anos atrás.

A CFEM é uma espécie de tributo pago por empresas

mineradoras à União, sendo os valores arrecadados

incidentes do lucro econômico obtido por essa extração

mineral. Esses valores são parcialmente repassados como

contraprestação aos municípios onde ocorrem a exploração

e extração desse minério. O repasse está regulamentado

no decreto nº 01/1991, previsto na Constituição Federal de

1988, nas leis nº 7.990/1989 e 8001/1990. Sua aplicabilidade

auxilia em despesas como educação, saúde, assistencialismo

social e segurança, conforme explica o Assessor Técnico em

Planejamento e Execução Orçamentária da Prefeitura de

Mariana, Anderson Stoppa.

No caso de Mariana, principalmente após o rompimento

da barragem de Fundão em 2015, o movimento do

comércio da cidade também foi afetado. Como uma espécie

de dependência da dependência, o sujeito reconhecido

como empregado de uma dessas empresas mineradoras,

que precisa do salário mensal pago a ele para o sustento

familiar, é responsável também, em certa medida, por

fomentar o comércio local, onde comerciantes dependem

desse consumo para constituir sua renda. O reflexo dessa

queda é observado na arrecadação do Imposto Sobre

Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços (ICMS)

em Mariana. Em 2013 e 2014, foram arrecadados R$ 150

milhões em cada ano, comparado à apenas R$74,3 milhões

em 2018, montante reduzida à metade.

Oswaldo Guimol, de 60 anos, é representante

comercial na cidade desde 1989. Assim ele frisa que

já há algum tempo, o comerciante tem se comportado

na defensiva, deixando de fazer estoque para adquirir

somente o indispensável para o consumo do momento.

Segundo ele, as pessoas não têm mais a mesma

previsibilidade de antes, estando receosas por conta

da crise que vem se alastrando já faz alguns anos,

principalmente depois do rompimento da barragem

na região. Guimol afirma também que teve de se

adaptar para manter o rendimento de suas vendas.

Comercializando desde itens de supermercado e

utilidades domésticas à materiais de construção, ele

explica que passou a incluir o sábado como mais um

dia de visitas aos clientes, além de ofertar alternativas

de produtos para que os comerciantes especializados no

segmento operário possam diversificar seus negócios.

“Ao invés de botinas ou maletas de ferramentas, ofereço

aos meus clientes itens domésticos como chuveiros e

lâmpadas elétricas para casa”, conta.

Quais são os caminhos?

Para o professor Luiz Estevam, a necessária

diversificação econômica começa através de

investimento em infraestrutura. Como no caso

de Mariana, por exemplo, introduzindo a própria

população, órgãos públicos e, sobretudo, o meio

acadêmico e universitário na elaboração de projetos.

Ele afirma que para descentralizar a economia local

das práticas extrativistas, é preciso elaborar um

planejamento que seja conciso, possibilitado somente

através de um trabalho de médio a longo prazo.

Mas engenheiro para mim é o peão da

mina, que vai trabalhar na mina e gerar

recurso. A gente tem que pular

essa etapa.

Hernani Lima

O docente Hernani Lima explica que as cidades do

quadrilátero ferrífero, cujas economias são voltadas

para a extração mineral, tendem a ganhar muito

dinheiro com essa exploração, mas alguns municípios

aplicam mal esses recursos. Ele ainda salienta sobre

a questão paradigmática das Universidades, como

é o caso da Escola de Minas da Ufop, que tem

contribuído mais com mão de obra. “Isso é uma

crítica, nós continuamos fornecendo mão de obra.

Mas engenheiro para mim é o peão da mina, que vai

trabalhar na mina e gerar recurso. A gente tem que

pular essa etapa”, elucida.

A doutora em Economia Aplicada pela Universidade

Federal de Viçosa (UFV) e professora da Ufop, Cristiane

Márcia dos Santos, responde que é preciso investir em

inovação, através do incentivo à pesquisa e tecnologia. Nesse

caminho, Hernani comenta o caso da Suécia. O país deixou

de ser majoritariamente produtor de bens minerais para

56


transformar toda a experiência da mineração acumulada

no passado numa indústria tecnológica voltada para

a fabricação de equipamentos desse segmento. “Eles

vendem equipamentos de mineração para o mundo inteiro.

Onde tem mina, tem um equipamento da Suécia. São

grandes equipamentos, então o volume gerado é grande.

Isso foi criado graças à experiência do passado, eles

adquiriram conhecimento e aplicaram nisso”. Hernani

conclui dizendo que “precisamos gerar recursos aqui,

tecnologias para serem aplicadas nessa área”.

Cristiane complementa com o caso da China, que

é o maior importador do minério de ferro brasileiro.

Ela explica que os chineses compram o minério

daqui e agregam valor, por exemplo, fabricando aço

para investimento em infraestrutura e também em

automóveis que, inclusive, são vendidos de volta ao

Brasil. O mesmo acontece com a soja, que é exportada

em grãos e posteriormente importada triturada ou como

óleo de soja. Isso tem a ver com agregar valor, fomentar

indústrias secundárias e terciárias que sejam menos

vulneráveis, possibilitando a emancipação dessa cultura

extrativista predatória, temporária. Porém, como aponta

André Mourthé, não vai ser através do lucro a curto

prazo para o acionista que isso se tornará possível. Já

que, atualmente, prefere-se comprar tudo da China.

O rompimento de barragens como a de Fundão

e a de Brumadinho, ambas em Minas Gerais,

só comprovaram que o extrativismo imediato e

predatório, sem a contrapartida de investimentos em

infraestrutura, tecnologia e pessoas, não contribui

para o desenvolvimento de uma sociedade sustentável

e soberana. Como consequência, por exemplo, até

o fechamento desta edição, foram registradas 243

mortes e 27 pessoas ainda seguem desaparecidas por

decorrência do crime em Brumadinho. Pouco mais

de quatro meses depois, as autoridades da cidade já

manifestaram preocupação quanto à reestruturação

da economia do município, apontando para o

reconhecimento de que sem o retorno das atividades

extrativistas das mineradoras na região, a sobrevivência

socioeconômica local seguirá ameaçada.

Outra barragem em iminente risco de rompimento no

estado é a de Barão de Cocais, o que tem causado medo e

alerta máximo na população. Centenas de moradores em

zonas de perigo já foram retirados de suas casas. Além disso,

o rompimento atingiria novamente o Rio Doce, contaminado

três anos atrás pelos rejeitos da barragem de Fundão.

Exemplos como esses evidenciam que a mentalidade de

determinados países e empresas, que buscam a maximização

dos lucros de forma rápida para os investidores, sem as

devidas regulações e normativas, precisa ser mensurada.

Pois às custas de vidas humanas e do extermínio do meio

ambiente, ficou claro que não há o que prosperar.

Estação Victorino Dias

O transporte ferroviário é a principal

forma de escoamento dos produtos

provenientes da mineração no Brasil.

EDIÇÃO 27 | CURINGA

57


Eu no

mundo

Vidas

Para todo problema, uma solução. Para

cada circunstância, uma alternativa.

Assim, vamos moldando os problemas

e encontrando uma resposta. Nisso, nos

colocamos como agentes atuantes na

transformação de tudo o que acontece

na nossa vivência por meio do que

criamos e geramos na sociedade. Ao

mesmo tempo em que nos fazemos

presente no mundo em comunidade,

colocamos a resistência como pauta do

nosso cotidiano. Afinal, ela se faz atual

em diversos contextos, seja na forma

dos produtos oriundos do trabalho

de cada pessoa, seja nas histórias

singulares de vida de cada sujeitos que

compõem a sociedade.



A quem serve

o patrimônio?

Uma lógica urbanística que prioriza o turismo causa

modificações espaciais e desfavorece a sensação de

pertencimento da comunidade com o lugar onde vive.


Texto de Iris Ventura

Fotografias de Uriel F. M. Silva

Design de Wallace Vertelo

O

turismo é uma prática que envolve o

deslocamento de pessoas de um determinado

lugar habitual para outro, em um período de

tempo, para o lazer ou até mesmo negócios. A atividade

turística movimenta a economia e a sociedade, gera

emprego e renda e, assim, promove inclusão social, ou

ao menos deveria promover. A prática envolve também a

discussão acerca da preservação patrimonial e questões

de pertencimento em certas cidades. “1 em cada 11

empregos, hoje no mundo, é gerado pela atividade

turística, que representa 10% do PIB mundial de acordo

com a Organização Mundial do Turismo (OMT). Por

outro lado, a atividade turística impacta fortemente

no cotidiano dos moradores de uma cidade” afirma a

doutora em História e professora do curso de Turismo da

Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop), Luana Melo.

O extinto Ministério da Cultura era o órgão

responsável pela preservação do patrimônio cultural

no Brasil. Após o seu fim, em janeiro de 2019, suas

atribuições foram passadas à Secretaria de Cultura,

incorporada ao Ministério da Cidadania, recém criado

pelo atual Governo Federal. Segundo a Constituição

Federal de 1988, “constituem patrimônio cultural

brasileiro os bens de natureza material e imaterial,

tomados individualmente ou em conjunto, portadores

de referência à identidade, à ação, à memória

dos diferentes grupos formadores da sociedade

brasileira”. Todos os bens, monumentos históricos,

tradições e manifestações populares considerados

símbolos importantes para a história de um lugar,

por lei, devem ser protegidos. Antes de servirem

como objetos de estudo e serem valiosos para toda a

humanidade, esses símbolos são representações da

cultura e vivência de um povo. Os danos e ameaças

ao patrimônio cultural são punidos, na forma da lei,

como consta na Constituição Federal.

Além da Secretaria da Cultura, o Instituto do

Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan)

também defende a cultura brasileira e seus tesouros.

Criado em 13 de janeiro de 1937, inicialmente como

Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional

(SPHAN), o Iphan desde então trabalha buscando

apoio e investimento para divulgar os bens tombados

e ampliar a preservação patrimonial. Hoje, o instituto

conta com 27 Superintendências (uma em cada

Unidade Federativa); 28 Escritórios Técnicos, a

maioria deles localizados Cidades Históricas; e, ainda,

cinco Unidades Especiais, sendo quatro delas no Rio

de Janeiro e uma em Brasília.

As Superintendências são os órgãos responsáveis

por mediar o diálogo entre o poder público local,

empresas e instituições civis, para manter parcerias

necessárias para a consolidação das leis que protegem

e promovem o Patrimônio Cultural Brasileiro. Já os

Escritórios Técnicos, localizados nas cidades históricas,

administram o patrimônio tombado mais de perto.

Minas Gerais se destaca com quatro patrimônios

históricos, como um dos estados brasileiros que mais

possuem bens declarados Patrimônio da Humanidade,

segundo dados do Iphan, e Ouro Preto foi o primeiro

Conjunto urbano tombado pelo Iphan, em 1938.

Nas cidades históricas, as paisagens naturais, os

casarões antigos, a beleza arquitetônica e a história

por trás dos bens tombados são alguns dos fatores

que influenciam na decisão do destino das férias de

muitos turistas. Não há dúvida de que essa escolha

acarreta benefícios para a cidade: as lojas, os taxistas,

os restaurantes e outros comércios lucram com a

passagem dessas pessoas. O Secretário de Turismo de

Ouro Preto, Felipe Guerra, ressalta a importância da

atividade turística para a cidade, principalmente as

que viveram e ainda vivem uma crise na economia por

conta da mineração. Segundo Felipe, “grande parte

das cidades de Minas Gerais ainda dependem muito

da mineração e essa é também a realidade de Ouro

Preto; mas o que muitas pessoas não sabem é que na

cidade o turismo é uma atividade que emprega mais

funcionários que a mineração”.

O turismo movimenta a economia local: a rede

de hotéis, o ramo alimentício, o artesanato e as

microempresas, principalmente durante os eventos que

acontecem na cidade, como o Festival de Inverno. De

acordo com Felipe, em média, 600 mil turistas visitam

Ouro Preto anualmente. Mas, mesmo com tantos

benefícios, é impossível não perceber como a cidade se

torna suscetível a inúmeros problemas que podem vir

com essa movimentação, como a poluição, a perda da

identidade local e a degradação do patrimônio.

O poder público, às vezes, visando o lucro e a

mercantilização de cidades que recebem turistas, investe

na projeção dos espaços culturais e dos patrimônios

históricos causando ações que reconstroem o espaço

social. Além disso, enquanto áreas das cidades são

preparadas para receber os turistas e movimentar a

economia, uma parte da comunidade local afirma

que não usufrui do espaço e dos recursos da mesma

maneira. Essa lógica urbanística se aproxima de um

processo conhecido como gentrificação.

EDIÇÃO 27 | CURINGA 61


Cultura Extrativista

Exploração Turística

Gentrificação ou exclusão?

A gentrificação significa uma transformação

na dinâmica das cidades, que afeta o cotidiano de

determinados grupos. Quando os bens patrimoniais se

tornam alvo de interesses do Governo e de instituições

privadas, o espaço urbano onde eles estão localizados

passa por um processo de revitalização. O valor dos

aluguéis e imóveis sobe e o espaço que antes servia

de lar para todos deixa de atender as necessidades da

comunidade de baixa renda, enquanto as camadas

mais ricas ocupam a região central dessas cidades.

Esse fenômeno altera o perfil social dos moradores,

a identidade local, as características do espaço e

impulsiona o extrativismo turístico.

Sobre isso, a professora Luana diz que “quando

o turismo transforma o patrimônio em objeto de

consumo ele contribui com a sua preservação,

mas também com a sua fetichização” e ainda cita

exemplos em cidades coloniais que trazem à tona

os problemas de gentrificação: o Pelourinho de

Salvador (BA), a área central de Tiradentes (MG) e

o bairro do Recife Antigo (PE).

O Pelourinho passou por um programa de

recuperação em 1991, realizado pelo Governo do

Estado da Bahia. Segundo Luana, a região ganhou

uma revalorização e foi “transformada em produto

cultural a serviço do consumo e os moradores expulsos

daquele lugar”. No processo, a arquitetura colonial,

as tradições, a musicalidade e tudo o que constrói

a identidade cultural baiana, foi organizado para

produzir uma imagem mercadológica e “produto”

turístico atrativo nacional e internacionalmente.

Um estudo realizado em 2017 e publicado na revista

“Cadernos do CIM”, de autoria de Michel Constantino

Figueira, doutor em Memória Social e Patrimônio

Cultural, aponta esses aspectos do extrativismo turístico

e da gentrificação em um bairro histórico da cidade de

Colônia do Sacramento, no Uruguai, que está inscrito na

lista do Patrimônio Cultural da Humanidade. Segundo

dados trazidos por Michel, o processo se iniciou com as

ações desenvolvidas pelo Conselho Executivo Honorário,

que previam a requalificação do bairro. “Além do

desaparecimento de pessoas, desaparecem, também,

com o decorrer do tempo, manifestações socioculturais

tais como os clubes, as murgas, as atividades teatrais e

os bares tradicionais”, afirma Michel.

Em Ouro Preto, o crescimento da atividade turística

foi acompanhado do processo de refuncionalização do

patrimônio tombado da cidade”, afirmam Victor Lacerda

da Cunha e Altino Barbosa Caldeira em um estudo sobre

o processo de refuncionalização do patrimônio cultural

em Ouro Preto, de 2014. Ainda segundo os autores, as

alterações no conjunto arquitetônico e os interesses

comerciais causaram “a gentrificação do centro histórico

e a periferização da população mais humilde”.

De acordo com Luana Melo, no site do IBGE

consta que a presença negra continua forte em Ouro

Preto, porém vivendo em bairros periféricos. “Não

seria o momento de desenvolvermos uma política de

patrimônio e de turismo que evidencie a diversidade

cultural da nossa população e que levou à produção do

patrimônio que observamos hoje?”

Uma realidade mais próxima

Ouro Preto foi erguida sobre as montanhas de

Minas, em meio ao período áureo da mineração, à

soberania política da Coroa Portuguesa e à influência

da Igreja Católica. Fundada em 1711, a cidade foi

reconhecida como Vila Rica, até 1823, quando recebeu

o título de Imperial Cidade de Ouro Preto. Em setembro

de 1981, Ouro Preto foi declarada Patrimônio Cultural

da Humanidade, pela Unesco, segundo dados do

IPHAN. “Depois que a cidade recebeu esse título,

houve uma supervalorização imobiliária dos terrenos

e das construções, especialmente na região do centro

histórico”, afirmam Victor e Altino.

62


Alessandro Magno, graduado em História pela

Ufop, é morador de Ouro Preto, e, segundo ele, o

tombamento patrimonial do município supervalorizou

uma arquitetura de herança portuguesa enquanto a

herança de afrodescendentes ficou em segundo plano.

O centro se manteve preservado dentro de uma visão

eurocêntrica, enquanto a paisagem de outras áreas se

modificou com a chegada de famílias que venderam seus

casarões por não conseguirem mantê-los.

No cenário atual, muitos moradores da cidade

reclamam que os altos preços dos aluguéis de imóveis

e dos produtos do mercado não os atendem, que os

eventos culturais são excludentes e que o turismo

tem, de certa forma, causado danos à identidade

local e ao patrimônio. “Em Mariana e Ouro Preto é

comum a pichação “é da humanidade mas não é da

comunidade”. Tudo isso é muito simbólico, não só

sobre o turismo mas sobre os usos que são feitos do

patrimônio cultural, da sua transformação em objeto

de consumo”, afirma a professora Luana.

Então, podemos dizer que a gentrificação reflete na

cidade nos dias de hoje? Para o Secretário Municipal

Felipe, não. Para ele, “o problema não é de gentrificação.

Aqui o morador consegue vir no centro histórico,

consegue pagar um preço acessível no comércio, não são

excluídos desse processo”. Para Luana, mesmo que Ouro

Preto tenha vivido experiências diferentes do Pelourinho,

“é inegável que há um aburguesamento do acesso à

moradia, à oferta de restaurantes e outros serviços, é

evidente que a vida no centro histórico de Ouro Preto é

mais cara que nos bairros periféricos, por exemplo”.

Rodney Maiah, de 32 anos, é museólogo, trabalha há

cinco anos com turismo na cidade, e diz que somente

uma parte dos moradores frequentam os eventos que

acontecem no município enquanto outros não têm acesso

às festividades, nem ao menos sabem que, na maioria das

vezes, se trata de eventos gratuitos. “Os ouropretanos têm

acesso liberado aos museus em certos dias da semana,

não pagam como os turistas para visitar as igrejas, porém

muitos desconhecem esses benefícios”, afirma Maiah.

Alessandro ressalta que, durante os finais de semana,

o rigor na visitação de alguns espaços aumenta, por

consequência da maior movimentação de turistas, com

isso “o morador nunca sabe se vai ser reconhecido, se

precisa levar um comprovante de residência, ou se precisa

ter algum cadastro” para conseguir a entrada. Por conta

disso, muitos ouropretanos não se sentem confortáveis

em visitar os espaços que parecem ter sido elitizados.

Para o museólogo, um dos fatores que causam esse

contraste é a falta de divulgação: “as informações que

são disponibilizadas nas redes sociais e outros veículos

de comunicação não chegam para todas as pessoas da

mesma forma, e os mais afetados são os moradores dos

bairros mais afastados da região central do município”.

Rodney morou no bairro Saramenha de Ouro Preto

(localizado a pouco mais de 3 km do centro), há quatro

anos mudou-se para o centro da cidade e tem notado uma

diferença na forma como os moradores das duas áreas

consomem esses espaços urbanos, os eventos e os bens

culturais ali inserido. Por ter vivido as duas realidades ele

afirma que grande parte dos eventos e atividades oficiais

voltados para a cultura se concentra no centro.

Investir nessa divulgação é dever dos órgãos

públicos. De alguma forma, as informações precisam

chegar aos bairros periféricos, assim como chegam aos

turistas e aos moradores do centro histórico. O Secretário

de Turismo, não concorda que o problema seja a falta

de comunicação e sim um problema de inclusão social,

que acontece tanto em Ouro Preto, como em outras

cidades. “Os ouropretanos sabem dos eventos, sabem

onde acontece, mas não se sentem parte, isso é uma

coisa muito séria e necessita de educação patrimonial,

eles tem muito orgulho daqui, mas ainda se sentem à

margem de muita coisa”, afirma Felipe, que completa:

“precisamos trabalhar essa válvula melhor”.

A Secretaria de Turismo (Setur) de Ouro Preto criou

em 2015 o Departamento de Turismo Pedagógico para

trabalhar as questões de pertencimento, inclusão social

e a preservação patrimonial. Mais a frente, em 2017,

as Secretarias de Turismo e Educação desenvolveram

um Programa de Educação para apresentar a história

de Ouro Preto às crianças e levá-las aos monumentos.

Felipe acredita que “qualquer mudança começa pela

educação, que é a base”.

EDIÇÃO 27 | CURINGA 63


Cultura Extrativista

Exploração Turística

Centro preservado x periferia esquecida

O que muitos turistas sabem sobre as cidades históricas

se dá por meio dos veículos de comunicação e

das propagandas de televisão, que geralmente promovem

uma imagem que contrasta com a realidade desses

municípios. Isso não quer dizer que a cidade não tenha

a real beleza transmitida na mídia, mas ela é muito mais

que isso. As cidades sofrem com problemas de infraestrutura

e outros do cotidiano das comunidades que habitam

esses municípios.

Sobre a infraestrutura, existe uma lei que proíbe a

alteração das fachadas das casas, Rodney enxerga pontos

positivos e negativos. Por um lado, a lei resguarda

as características marcadas pela história, mas outra vez

a comunicação precisa ser clara, para que todos entendam

que o conjunto de normas vem como uma forma de

garantir a preservação patrimonial e não como uma imposição.

Por outro, priva as pessoas de realizarem alterações

necessárias em suas residências. “Quando alguém

não se sente parte, se sente excluído de qualquer ação.

Vivemos em uma cidade patrimônio cultural da humanidade,

certas coisas nós não podemos fazer, e uma das

nossas obrigações é manter as fachadas, manter os prédios”,

menciona o Secretário de Turismo sobre a importância

de preservar o encanto que Ouro Preto tem.

Enquanto o centro de algumas cidades turísticas se

enobrecem, as áreas periféricas nem ao menos fazem

parte no percurso turístico. Em Ouro Preto, alguns moradores

notam esse contraste. Segundo Rodney, não só

o centro reflete as memórias da cidade, “os bairros também

têm a ver com a história da cidade, com certeza, o

Morro da Queimada, o bairro Bauxita, Saramenha”.

O Secretário de Turismo afirma que o plano de divulgação

contempla todas as áreas da cidade, mas nem

todas são visitadas, porque os guias de turismo ganham

uma taxa para venderem um produto privado e levar os

turistas em certos pontos, como as igrejas principais e

as minas de ouro. Além disso, Felipe alega a falta de estrutura

de bairros periféricos: “não podemos levar um

turista a um local que não tem a mínima condição de

recebê-lo, porque isso vai queimar o destino”.

Sobre essa questão Luana diz ter uma visão positiva:

“claro que a maioria dos turistas que hoje vem para

Ouro Preto (e isso eu falo a partir de dados concretos)

passam apenas um dia na cidade. Isso faz com que, pela

64


limitação do tempo, essas pessoas priorizem os atrativos

“mais conhecidos”, os circuitos tradicionais. Mas há um

número significativo de pessoas que se deslocam para

experimentar a cidade com mais tempo”.

Para intensificar a divulgação da cidade, Felipe entendeu

que seria preciso criar um setor de comunicação

próprio para a Secretaria de Turismo, mesmo já existindo

outro setor que administrava a comunicação conjunta

de todas as secretarias da prefeitura de Ouro Preto.

“Com essa necessidade, a Setur criou um Departamento

de venda e promoção do destino, para ter um contato

direto com o turista e sermos competitivos no mercado.

O que rendeu várias ações, como o Festival de Turismo

em 2015”, declara Felipe.

Rodney concorda com o Secretário de Turismo, a respeito

da divulgação: “Ouro Preto tem muito potencial,

ter o título de patrimônio não quer dizer que não precisa

de incentivo”. Por outro lado, o morador pede que

o poder público, os guias turísticos e empresas privadas

dêem mais valor a outras áreas: “o pessoal chega aqui,

vai ver uma ou duas igrejas, a mina de ouro, dá uma

volta no centro e acha que em um dia conhece tudo, em

uma cidade que nem em um mês você conhece tudo…

aqui tem muito espaço legal que não é valorizado”.

Os pedidos dos moradores são: que os atrativos sejam

ofertados igualmente para todos, que o turista não

seja privilegiado em certos aspectos em que o morador

é excluído e que o poder público melhore o diálogo com

a população local, para que possam trabalhar juntos.

Porque o turismo precisa ser vendido, a cidade precisa

crescer, mas o patrimônio precisa ser preservado e o morador

precisa se sentir parte dele. Segundo o ponto de

vista da professora Luana, “hoje a gestão sustentável do

turismo e do patrimônio só é possível se feita pela comunidade

que detêm esse patrimônio, que convive diariamente

com o turismo, com a presença do turista, e é

esta comunidade a que deve ser a principal beneficiária

dos recursos que a atividade produz”. Trabalhar a inclusão

é o caminho “para ampliar o sentimento de pertencimento,

de identificação e em consequência a noção de

cidadania e participação na gestão do patrimônio e do

turismo”, ainda de acordo com Luana. Logo o morador

que se aproxima do patrimônio, se sente em casa e passa

a se sentir responsável por sua preservação.

EDIÇÃO 27 | CURINGA 65


Os desafios da

exploração sustentável

O extrativismo é a retirada de recurso ambiental, sem pensar na extinção dos materiais ou no

desequilíbrio de ecossistemas. A prática acontece desde a existência humana e é necessária para

a sobrevivência. Porém, como encontrar alternativas evitando o modo de produção agressivo?


Texto de Amanda Alves e Catharina Mello

Fotografias de Adrienne Pedrosa

Design de Adrienne Pedrosa e Catharina Mello

Segundo a Associação Gaúcha de proteção ao

ambiente natural (Agapan) desde a década

de 1970, perdura no Brasil o sistema de

desenvolvimento predatório baseado na expansão

da pecuária. Um método um tanto quanto perverso,

que retira povos da floresta do seu habitat tradicional

e devasta a flora, que carrega muito de nossas

riquezas brasileiras: plantas medicinais, diversidade

de espécies vegetais, árvores frutíferas e animais

inexistentes em outros lugares do mundo.

O Instituto Homem e Meio Ambiente da Amazônia

(Imazon) detectou, em 2019, um crescimento de 54% em

desmatamento na Amazônia Legal no mês de janeiro em

relação a janeiro do ano anterior, comprometendo cerca de

108 km² de floresta, área um pouco maior do que o estado

de Pernambuco. O Instituto ainda indica resultados de

estudos sobre a degradação florestal em diversas áreas

brasileiras, causada por queimadas e extração seletiva de

madeiras. Em 2019, os estudos detectaram um aumento

em relação a 2018 em estados como o Mato Grosso, 32%,

e Pará 37%. O boletim levantou também um crescimento

no índice de desmatamento de áreas de posse: em

assentamentos o nível chegou a 21%, 7% em terras

Indígenas e 5% em Unidades de Conservação.

A extinção de espécies, fruto do extrativismo

predatório animal, também coloca em risco o

equilíbrio ecológico das regiões que foram desmatadas.

Segundo o Instituto Chico Mendes de Conservação

da Biodiversidade (ICMBio) e o Ministério do Meio

Ambiente (MMA), foram registrados, no final de

2014, cerca de 1.1173 espécies animais ameaçadas

de extinção, como a Arara-azul e o Boto-cor-de-rosa,

ameaçando a biodiversidade tão característica do Brasil.

O extrativismo ambiental no Brasil é marcado,

principalmente, por três categorias: vegetal, mineral e

animal. A extração vegetal se caracteriza pela retirada de

materiais como o látex, madeira e sementes e tem como

marca de destruição o desmatamento e a extinção de

espécies vegetais. A extração mineral é responsável por

remover minério da natureza como ferro, cobre ou alumínio,

alterando o ambiente no qual se concentra, por meio da

destruição da vegetação local e da contaminação dos solos e

rios. Já o extrativismo animal é caracterizado pela captura de

animais por meio da pesca e da caça. No Brasil, a atividade

de caça é fiscalizada pelo Instituto Brasileiro do Meio

Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), e

é permitida desde 1967 pelo Código de Caça apenas para o

próprio sustento, como por exemplo para os indígenas. Para

a atividade pesqueira também é necessária a autorização e

torna-se proibida em períodos de reprodução.

Diante do modelo de extrativismo predatório,

aparecem questionamentos sobre qual será o futuro do

meio ambiente, visto que os recursos naturais, tanto

minerais, animais ou vegetais, em algum momento,

podem deixar de existir. A contaminação da fauna,

assoreamento de rios e lagos, destruição da cobertura

vegetal e desmatamento são efeitos do extrativismo

que não se preocupa com os resultados que acabam por

atingir o equilíbrio dos ecossistemas.

Apesar dos riscos para a natureza, a grande exploração

mostra-se necessária para o desenvolvimento humano.

Como utilizar, então, a natureza de forma equilibrada? Quais

os limites da interferência humana? Questões importantes

que seguem na busca de respostas ou alternativas.

Como e por que as reservas surgiram?

A primeira reserva extrativista nacional, nomeada

Alto do Juruá, surgiu no Acre, no ano de 1990, e marcou

a criação de espaços limitados para serem explorados.

A reserva foi criada depois da morte de Chico Mendes,

ativista ambiental e personagem marcante da luta

pela demarcação de terras no país, que teve início com

os seringueiros no norte do Brasil. Esses produtores

denunciavam o desflorestamento cometido por

fazendeiros, que também invadiam terras e deixavam

os produtores em situação de desamparo, visto que sua

forma de subsistência estava em risco.

Logo, seringueiros e também outros pequenos

produtores que dependiam daquelas terras, como

os castanheiros, se uniram em prol do bem comum:

criaram associações e sindicatos rurais para reivindicar

seu direito à terra e ao uso dos recursos naturais como a

extração da copaíba, andiroba, látex e outros produtos.

Em meados da década de 1970, em junção com

outros grupos, criaram a Aliança dos Povos da Floresta,

união entre ribeirinhos, extrativistas e índios, para

lutar por direitos incorporados às políticas de reforma

agrária e meio ambiente. Esse movimento ganhou

importância e o reconhecimento da luta sindical dos

seringueiros e dos demais povos da floresta.

A ideia de reservas ambientais começou a ser

discutida em meados dos anos 1980, mas apenas em

1989 pode-se ver um avanço em termos de legislação

com a criação da Lei nº 7.804, estabelecendo a

Política Nacional do Meio Ambiente.

Um ano depois, em 1990, foi elaborado o Decreto

nº 98.897, sobre reservas extrativistas, descrevendo as

reservas como espaços territoriais destinados à exploração

auto-sustentável e conservação dos recursos naturais

renováveis, por população extrativista, dando autoridade

ao Poder Executivo para criação de reservas em espaços

considerados de interesse ecológico e social.

As reservas são separadas em dois grupos: o primeiro,

onde não é permitido alterar ou manter alguma atividade

econômica, por exemplo, a floresta amazônica, a não ser

que tenha dentro dessa unidade alguma comunidade

tradicional, como a reserva indígena do Xingu, ao norte

EDIÇÃO 27 | CURINGA

67


Cultura Extrativista

Alternativas sustentáveis

do estado de Mato Grosso. O segundo grupo é permitido fazer

um manejo sustentável, como o extrativismo sustentável, a

título de exemplo a agricultura de subsistência.

Na Lei nº 9.985, do ano 2000, a reserva extrativista

adentra como parte das Unidades de Conservação,

áreas protegidas pelo Sistema Nacional de Unidades de

Conservação (Snuc), que estabelece critérios e normas para

a criação, implantação e gestão das unidades. Segundo a

Doutora em Ecologia Yasmine Antonini, professora do

curso de Biologia da Universidade Federal de Ouro Preto

(Ufop), essas unidades foram criadas para compatibilizar

o uso sustentável dos recursos naturais por populações

tradicionais e a conservação da biodiversidade.

Dentro dessas Unidades de Conservação há uma

série de categorias, além das reservas extrativistas, como,

por exemplo, reserva da biosfera, Reserva Particular do

Patrimônio Natural (RPPN) e os parques nacionais.

Para delimitar uma Unidade de Conservação, é exigido

um documento chamado “Plano de Manejo”. Como

explica o professor e doutorando em Biologia Vegetal pela

Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), Rodolpho

Henrique Waichert, a delimitação dessas áreas pode ser

atribuída por “características ambientais como o clima,

solo e água, por característica biológicas como fauna e a

flora e por também caráter socioambiental, caso aquelas

áreas possuem comunidades tradicionais ou extrativistas”.

Segundo Rodolfo, a legislação ambiental brasileira

é considerada uma das mais avançadas, baseada em

legislações ambientais mundo afora. Surgiu no contexto

pós Convenção de Estocolmo, em 2001, sobre proteção da

saúde humana de efeitos dos poluentes orgânicos, e cobre

basicamente todas as necessidades legais do meio ambiente.

Contudo, o país deixa a desejar em estratégias de fiscalização,

para que as leis sejam realmente efetivas. O professor Rodolpho

Henrique aponta que esses processos se tornam árduos devido

a localização dessas reservas: “É complicado de se entender

quando estamos em áreas de grandes centros, visto que a

maioria da população brasileira se encontra no litoral e isso

facilita as fiscalizações; contudo, em regiões como o Centro-

Oeste e Norte do país, torna-se mais complicado devido a

grandes extensões de terras e mata fechada”.

As questões que dificultam estratégias de fiscalização

acabam por facilitar a expansão da fronteira agrícola em áreas

como o Centro-Oeste e Norte do país. São nessas áreas, ocupadas

para realizar práticas agropecuárias, que podemos encontrar

mais facilmente um número maior de desmatamento.

Outro problema encontrado são as chamadas “terras

de grilagem”, referentes à prática de falsificação de

documentos para se tomar posse de terras públicas. O

termo “grilagem de terras” tem origem na forma como

se envelhecia os papéis que serviam como documentos.

Colocava-se as folhas dentro de compartimentos

fechados junto com grilos, as fezes desse inseto possuem

uma substância química que faz com que a fibra do

papel escureça dando impressão de papel envelhecido

ou documento antigo. Essa prática foi usada no Brasil

por muitos anos para se continuar avançando sobre suas

fronteiras e desmatando-se ilegalmente.

Um exemplo forte em questões sobre o avanço da

fronteira são as plantações de soja no Brasil, processo

iniciado no estado do Rio Grande do Sul e que, atualmente,

se estende para a região do Cerrado e Amazônia. Nele, vemos

grandes extensões de reservas sendo desmatadas em vista

de um agronegócio lucrativo. O plantio de soja tornou-se um

dos principais produtos agrícolas do país e colocou o Brasil

como o segundo maior produtor de soja do mundo, atrás

apenas dos Estados Unidos, ocupando uma área de 33,89

milhões de hectares para a produção de 113,92 milhões de

toneladas do produto, em 2017, segundo o site da Empresa

Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa).

Ilza Girardi, professora da Universidade Federal do Rio Grande

do Sul (UFRGS), com grande experiência na área do Jornalismo

Ambiental, critica como o governo trata a atual situação agrícola

e ambiental do país e como o agronegócio torna-se cada vez mais

perigoso: “na visão dos neoliberais meio ambiente é um entrave ao

desenvolvimento. Pode ser, sim, entrave, mas para a multiplicação

de seus lucros [de quem o explora]”.

Um futuro sob perspectiva

O Brasil no início do século XX encontrava-se em estado

primitivo em relação a qualquer investimento na produção

agrícola. Nesse momento, o país assistiu ao fenômeno chamado

êxodo rural, considerado o maior da história do país. A população

do campo começou a migrar para os centros urbanos em busca

de melhor qualidade de vida, já que o cenário no campo era

de pobreza, enquanto os centros, por meio da industrialização,

foram criando oportunidades de crescimento socioeconômico.

Diferente do que vimos anteriormente durante os grande ciclos

na agricultura, que se tornaram base para a economia do país

desde a era pré-colonial com o Pau-brasil, passando pelo ciclo

da cana-de-açúcar no período colonial, a expansão do café e do

algodão durante os séculos XVIII e XIX e, por fim, o ciclo da

borracha também no século XIX, na região norte.

Nos anos 1950, elaborado pelo então presidente

Juscelino Kubitschek, traçou-se o Plano de Metas, um

programa de industrialização e modernização do Brasil.

Uma das metas importantes a ser solucionada seria: a

68


Agricultura Familiar

O modo de produção familiar

se tornou alternativa e forma

de sustento para agricultores da

região de Ouro Preto e Mariana.

expansão da fronteira agrícola, sistematizar o mercado e

principalmente dar suporte tecnológico aos agricultores.

Os processos de mecanização da agricultura, como o uso

de maquinário que auxilia em procedimentos no plantio

e na colheita, trouxeram aos produtores a possibilidade de

aumentar o volume de sua produção, assim como utilizar

pesticidas e agrotóxicos para a inibição de pragas que

destroem as plantações. Tais processos tornaram possível a

chamada industrialização no meio rural.

A partir do momento em que se vêem grandes

investimentos para o meio rural, é visível uma diminuição

do número de emigrantes que saíam do interior em direção

às grandes cidades. Uma significante melhora aconteceu

na infraestrutura agrícola, como saneamento básico,

energia e principalmente o aumento do rendimento

dessas famílias, que passaram a viver somente do cultivo.

Atualmente, a agricultura familiar, seja ela mecanizada

ou não, desempenha importante papel na economia brasileira

Conforme o Censo Agropecuário realizado em 2017, 84% dos

estabelecimentos rurais são de agricultores familiares e, segundo

os dados coletados pelo Ministério da Agricultura no mesmo ano,

o país possui um faturamento anual de US$ 55,2 bilhões só em

produção familiar, cerca de 65,25% de toda produção brasileira,

considerada a quinta maior produção de alimentos do mundo.

Contudo, grandes investimentos para a agricultura não

significa um olhar atento ao meio ambiente e, apesar de apoiar as

práticas orgânicas, o atual Governo Federal já aprovou a utilização

de mais 31 agrotóxicos, totalizando 197 durante os cinco

meses de mandato. Segundo dados do Greenpeace, é a maior

quantidade de aprovação dos últimos dez anos, fato previsível,

já que antes mesmo de assumir o cargo, Tereza Cristina (DEM-

MS), a atual Ministra da Agricultura, Pecuária e Abastecimento

(Mapa), apelidada pela bancada ruralista, da qual era presidente,

como a “musa do veneno”, afirmou que o uso de agrotóxicos

teria bastante “espaço” durante o seu mandato.

Devido aos retrocessos anunciados, sete ex-Ministros

do Meio Ambiente se reuniram no dia 8 de maio de 2019, na

Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), para anunciarem

sua preocupação e debaterem a atual situação do Governo em

relação ao meio ambiente. Estiveram presentes Rubens Ricupero

(ex-Ministro do governo de Itamar Franco), José Carlos Carvalho

e José Sarney Filho (Ministros durante governo de Fernando

Henrique Cardoso), Marina Silva e Carlos Minc (ambos do

governo Lula), Izabella Teixeira (Ministra nos governos de Lula

e Dilma Rousseff) e Edson Duarte (Ministro durante o mandato

de Michel Temer); nomes que atuaram em um período de quase

30 anos na área do Meio Ambiente no Brasil.

Os ex-Ministros redigiram uma carta se posicionando

contra a atual gestão. No documento, afirmam: “passados

mais de cem dias do novo governo, as iniciativas em curso

vão na direção oposta à de nosso alerta, comprometendo

a imagem e a credibilidade internacional do país”. E

diz ainda: “a governança socioambiental no Brasil está

sendo desmontada, em afronta à Constituição”.

Em nota, o atual Ministro do Meio Ambiente, Ricardo

Salles (Novo/SP), refutou as acusações e afirmou que as

decisões do Governo não colocam em risco as direções

socioambientais do Brasil e culpa as administrações

anteriores pela atual situação ambiental do país.

O que é um agricultor familiar?

A Lei 11.326/2006 agricultores familiares, são

aqueles que praticam atividade de cultivo,

utilizando em seu empreendimento a mão-deobra

da própria família, detendo uma área de até

quatro módulos fiscais e que tenha percentual

mínimo da renda familiar originada de atividades

econômicas do seu estabelecimento.

Podem ser beneficiários da lei silvicultores,

aquicultores, extrativistas, pescadores, indígenas,

quilombolas e assentados da reforma agrária.

EDIÇÃO 27 | CURINGA 69


Cultura Extrativista

Alternativas sustentáveis

Como forma de sobrevivência e de auxílio financeiro,

que não prejudica ao meio ambiente, é possível encontrar

alternativas, desde movimentos sociais até projetos

locais. As iniciativas incluem o conceito de agricultura

sustentável, prática que é caracterizada por não utilizar

agrotóxicos e pesticidas. É uma atividade agrícola

trabalhosa, mas que visa respeitar a natureza em todas

as fases, desde o plantio até a colheita. Como exemplo

das práticas sustentáveis, o Armazém do Campo e o

projeto Circula Agricultura, se baseiam nos conceitos de

agricultura familiar para produzir alimentos.

O Armazém do Campo está localizado na Avenida

Augusto de Lima, em Belo Horizonte e é uma loja de

produtos naturais originários de produtores da Reforma

Agrária, sistema desenvolvido em 1970 responsável

por dividir as terras a partir da alteração do uso das

propriedades. Mais do que um comércio, o Armazém

se configura como espaço de resistência ao modelo de

agronegócio monoculturista, onde apenas uma única

cultura é produzida dentro de latifúndios.

A loja é um espaço inaugurado em 2017 e gerido pelo

Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).

O lucro que ela obtém é de cerca de 30% segundo os

funcionários, o que é usado para manutenção da loja.

De doces, farinhas e verduras a produtos medicinais,

a variedade toma conta do lugar. Os produtos dispostos

sobre as prateleiras possuem selo do MST e além da

identificação imediata, permitem ao consumidor analisar

a presente qualidade do produto que está levando para

casa, abaixo do preço de mercado.

Dentro do armazém, tudo remete a consciência política,

desde os produtos até a relação com o espaço, que carrega

fortes referências ao cantor Belchior, ao ambientalista

Chico Mendes e ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Além de ofertar produtos, o Armazém do Campo é palco de

atrações, pensadas pela organização para que transformem

o local em ponto de cultura e integração, buscando dar a

liberdade de expressão linguagens artísticas e manifestações.

Para além do espaço físico, a loja também representa a história de

pessoas. É o caso de Moara de Araújo Pinto, de 19 anos. Ela

trabalha como vendedora no Armazém há cerca de um ano.

Nascida e criada dentro dos acampamentos, os pais se conheceram

dentro do espaço. Hoje, seu pai canta nos eventos dos Sem Terra

e a mãe trabalha como professora, ambos dividem o tempo sendo

agricultores e produtores rurais dentro dos acampamentos.

O MST vai de grandes cooperativas até pequenas

produções individuais. O processo até chegar no produto final

é desenvolvido por etapas, a fim de que os agricultores se

organizem e mantenham a preservação ambiental. Segundo

Moara, a lógica do movimento é ser contra toda forma de

exploração. Então, eles produzem de forma agroecológica,

o que significa pensar em toda vida que está no processo de

produção, do solo, da planta, dos animais e do trabalhador.

O grupo também busca dar apoio e incentivar a agricultura

familiar, se alguém deseja plantar dentro do assentamento,

são fornecidas sementes, repassadas técnicas, além de serem

desenvolvidos cursos de adubação, controle de solos e pragas,

todos ministrados por agrônomos. A produção ecológica tomou

grandes proporções e efeitos positivos para o país, segundo o

Instituto Riograndense do Arroz (Irga), o MST atualmente é

o maior produtor orgânico de grão da América Latina. Além

de também ser um dos maiores produtores de arroz orgânico

do Brasil de produtos originários dos assentamentos do Rio

Grande do Sul. Moara afirma que sua criação dentro do MST

foi de grande importância, principalmente para a formação de

sua identidade. No acampamento, ela aprendeu história aos

seis anos de idade, o que despertou sua curiosidade em relação

a questões sociais e políticas e a se sentir engajada dentro do

Movimento. No MST busca-se dar uma infraestrutura suficiente

para que as famílias vivam bem dentro dos assentamentos.

Segundo Moara, existem postos de saúde, escola, engenheiros,

advogados, pessoas que cuidam das crianças dentro de um

espaço onde as crianças aprendem história e discutem política,

toda uma infraestrutura que possui profissionais qualificados.

A luta continua para legitimação do movimento. “Algumas

pessoas tem muito preconceito com esse grupo, acham que nós

queremos tomar as terras deles. Nós não queremos uma terra

de oito alqueires, queremos terras desocupadas para assentar

70

Armazém do Campo

O Armazém vende produtos

como a Farinha de Milho, além

de frutas e verduras produzidas

em assentamentos.


famílias. Hoje, trabalho no armazém não por salário, mas por

ideologia, por acreditar no espaço e no fruto do trabalho dos

Movimentos dos Trabalhadores Rurais”, declara Moara.

O Armazém do Campo é a terceira loja inaugurada pelo

movimento dos Sem Terra, acompanhadas pelas cidades de São

Paulo e Porto Alegre. A loja representa a luta para além do campo

e segue tentando dialogar com a vida urbana nas cidades.

Circula Agricultura

O Circula Agricultura nasceu da necessidade de pensar

alternativas em relação a mineração, atividade finita e forte

na região de Mariana e Ouro Preto. O projeto faz parte

de um Programa de Extensão da (Ufop) e do Núcleo de

Pesquisa e Extensão em Desenvolvimento Econômico e

Social (Nupedes), que surgiu de uma discussão a partir do

rompimento da Barragem de Fundão, em 2015.

Segundo a coordenadora do projeto, professora Marisa

Alice Singulano, a agricultura da região não recebia nenhum

tipo de investimento e não era vista como fonte de renda. A

partir da discussão de profissionais de diversas áreas, concluiuse

que a agricultura local tinha potencial o suficiente para se

tornar parte do desenvolvimento da cidade.

Os agricultores produziam na região, porém outros feirantes

comercializavam produtos das Centrais de Abastecimento

(Ceasa) e, por isso, os agricultores locais não tinham de

suporte. “Os agricultores precisavam receber mais apoio e

para isso negociamos com a Prefeitura e com a Empresa de

Assistência Técnica e Extensão Rural - MG (Emater), que se

comprometeram a dar apoio. Tinha o problema da venda, porque

muitos produtores não produziam, pois não tinham onde vender,

e aí tivemos a ideia do Circula”, relata Marisa.

Ainda de acordo com a coordenadora, o projeto também

serve como vitrine para os agricultores da região, já que dá

visibilidade à produção agroecológica desenvolvida nas duas

cidades envolvidas, principalmente em seus distritos e zonas rurais.

Os integrantes do projeto são famílias que antes de

conhecer o “Circula Agricultura” já tinham produção

própria. As verduras e legumes são cultivados no sistema de

consórcio, que consiste na técnica em que diferentes tipos

de alimento são plantados e, a partir do tempo determinado

para retirada dos alimentos, o espaço se abre para o

desenvolvimento das variedades que demandam um tempo

maior para estarem prontas para colheita. Além disso, a

técnica aproveita melhor o espaço e rende mais alimentos.

De acordo com Célia Cocirni, agricultora participante

do Circula, os produtos mais procurados são alfaces das

variedades crespa, lisa, americana e roxa, além de brócolis,

almeirão, couve, acelga, couve-flor, cheiro verde e espinafre.

Com a consciência sobre a exploração da natureza e a

necessidade de cuidar do meio ambiente, a plantação é

protegida com biofertilizantes produzidos pelas famílias.

Segundo Célia, a principal diferença entre os fertilizantes

comuns e o biofertilizante é que, além de ser natural, o

biofertilizante acrescenta nutrientes para as plantas e para

o solo e deixa o terreno cada vez mais produtivo e sem

contaminação. Os produtores também preservam a mata

ao redor da plantação, criando a chamada barreira verde,

que impede a contaminação vinda de um meio externo e

protegem as nascentes localizadas dentro das propriedades.

Para auxiliar na conscientização, foi criado em março

de 2018, o Núcleo de Estudos em Agroecologia da Região

dos Inconfidentes (Nea - Inconfidentes) que difunde as

práticas agroecológicas entre os agricultores. “Dentro da

agricultura familiar, o Núcleo ressalta a produção sem

agrotóxicos, em respeito ao meio ambiente e à integração

com o ecossistema local,” explica a professora Marisa.

Além do Circula, os produtores desenvolveram o projeto

Horta Real, que consiste na montagem de cestas a partir

dos pedidos feitos pelos clientes via WhatsApp. A entrega das

cestas acontece em Belo Horizonte, Ouro Preto e Mariana.

Circula Agricultura

As feiras do circula vendem

a produção da agricultura

familiar nos campi da UFOP.

EDIÇÃO 27 | CURINGA 71



O que (re)veste

a moda?

A insustentabilidade ambiental e a exploração do trabalho na indústria da

moda acelerada, alavancadas pela produção em larga escala, contrastam

com o crescente mercado do consumo consciente.

Texto de Sofia Fuscaldi Cerezo

Fotografias de Carolina Durval Carvalho

Design de Stefanny Inacio Rolim

Aroupa se tornou uma expressão do nosso corpo e,

por isso, é um ato político. Usar verde e amarelo ou

vermelho no dia da votação para a presidência do

Brasil em 2018 significava um posicionamento. Mulheres

que usavam calças em 1970 representavam um ideal. Mas

o que as roupas que consumimos hoje escondem?

De acordo com uma pesquisa realizada em 2017

pelo World Resources Institute, uma Organização

Não Governamental sediada em Washington, nos

Estados Unidos, a indústria da moda mundial produz

20 peças de roupa ao ano por pessoa. Todos os dias,

383 milhões de roupas são produzidas, ou seja, 4,4

mil peças por segundo.

No Brasil, o setor da moda emprega 1,5 milhão de

pessoas, e 6,5 milhões indiretamente, tornando esse ramo

o segundo maior empregador do país, perdendo apenas

para alimentos e bebidas (juntos); sendo 75% dessa mão

de obra, feminina. No ano de 2017, o faturamento desse

setor foi de 51,58 bilhões de dólares, contra US$ 42,94

bilhões em 2016, com produção média de 1,3 milhão de

toneladas e 6,71 bilhões de peças para vestuário. O Brasil

é o quinto maior produtor têxtil do mundo, e o quarto

maior em produção de peças de vestuário, segundo

relatório realizado em 2017 pela Associação Brasileira da

Indústria Têxtil e de Confecção (Abit).

Para Vanusa Maria, formada em Gestão e Recursos

Humanos e à frente da administração de um brechó

em Ouro Preto (MG), montado apenas com materiais

reutilizados, a partir da economia colaborativa de 12

empresárias, esses números são acompanhados de

consequências alarmantes: “A indústria da moda é a

segunda mais poluente do planeta, só perde para o

petróleo. Uma calça jeans consome 11 mil litros d’água

para ser confeccionada”.

Nesse sistema de produção massiva de roupas,

chamado de Fast Fashion, as lojas deixam de lançar

coleções para cada estação do ano e passam a lançar uma

coleção por semana. Para que isso seja possível, todo o

ciclo de produção de roupas é afetado. O algodão orgânico,

por exemplo, demora muito tempo para poder ser colhido.

E como o algodão é a matéria prima mais utilizada para a

confecção de roupas, o uso de agrotóxicos nas plantações

é intenso. Vanusa afirma que, para acelerar processos,

utiliza-se cada vez mais química.

Segundo o relatório Pulse Of The Fashion Industry

de 2019, produzido pelo fórum de moda Global Fashion

Agenda, o algodão é responsável por cobrir 3% das terras

férteis do mundo, com uma produção consumindo

estimadamente 16% dos inseticidas e 7% dos herbicidas

produzidos globalmente, com impactos tanto no solo e

na água, como também na saúde das pessoas. Em abril

de 2019, o Instituto Nacional de Câncer (Inca) emitiu

um alerta apontando que regiões com alto uso de

agrotóxicos apresentam incidência de câncer bem acima

da média nacional e mundial, e que, desde 2009, o Brasil

é o maior consumidor desses produtos no planeta.

EDIÇÃO 27 | CURINGA

73


Cultura Extrativista

Retaguarda da moda

Exploração X Fashion Revolution

Ao avançar na cadeia produtiva da moda, nos

deparamos com um outro fator negativo decorrente do

Fast Fashion: a enorme exploração de trabalho envolvida

na Indústria da Moda. Aproximadamente 40 milhões de

pessoas em todo o mundo estão vivendo em situações de

trabalho análogo à escravidão, e a indústria da moda é a

segunda maior contribuinte para essa situação, segundo

o relatório Global Slavery Index de 2018, publicado pela

organização Walk Free, que busca erradicar a escravidão

moderna do mundo até 2030.

Sobre o sistema do Fast Fashion, Vanusa afirma que

“as roupas de [lojas] departamento são feitas sem critério

e possuem erro de modelagem. Você vai num shopping,

todas as lojas de departamento estão praticamente com os

mesmos estilos de peça. Acredito inclusive também que vêm

da mesma China”. A maior parte das roupas produzidas

mundialmente são confeccionadas em países nos quais a

faixa salarial é muito baixa, as condições de trabalho são

precárias, as fábricas não estão sujeitas a verificações de

segurança e as normas trabalhistas quase não existem,

como a China, Bangladesh, Camboja e Vietnam.

Principais origens de importações

de produtos têxteis e confeccionados

(US$)

MADE IN CHINA

304

milhões

MADE IN BANGLADESH

MADE IN INDONÉSIA

20

milhões

22

milhões

MADE IN ÍNDIA

32

milhões

MADE IN VIETNÃ

17

milhões

Valéria Said, jornalista, pesquisadora em moda e

política e co-organizadora e curadora de conteúdo e debates

no movimento Fashion Revolution em Belo Horizonte,

destaca como o consumo consciente é importante: “Para

você comprar uma roupa de 30 reais, é porque alguém lá

atrás foi muito explorado”. Usando um vestido vintage

anos 1960 comprado em brechó, ela fala do preconceito que

existe em comprar roupas de segunda mão. Muitas pessoas

acreditam que as roupas compradas em bazar são roupas de

pessoas que já morreram, e que a energia do morto poderia

passar para elas. Valéria afirma: “você tem medo da energia

de um morto, eu acho que você deveria ter medo da energia

das mulheres vivas que estão sendo escravizadas para

fazer essa roupa, e que você não quer comprar em brechó,

prefere comprar em fast fashion. Espírito por espírito, eu

acho que o espírito de uma viva merece muito mais a sua

misericórdia do que o de um morto.”

O Fashion Revolution é um movimento global sem fins

lucrativos com o objetivo de promover a conscientização

sobre como a atual cadeia de produção das roupas

funciona e o seu impacto, mostrando o verdadeiro custo

da moda que consumimos. A representante do Fashion

Revolution em Belo Horizonte, Lívia Monteiro, 33, conta

que o movimento surgiu em 2013, quando o edifício Rana

Plaza em Bangladesh desabou, causando a morte de 1.134

trabalhadores da indústria de confecção e deixando mais

de 2.500 feridos. As vítimas trabalhavam para marcas

globais, em condições análogas à escravidão, e já haviam

alertado sobre rachaduras no edifício, sem que nenhuma

providência fosse tomada. “Você tem a sua roupa linda,

maravilhosa. Mas a custo de que? Tem gente que está

perdendo a vida para fazer a sua roupa da moda”. Isso

despertou em algumas pessoas na Inglaterra, país berço do

movimento, a vontade de questionar essa cadeia produtiva

da moda, que até então ficava, de certa forma, escondida.

Desde então, todo dia 24 de abril, data do desabamento,

as pessoas passaram a tirar fotos das etiquetas de suas roupas

e enviar para as redes sociais das marcas com a pergunta

“Quem fez minhas roupas?”. Muitas marcas não respondiam.

Assim, o movimento cresceu, espalhando-se para diversos

países e necessitando de mais dias para contemplar os

assuntos que iam surgindo, tornando-se a Semana do

Fashion Revolution, que aborda diversas discussões a respeito

da moda. Temas como feminismo, sustentabilidade, racismo,

direitos humanos e comunicação são recorrentes.

Fonte: Abit (2019)

74


Moda: de onde vem e para onde vai

Pintura de Elisabeth Vigée-Le Brun (1783) Palácio de Versalhes

Durante a 6ª Semana Fashion Revolution em Belo

Horizonte, que ocorreu entre os dias 22 a 28 de abril de 2019,

no Museu da Moda, Valéria Said ministrou uma palestra

sobre “Roupas Subversivas & Feminismo”, na qual ela falou

um pouco sobre como a moda nasceu e como ela é uma

manifestação política que influenciou em várias mudanças

sociais importantes.

Foi durante o reinado de Luís XVI e Maria Antonieta que

a palavra “moda” surgiu. Foi durante esse mesmo reinado

que se desencadeou a Revolução Francesa, no século XVIII.

A realeza era extravagante e ditava as tendências da moda

na época. Valéria Said fala sobre como havia uma competição

por status através da indumentária, pois o consumo era uma

forma de demonstrar o poder de um nobre para outro.

Com o surgimento da burguesia, porém, iniciou-se

o processo de aceleração da moda, já que essa nova classe

tentava copiar os tecidos, cores e moldes das vestimentas

da corte, além da forma de agir. Para que a burguesia não

tivesse tempo de copiá-la, a corte começou a modificar as

tendências de vestimenta e etiqueta de forma mais rápida,

alavancando o mercado da moda na França e tornando Paris

a capital da moda na Europa.

Foi a partir da Revolução Industrial iniciada na

Inglaterra, na segunda metade do século XVIII, que o

setor fabril de tecidos passou a contar com a aceleração

da produção e, portanto, da moda. A Revolução Industrial

trouxe invenções como a máquina de costura e outros

equipamentos para a produção de tecidos, o que diminuiu

La Reine en Gaulle (1783)

Maria Antonieta na

retaguarda da moda.

Quem ama não mata

Valéria Said destaca a subversão e

alforria feminina no mundo fashion.

o custo do produto, e finalmente foi possível que as pessoas

fora da elite pudessem adentrar nesse mundo do fashion.

Por volta de 1820, surgiu, na Inglaterra e na França, a

confecção industrial. Pela primeira vez, às centenas, as

peças saíam prontas das fábricas, idênticas e mais baratas.

Nesse contexto, surge o sistema que conhecemos hoje, o

Fast Fashion. Esse modelo consiste em empresas globais que

captam o que as marcas renomadas estão criando e fabricam

peças parecidas em larga escala, com qualidade inferior, em

países em que a fabricação e a mão de obra são mais baratas,

diminuindo muito o preço do produto final. O sistema de moda

globalizada faz com que os mesmos modelos padronizados

circulem por toda a rede de lojas ao redor do mundo, ignorando

as particularidades de cada local, clima e biotipo corporal.

No Fast Fashion, a ideia é que as tendências durem pouco,

para que as pessoas consumam mais peças em um período de

tempo menor, buscando “estar sempre na moda”, alimentando

o ciclo do mercado. O economista italiano Enrico Cietta fala em

seu livro “A Economia da Moda”, de 2019, que “não foi o fastfashion

que criou a moda veloz, e sim o sistema interconectado

de transmissão que favoreceu o seu sucesso. A média de uma

música foi reduzida a partir do momento em que a transmissão

de rádio tornou a difusão da música muito mais veloz. A

média de tempo em que um filme fica em cartaz nas salas de

cinema diminuiu com a televisão aberta e por assinatura. Por

que deveria ser diferente com a moda?”. O problema é que a

indústria da moda tomou enormes proporções e está causando

consequências negativas irreversíveis no mundo inteiro. Como

uma alternativa ao Fast Fashion, um outro sistema ganha

destaque nas mídias: o Slow Fashion.

EDIÇÃO 27 | CURINGA

75


Cultura Extrativista

Retaguarda da moda

A moda tem futuro?

Natália Mori, especialista em Estética e Gestão de

Moda, escreve que o Slow Fashion é um movimento

de moda sustentável e consciente que se articula em

oposição ao consumismo desenfreado. Ele foi criado

pela inglesa Kate Fletcher, buscando inspiração no

movimento Slow Food, idealizado por Carlo Petrini,

em 1986, na Itália. O Slow Food divulga o consumo

saudável de alimentos e a prática do natural, indo

contra a industrialização e o Fast Food. Já o Slow

Fashion tem por objetivo despertar a consciência ética

e o consumo de produtos com maior qualidade, feitos

em pequena escala, indo contra a massificação da moda

atual. Ele preza despertar a consciência e a prática de

sustentabilidade tanto nos consumidores quanto na

indústria de moda. Esse movimento vem ganhando

força no mercado da moda internacional e, aos poucos,

começa a aparecer no Brasil. Questões como a aceleração

do consumo, a mão de obra escrava, o trabalho infantil,

a baixa qualidade e a pouca durabilidade das peças são

discutidas e criticadas pelo Slow Fashion.

Cristiane Laila, dona do Ateliê de Criação Cris Maria,

em Juiz de Fora (MG), conta que começou os primeiros

pontos da costura aos 5 anos: “Fui criada entre os tecidos,

máquinas, moldes, linhas e agulhas”. Ela é a neta mais

nova de uma família de costureiras de Muriaé (MG).

Em seu ateliê, Cristiane, em conjunto com três outras

costureiras, produz peças artesanais únicas, utilizando

retalhos de tecido que sobram das fábricas de roupas

para venda a varejo e para grandes marcas. Ela zela por

uma cadeia de produção justa, em que a precificação das

peças segue uma lógica de não reproduzir a exploração

de mão de obra vista nas produções em série. Por mês,

ela compra cerca de 4 quilos de tecido, e o desperdício no

ateliê é zero. Isso porque, com o que sobra da produção

de roupas, ela faz standards, ecobags e roupas infantis,

que utilizam pedaços menores de tecido. Para ela, “toda

sobra é um pedaço do planeta que é jogado fora”.

Entre as mulheres que resistem aos males do Fast

Fashion, encontramos também Karen Gutierrez,

fundadora da marca Breshop, atualmente com 4 lojas de

brechó nas cidades de Ouro Preto e Conselheiro Lafaiete.

Ela fala que o Breshop foi uma brincadeira que virou

empresa: “minha mãe custou a acreditar, custou a ir na

loja, porque todo mundo achou que era realmente uma

brincadeira. Só que eu levei muito a sério a brincadeira”.

Hoje, ela possui diversos clientes fidelizados e dispõe de

uma costureira para agregar valor ao negócio, que realiza

consertos tanto para o brechó como para os clientes.

Karen acredita no futuro dos brechós. Para ela, as

lojas que hoje vendem roupas novas passarão a vender

também roupas usadas, pois precisamos consumir as

coisas que produzimos em excesso. Ela quer que sua

marca seja pioneira nesse mercado, pois acredita que há

uma tendência muito forte para isso “pegar”. Até pouco

tempo, brechós eram sinônimos de roupas velhas e mal

conservadas. Todavia, essa conotação não se concretiza.

76

Visualidade e disposição

No Breshop as peças de roupa

são organizadas de acordo

com suas tonalidades e estilos.


Visualidade e disposição

No Breshop as peças de roupa

são organizadas de acordo

com suas tonalidades e estilos.

Karen conta como as roupas que chegam ao seu

brechó passam pelo escritório de avaliação, no qual

são examinadas de acordo com a marca, o estado de

conservação e o estilo, já que o Breshop trabalha com

roupas de lançamento, e não roupas no estilo retrô. Para

ela, “o que os clientes mais procuram em qualquer loja

é autoestima”. Por isso, a importância de oferecer ao

cliente um local em que ele se sinta bem, e que venda

artigos de qualidade a um preço mais acessível.

Vanusa Maria, fundadora do brechó Old Chic,

conta que quando montou a loja, há 7 anos, não

existia, em Ouro Preto, nenhum comércio de roupas

usadas. Apesar de nunca ter entrado em um brechó

até então, Vanusa sempre foi apaixonada por

roupas usadas, e cresceu reutilizando as roupas da

patroa de sua mãe. O Old Chic começou na sala da

sua casa, e veio a se tornar uma rede com 3 lojas

na região. Uma grande preocupação de Vanusa é

saber a procedência das roupas que compra, pois

se não houver essa preocupação, existe o risco de

comercializar roupas furtadas. Assim, ela costuma

manter fornecedores fixos.

Na época que a barragem de Fundão se rompeu,

por exemplo, “apareceu muita roupa de doação, é um

momento em que muitos objetos, principalmente

roupas usadas, acabam não percorrendo o caminho que

deveriam, e acabam em brechós. Há o risco de você fazer

uma doação de roupa para determinada causa, e então

você se depara com ela num brechó”. Por isso, ela ressalta

a importância do consumo consciente. A partir dele, você

sabe o que está comprando, de quem está comprando e

qual o caminho que a peça percorreu até a loja.

Tanto o brechó de Karen quanto o de Vanusa

doam as roupas que não foram compradas para

instituições de caridade da região, e ambas acreditam

que o brechó é uma tendência que veio para ficar.

“Eu sinto uma grande distância da minha realidade

para as lojas de Fast Fashion. É uma prestação de

serviço robotizada”, conta Vanusa. Ela afirma que

a sustentabilidade é um caminho sem volta: uma

das maiores marcas de moda do mundo, a H&M,

anunciou, no dia 9 de abril de 2019, que iria começar

a trabalhar com produtos usados no mundo todo.

O ThredUp, um site para revenda online de roupas de

segunda mão, revelou no ThredUp 2018 Resale Report,

uma pesquisa conjunta com a GlobalData, que, em

2018, o mercado internacional de produtos de segunda

mão cresceu 47% em relação ao ano anterior, enquanto

as vendas no varejo cresceram somente 2% no mesmo

período. No Brasil, segundo dados do Serviço Brasileiro

de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), as

micro e pequenas empresas que comercializam artigos

usados cresceram 210% entre 2010 e 2015. De acordo

com estimativas do ThredUp, a porcentagem de roupas e

acessórios vindos de lojas de departamento nos guardaroupas

ao redor do mundo diminuíram de 22% em 2008

para 14% em 2018, e a estimativa é de que esse número

caia para 9% em 2028.

Esses números sinalizam para um dos possíveis

caminhos que a moda pode seguir daqui em diante. Um

caminho no qual Karen e Vanusa apostam e depositam

seus sonhos. Um momento na história da moda em que

empresas, habituadas a olhar para o lucro e montante

produzido, e consumidores, habituados a considerar

o preço e o produto final e acabado, vão dar um passo

atrás. É preciso que nos afastemos para considerar

as origens daquilo que compramos e o impacto que a

produção acelerada e o consumo desmedido têm no

meio ambiente, na saúde das pessoas e nas condições de

vida dos trabalhadores em economias de baixo custo.

A moda, que tanto se renova, precisa mudar.

EDIÇÃO 27 | CURINGA

77


A luta dos Pataxós

gravada nas ruínas

Terra é sinônimo de pertencimento. Os primeiros índios chegaram

como prisioneiros à Fazenda Guarani e, em meio à luta e resistência,

ressignificam o lugar mantendo vivas as tradições do povo Pataxó.


Foto: Glauciene Oliveira

Texto de Joice Valverde

Fotografias de Márcio Gomes

Design de Glauciene Oliveira

O

povo Pataxó nasceu na aldeia Barra Velha no século XVIII, na Bahia. Os conflitos de terra, invasões e perseguições

sofridas, tiveram o ápice no “Fogo de 51”, grande ataque comandado pela polícia baiana e que quase resultou no

extermínio dos Pataxós, em 1951. Com o território tradicional reduzido pela invasão de fazendeiros e o trauma do

massacre, nem todos os Pataxós conseguiram retornar à Barra Velha e acabaram por dividir-se em outros grupos dispersos

pela Bahia e região norte de Minas Gerais. Atualmente, são registradas 36 aldeias Pataxós no Estado da Bahia e seis em

Minas Gerais, das quais três delas estão localizadas em uma fazenda na cidade de Carmésia.

EDIÇÃO 27 | CURINGA

79


Cultura Extrativista

Resistência Indígena

Foto: Márcio Gomes Foto: Márcio Gomes

Pertencer à terra

Os primeiros índios Pataxós chegaram na Fazenda

Guarani, antiga fazenda açucareira já em ruínas, no

município de Carmésia (MG), por volta de 1972 como

prisioneiros. Na época, em meio a Ditadura Civil Militar,

o território foi utilizado como reformatório e confinava

indígenas de todo o país por diversos atos ilícitos. Passada

a Ditadura Civil Militar e o fechamento do reformatório,

os Pataxós permaneceram na Fazenda Guarani e

reivindicaram a demarcação do território, uma vez que os

outros presos já haviam retornado a suas aldeias de origem.

O Decreto Estadual 270, homologado em 30 de

outubro de 1991 e registrado pela FUNAI, reconhece a

reserva como terra dos Pataxós. De acordo com os últimos

dados do Sistema de Informação da Atenção à Saúde

Indígena (SIASI), em 2014, 335 pessoas vivem em uma

área de 3 mil hectares de reserva indígena da Fazenda

Guarani. Na reserva, as aldeias são separadas em três

clãs independentes e liderados por caciques diferentes, a

Sede, liderada pelo cacique Mesaque Pataxó, a Imbiruçu,

pelo cacique Romildo Pataxó e a Encontro das Águas,

liderada pela cacique Apinaera Pataxó.

80


Foto: Márcio Gomes

Filhos da Água

Os Pataxós se denominam filhos da água. A

origem do nome Pataxó, segundo a tradição do

povo, está ligada a um velho índio que observava o

movimento das águas na beira do mar e notou que,

quando as ondas se chocavam com as pedras, emitia

os sons “Pá” do movimento, “Tá” ao bater na pedra e

”Xó” quando retornava ao mar.

Ainda segundo a mitologia Pataxó, o índio teria

surgido da chuva. Txopai, para eles o primeiro Pataxó e

dono de toda a sabedoria da natureza, antes de morrer

fez um ritual para chover e cada pingo de chuva teria se

transformado em um Pataxó.

A água é então o príncipio do povo Pataxó, é

sagrada aos rituais de batismo e purificação e é fonte

de sobrevivência à lavoura e ao consumo. Deste modo, a

Festa da Chuva é um tradicional ritual em agradecimento

ao tempo da chuva e, consequentemente, da colheita.

As danças, músicas e brincadeiras, celebram o protetor

das águas Txopai e o Deus (Niamissu) pela plantação

sucedida. Ao final da festa, os índios banham-se no lago,

para eles sagrado, para purificar o corpo.

Foto: Márcio Gomes

Com a chegada da chuva surgem novas

vidas, fartura para nossa alimentação e,

é através da chuva que nós retiramos o

sustento da terra.

Araribe Pataxó

EDIÇÃO 27 | CURINGA

81


Cultura Extrativista

Resistência Indígena

Língua de Guerreiro

A raíz dos Pataxós está na preservação da sua língua

e dos elementos tradicionais da cultura do povo. A língua

mãe é o Patxohã, que significa linguagem de guerreiro

(pat são as iniciais de Pataxó: atxohã é língua e Xôhã é

guerreiro). Durante muitos anos, os Pataxós perderam

completamente o contato com a língua materna, pois,

desde a chegada dos portugueses ao Brasil, eram

proibidos de se comunicarem na sua língua. O Patxohã

era falado de forma oculta apenas entre os mais velhos.

A necessidade de se resgatar a história motivou o

processo de revitalização da língua, através de pesquisa

em registros e principalmente conversas com os índios

mais velhos das aldeias sobre as palavras que eram

faladas no dia-a-dia, nas músicas e rituais tradicionais. O

processo de pesquisa possibilitou o acesso a mais de

2.500 palavras e, atualmente, o Patxohã é ensinado

nas escolas indígenas para preservar a história e

memória do povo.

Raízes da Cultura

Do alto dos seus 94 anos, Dona Maria simboliza

dentro da aldeia o elo de ligação entre o passado e o

presente. Nascida na Fazenda Guarani e casada com o

antigo cacique Pataxó, foi submetida a trabalho análogo

ao escravo, assim como seu pai e toda a família, e hoje

guarda, com invejável lucidez, as transformações pelas

quais viu o lugar passar.

O relato de Dona Maria aponta que a fazenda era

quase uma cidade particular com banco, fábricas e

comércios, em propriedade do português Guimarães,

erguida e mantida por força escrava. Ela conta que

trabalhou na extração do fio de seda nas lagartas e

recebia pelo trabalho 1 “boró”, cartão de papelão que

circulava monetariamente em comércios dentro da

própria fazenda. Dona Maria é um acervo vivo do qual

floresce a memória dos Pataxós.

Natureza como Patrimônio

Os conhecimentos da natureza foram transmitidos de

Txopai para os mais velhos e são repassados aos mais novos.

É da terra onde se extraem as plantas, raízes e frutas

para banho ou chá contra veneno de cobra, recursos para

acompanhar nascimentos, o banho com banana da terra

ou banha de gambá para amenizar as dores do parto.

Além da medicina tradicional, a relação com a

natureza se apresenta no respeito aos conhecimentos

tradicionais. As quadras da Lua são seguidas

rigorosamente para determinar o tempo certo para

se obter melhor qualidade na caça e durabilidade na

extração de recursos.

Foto: Márcio Gomes

82


Foto: Joice Valverde

No tempo dele, isso aqui tudo era lavoura, tinha

todo tipo de planta. Carro para tirar os mantimentos

daqui era “carcunda” de burro. E tinham os pastos

tudo separados e fechados com essa madeira forte,

que não quebra nunca,

” Dona Maria

EDIÇÃO 27 | CURINGA

83


Cultura Extrativista

Resistência Indígena

Foto: Joice Valverde

Foto: Joice Valverde

Mãos Artesãs

Os Pataxós são conhecidos pela diversidade de seus

artesanatos, desde miniaturas à canoas e barcos. A arte

representa tanto uma forma de disseminar a prática do

artesanato aprendida com os antepassados, como também

uma fonte de renda complementar para a comunidade.

Cada artesanato tem um significado e uma adequação

para um determinado ritual, além da produção ser

também dividida entre mulheres e homens. As mulheres

são responsáveis pela confecção de pequenas peças,

como colares, brincos, pulseiras e cocares, enquanto

os homens produzem as peças maiores, como arcos e

flechas, lanças, zarabatanas e canoas.

84


Foto: Márcio Gomes

Originalmente, todos os recursos são extraídos da natureza, como a linha

da palmeira Tucum, mas, devido a escassez de recursos pela devastação das

florestas, a matéria prima dos artesanatos vêm sendo substituídas por materiais

comercializados, mesclando, por exemplo, entre sementes e miçangas.

EDIÇÃO 27 | CURINGA

85


Cultura Extrativista

Resistência Indígena

Foto: Joice Valverde

Segunda pele

A pintura corporal Pataxó é um forte elemento espiritual de expressão da história e tradições do povo.

Elas são utilizadas com o objetivo de representar sentimentos de acordo com cada ritual, casamentos

e danças; para simbolizar união, proteção, fartura, alegria e força. As pinturas são diferenciadas por

tamanhos e traços para mulheres e homens, assim como solteiras (os) e casadas (os). Os recursos para

a pintura são extraídos da natureza. O urucum para a cor vermelha, que representa o sangue derramado

do povo Pataxó e o jenipapo ou carvão para o preto, que representa o luto pelos ancestrais assassinados.

Uma das pinturas tradicionais que acompanha os Pataxós faz referência às principais aldeias da Bahia

(Boca da Mata e Coroa Vermelha) e à aldeia mãe. Um traço maior representando a aldeia mãe é feito ao

centro de outros dois menores, em memória às duas outras aldeias.

Foto: Márcio Gomes

86


Waykgohã Pataxó

“Lute guerreiro.”

Foto: Glauciene Oliveira

jornalismo.ufop.br

/revistacuringa

Facebook | Instagram

@revistacuringa


Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!