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Revista Laboratório | Jornalismo | UFOP | Junho de 2019 | Ano IX | 27ª Edição
CURINGA
DOSSIÊ
Cultura
Extrativista
Força, movimento e vidas.
Expediente
Curinga é uma publicação da disciplina laboratório
Integrado II: Grande Reportagem. Revista produzida
pelos alunos do curso de Jornalismo da UFOP.
Instituto de Ciências Sociais Aplicadas (ICSA)
Departamento de Jornalismo (DEJOR)
Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP)
Professores responsáveis
Flávio Pinto Valle (Fotografia)
Frederico Tavares - 11311/MG (Texto)
Michele Tavares - 0001195/SE (Visual)
Editor Chefe (Impresso)
Matheus Queiroz
Editor de Audiovisual
Uriel F. M. Silva
Editor Chefe (Web)
Vitório Diniz Damasceno
Editora de Fotografia
Thais Silva
Editora de Site
Karine Pereira Bibiano
Editor de Visual
Wallace Vertelo
Editora de Sonora
Iris Ventura
Mídias Sociais
Antônio Iannuzzi
Editores e Revisores de Texto
Ivan Vilela e Silva
Fernanda Walmer
Repórteres
Adrienne Pedrosa
Ana Clara Delella
Amanda Alves
Bárbara Alvina
Carolina Carvalho Durval
Catharina Mello
Clara Lemos
Franciele Maria da Silva
Glauciene Oliveira
Hannah Carvalho
Isabela Peres Rigatto
Jean Lourenço
Joice Valverde
Julia Massa
Larissa Chaves Soares
Larissa Helena
Letícia Lopes de Souza
Marcelo Cardoso
Márcio Gomes Martins Júnior
Narrian Gomes Gonçalves
Rômulo Soares
Samuel Senra Campos
Sofia Fuscaldi Cerezo
Stefanny Inácio Rolim
Capa e contracapa:
Fotos de Uriel F. M. Silva
Design de Wallace Vertelo
Capas das editorias:
Fotos de Thais Silva e Uriel F. M. Silva
Texto de Ivan Vilela e Silva
Design de Wallace Vertelo
Monitoras:
Laryssa Gabellini
Thalia Gonçalves
Agradecimentos:
Sofia Sarmento
Secretárias do Dejor
Divisão de Transportes (Proad)
Endereço
Rua do Catete, 166 - Centro
35420-000, Mariana - MG
Impressão
MJR EDITORA GRÁFICA
Rua Carlos Pinheiro Chagas, 138 - Ressaca
32.113-460, Contagem - MG
Telefone: (31) 3357-5777
Entrevista
Joenia Wapichana
Página 5
Perfil
Miguel Burnier
Página 12
Reportagem
Força humana
Página 16
Reportagem
Prostituição
Página 24
Reportagem
Símbolos negros
Página 32
Reportagem
Mineração de dados
Página 42
Reportagem
Superdependência
Página 50
Reportagem
Exploração turística
Página 60
Reportagem
Alternativas sustentáveis
Página 66
Reportagem
Retaguarda da moda
Página 72
Resistência indígena
Fotorreportagem
Página 78
Editorial
Três anos após o rompimento da Barragem de Fundão, das mineradoras
Samarco e Vale, em Mariana (MG), considerado o maior crime ambiental
do país, ocorrido em novembro de 2015, o Brasil é surpreendido com
mais um desastre. Dessa vez, Brumadinho, cidade localizada na região
metropolitana de Belo Horizonte, vivenciou, em janeiro deste ano, outro
crime de rompimento de barragem, também pertencente à Vale, que
deixou, até então, 240 pessoas mortas e 32 desaparecidas. Além disso, 125
hectares de florestas foram devastados, ou seja, mais de um milhão de
metros quadrados de mata nativa foram embora com a enxurrada de lama.
Todos esses acontecimentos, atrelados à falta de fiscalização que
colocam em risco a vida de milhares de trabalhadores e moradores das
regiões de mineração, evidenciam as preocupações geradas a partir da
cultura extrativista que se encontra intrínseca na sociedade. Para além
dessas situações, nascem preocupações acerca da vivência dos cidadãos do
nosso país, das leis e reformas que atingem os trabalhadores, da rotina
trabalhista e, principalmente, da conservação e sustento do meio ambiente.
A edição 27 da Curinga surge, então, em Mariana, berço de um dos
maiores crimes ambientais do mundo. Nasce na cidade que convive com
os grandes impactos sociais e demográficos devido ao rompimento de
uma barragem de rejeitos de minérios. E, foi vendo esta realidade de
perto, que entendemos a importância de se discutir, refletir e debater os
efeitos do extrativismo no nosso cotidiano. Afinal, tudo o que usamos
e fazemos, direta ou indiretamente, faz parte dessa cultura construída
ao longo dos anos. Erguer a consciência de que vivemos sob uma lógica
extrativista se mostrou um desafio, mas se fez um exercício necessário
para compreendermos o método de funcionamento de muita das coisas
que nos regem enquanto comunidade.
Em razão disso, as páginas deste dossiê, por meio de um redesenho
do projeto gráfico da Curinga, te convidam a pensar nesse tema que se
faz tão presente nos dias de hoje, mesmo sendo tão antigo. Te convidam
a refletir sobre força do trabalho, exploração do corpo humano e
as consequências da rotina laboral. Te convidam a discutir sobre as
ideias de movimento e deslocamento de estruturas sociais, políticas e
econômicas. Por fim, te convidam a conhecer a força da resistência e
como ela ainda permanece presente hoje.
A partir do cerne do conceito de extrativismo, percebemos que ele
atua na vida das pessoas muito além da perspectiva ambiental. Dessa
forma, descobrimos e documentamos que a prática toca em questões
como a apropriação cultural, a exploração do trabalho humano e do
turismo histórico, o uso do corpo da mulher no contexto da prostituição,
a superdependência da extração de minérios, a atuação dos ativistas
ambientais, o slow-fashion como alternativa para a massiva produção
de roupas, dentre outros contextos.
Assim, colocamos em evidência em cada uma das nove reportagens,
da entrevista e do perfil, o nosso foco e atenção nas pessoas com as quais
conversamos, debatemos e, acima de tudo, aprendemos, pois o ofício do
jornalismo nos permite, além de transmitir informações, que aprendamos
com o próximo. E é isso que desejamos a vocês. Boa leitura!
Joenia
Wapichana
Texto de Ivan Vilela e Silva
Fotografias de Thaís Silva
Design de Vitório Diniz Damasceno
Joenia conversou com a equipe da Curinga em seu
gabinete, no Anexo IV da Câmara dos Deputados,
em Brasília. Eleita em 2018, é a primeira
Deputada Federal (REDE) indígena da história do
país. Graduou-se em Direito pela Universidade Federal
de Roraima (UFRR) em 1997, tornando-se a primeira
indígena a atuar como advogada no Brasil. Foi também
a primeira presidente da Comissão de Direitos dos
Povos Indígenas, da Ordem dos Advogados do Brasil
(OAB), e pautou sua luta nas demarcações de terras.
Recebeu a Ordem do Mérito Cultural, pelo extinto
Ministério da Cultura, e o Prêmio de Direitos Humanos
da Organização das Nações Unidas (ONU). Confiante,
Joenia expõe e reflete sobre questões que atingem toda
a população brasileira, principalmente a indígena.
Cultura Extrativista
Entrevista
Como é pra você ser uma mulher indígena, a
primeira a ocupar uma cadeira na Câmara dos
Deputados, num país que é fortemente racista
e também misógino?
Um desafio constante. O fato de ser indígena já é
um desafio. Todo dia a gente encontra barreiras. Eu
digo que o Brasil não só é um país racista. É para
nós classista, machista e soma, agora, o racista.
Tenho sempre tentado me colocar um pouco nesse
desafio, de fazer com que a cada dia sejamos mais
reconhecidos pela sociedade brasileira, que a gente
possa mudar esse comportamento e entender
que a diversidade cultural existe no Brasil. Que nós
temos direitos específicos e que o que nos difere em
relação aos direitos humanos é uma relação cultural.
Essa diferença cultural foi garantida em termos de
exercício de direitos e as pessoas não conseguem
entender toda essa dinâmica, essa convivência com
o diferente. Se você não consegue compreender,
tem que respeitar. Se não na essência humana, tem
que respeitar em lei. Porque desrespeitar o outro,
provocar o ódio racial, é crime. Então vamos ter que
mudar um pouco o comportamento.
Você é membro da Comissão de Constituição e
Justiça da Câmara e se mostra contra a forma como
tem sido elaborada a Reforma da Previdência
proposta pelo Governo Bolsonaro. Por quais
motivos você é contra?
A minha posição foi que aquela proposta tem vícios e
erros que colocam em risco a constitucionalidade do
texto. Você espera que depois de contribuir durante
toda a sua vida como trabalhador, você chegue a um
determinado momento e tenha o direito de ter um
pouquinho de tranquilidade, desfrutar da sua família
e poder descansar. Mas não quando estiver quase
morrendo, né, porque não faz sentido pra ninguém.
Então, a gente viu que, no texto, isso colocaria uma
série de barreiras que poderiam limitar esse seu
direito, e poderia colocar também em risco o próprio
direito de um benefício social e público.
A perda de direitos é um dos principais pontos
discutidos sobre a Reforma, quais desigualdades
aparentes você destacaria?
Quando você tenta emplacar um regime de
capitalização, que deveria ser um dever do Estado,
e passa a condicionar um processo de privatização,
essa ação só vai favorecer à classe empresarial e
aos bancos. A questão da idade, por exemplo, meu
posicionamento foi contra as regras de transição,
porque elas não estão claras. Se começa a viger
a nova Reforma, ela coloca em risco esse direito
[da aposentadoria]. Eu tenho defendido muito
a questão das aposentadorias rurais, porque os
povos indígenas estão dentro dessa categoria e
nós sabemos que o nosso Brasil é muito grande e
tem diferentes realidades. A vida no campo começa
muito cedo. As pessoas acordam quatro horas
da manhã. Eu sei disso por causa da vivência em
comunidade indígena. Então, nossas condições de
vida são diferentes, as pessoas envelhecem mais
rápido e são expostas a situações que são distintas
do núcleo urbano. Você não pode comparar a idade
que se tem pra aposentar da mesma forma que
o urbano. No meio rural, as pessoas estão mais
vulneráveis a doenças e muitas vezes a expectativa
de vida é muito [menor], não chega nem a 60 anos,
porque não tem atendimento médico. Não sou contra
uma reforma, mas tem que ser uma que não venha
penalizar os mais pobres, que venha justamente
para colocar em pé de igualdade outras categorias.
O cálculo que o governo apresentou, de um trilhão
a ser poupado, não me convenceu. E, mais ainda,
6
esconder informações da gente dizendo que eram
sigilosas? Qual é o sentido de se justificar a quebra
de privilégios, a economia de um trilhão e não
poder dar a nós o direito de informação para poder
avaliarmos e sermos convencidos dos dados? De
onde surgiria [a economia], se realmente vai só sair
dos mais pobres, dos mais vulneráveis, de quem
recebe de um a dois salários mínimos? Tem que
sair uma Reforma da Previdência que seja justa,
igualitária, e que realmente combata os privilégios.
Uma reforma em outras categorias tem que ser
analisada também.
A comissão externa do MEC, da qual você é membro,
discute as políticas educacionais adotadas pelo
atual governo, e levou à demissão do então Ministro
Ricardo Vélez Rodríguez. Mas, apesar disso, as
políticas foram mantidas e, recentemente, o
Governo revelou um contingenciamento de gastos
que atinge tanto o Ensino Básico quanto o Superior.
Como você vê essa situação?
Uma falta de planejamento para a educação e
uma falta de identificar prioridades por parte do
Governo. Eu acredito que a educação devia ser um
direito prioritário a ser trabalhado, ter uma visão de
investimento e não de gastos. Porque é isso que o
Governo parece que vê: a educação como um gasto,
como uma despesa a ser tolerada. Mas a gente
deveria mudar esses valores, ver que a educação
é uma estratégia pra gente avançar em termos de
direitos, de uma plano de desenvolvimento para
o país e uma estratégia nas questões econômicas
no sentido de valorizar todos os níveis de ensino.
Eu acredito que o Ministro da Educação, Abraham
Weintraub, depois que teve toda essa repercussão,
não me convenceu e, inclusive, merecem ser
rechaçadas as explicações que foram dadas. Até
mesmo foram publicadas matérias na imprensa
dizendo que ele estaria contingenciando os recursos
das Universidades e Institutos Federais porque
haveriam balbúrdias nas instituições e ele não
explicou que balbúrdias seriam essas. Não justificou,
também, por quais motivos ele resolveu fazer os
cortes, porque pra mim, contingenciamento é corte.
Então, a impressão que eu tenho é de que ele quer
mudar um pouco, inclusive a história do país, através
da educação, dizendo que algumas disciplinas não
podem mais. As faculdades de Sociologia, Filosofia
vão acabar porque são uma liberdade de pensar.
As universidades e as escolas são estratégia para
formar opinião, são os meios que a sociedade tem de
exercer e exercitar seu pensamento, ter mais críticas
sobre o país, sobre os seus direitos. Eu vi e senti que
é uma intervenção no pensamento das pessoas para
não terem acesso a determinadas situações. É uma
falta de planejamento, uma falta de prioridade e uma
falta de respeito com o povo brasileiro.
Eu não concordo com mineração,
“ principalmente em terras indígenas.
”
Você também é membro da CPI de Brumadinho
(MG), e seu primeiro Projeto de Lei é inspirado
nesse caso e em outros casos como o de Mariana
(MG). Como você vê a situação das barragens de
mineração no Brasil?
É preocupante porque estou vendo cada vez mais
que estão flexibilizando. A gente não conseguiu
nem implementar as normativas que já existiam em
termos de impactos, em termos de prevenções.
Mariana aconteceu antes de Brumadinho e lá a gente
ainda não tem o direito das pessoas de reparação.
Falta uma segurança do que realmente se teve e
EDIÇÃO 27 | CURINGA
7
Cultura Extrativista
Entrevista
uma justa compensação pelo que aconteceu. E
agora, esse ano, veio Brumadinho. Já havia um alerta
que havia questões erradas e, novamente, se repete.
Mesmo com esses dois casos super graves que
aconteceram, há uma insistência muito grande de
mineração e esse é um dos motivos que me levaram
a propor uma pena mais severa. Afinal, a minha
proposta com a PL 570 é justamente tornar crime
hediondo esse tipo de prática quando coloca em
risco o ecossistema e a saúde humana. No Projeto
de Lei, a saúde humana foi pensada, tanto nos que
perderam suas vidas, quanto nas comunidades
indígenas. Isso porque em Mariana teve os Krenak,
e em Brumadinho os Pataxó Hã-Hã-Hãe, que foram
removidos e hoje não estão ali. Nessa linha, é preciso
tornar visível esse tipo de discussão. Eu não concordo
com mineração, principalmente em terras indígenas.
Mariana e Brumadinho já são casos concretos, fato
acontecido. A gente precisa repensar a exploração
dos recursos hídricos e nos procedimentos que a
lei ainda inclui. E também nesses retrocessos em
termos da política ambiental, onde vemos cada vez
mais flexibilizações dos licenciamentos ambientais
para esses empreendimentos.
E quais medidas deveriam ser tomadas?
Eu acredito que a gente precisa pensar em termos
de uma fiscalização mais permanente sobre as
atuações das empresas e ter um olhar especial
para a população que depende delas. A questão
dos recursos hídricos me interessa um pouco mais
porque eu sempre tenho em mente que a água
não fica parada em determinada área. A água se
vai. Então muitos acreditam que o problema é só
aquele lá de Brumadinho e pronto, mas pessoas
que estão ali mais próximas e também mais
distantes vão ser atingidas por essa contaminação,
pelo rejeito. E a gente não pode deixar a impunidade
correr. A gente não pode deixar injustiças. Tem que
dar assistência aos trabalhadores e às vítimas. É
um dever do Estado intervir e não deixar outros
desastres. A gente tá vendo os profissionais da
área, os engenheiros, pessoas que são peritas no
assunto e o alerta que eles deixaram em Mariana.
Tudo isso está alertando agora pra Brumadinho.
Outras barragens podem se romper, então ações
devem ser tomadas de imediato.
Atualmente, vemos, na Amazônia principalmente,
um extrativismo travestido de progresso. Como
você vê e quais são os riscos para Amazônia?
Eu não chamaria isso de extrativismo, eu chamaria
de uma degradação crescente. Uma exploração
em relação aos recursos hídricos. Porque, no
extrativismo, você coleta e você deixa a árvore
em pé. É isso que eu entendo por extrativismo. Os
indígenas são extrativistas por natureza. Há povos,
por exemplo, os Waiwai, que vivem da questão da
castanha, que era castanha-do-pará, hoje castanhado-brasil,
e que se tira, usa, troca, vende, mas
mantém em pé a árvore. Esse projeto para explorar
os recursos da Amazônia incentiva o desmatamento
e outros impactos ambientais. A Amazônia tem sido
vista com um olhar em relação à exploração, sem
conservação. Exemplo disso é quando se constrói
uma hidrelétrica, que provoca vários e sérios danos
ambientais, não somente para biodiversidade, mas
para os seres humanos também. Além da questão
da mineração, que sempre tem tido uma tentativa
de regularizar, principalmente em terras indígenas.
Até agora, as mudanças do Código Florestal são
tentativas de anistiar os que provocam os danos
ambientais, dando prêmios para eles. É desvalorizar
aquele que protege, o extrativista, o que conserva, e
valorizar e perdoar aquele que já provocou o dano,
que não pode ser mensurado e tampouco reparado.
Então, a gente vê uma inversão dos valores na
política de preservação da Amazônia.
E como pensar alternativas?
A gente não enxerga alternativas. Nós [o país]
não vemos que a Amazônia pode, sim, ser uma
estratégia de economia. Temos um vasto potencial
em relação à diversidade que não é conhecida ainda,
tampouco explorada e valorizada. Nós temos vários
conhecimentos dos povos tradicionais indígenas
e o turismo ecológico. Não há investimento, não
há uma discussão. Não existe alternativa, inclusive,
na questão energética. Temos fontes de energias
renováveis, energias mais limpas, como a eólica, e
não é valorizada. Não protegem mais mananciais,
não discutem sobre matas ciliares, florestamento e
sobre proteção das áreas de conservação naturais.
Só querem ver inundação, acabar a biodiversidade,
assim, daqui a pouco não tem nem mais água potável,
que é o grande potencial da Amazônia. Enfim, existe
uma desvalorização em termos disso.
A cultura dos indígenas é, muitas vezes, usada
como fantasia em momentos como o carnaval.
Como você vê essa apropriação, principalmente
por parte do capitalismo?
Não fazendo uma imagem pejorativa, não
deturpando a história, não colocando o indígena
numa situação pejorativa, tentando levar maior
discriminação, eu não vejo problema de usar
plumas, que não seja de animais, lógico. Até gostaria
que contassem a história real dos povos indígenas.
8
Mas tem os limites jurídicos de usar esse tipo de
informação e esse tipo de adereço também.
O Governo promove uma política de demarcação
de terras que vai contra o que o Supremo Tribunal
Federal (STF) decidiu como correta, baseado
principalmente no caso da Raposa Serra do Sol.
Como você vê essa situação?
Inconstitucional. Existe um dever do Estado em
reconhecer e demarcar as terras indígenas e ele
tem que cumprir a lei. Não existe nenhuma decisão
contrária no Supremo e o Congresso aprovou a
nossa Constituição, que está em vigência. Então, o
Governo tem que cumprir. Eu vejo que existe uma
forte pressão, inclusive a Medida Provisória (MP) 870
atua como uma tentativa de negar os direitos, uma
forma do Governo Bolsonaro de tentar emperrar a
demarcação de terras indígenas no Brasil. Inclusive
deixou clara já essa mensagem durante a campanha
dele, quando disse que “nenhum milímetro mais de
terras seria demarcado”. As pessoas achavam que
ele não ia chegar a tal ponto, mas ele tá chegando.
Não são só ameaças, são fatos concretos, são
questões que ele já fez. Então, as autoridades devem
tomar posicionamento.
Você lutou pela volta da Fundação Nacional do
Índio (Funai) como responsável pela demarcação
de terras indígenas e foi uma causa vitoriosa ( MP
870). Você acredita que a luta vai continuar sendo
somente contra os retrocessos que tem acontecido
ou é possível consolidar avanços?
Eu sempre penso na esperança e que é possível
a gente fazer nossas proposições positivas. Não
ficar somente na defensiva. A gente tem trabalhado
bastante em sensibilizar alguns parlamentares,
em tentar mostrar que não somos empecilho ao
desenvolvimento do país. Que nós estamos aqui
como uma sociedade brasileira, sujeitos de direitos,
que precisam ter políticas públicas, e nisso a gente
precisa avançar. Temos muito receio desse Governo,
que já veio desmontando uma série de direitos, uma
série de estruturas que a gente tinha um amparo
e conquistas de 30 anos dos povos indígenas. Por
exemplo, a MP 870, que a gente considerou uma
afronta e retrocesso. Além de outras políticas, como
a política socioambiental, a questão dos direitos
sociais, a questão da participação social em termos
de tomadas de decisões e controle social. Estão
havendo retrocessos, não por parte do Congresso,
mas sim por parte do Poder Executivo. Estou vendo
que aqui onde eu estou, agora, talvez tenha espaço
de diálogo e de tentar fazer com que se avance.
EDIÇÃO 27 | CURINGA 9
Mundo
em mim
Força
Para além do que é dito no dicionário,
a palavra “força” carrega em sua
substância o valor de uma sociedade
inteira. A sociedade brasileira, por sua
vez, se mostra persistente em enfrentar
as labutas do cotidiano e se insere cada
vez mais em comunidade por meio do
trabalho. Cada qual com sua maneira,
personalidade e jeito, as pessoas vão
construindo suas carreiras, trajetórias
e, principalmente, suas fortes histórias
individuais e coletivas.
Miguel Burnier
resiste
O maior distrito em extensão territorial de Ouro Preto convive com
o êxodo populacional provocado pela dependência à atividade
mineradora, mas afirma a luta pela sua memória.
Texto de Fernanda Walmer
Fotografias de Karine Bibiano
Design de Matheus Queiroz
A
o sul do Quadrilátero Ferrífero, no estado de
Minas Gerais, com área de aproximadamente
7000 Km², que se configura como a mais
importante província mineral do país. Nas linhas que
ligam Itabira, Mariana, Congonhas e Itaúna, onde se
baseou os vastos depósitos de minério de ferro, e se
constituiu como marco da interiorização da ocupação
portuguesa no século XVIII, me encontro. São Julião,
lugar da terra brilhante, caminho da riqueza do Brasil.
E de encontros, eis o primeiro: 1880, época em que
o transporte do país realizava-se por tropas de burros,
o engenheiro chefe da primeira Estrada de Ferro do
Brasil, Miguel Noel Nascentes Burnier, chegou. Vi ali
um novo horizonte trazido nos trilhos do trem, e de
São Julião ficou a lembrança, pois em 17 de dezembro
de 1948, por força da Lei Estadual nº 336, passei a me
chamar Miguel Burnier.
Distrito de Ouro Preto, a 40 Km da sede, me tornei
um dos mais importantes pontos de entroncamento da
estrada de ferro no Brasil. Em 1884, vi inaugurada a
Estação Ferroviária, por onde passava toda a mão de
obra e materiais necessários para a construção de Belo
Horizonte. A transferência da capital mineira, de Ouro
Preto para BH, teve toda que desembarcar aqui. Eu era
o que ligava esses lugares ao Rio de Janeiro e ao resto
do mundo. Mas de todas as chegadas, a que mais me
animava era a dos trabalhadores e suas famílias. Eram
vida e transformação trazidos na mala.
Foi implantada aqui, pelo Barão Ludwing Von
Eschwege, a primeira siderúrgica do Quadrilátero
Ferrífero, por volta de 1812. Mas foi só o começo.
Depois disso, os olhos das empresas de extração se
voltaram para mim.
Em 1893, quando era grande a dificuldade em se
conseguir ferro, seja para as atividades rurais ou para
a manutenção da ferrovia, Carlos Wigg, comendador
e empreendedor da época, comprou a maior parte
de minhas terras e, junto com os engenheiros J.
Gerspacher e Amaro da Silveira, instalou o alto-forno
da Usina Wigg, localizado a quinhentos metros da
Estação Ferroviária. Minhas minas antiquíssimas de
minério de manganês, extraído por lavra subterrânea,
era o que alimentava os fornos da Usina Wigg,
produtora de ferro-gusa. Siderurgia e Ferrovia
nascendo juntas no Brasil, nos braços da minha terra.
EDIÇÃO 27 | CURINGA
13
Cultura Extrativista
Miguel Burnier
Esvaziamento refletido na estrutura
Construções abandonadas tomam cada
vez mais espaço no distrito esquecido pela
Prefeitura de Ouro Preto.
Os caminhos por onde antes só passavam
animais de carga com materiais diversos,
receberam os desenhos de pegadas. A quantidade
de gente que se instalava aqui para trabalhar com
a mineração foi aumentando. Dos imigrantes, os
italianos e portugueses foram os que chegaram
em maior número. Os homens que vinham a
trabalho traziam suas famílias. Aprendi que
todos aqueles corpos carregavam mais do que as
obrigações do ofício, expressavam fé. E eu não
era só a casa dessas manifestações de fé, era
parte delas. A religiosidade virou o centro da
vida social dos trabalhadores.
Carlos Wigg lidava com os engenheiros, diretores,
empregados especializados e com os trabalhadores
contratados temporariamente. Dona Alice Wigg, sua
esposa, era mais carismática, tinha mais “jeito”, e
se dedicava quase unicamente aos trabalhadores
contratados em caráter permanente, operários
e suas famílias. Famílias muito simples. Muitas
constituídas aqui, sob os meus olhos.
A morte de Carlos Wigg, em 1931, impactou o
quadro econômico que vinha fragilizado devido a
crise mundial de 1929. Perdia um filho e me prepara
para ver os outros enfrentando um período de crises
e conflitos nas relações trabalhistas.
A usina Wigg, desativada em 1969, foi assumida
no mesmo ano pelo grupo Votorantim que, em
seguida, inaugurou a Siderúrgica Barra Mansa,
destaque na produção de ferro, extração de minério
e brita, produção de carvão e reflorestamento. Esta,
manteve suas atividades até 1996. O seu fechamento
nos imprimiu grande retrocesso econômico e
ocasionou as minhas dores mais profundas.
Com a perda de seus empregos, muitas famílias se
viram obrigadas a sair daqui. A dependência extrativista
sob a qual minhas terras vislumbraram seu apogeu,
também significou minha degradação ambiental.
Essas partidas não levavam apenas a presença e as
histórias, mas um pedacinho de cada um que formou
a cultura deste lugar. Foram-se também as vitórias
dos times Atlética Siderantim e Estrela Azul Futebol
14
Clube, que deixaram centenas de troféus. Foram-se
as manifestações do Congado Santa Efigênia e Nossa
Senhora do Rosário. Não aconteciam mais todas as
festas religiosas que uniam quase toda a região. Os
caminhões de mudança que diariamente chegavam
e saiam pelas minhas estradas pareciam me
arrancar dos braços os filhos, depois de uma vida
inteira de carinhos e cuidados.
Ouvi a Suely dizer que deixava muitas alegrias
e dores para trás, e mal sabe ela que ainda guardo
cada momento comigo. Dos quase 3 mil habitantes,
ficaram cerca de 300, seja pelos motivos secretos que
forem, ou até pela impossibilidade de escolher levar a
vida em outro lugar.
Seu Tuia, meu amigo há 76 anos, diz que a
tranquilidade deste lugar não há em outro. E nós dois
sabemos que a paz é uma conquista.
O menino Cristian, que vi nascer e crescer,
reconhece às vezes se incomodar com a falta: falta de
um mercadinho, de uma loja, de uma padaria… falta
dos amigos da mesma idade que se mudaram. Mas logo
completa afirmando gostar de viver aqui.
A companheira Elenice, que trabalha na única
escola que temos, entende esse chão como seu,
mas sabe que sem apoio do poder público é muito
difícil nos reestruturar.
Meu percurso está entrelaçado com o dessa gente.
Apesar de não ter uma rede de comércio ou uma
estrutura mais completa de lazer, algumas iniciativas,
como as do Projeto Estação Cultura, nos ajudam a andar
pra frente e a recuperar cada vez mais da nossa própria
história, revelando que a tranquilidade ainda mora aqui.
Minha ocupação urbana permanece associada à
exploração de recursos naturais. Depois da Barra Mansa,
chegou a Gerdau Açominas, em 2004. Retomada a
fonte de empregos, veio a possibilidade de um respiro.
Continuo rendendo muito à Ouro Preto e às empresas
que aqui se instalam. Não é demais pedir o retorno justo
da Prefeitura, para o meu povo, de todo esse dinheiro
que é fruto do trabalho deles.
*Informações retiradas da obra “Miguel Burnier - Marcas
Históricas”, de Alenice Baeta e Henrique Piló (2012).
EDIÇÃO 27 | CURINGA 15
A Cultura do Extrativismo
Extrativismo da força humana
Extrativismo da
Cultura Negra
Ectem. Ciene consequis aditam etus volupiderae etus ne poribustem quideliquat
quas maionsequam, consed maximolum experae plitis nat.Mintotatincta si
blate quas estianiendi quam que nimaios simenda nd
2
Além
dasForças
As engrenagens da exploração e da precarização
no mundo do trabalho fazem homem
e máquina reduzirem-se a um só.
Força (Dicionário Priberam da Língua Portuguesa)
1.agente físico capaz de alterar o estado de repouso
ou de movimento uniforme de um corpo material
[subs. feminino]. 1.1. qualidade do que é forte;
robustez, vigor físico.
Trabalho (Dicionário Priberam da Língua Portuguesa)
1.conjunto de atividades, produtivas ou criativas, que
o homem exerce para atingir determinado fim. [subs.
masculino]
1.1. tarefa a cumprir; serviço.
1.2. aquilo que é ou se tornou uma obrigação ou
responsabilidade de alguém; dever, encargo.
Força de Trabalho (Enciclopédia virtual)
2. Por força de trabalho entende-se a capacidade
possuída pelo conjunto de indivíduos que participam
no decurso do processo econômico, detentores
das capacidades físicas e mentais já existentes no
corpo humano ou adquiridas através da experiência
e da formação de base acumulada de geração em
geração, e que o homem põe em movimento ao
produzir valores de uso.
Texto de Julia Massa
Fotografias de Narrian Gomes
Design de Marcelo Cardoso
A
força do trabalhador é aquela que opera
máquinas, produz mercadoria e conteúdo,
modifica o estado de movimento de um corpo
material e de seu próprio corpo também. Uma força
de trabalho essencial ao desenvolvimento produtivo
de qualquer sociedade, extraída e nem sempre (ou
quase nunca) reposta. Esses agentes produtores,
como são chamados em nossa sociedade, doam força
física e mental, tempo e habilidades, e se tornam
parte do processo de produção, sendo vistos como
mão de obra e não como seres humanos. Validam seu
trabalho e tempo como uma máquina de produção,
colocam valor no ser humano como um códico de
barras valida um produto. Essa superexploração está
presente em nosso país de maneira muito evidente
desde a época da escravidão, extremamente forte em
Minas Gerais com a mineração. No período de 1978
e 1800, escravos eram anunciados em jornais junto
a cavalos e máquinas da época. O teórico Friedrich
Engels, no prefácio da obra “Trabalho Assalariado e
Capital”, explica bem essa troca falsa entre sistema e
indivíduo quando diz “o que o operário vende não é
propriamente o seu trabalho, mas sim a sua força de
trabalho, cedendo ao capitalista, temporariamente,
o direito de dispor dela”. São trabalhadores de
diferentes áreas que enfrentam desafios diários para
conciliar essa realidade de sobretrabalho com sua
vida familiar, saúde mental e bem estar.
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17
Cultura Extrativista
Força humana
Um dia a dia em descompasso
Caminhos
As demandas do trabalho de
José* exigem dele e da família
decisões difíceis e impactantes.
18
284 quilômetros, quatro horas e 34 minutos de
viagem são a distância e tempo que separam José*, 46
anos, de sua família devido à sua jornada de trabalho.
Técnico em metalurgia, casado e pai do João*, de 6
anos. A tendência é ver a esposa e o filho de 15 em
15 dias. Há dois anos morando longe da família e seis
meses trabalhando pela Projem, uma gerenciadora
e fiscalizadora de obras, José mora em Conceição do
Mato Dentro, região central de Minas Gerais, enquanto
seus familiares residem em Mariana.
A Projem trabalha por demanda, ou seja, onde
há obra há trabalho e, consequentemente, a mão de
obra de José, mesmo que para isso tenha que deixar
a família. Não é por desejo, e sim por necessidade.
Durante os 27 anos em que morou e trabalhou na
cidade de Mariana, José prestou serviços para Vale e
Samitri (atual Samarco), empresas especializadas na
extração de minérios. Ele teve toda sua vida profissional
pautada na mineração, trabalhando na área desde os
14 anos, quando entrou na Vale por meio do Serviço
Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai). Em
2015, José se tornou um dos 10 milhões de brasileiros
desempregados, segundo dados da Pesquisa Nacional
por Amostra de Domicílio (Pnad), em uma pesquisa
divulgada pelo IBGE em novembro daquele ano.
Com um filho pequeno para criar, após quase um ano
procurando emprego em Mariana, sem a segurança de
saber outro ofício, recebeu a proposta de se mudar em
prol do trabalho e disse sim.
A realidade é que, mesmo quando morava com
sua família, a convivência entre eles nem sempre era
próxima, pois, de 1993 a 2015, a jornada de trabalho
de José era por turno. Por 12 anos, sua rotina esteve
em desencontro com a de sua família, ou seja,
quando ele ia dormir, a casa acordava. “A partir do
momento que você trabalha de turno, você fica em
descompasso com o normal”, afirma.
Agora que está longe, dormem e acordam em
horário semelhante, mas a distância física gera tensões.
A saudade é forte para uma família que, mesmo
convivendo com chegadas e partidas constantes, é
próxima e afetiva. Aparecida*, com quem é casado há 10
anos, relata a dificuldade em ter o marido ausente. “Eu
senti muito e tinha que dar apoio a ele também, porque
ele não sabia o que fazer. Agora a gente está começando
a acostumar, mas ainda sente muita falta porque nós
somos uma família bem unida”. João, ainda jovem,
passou por um período de grande agitação quando o
pai se mudou. Triste e nervoso com as transformações
rápidas no dia a dia da família, precisou da ajuda de um
psicólogo para se adaptar.
O desejo da família é a estabilidade de José no atual
emprego, para que todos possam se mudar e morar
juntos em uma nova fase. Quando questionado sobre
a ideia de mudar de cidade, João se alegra: “Legal,
ver o papai todo dia”. Com 46 anos, ele é um dos
7,443 milhões de brasileiros que, segundo o Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), trabalham
ou estudam fora das cidades onde vivem suas famílias.
Um grande número que carrega grandes batalhas,
cheias de saudade, angústias, conquistas e histórias.
O intervalo intrajornada que antes era
regulamentado em 1h, utilizada para descanso
e alimentação, foi reduzido pela metade e pode
ser feito em 30min.
A jornada diária que antes estipulava o máximo
de 8h, agora permite 12h seguidas de trabalho,
com 36h de descanso posteriores, desde que
se enquadre nas 44h de trabalho por semana
e 220 mensais, podendo ser realizadas até 2h
extras por dia.
As leis trabalhistas asseguram 30 dias de férias
ao trabalhador durante o ano, esse tempo
podia ser dividido em duas vezes, dando ao
empregado um tempo minimamente justo de
descanso por férias tiradas. Agora, a divisão
pode ser feita em 3 vezes, uma de 15 e outra
que divide os dias restantes, da maneira como a
empresa achar melhor.
Ocorreu o fim da obrigatoriedade da contribuição
sindical. Anteriormente, pagava-se mensalmente
o valor de um dia do trabalho do mês. Após
a reforma, o trabalhador só paga para sua
categoria se quiser. Isso enfraquece os sindicatos
e movimentos que promovem melhorias em
relação aos direitos trabalhistas.
A Reforma A reforma
Em 13 de julho de 2017, a Consolidação das
Leis do Trabalho (CLT) foi alterada pela Lei 13.467,
mais conhecida como Reforma Trabalhista. A
reforma tem uma amplitude incalculável em mais
de cem medidas que mudam a CLT. O presidente da
época, Michel Temer, divulgou um vídeo em suas
redes sociais dizendo que a nova lei ampliaria os
horizontes do trabalhador brasileiro. Ele ainda
afirmou que “18 milhões de pessoas, que hoje
trabalham precariamente, na informalidade, terão
seus direitos assegurados graças a essa nova lei”.
Ora, vamos com calma. Se por um lado as mudanças
da reforma foram celebradas por algumas categorias,
a verdade é que a maioria das pessoas sente na
pele os efeitos reais das modificações nos direitos
referentes ao âmbito do trabalho.
Ao que tudo indica, as previsões de Temer não foram
bem sucedidas. Em maio de 2018, onze meses após a
consolidação da lei, o índice de desemprego no país
bateu seu recorde. Segundo dados do Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística (IBGE), 22,7 milhões de
brasileiros estavam desempregados. O professor da
Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV),
Paulo Sérgio João, especialista em Direito Trabalhista,
disse em entrevista ao portal da fundação, em fevereiro
de 2019, que não é por meio dessa lei que se terá um
aumento de emprego no Brasil, uma vez que, em termos
de custo, a diferença foi mínima para a maioria das
empresas e não trouxe muitas mudanças. Ele explica
ainda que, “objetivamente, a lei não é suficiente para
impactar a contratação de trabalhadores, porque se
não houver desenvolvimento econômico, se não houver
crescimento das empresas, dificilmente vamos conseguir
algum crescimento”. Além disso, não é suficiente
que haja a diminuição de números se as condições de
trabalho não favorecerem ao trabalhador.
As alterações que não pesaram tanto para as
grandes empresas afetaram de forma diferente a
grande massa de trabalhadores do país. Nem toda
mudança altera para melhor as estruturas. No
caso da reforma trabalhista, a diminuição do peso
da lei gerou o aumento do peso da relação entre o
trabalhador e o empregador, pois dá mais abertura
para que a força e o tempo sejam explorados nos
vínculos empregatícios. Segundo Clemente ganz
Lúcio, diretor do Departamento Intersindical de
Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese),
em entrevista ao jornal O Globo, a reforma gera
desequilíbrio entre capital e trabalho e cria
“mecanismos estruturais de redução do custo
do trabalho e, junto com a terceirização e outras
medidas em curso, cria um ambiente favorável à
fragilização estrutural das relações do trabalho”,
ele explica. Além disso, o aumento de turnos e a
alteração nos períodos de descanso do empregado
possibilitou a precarização das condições de
trabalho em muitas situações. Tudo isso gera fortes
consequências ao indivíduo.
EDIÇÃO 27 | CURINGA 19
Cultura Extrativista
Força humana
Quanto VALE o seu trabalho?
“Durante alguns dias ouviam-se nas entranhas da
rocha os gemidos de muitas dessas vítimas soterradas
pelos desmoronamentos. Frustrados os serviços de
socorro, quando não houve mais esperança de salvar
os vivos sepultados pela catástrofe por impossibilidade
absoluta de atravessar a massa rochosa que os separava
de fora, a solução mais humana que se encontrou
para minorar os seus sofrimentos foi inundar a mina
com as águas das máquinas exteriores e fazer perecer
por asfixia os que teriam de morrer por inanição
angustiosíssima. E lá estão enterradas naquele
gigantesco túmulo de rocha as centenas dos mineiros
infelizes que encontraram a morte perfurando as
entranhas da terra para lhe aproveitar os tesouros”.
Assim foi narrado o desmoronamento de uma
mina de ouro em Itabira da Serra, província de Minas
Gerais, no ano de 1884, pelo político e escritor mineiro
Antônio Olynto dos Santos Pires. 135 anos depois,
na cidade que hoje se chama Itabirito, a realidade
mineradora ainda é muito forte, assim como em
Ouro Preto, Mariana e distritos que torneiam essa
região. O que também é forte, é a maneira como
a mineração conduz o cotidiano de boa parte da
população e traz consequências nem sempre positivas
para o trabalhador que tira dela seu sustento, como
o rompimento da barragem em Mariana - MG e os
diversos déficits que o evento trouxe consigo. 2015
ficou marcado por altas taxas de desemprego na
mineração, tendo no primeiro trimestre do ano quase
cinco mil vagas de emprego fechadas e mais de 8 mil
em um ano (dados IBGE). No Brasil, três milhões de
pessoas são empregadas na atividade mineradora, e
desses, 1.5 milhões são terceirizadas e 500 mil dos
trabalhadores têm carteira assinada.
Em Minas Gerais, segundo dados do Minas Guide
(2018), um guia de economia mineiro, o setor equivale
a 8% da atividade econômica do estado e emprega
diretamente quase 50 mil trabalhadores, em toda a
cadeia extrativista. Entre eles, estava Antônio*. Dos
52 anos de idade, 22 foram dedicados à Vale. Operador
de equipamentos, operador de instalação mecanizada
e operador de produção, Antônio fez da mineração
seu ofício e conhece bem a extração, as máquinas, as
implosões e as consequências físicas e psicológicas
que essa realidade pode causar. Transitou por mais de
um setor na empresa, operou tratores, puxou cabos
de alta tensão, realizou detonações nas minas, inalou
enxofre. Hoje, nove anos depois, ainda sofre com os
danos na coluna causados pelo trabalho constante nas
máquinas de mineração. Além disso, ele sente com o
tormento mental e com os efeitos dos antidepressivos
necessários por conta da demissão e, também, pela
morte da esposa na mesma época. Os tantos anos
de sobrecarga de trabalho e a ausência no ambiente
familiar pesam hoje nas reflexões sobre os anos de
Vale e nas perspectivas futuras. Antônio foi peça de
um jogo de interesses, de uma lógica capitalista e
extrativista, agente de um processo de trabalho que
atribui ao trabalhador o mesmo, ou menor valor,
que uma máquina.
O segmento minero-siderúrgico está inserido
na história mineira e, não à toa, está presente até
no nome do Estado. Mas poderia ter vários outros
nomes: Antônio, João, Paulo, Maria, Lúcia. Os nomes
que operam as máquinas, que entram nas minas, que
puxam os cabos, que inalam o enxofre. Em Minas
Gerais são extraídos minério de ferro, bauxita, fosfato,
manganês, alumínio, potássio, zinco, ouro e outros.
A Fundação Jorge Duprat e Figueiredo (Fundacentro)
constatou que, de 2000 a 2010, o índice médio de
acidente de trabalho no Brasil foi 8,66%. Já o indicador
médio de acidente da mineração em Minas Gerais,
segundo o mesmo instituto, foi de 21,99%, quase três
vezes maior que a média nacional. Minas e Mineração
andam em paralelo constante desde o início do
estado. O Historiador Douglas Aparecido, pesquisador
e assessor especial da Pró Reitoria de Extensão da
Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop), explica
que o ano de 1696 foi um marco historiográfico, pois
nesta data são encontradas as primeiras pepitas de
ouro na região. Os escravos africanos foram trazidos
para cá por já dominarem as técnicas de mineração do
ouro. “A escravidão no modelo europeu, objetifica e
coisifica as pessoas transformando elas em uma espécie
de ‘máquina animada’. Essas pessoas estavam ali para
o tempo todo funcionar como os seus proprietários
queriam”. Para que o indivíduo valesse o preço pago
por ele, deveria ser explorado até o limite. Cerca de
18 horas de trabalhos diários que resultava em baixa
expectativa de vida. Assim, aos 30 anos, o escravo já
era considerado uma peça improdutiva e como uma
máquina, perdia a utilidade para seu senhor. 323
anos depois, o extrativismo da força humana ainda
acontece. Está velado. Hoje em dia o trabalhador se
torna parte da máquina, ganha prazo de validade,
assim como as máquinas que opera.
Além disso, é substancial lembrar que estes
trabalhadores estão em sua maioria em ambientes
de risco. Em cinco de novembro de 2015, a barragem
da Vale em Bento Rodrigues, distrito de Mariana
se rompeu. A lama passou destruindo a natureza,
levando casas e vidas. Recentemente, em 25 de
janeiro deste ano, o crime se repete no rompimento da
barragem de Brumadinho, deixando pelo menos 179
mortos dos quais 131 seguem desaparecidos, em sua
maioria, trabalhadores. Dos vários alertas que vieram
após estes rompimentos, o risco de rompimento
da mina da vale em Barão de Cocais, é o que mais
assusta. “O rompimento do talude vai acontecer. Há
uma questão imponderável se esse rompimento do
talude na cava, se ele vai afetar a barragem. Isso não é
possível precisar”, explica Germano Vieira, Secretário
de meio Ambiente de Minas Gerais. Dessa forma,
além de todos os riscos à saúde oferecidos no dia a
dia, a tensão de correr risco de vida constantemente
afeta o psicológico desses trabalhadores.
20
Antônio traz relatos de como era seu dia a
dia enquanto trabalhador da mineração,
assim como as consequências físicas e
psicológicas que essas vivências deixaram e
a maneira que escolheu lidar com tudo isso.
Qual era seu horário de trabalho?
De 7h às 16h e às vezes ainda fazia hora extra
até às 19h. Muitas vezes quando eu tinha prova,
não dava tempo de estudar. Já chegaram a me
falar que estudo pra mim não significava nada.
A gente tem que escutar, passar por cima.
A empresa prepara o trabalhador para a
realidade diária que ele enfrenta?
Todo dia, na hora de chegar, tem aquele
impacto de você receber novidades, mas
por interesse deles. Então a gente vê que
o trabalhador de turno tem 5 minutos pra
praticamente pegar suas coisas e você tem
que treinar seu psicológico para não esquecer
o abafador, capacete, luva, porque você
não podia esquecer. era todo esse trabalho
pra te preparar pro trabalho, mas não tinha
aquele trabalho pra te preparar fisicamente
para o que você ia enfrentar ali. Então todas
as preocupações deles eram voltadas pro
trabalho, e nunca para o trabalhador.
A empresa prepara o trabalhador para a
realidade diária que ele enfrenta?
Coluna. Foi desgaste decorrente do trabalho.
No fim o trabalhador sempre leva a pior, a
empresa não quer saber se você tá doente,
ela não quer te recuperar, ela quer recuperar
o equipamento que gera produção. A dor
atrapalhou inclusive o meu psicológico.
Quando ela vem, você não consegue sonhar.
Como você lida com as consequências
negativas que todos esses anos na
mineração te trouxeram?
Eu sabia que todas as coisas negativas que
estavam acontecendo comigo em casa eram
devido a empresa, eu via que vinha de lá.
Muitas coisas eu escondia e com o tempo eu
fui me defendendo a respeito de muitas coisas,
passando por cima. Porque, pra gente vencer
tem que ser assim: uns falam não, você fala sim.
Eu acredito que se a empresa tivesse tido um
pouco de paciência, se cuidasse dos funcionários
como eles cuidam dos equipamentos deles, eles
conseguiam me recuperar. Eu estava lá até hoje,
porque eu insistia em trabalhar.
EDIÇÃO 27 | CURINGA 21
Cultura Extrativista
Força humana
Dedicação
Um espaço grande e pouco
acolhedor, porém bastante
familiar para A. C. após
tantos plantões.
Foto: Autor anônimo
“
Às vezes fico alguns dias sem falar com meus pais. Quando
pergunto porque não ligaram, eles me respondem que não
sabem se estou trabalhando ou dormindo.
A. C. Carioca
“
22
A vida pela vida
Dos 40 anos já vividos da vida de A. C. Carioca,
muitos deles são relacionados à profissão. Enfermeira
há 12 anos e atualmente trabalhando em um grande
hospital de Belo Horizonte, dedica horas de trabalho
semanais em plantões de 12h por 36h, com quatro
folgas por mês. Números que acarretam em “cansaço
físico e mental”, como ela descreve grande parte
de seu ofício. Atuando na Unidade Coronariana,
responsável por pacientes com problemas cardíacos,
ela lida com a instabilidade de quadros clínicos que
podem se agravar muito de um momento para o
outro. Interagir com a saúde de outras pessoas não é
tarefa fácil, e sentir-se responsável por elas acarreta
uma sobrecarga nos profissionais da saúde, bastante
difícil de lidar na maioria das vezes.
Em uma pesquisa publicada na 22ª edição da
Revista Latino Americana de Enfermagem, em 2014,
pesquisadores da Escola de Enfermagem de Ribeirão
Preto explicam que muitas das preocupações
com a exploração emocional e as consequências
que a realidade da profissão podem gerar em sua
vida pessoal partem do forte contato com seus
pacientes que estão em situações delicadas, isto
é, “questionamentos relativos à maneira como
eles conseguem suportar situações desgastantes,
principalmente pela constante convivência com o
sofrimento, dor, a morte e tantos outros sentimentos
e reações desencadeadas pelo processo de doença.
Essa angústia está, de fato, presente na realidade de
A. C. Recentemente ela acompanhou de perto o óbito
de um de seus pacientes e o sofrimento da família.
Mas, ao mesmo tempo que lidar com as perdas é
algo difícil, poder confortar o outro possibilita o
alento pessoal, “No final, mesmo diante da dor da
perda, a esposa me abraçou e agradeceu por tudo que
tentamos fazer pelo marido dela”, afirmou Pipoca.
Trabalhando em plantões agitados, o reflexo da
intensidade desses turnos é evidente em sua vida
pessoal. Não é raro dizer “não” para os encontros de
amigos, seja pelo cansaço ou para poupar energia para o
plantão seguinte. O contato com a família, que mora em
Mariana, MG, também tem se estreitado. Ela vai para
a cidade quando as folgas coincidem, mas eles sentem
falta do relacionamento diário, mesmo que à distância:
“Às vezes fico alguns dias sem falar com meus pais e
quando pergunto porque não ligaram me respondem
que não sabem se estou trabalhando ou dormindo”,
explica. Um estudo realizado pelo IBGE (2015) sobre
trabalhadores do ramo da saúde no país, consultou um
expressivo número de pessoas, incluindo auxiliares e
técnicos de enfermagem, enfermeiros com nível superior
e profissionais aposentados. Segundo os resultados, 66%
dos entrevistados afirmam sofrer desgaste profissional e
80% são técnicos e auxiliares de enfermagem.
A.C.Carioca está entre essas pessoas que dedicam
praticamente todo o seu tempo ao cuidado de outras
vidas, seguindo à risca o juramento que fez no dia de
sua formação: “Juro dedicar minha vida profissional
a serviço da humanidade, respeitando a dignidade
e os direitos da pessoa humana, exercendo a
Enfermagem com consciência e dedicação…”. Entre
um plantão e outro, Ana tenta organizar sua rotina,
buscando o melhor para a saúde de seus pacientes,
que nem sempre é o melhor para ela.
A.C.C, José, Antônio, e milhares de outros
brasileiros estão inseridos nessa realidade que extrai do
trabalhador a sua força em múltiplos aspectos. Força
física, psicológica, força de vontade para vencer a batalha
diária de um sistema capitalista que parece ignorar a
sensibilidade que diferencia e coloca um abismo entre
homem e máquina. Tenta-se também, aumentar o
tempo de produção desse homem máquina, mas não se
importam e muito menos se responsabilizam quando
uma pane faz com que parem de funcionar e postergam
sem pena o tempo de descanso.
Em fevereiro de 2019, o texto da Reforma da
previdência, escrito pelo atual ministro da economia
Paulo Guedes, foi entregue ao Congresso Nacional
pelo atual presidente e apoiador da reforma
Jair Bolsonaro. Na proposta, a idade mínima de
aposentadoria do trabalhador homem, que é de
60 anos, passa a ser 65, e da mulher, que é de 55
anos passa a ser 62. No sistema atual, que é o de
repartição, o trabalhador é a base de sustento para
o aposentado. No proposto, chamado sistema de
capitalização, o trabalhador coloca o dinheiro no
banco compulsoriamente e não há a garantia de que
o percentual recebido seja equivalente ao que foi
depositado quando o indivíduo se aposentar.
Após 25 anos, o tempo mínimo de contribuição,
o empregado receberá esse valor, que provavelmente
será baixo. André Mourthé, professor de Economia
da UFOP, explica que, não por acaso, quem escreveu
a reforma foi um bancário, uma vez que os bancos
lucram aplicando o recurso que fica com eles. Levando
em consideração que a maioria da população ganha
pouco e/ou não possui carteira assinada, na proposta
do Governo esses indivíduos estarão completamente
ao “Deus dará” quando chegar o momento de se
aposentar. Para o professor, isso é inadmissível.
“Precisamos sim fazer uma proposta
previdenciária, mas não a do Guedes. A repartição é
muito mais ajustável, humana e socialmente justa”,
afirma Mourthé. O sistema não valoriza o trabalhador
e não funciona sem ele. Em 1977, o músico baiano
Raul Seixas bem explicou: “O empregado não saiu pro
seu trabalho, pois sabia que o patrão também não tava
lá. Dona de casa não saiu pra comprar pão, pois sabia
que o padeiro também não tava lá. E o guarda não saiu
para prender, pois sabia que o ladrão não estava lá. E
o ladrão não saiu para roubar, pois sabia que não ia
ter onde gastar. No dia em que a Terra parou”. Porque,
sem o trabalhador, nada vai funcionar.
*Foram utilizados nomes fictícios para proteger as fontes.
EDIÇÃO 27 | CURINGA 23
O corpo (delas)
na cidade
As relações das mulheres que trabalham com a prostituição não se
limitam aos clientes. Antes, há a conexão do corpo com a sociedade e
a partir dela, os prazeres e os problemas.
Baixo Centro
Ali toda a metrópole está escancarada em sua essência
mais crua: o comércio, o trânsito, a prostituição, enfim,
a vida de quem habita ou transita por essa região. Rua
Guaicurus de dentro do carro, BH – MG.
Texto de Letícia Lopes de Souza
Fotografias de Larissa Helena
Design de Bárbara Alvina
Quando se pensa em prostituição, das ruas aos
quartos de Hotel, em qualquer lugar do Brasil,
o significado do corpo é ambíguo. Na realidade
das mulheres que o usam como instrumento de
trabalho podem estar envolvida a luta delas por
reconhecimento, respeito, saúde, quebra de tabus e,
também, uma forma de encontrar prazer.
Segundo o antropólogo e filósofo Le Breton, o corpo
é o meio pelo qual se evidencia a construção de uma
interação com o mundo. Então, quando dizemos sobre
a forma como os corpos são usados, explorados ou
amados, dizemos sobre nós, sobre a nossa capacidade de
reconhecer as relações, os direitos, as falhas e, sobretudo,
os limites que nos pertencem.
EDIÇÃO 27 | CURINGA
25
Cultura Extrativista
Prostituição
A sociedade escolheu, entre outras, as palavras
‘’zona’’, ‘’puteiro’’, ‘’sobe-desce’’ para se referir aos
hotéis de prostituição. Ao subir as escadas de um
dos 28 hotéis da rua Guaicurus, em Belo Horizonte,
carregamos previamente a ideia de que a profissão de
prostituta tem relação direta com o uso e/ou com a
exploração dos corpos.
Na capital mineira, a marginalizada região do
baixo centro é o local de trabalho de cerca de três mil
mulheres, conforme contabiliza Flávio Dornas, dono
de um dos hotéis que conhecemos durante a apuração.
O cotidiano simples, o comércio apelativo e o trânsito
caótico compõem o cenário do lugar que recebe, por
dia, aproximadamente cinco mil homens à procura do
que as garotas de programa podem oferecer: do sexo a
simples trocas de palavras.
Os dados disponibilizados, em 2018, pela Fundação
Mineira de Educação e Cultura (Fumec), revelam que
1,5 milhões de pessoas se prostituem no país. O número,
apesar de ser alto, não assegura a regulamentação desse
tipo de trabalho, cuja situação é precária e passa como
que despercebida pela Legislação brasileira.
Ao contrário do que muitas pessoas acreditam,
prostituir-se não é crime. O recém-extinto Ministério
do Trabalho reconheceu a profissão em 2002. Dez
anos após, a proposta de Lei 4.211/12 , que ficou
conhecida como Lei Gabriela Leite - em homenagem
à prostituta brasileira de São Paulo, que morreu
26
Espaço Urbano
Os mundos da prostituição coexistem, de
modo que, sejam delimitados e confinados.
Rua Guaicurus vista de cima, BH– MG.
de câncer, em 2003 -, tentava regulamentar a
profissão, a fim de assegurar direitos trabalhistas
também aos profissionais do sexo.
A proposta de Lei Gabriela Leite, que não chegou
a ser votada pelo Congresso, não esclarece todos os
significados da palavra exploração. Ela também nada
diz acerca da exploração do corpo, sobretudo, do corpo
da mulher, sendo que é perceptível que, com seu uso
excessivo, ocorre a falta de acesso à saúde, o baixo
pagamento e a desvalorização do trabalho, como os
problemas mais frequentes das mulheres sujeitas a ele.
Os salários e pagamentos na região da Guaicurus,
segundo Flávio Dornas, varia de R$5,00 a R$15,00, “para
começar”. Depois, dentro do quarto, de acordo com
os desejos do cliente e da disponibilidade da garota de
programa, os valores podem ir aumentando. Para A.,19
anos, o preço pelo trabalho que se oferta é baixo, e ela
considera isso - sim - como uma forma de exploração.
“A gente só se sente explorada, quando sai e vê que não
vale só isso”. Mesmo fazendo seus próprios horários,
por causa do valor recebido por cada programa, as
profissionais precisam atender quantos clientes a sua
necessidade financeira pede.
A., é uma garota de programa que está vinculada
a um site que divulga seu trabalho na internet.
Prostituta há um ano, ela já trabalhou no “sistema
de cafetinagem”, no qual a garota de programa paga
um aluguel para pertencer a uma casa, e diz que
nele as chances de ser explorada são muito maiores.
“Os horários são eles que escolhem, que atendem os
telefones, a gente é obrigada a trabalhar menstruada,
querendo ou não. Temos metas e elas precisam ser
cumpridas”. Hoje, trabalhando de forma autônoma, ela
relata outra situação: “atendo no máximo 3 homens
por dia. Pelo meu bem-estar e pelo do cliente”.
A sexóloga Bruna Coelho, ao contextualizar a
prostituição como uma profissão complexa em todos os
âmbitos, chama a atenção para os danos psicológicos
que podem ser desencadeados. “O nosso corpo tem
limites. Como elas se cuidam subjetivamente e
psicologicamente?”, ela questiona.
Foi a partir de uma inquietação como essa que o
Coletivo de Belo Horizonte, Clã das Lobas, começou.
Tamires, garota de programa que integra o grupo
formado por prostitutas surgido dentro de um dos Hotéis
na Rua Guaicurus, em 2018, percebeu, entre as colegas
de trabalho, a necessidade de cuidado psicológico. Desse
modo, são organizadas palestras, encontros e passeios
guiados pela região para desmistificar questões sobre
a prostituição e arrecadar dinheiro para o coletivo.
“Sempre tivemos apoio para a saúde. Mas da cintura pra
baixo. É preciso pensar a saúde mental”, justifica.
A sexóloga Bruna diz que, como as garotas de
programas são marginalizadas, elas psicologicamente
podem sofrer com o afastamento social e a quebra
de vínculos. Essa situação reverbera em solidão,
depressão e culpabilização. “Há muitas prostitutas
que ficam dependentes de substâncias em virtudes
de certos vazios que têm que enfrentar. Há as que
enfrentam questões existenciais, pois a profissão
envolve um contato carnal e físico e, mesmo que
estejam acostumadas, nem sempre estão preparadas”.
EDIÇÃO 27 | CURINGA
27
Cultura Extrativista
Prostituição
Pensando mais na saúde física, Laura Maria do
Espírito Santo, nome dito por ela mesma com orgulho,
ex-prostituta, se tornou vice-presidente da Associação
das Prostitutas de Minas Gerais (Aspromig). Uma das
responsáveis pela distribuição de camisinhas na região
da Guaicurus, Laura relata sobre o preconceito que a
sociedade tem no que diz respeito à saúde da mulher
garota de programa. Segundo ela, o índice maior
de doenças não está nos hotéis, mas nas ruas. “São
pouquíssimos casos de doenças por aqui. O homem [é]
quem vem da rua com a doença e traz pra cá, mas a
maioria delas [as garotas de programa] estão conscientes
de que tem que usar o preservativo. Quando os homens
sugerem sem camisinha elas riem da cara dele”, conta.
Tamires, Clã das Lobas, também comentou que
um dos desafios em lidar com a saúde física vem do
preconceito social, que gera vergonha nas garotas de
programa em procurarem um médico e conversarem
abertamente com ele sobre os seus problemas. “Nós
precisamos chegar no médico e falar que somos
garotas de programa, porque temos demandas que
são diferentes”, afirmou.
Além de distribuir os preservativos, a Aspromig
oferece testes gratuitos e instantâneos de HIV, para
diagnosticar a Aids, e ISTs. Também, a entidade
estabelece diversas parcerias com estudantes de
Universidades públicas e privadas, atuantes nessa
área da saúde, que oferecem testes, consultas
preventivas e psicológicas.
A importância de que haja projetos que vão até
as garotas de programa nos hotéis, como fazem a
Associação e o Coletivo, está muito ligada à itinerância
no atendimento por parte dessas trabalhadoras.
Como a maioria não trabalha em locais fixos, os
tratamentos são dificultados, tornando isso uma
outra questão para a saúde delas.
Laura Maria conta que a Associação começou
porque havia muitos casos de violência e que as
“meninas”, como ela chama as garotas de programa,
eram muito recriminadas. “Começamos para cuidar e
levantar a autoestima delas”.
Na tentativa de dar segurança às profissionais, a
Aspromig, que tem parceria com a Polícia Militar, em
reunião, solicitou aos donos de hotéis a instalação de
câmeras e detectores de metais na entrada dos locais
de trabalho delas. “Aqui nós é que mandamos, se não
colocar [câmeras e detectores], a gente denuncia. Aí
a violência diminuiu”.
As situações de violência e exploração contra as
prostitutas, embora saibamos que existam, não são
denunciadas. Adriana Pereira, delegada da Delegacia
de Polícia Civil, Delegacias e Distritos Policiais em
Ouro Preto, diz que, desde que assumiu o cargo, não
se lembra de nenhuma denúncia. Para ela, os registros
oficiais não chegam até a polícia pelos motivos de
vergonha, medo e, principalmente, pela falta de
conhecimento dos direitos. Contudo, não há nenhum
procedimento específico para garotas de programa
violentadas, e, segundo Adriana, o procedimento dado
a elas é o mesmo direcionado a todas as mulheres, com
a abertura de um inquérito e uma investigação.
Quanto aos termos de tratamento direcionados
às mulheres que trabalham com sexo, há variedades.
No dicionário, a palavra puta é qualquer mulher de
conduta ludibriosa que está entregue à libertinagem. No
significado real, dado pelo senso comum, puta é, para
a maioria, um nome pejorativo destinado às mulheres
que trabalham com a prostituição e, ainda, mulheres
que se comportam de forma contrária ao definido pelo
conservadorismo. Mas, para outras pessoas, a palavra
puta assume o significado de empoderamento no sentido
de tornar positiva uma palavra que é negativa.
Laura Maria é uma das garotas de programa que
não gosta de ser chamada de puta. Assim como ela,
A. e Tamires também não se sentem confortáveis
quando mencionamos esse termo. Profissionais do
sexo, garotas de programa e até baby (nome dado às
prostitutas de luxo) são as maneiras de tratamento
preferidas por elas. Caroline, que está na “vida” há
três anos, diz que não se importa com a nomenclatura:
“O nome disso é puta. Se quiser, até piranha”. Pois,
para ela, sua profissão é simples: “ganhar dinheiro,
prestar serviço e correr riscos”.
Uso do corpo ou exploração?
A recorrente discussão sobre a exploração e o
uso do corpo na prostituição que ocorre fora dos
prostíbulos, nas redes sociais e nos congressos, traz
palavras- chave como “direito”, “mercantilismo”,
“escolha”, “regulamentação” e “legalização”. As
diversas opiniões dadas pelas garotas de programa,
mulheres ativistas, membras do coletivo e, até mesmo,
homens, dizem sobre a maneira como a sociedade lida
com o corpo feminino e o trabalho. Seja qual for a
opinião, segundo as nossas entrevistadas, ela está
28
carregada de estereótipos e tabus a respeito não só da
profissão, mas também do corpo da mulher.
A sexóloga Bruna conta que o sexo, desde
antigamente, é visto como uma ameaça à ordem social
e atuante como uma prática potencializadora do corpo.
O casamento por exemplo, era a única ocasião em que
o sexo era aceitável, porque já estava estabelecido por
meio do matrimônio uma maneira de controlar a ação
corporal. “Toda a visão sobre o sexo foi construída visando
ao controle dos corpos”. As mulheres que desobedeciam
essa ordem eram vistas como bruxas e sofriam duras
consequências. Até hoje, essa ideia reverbera diversas
impressões negativas às mulheres e, principalmente,
às prostitutas. Pois, além de desobedecerem a ordem
fazendo sexo fora do casamento, elas ainda cobram por
ele, e por isso, são multiplicadamente rechaçadas.
Então, prostituir-se significa o alcance da liberdade
sexual e social? Não exatamente. Todas as entrevistadas,
embora consigam se sentir minimamente confortáveis
na profissão, não a escolheram por simples vontade
de se prostituir. Há problemas de diversas naturezas,
subjetivas e não subjetivas, que fazem com que essa
mulheres entrem para a prostituição.
A ativista e jornalista Meghan Murphy, em artigo
no site QG Feminista (2017), defende a ideia de que “as
indústrias do sexo existem não por causa das ‘escolhas’
das mulheres, mas por causa das escolhas dos homens e
a consequente falta de escolha das mulheres”.
Assim, Murphy lembra “que a prostituição existe
porque homens querem ter acesso ao corpo de pessoas
para quem eles não devam responsabilidade.” Seguindo
esse pensamento, podemos dizer que a prostituição é
considerada uma forma de exploração.
É uma profissão como qualquer outra.
“ Um dia pelo outro. Tem prós e contras.
Tamiris ”
“Existem mulheres na prostituição que estão ‘bem’,
e você pode achar um bom número de mulheres online
que dirão exatamente isso. Mas existem incontáveis
mulheres na prostituição que definitivamente não
estão bem - aquelas cujos cafetões não as permitem
conversar com os jornalistas. Vale a pena considerar as
vozes que não estão presentes online, nesse chamado
‘debate sobre o trabalho sexual’, e nos perguntar o
porquê de sua ausência”.
A discussão, como se pode ver, é infindável e
necessária. Falar sobre prostituição é falar sobre
atualidade, direito e cuidado ao corpo feminino.
Representação
A presença da prostituição na Guaicurus é uma relação “sócio espacial”, ela influencia no ambiente e é influenciada por ele. Da esquerda para direita:
pintura feita por artistas de Manaus em homenagem a Nice, ex-prostituta e atual cozinheira na região; publicidade de hotel colado em poste.
EDIÇÃO 27 | CURINGA
29
Cultura Extrativista
Prostituição
Bruna Surfistinha: aquela que deu certo
É assim que a escritora, DJ, roteirista e
empresária Raquel Pacheco, 34 anos, exgarota
de programa que ficou conhecida como
Bruna Surfistinha se descreve. Em entrevista à
Curinga, Raquel comenta as vivências de uma
prostituta que conheceu a fama por meio da
“profissão que mais sente na pele a sociedade
machista na qual vivemos”.
Como é ser uma garota de programa no Brasil?
Como o país trata esse tema?
Ser garota de programa no Brasil é seguir uma
profissão não reconhecida pela maioria e sentir
o peso gigante de um estereótipo. Da época
que me prostituí até o momento, embora não
viva mais diretamente na prostituição, percebo
que houve mudanças, mas ainda assim há um
preconceito velado. Infelizmente, muitos ainda
enxergam as prostitutas como mulheres que
querem a tal “vida fácil”. Não há empatia por tais
profissionais e talvez seja ainda a profissão que
mais sinta na pele o machismo da sociedade.
Você consegue dar um motivo para esse
preconceito? Mesmo não sendo mais garota
de programa, você já foi ou é alvo dele?
Boa parte do preconceito é por conta do
machismo da sociedade em que vivemos. A
visão dos preconceituosos é que a mulher que
se prostitui é apenas um pedaço de carne,
como se vender o corpo fosse apenas o que
saiba fazer. É preciso mostrar o lado humano
dessas mulheres, na tentativa de conquistarem
mais respeito, afinal, são pessoas que sentem
dores e amores, com sonhos e planos de vida,
enfim, nem melhores nem piores a ninguém, são
apenas mulheres que estão por um momento
vendendo não o corpo, mas seu tempo, para
proporcionar prazer a desconhecidos. Elas
têm coragem e necessidade de cobrar por
isso. Até hoje sofro preconceito, menos do que
enfrentei no início, mas ainda sinto na pele sim,
no entanto não me incomoda mais, aprendi a
lidar com esta situação.
Levando em conta a sua vivência, qual o maior
problema da prostituição e/ou de ser uma
garota de programa?
São vários problemas, mas o maior deles
acredito que seja ter que encarar uma vida dupla
como acontece com a maioria que tem medo de
assumir a profissão aos familiares e amigos por
medo da reação deles e, consequentemente,
sofrer rejeição, preconceito e abandono pelas
pessoas que mais amam. Trabalhei com muitas
mulheres que tinham a prostituição como o
maior segredo da vida delas, inclusive algumas
eram casadas, mas os maridos nem sonhavam
o que elas faziam durante o dia. A prostituição é
um mundo de mentiras e com um lado sombrio
muito grande, é preciso ter coragem.
Considerando o corpo como ferramenta de
trabalho, você acha que na prostituição ele
seja, de alguma forma, explorado?
De fato o corpo é a principal ferramenta de
trabalho para as garotas de programa, em
segundo lugar é a saúde, a qual todas tomam
muito cuidado. Acredito que as prostitutas
se cuidam mais do que muitas mulheres que
não são, se preocupam em usar camisinha,
pois sabem do risco grande que correm por
ter diversos parceiros diariamente. Sobre os
limites, cada uma impõe o que concorda ou
não, acaba sendo “meu corpo, minhas regras”.
Todas sabem, ou deveriam saber que embora
estejam ganhando dinheiro para proporcionar
prazer, não são obrigadas a nada. Nenhuma
mulher é obrigada, por que com as prostitutas
deveria ser diferente?
Você acredita que a sensação de exploração é
a mesma para todas as garotas?
A exploração está muito mais associada às que
trabalham para algum cafetão. Eu trabalhei para
quatro e me sentia explorada demais, assim
como via o sofrimento das minhas colegas
por conta disso. Além de ter que pagar no
mínimo 40% do valor do cachê ao cafetão, há
outras questões também, eu tive que trabalhar
queimando de febre, com dores, menstruada,
triste, enfim, não existia justificativa alguma para
não poder trabalhar.
Quando você decidiu que não seria mais
garota de programa e por quê?
Iniciei meu ano de 2005 já decidida que seria o
último ano na prostituição, eu já estava cansada
e não sentia mais prazer algum em estar naquele
mundo, já tinha feito tudo o que tinha vontade,
vivi três anos com intensidade. Meus conflitos
internos se tornaram mais fortes dentro de
mim do que a vontade de continuar ganhando
bastante dinheiro fazendo sexo. A vida de
uma garota de programa geralmente é muito
solitária, vivemos naquele mundo de mentiras,
temos vários homens durante a jornada de
30
trabalho, mas ao mesmo tempo que temos
muitos, acabamos não tendo ninguém. Cheguei
no meu limite físico e emocional para lidar com
diferentes tipos de homens.
Com a chegada da fama, do livro, do filme,
quais foram as principais mudanças na sua
vida?
Nunca tive pretensão de fama! Fama para mim
era algo que passava longe do meu objetivo
de vida pois eu sempre fui tímida demais para
encarar câmeras. A repercussão do do blog
que fiz em 2013, falando sobre minha história
de vida e depois, sobre a relação com os
clientes, foi muito rápida e grande. Em poucos
dias, comecei a receber clientes que diziam
que eram meus leitores.
Sempre lidei com a fama de uma maneira muito
tranquila, com os pés no chão. Tem um lado muito
gostoso, mas a fama tem um lado que quem
está de fora, dificilmente enxerga. Não é a toa
que muitos famosos enfrentam depressão, têm
as drogas como fuga, não é tão simples como
parece ser. Eu tive muita sorte por ter colhido
tantos frutos bons neste período todo e sei que
marquei uma geração. Já faz 15 anos que sou
conhecida como a Bruna Surfistinha e mesmo
longe dos holofotes, sou reconhecida em todos
os lugares que vou, não passo despercebida.
Valorizo muito o reconhecimento do meu público.
Acabei sendo a pioneira no Brasil, sendo a
primeira garota de programa dando a cara à
tapa para a sociedade, sem medo.
Sabemos que, ao falar de prostituição, a mídia
ainda traz uma abordagem marginalizada da
profissão. Com as produções que trouxeram
seu protagonismo (e sua versão dessa
realidade), você acha que as garotas de
programas se sentiram representadas?
Acredito que o filme ajudou demais a quebrar
boa parte do preconceito. Muitas pessoas até
hoje comentam comigo que começaram a
enxergar a prostituição de uma nova maneira
após o filme, com mais respeito. O filme
mostrou a realidade, não vende como “vida
fácil” porque não é. As cenas de sexo poderiam
ser representadas apenas por galãs, mas fugiria
completamente do que acontece de fato. A série
mostra o lado humano com mais intensidade
comparando com o filme.
A mídia em geral mostra a garota de programa
estereotipada de certa maneira, talvez porque
o público aceite melhor assistir quando é desta
maneira. Acabei quebrando este estereótipo e
é por isso que minha história despertou tanta
atenção. Acredito sim que muitas garotas de
programa se sentem representadas por mim.
Não todas, porque é impossível agradar toda a
classe, mas pela maioria, posso afirmar que sim.
Guaicurus
A prostituição não tem rostos. Ela tem lugares.
Há mulheres cis, trans, negras, gordas, de todos os
jeitos, e que não seguem um padrão ou estereótipo.
31
Uma cultura assenhorada
pelo mercado
Quando os símbolos da cultura negra são apropriados e ressignificados
pela indústria cultural , transformando-se em produtos para consumo,
promove-se uma desigualdade: a marginalização de uma etnia.
Texto de Franciele Silva, Jean Lourenço e Rômulo Soares
Fotografias de Franciele Silva e Rômulo Soares
Design de Franciele Silva
A
festa de aniversário da diretora da Vogue Brasil,
Donata Meirelles, realizada em fevereiro de
2019, contou com mulheres negras vestidas
de “mucamas” e decoração que remetia ao Brasil
escravocrata. Eventos recentes como esse suscitaram
discussões éticas envolvendo a apropriação de culturas.
Mas o que é, de fato, apropriação cultural?
Para José Arlindo do Nascimento, Assistente Social
e Especialista em Igualdade Étnico Racial na Escola,
pensar a apropriação cultural é fazer uma análise de
complexidade. “Até o termo apropriar perpassa pelo
estranhamento, pois você se apropria de algo a que
acha ser simplesmente de seu domínio. Em termos de
cultura o debate tem que perpassar por aquilo que está
no âmbito privado e público.”
A cultura afro e afro-descendente é reconhecida
pela Lei 10.639, aprovada em dezembro de 1996,
identifica a contribuição do povo negro nas áreas
social, econômica e política pertinentes à História
do Brasil. Contudo, essa cultura é constantemente
esvaziada de seu significado. No histórico de nosso
país, o uso da força física e as imposições da vontade
da Casa Grande (homens brancos que escravizaram
negros entre os séculos XVI e XIX) na organização da
sociedade evidenciam as raízes do racismo.
A abolição da escravidão, em 1888, por meio
da assinatura da Lei Áurea, e um ano depois, a
Proclamação da República, não modificaram, na prática,
os argumentos da diferença racial para a dominação
de pessoas. “Desde a escravidão esta ideologia [da
supremacia racial] vinha sendo impregnada na vida
desta sociedade. Quando pensamos no termo escravidão
e colonização sem levar as diásporas africanas como
experiência humana, negamos a história dos povos
que se reconstruíram como territorialidade nestes
espaços contraditórios”, afirma Arlindo. Com isso, a
diminuição do negro e tudo que faz parte da sua cultura
é essência do racismo e também é ferramenta das esferas
dominantes na luta de classes. “O racismo é a peça chave
para entendermos o alijamento dos corpos negros tanto
nos espaços públicos quanto privados. A inferiorização
da cultura negra é estratégia para atuar como forma de
controle, de frear o crescimento ou ascensão dos setores
estigmatizados”, complementa.
Para o Assistente Social, o debate do país
miscigenado e intercâmbio de culturas, é uma das
formas de velar o racismo.“Acho muito perigoso pensar o
Brasil como um país miscigenado. A miscigenação é um
fenômeno cultural que demarcou as relações sociais e
ainda prevalece na atualidade. Antes dela acreditava-se
que para o desenvolvimento fosse necessário apagar as
imagens de um Brasil escravizado,” diz.
Nos dias de hoje, há um enaltecimento dessa
miscigenação, observada sobretudo na difusão de
produtos culturais pelo mercado. Historicamente, os
símbolos negros são formas de resistência, de luta contra
a dominação. Uma vez incorporados pela lógica do
consumo, a identidade desses símbolos é ressignificada
e simplificada sendo extraída, esvaziada e transformada
em mercadoria com uma roupagem branca. Por isso, não
se trata apenas de dizer o que é coisa de preto e coisa de
branco, e sim de reconhecer uma luta identitária.
Manifesto
Ato contra a apropiação e apagamento da
cultura negra pela indústria cultural.
Foto: Franciele Silva
EDIÇÃO 27 | CURINGA 33
Cultura Extrativista
Símbolos Negros
Vestuário negro sem corpos negros
O uso de elementos do vestuário afro pela indústria
da moda tornou ponto central de calorosos debates. No
ano de 2015, a cantora Miley Cyrus e a empresária e
modelo Kylie Jenner, ambas estadunidenses e brancas,
foram criticadas por usarem dreadlocks (penteado
tradicionalmente da cultura negra que consiste em
mechas de cabelos entrelaçadas em forma cilíndrica).
Em 2016, a Revista Vogue promoveu como temática
para seu tradicional baile de carnaval, a “África”,
trazendo como anúncio: “Para quem ainda não tem
fantasia, o nosso guia fashion africano te ajuda a se
embelezar para o Baile da Vogue 2016”. Já em 2017, o
debate se formou quando a estudante branca Thauane
Cordeiro acusou uma mulher negra de a repreender por
estar usando turbante; a estudante, a partir do ocorrido,
resolveu fazer um post no Facebook, lançando a hashtag
com a mensagem “vai ter todos de turbante sim”.
O apoderamento de elementos do vestuário negro é
um assunto que ultrapassa um entendimento pessoal.
O turbante, por exemplo, é um importante símbolo de
luta contra a discriminação e afirmação da identidade
afro-brasileira, como ressalta a historiadora e africanista
Sidnéia Santos. “É difícil explicar às pessoas brancas
como esses elementos são dotados de significado. É
difícil explicar que aquilo que ela está usando é de uma
cultura que não é dela, que é uma cultura de luta, de
resistência, de visibilidade, porque durante muito tempo
nós ficamos invisíveis. Não que uma mulher branca
não tenha o direito de usar o turbante, ela pode até
usar, mas o turbante tem um outro significado e não é
simplesmente um enfeite”, explica.
“
Não que uma mulher branca não tenha o
direito de usar o turbante, ela pode até usar,
mas o turbante tem um outro significado e
não é simplesmente um enfeite.
”
Sidnéia Santos
Foto: Franciele Silva
Padrão de Beleza
Dotadas de significados as peças do
vestuário negro são apropiadas e
expostas nas passarelas trajadas em
corpos padronizados.
34
O vestuário negro carrega significados, são formas
de empoderamento e resistência contra a dominação.
Diante de acontecimentos que têm a apropriação
cultural como pano de fundo, que demandam com mais
frequência novas discussões, é importante entender que
não se trata apenas de estética, mas de história e de
apropriação da cultura de uma minoria.
A representatividade negra na indústria cultural é
necessária para criar um sentimento de pertencimento,
porém o que vemos são sujeitos culturais sem histórias,
como aponta José Arlindo. Ele destaca que o que rege
a indústria cultural é a cultura de massa, que valoriza
o múltiplo sem levar em conta as singularidades
ou vice-versa: “quando pensamos somente a partir
desta dualidade como princípio acabamos por aceitar
a individualização das relações sociais. Neste caso,
despolitizamos os processos da vida social, como é o
caso da indústria cultural”.
Aliada à publicidade e à mídia, a indústria da moda
vende esses elementos como acessórios que, ocupando
outros corpos, passam a ser considerados cool, fashion.
“Uma marca vai lá, pega todas as miçangas das tribos
africanas e põe na loja valendo mais de cem dólares. Aí
vem as modelos branquelas esqueléticas desfilando com
aquilo e não se preocupam nem em contar a história nem
nada. E essas coisas ficam sendo tidas como normal. A
mulher branquinha faz lá uma trança e aí é: que linda,
deixa eu tirar uma foto, mas, quando é a mulher negra
é: isso fede? ”, critica Sidnéia.
Moldados a uma cultura branca, são reconstruídos
com uma carga positiva quando trajados a corpos
brancos, mas, em corpos negros, que são donos desses
elementos, voltam a ter uma carga negativa. Tendo
como modelo um padrão eurocêntrico onde a beleza
é caracterizada pelo tom de pele branco, estatura alta
e manequim magro, a moda acaba sempre buscando
esses estereótipos. Esse cenário pode ser observado
quando se quantifica o número de modelos negros
no casting (palavra originada do inglês, no universo
da moda se refere ao processo de seleção de elenco
para desfiles, ensaios e campanhas publicitárias) das
principais agências de modelos do Brasil, classificadas
segundo o Site Oficial dos Profissionais da Moda
Brasileira, MODELSBRASIL.com.
Os dados de 2019 disponíveis revelam que na Agência
Ford Models, de um total de 225 modelos femininas,
cerca de 13% são negras (30 modelos); já de 94 modelos
masculinos, cerca de 11% são negros (10 modelos). Na
Agência Mega Model Brasil, também de 225 modelos
femininas, 30 delas são negras. Já de 127 modelos
masculinos, por volta de 7% são negros (9 modelos). É
notório os baixos números de representantes negros
no elenco dessas agências, o que reforça ainda mais
o apagamento da identidade afro diante um mercado
da moda que expõe para fins comerciais os elementos
estéticos dessa cultura.
O vestuário afro está nas passarelas, contudo, sem
seus representantes. Essa situação se estende a outros
lugares, como nas festas de carnaval, onde é recorrente
o blackface (surgido no começo do século XIX, nos
Estados Unidos, o blackface, em português rosto negro,
consiste em uma caracterização racista com estereótipos
atribuídos aos negros: rostos pintados de preto e
lábios pintados de vermelho; feita por atores brancos).
Testemunha de uma situação de blackface ocorrido
durante o carnaval deste ano da cidade histórica de Ouro
Preto, Sidnéia relata o ocorrido: “Esse ano eu xinguei
uma moça na praça Tiradentes, porque ela estava vestida
de ‘negra maluca’, de ‘black face’. Eu parei de frente para
ela e falei: - eu não sou uma fantasia de carnaval. Ela
olhou para mim, abaixou a cabeça e foi para o meio do
povo. Mas a minha vontade era de registrar um boletim
de ocorrência naquele momento. E será que a polícia
ia me compreender? Será que eles iriam compreender
aquilo que eu estava dizendo? Porque a mulher estava
se fantasiada de mim, com cabelo crespo, a pele preta, o
batom bem escandaloso, um vestido cheio de cor. E eles
acham que isso é normal, eles acham que a gente tem
que concordar com isso”, desabafa.
“
Esse ano eu xinguei uma moça na Praça
Tiradentes, porque ela estva vestida de
negra maçluca, de black face.
”
Sidnéia Santos
EDIÇÃO 27 | CURINGA
35
Cultura Extrativista
Símbolos Negros
Gourmetização da comida africana
Na culinária brasileira também houve um processo
de apagamento das tradições de origem africana. As
mulheres negras escravizadas, por exemplo, vendiam
alimentos nas ruas levando tabuleiros, geralmente
com carnes, frutas, hortaliças e uma gama de produtos
difundidos na rotina dos cidadãos da época. Conhecidas
como “escravas de ganho”, porque realizavam tarefas
remuneradas a terceiros e adquiriam parte do dinheiro,
essas mulheres mantinham algumas práticas econômicas
e culturais que preservavam o elo com a África.
A partir dos processos de mistura de etnias e de novas
formas de organização e racismo estrutural, a comida
africana trazida para o Brasil foi sendo invisibilizada à
medida que seus ingredientes foram apropriados em
diversos contextos. Para a professora de gastronomia do
Instituto Federal de Minas Gerais (IFMG) e especialista
no projeto Memória e Identidade de receitas das
mulheres negras de Ouro Preto, Luanda Demarchi, o que
vem da comida africana nunca se destaca como tal. A
exemplo, temos o quiabo e o inhame, que são alimentos
típicos do continente africano.
Foto: Franciele Silva
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A pesquisadora acredita que é complexo mensurar
como se deu a influência africana na comida brasileira
porque ela era feita por mulheres escravizadas a mando
das senhoras e senhores brancos, que contribuíram
para o esvaziamento dos sentidos. “Até onde as escravas
que estavam na cozinha mudaram receitas a mando
de Sinhás, colocaram outros temperos ou utilizaram
produtos diversos da horta?”, questiona Demarchi.
Hoje, existe um distanciamento da culinária
africana e da memória porque muito se perdeu nos
ensinamentos transmitidos de forma oral, de cozinheira
para cozinheira, de negra para negra, de mãe para a
família. E pouco se preservou dos cadernos de receitas
mais antigos, principalmente de origens afros.
Martinha Luiza de Jesus, moradora de Ouro Preto,
que há 40 anos trabalha como cozinheira, diz que
ocorreram várias mudanças no fazer culinário. “Na
roça a gente só jogava os ingredientes na panela e
pronto, agora mudou, se você fizer uma comida igual
antigamente ninguém come. O quiabo, por exemplo, na
roça a gente fazia do nosso jeito.”
Os pesquisadores Javier Lishchitz e Juliana
Bonono, autores do artigo “As quitandeiras de Minas
Gerais: mémorais brancas e memórias negras”, de
2015, publicado na Revista Ciências Sociais Unisinos,
ressaltam as diferentes memórias a partir de entrevistas
com as mulheres que exercem o ofício de quitandeiras.
O estudo concluiu, por meio de uma pesquisa de campo
realizada em cidades do interior de MG, entre os anos
de 2012 e 2014, que na dissolução de um grupo social
também se dissolve suas memórias. Tanto nas listas
das Prefeituras que contabilizavam cozinheiras, quanto
em festivais das cidades, quase não havia presença de
quitandeiras negras. Ou seja, a herança cultural que
está sendo construída nas estruturas sociais de poder
excluem parte dessas produtoras.
Apesar das transformações no paladar do brasileiro,
é importante resgatar a memória de pratos tradicionais,
reconhecer de onde vem essa cozinha de comunidade,
onde Demarchi ressalta: “O gosto brasileiro em alguns
lugares, principalmente nas regiões onde houve muito
forte a escravidão, é um gosto de mãos africanas.”
Quiabo e Inhame
Ingredientes que hoje compõem
muitos pratos da cozinha brasileira
de maneira gourmetizda, são de
origens africanas.
EDIÇÃO 27 | CURINGA 37
Cultura Extrativista
Símbolos Negros
Foto: Rômulo Soares
Instrumentos africanos
Acrescentados a outros ritmos
musicais acabam tendo suas
origems mascaradas por um
viés mercadológico.
A venda do ceticismo sonoro
A cultura do samba e da capoeira, no início do século
XX, eram proibidos. Mas em 1930, Getúlio Vargas,
com a ideia de nacionalismo, trouxe a possibilidade
da valorização da cultura como um produto brasileiro.
Com isso, o samba e a capoeira começaram a ser
entendidos como manifestação cultural nacional. O
que entendemos dessa “valorização”, acabou sendo
uma forma de apropriação da cultura do negro,
onde essa, que antes era perseguida, começou a ser
moldada num caráter de embranquecimento. Trazendo
para cenas atuais, o mesmo vem acontecendo com
culturas marginalizadas, como o funk e o hip hop, que
são movimentos culturais que vão além da música.
Para Diego Fernandez, professor de música e proprietário
da escola de música Samba Preto da cidade de
Ouro Preto, os movimentos culturais artísticos negros
não ganham visibilidade até que se perceba um interesse
mercadológico em cima dele. “O Racionais Mc’s no final
da década de noventa, através de um tipo de produção
feito por eles mesmos, atraiu e alcançou uma grande
quantidade de venda de discos. Isso chamou atenção
das gravadoras de discos, pois foram os primeiros a
viralizarem, produzindo por eles mesmos e vendendo
para os ‘parças’. Com certeza, eles tinham uma oposição
sobre a grande mídia, e isso fez uma apropriação, pois
mercadologicamente, as gravadoras sentiram que havia
demanda nacional juvenil para o rap. Então a Globo,
por exemplo, lançou o Gabriel O Pensador como um
representante da cultura do rap, porém palatável aos
ouvidos do consumidor, retirando assim, a relação com
38 42
Brechtiana - Nei Lopes
[para Abdias Nascimento]
a comunidade. O mesmo ocorreu quando a Anitta
veio como representante do funk carioca, e acaba que
ao decorrer das coisas, ocorreu um embranquecimento
cultural dela, daí ela foi caminhando mais para o pop”.
Englobando mais outros gêneros musicais em que se
utiliza instrumentos da cultura negra, principalmente
os de percussão, é interessante visualizar a quantidade
desses instrumentos na música sertaneja, no rock e no
pop. Entretanto, o que muitos admiradores de artistas
desses gêneros não sabem, é a verdadeira relação
originária de determinado tipo de som. Diego destaca a
relação religiosa em que se nasceu determinado tipo de
técnica musical, o som e o próprio instrumento em si.
“A música tem uma ligação religiosa, a música que veio
da áfrica tem uma conotação religiosa, assim como a
indígena. Nas tradições do Congado, o tambor é sagrado.
Na tradição religiosa de matriz africana, os instrumentos
percussivos são sagrados. Na tradição da capoeira é
a mesma coisa com o berimbau. Isso é herança de
geração em geração, nós trouxemos a cultura rítmica de
instrumentos africanos. Quando eu vou ensinar algum
ritmo, alguma música da cultura africana, eu tenho que
falar com todo respeito aqui na escola. É patrimônio,
entende?”, disse o músico.
Tempos em que questões sociais, como o preconceito
racial, são tão debatidos e lembrados, a atuação da
industria é tão forte que mostra como o racismo está
enraizado ainda no mundo todo. Culturas periféricas
continuam marginalizadas. A luta de classes muda
conforme a atualidade, assim como a globalização.
Mas, o que ainda permanece, como evidencia o
poema Brechtiana (Poétnica, p. 31-32); do advogado,
compositor, escritor, poeta, contista, sambista,
pesquisador da cultura afro-brasileira e teatrólogo, Nei
Lopes, é a separação de faraós e pirâmides do contexto
africano, é a usurpação da cultura afro já que, os
africanos para muitos não são capazes de criar.
Desse modo, a questão não é, precisamente, coibir
alguém, arbitrariamente, e dizer o que um indivíduo
deve ou não fazer, mas explicar o contexto das ações
que ele promove, e o que isso reproduz. Todos devem
estar conscientes do que usam, do que ouvem e,
principalmente, do que reproduzem, pois, na verdade,
uma dessas coisas pode estar, justamente, acabando
com a cultura que produziu determinado produto e
reforçando ainda mais um processo descriminatório.
Primeiro,
Eles usurparam a matemática
A medicina, a arquitetura
A filosofia, a religiosidade, a arte
Dizendo tê-las criado
À sua imagem e semelhança.
Depois,
Eles separaram faraós e pirâmides
Do contexto africano –
Pois africanos não seriam capazes
De tanto inventiva e tanto avanço.
Não satisfeitos, disseram
Que nossos ancestrais tinham vindo de longe
De uma Ásia estranha
Para invadir a África
Desalojar os autóctones
Bosquímanos e hotentotes.
E escreveram a História a seu modo.
Chamando nações de “tribos”
Reis de “régulos”
Línguas de “dialetos”.
Aí,
Lançaram a culpa na escravidão
Na ambição das próprias vítimas
E debitaram o racismo
Na nossa pobre conta.
Então,
Reservaram para nós
Os lugares mais sórdidos
As ocupações mais degradantes
Os papéis mais sujos
E nos disseram:
– Riam! Dancem! Toquem!
Cantem! Corram! Joguem!
E nós rimos, dançamos, tocamos
Cantamos, corremos, jogamos.
Agora, chega!
LOPES, Nei. Poétnica. Rio de Janeiro: Mórula, 2014.
EDIÇÃO 27 | CURINGA
39
Travessia
Movimento
Como em um compasso de transição,
os processos explicam os fenômenos
da sociedade. Explicam como o externo
age para com as pessoas e, da mesma
forma, demonstram como agimos
influenciando o meio. Mostram como
tratamos informações e transformamos
o bruto em resultados. Tudo isso, movido
por um desejo da própria sociedade.
Vidas
decodificadas
Na internet, tudo o que você procura, curte, acessa, publica, compartilha,
cria e até mesmo o que é gerado por terceiros sobre você é armazenado.
A mineração de dados é uma realidade, mas também um risco invisível.
Texto de Hannah Carvalho, Isabela Rigatto e Larissa Chaves
Fotografias de Hannah Carvalho
Design de Hannah Carvalho
Nossos dados pessoais sempre foram atraentes
para o mercado. Afinal, com informações
precisas dos consumidores é possível criar
estratégias de vendas mais eficientes, além de pensar
em propagandas voltadas às características do cliente.
Atualmente, os brasileiros passam um total médio
de 9h e 29 min diários na internet em seja qual for o
dispositivo, bem acima da média global de 6h e 42 min,
segundo o relatório Digital in 2019, sobre consumo
de internet e redes sociais no mundo, elaborado pelas
empresas de marketing digital We Are Social (Reino
Unido) e pela Hootsuite (EUA).
Nas redes sociais, o Brasil ocupa o segundo lugar
em termos de horas gastas por dia: 3h e 34 min,
ficando apenas atrás das Filipinas, que consome 4h
e 12 min. Os internautas brasileiros têm, em média,
9,4 contas. Desses, 130 milhões estão no Facebook e
69 milhões no Instagram. A penetração da Internet
atingiu 70% do país, ultrapassando a média global de
57%. Mais de 149 milhões, dos quase 212 milhões de
habitantes, são usuários de internet.
A mesma pesquisa, aponta que até janeiro
de 2019, a quantidade de pessoas com acesso à
internet aumentou em 10 milhões, ou seja, uma
expansão de 7,2% em relação ao relatório de
2018. Não é à toa que grande parte das principais
plataformas como Facebook, Instagram, Twitter
são gratuitas, atraindo ainda mais internautas.
Esse crescimento expressivo do número de usuários
vem transformando o ambiente virtual em um
grande instrumento de coleta de dados e análise
invisível do nosso comportamento.
Segundo Jefrey Sobreira, Engenheiro da Computação
e Chief Technology Officer - CTO, (profissional responsável
por cuidar de todas as ações que dizem respeito à
infraestrutura tecnológica) da Capitual.com, essas
empresas perceberam que não conseguiram uma renda
efetiva com a cobrança de taxas para fazer login, posts e
comentários e encontraram na venda de anúncios uma
possibilidade de obtenção de lucro. Já que cobrar pelo uso
dessas ferramentas poderia acarretar a perda significativa
de seus usuários. Sobreira exemplifica esse cenário de
forma enfática: “se o serviço é gratuito, você é o produto”.
Em um mundo onde empresas ganham dinheiro com a
venda dos nossos dados, a partir do monitoramento não
só das nossas redes sociais, mas de praticamente tudo que
executamos em nossos celulares, tablets e computadores.
Google, Amazon, Twitter, Microsoft e Facebook
são exemplos de empresas detentoras dos dados
gerados via internet. Tarcízio Silva, cofundador do
Instituto Brasileiro de Pesquisa e Análise de Dados
(IBPAD), analisa o processo da plataformização da
web realizado por essas instituições. Enquanto
empresas como o Facebook possuem todos os
dados em seus ambientes e até grande quantidade
de informações de outras páginas da web, no qual
poucas têm acesso aos sistemas de autenticação
e login de milhões de outros sites. “É um tipo de
poder gigantesco e as principais empresas destes
segmentos mantém grupos de pesquisadores,
formados pelas melhores universidades do mundo,
para estudar o comportamento humano, criar
sistemas de incentivo ao acesso e até modulação do
comportamento”, explica Tarcízio.
EDIÇÃO 27 | CURINGA
43
Cultura Extrativista
Mineração de dados
Todos esses aplicativos usam a mineração de
dados a favor da geração de capital, ou seja, essas
empresas coletam o conteúdo que disponibilizamos
nas redes ao responder pesquisas, posts, curtidas
e criam um banco de informações. A partir disso,
cada internauta é interpretado com um tipo de
perfil comportamental. Por exemplo, se você digita o
nome de determinada loja na barra de pesquisas na
internet, vai passar a ver publicidades com segmentos
relacionados, que mais tenham a ver com seu perfil,
ou seja, anúncios dessa mesma empresa ou de outras
que sigam a mesma linha de produção, com valor
médio parecido e linha estética próxima. Segundo
Tarcízio, “isto significa uma capacidade ímpar e
inédita de previsão de desejos de consumo que pode,
sim, gerar problemas derivados do consumismo
como endividamento, ansiedade e alienação social”.
Todas as possibilidades do mundo digital fez com
que se criasse um universo de sedução em torno da
internet, capaz até mesmo de nos fazer esquecer dos
perigos da rede. De acordo com os pesquisadores
Giovanna Abreu e Marcos Nicolau, do Programa de Pós-
Graduação em Comunicação da Universidade Federal
da Paraíba, estamos nos submetendo, sem perceber,
a novas formas de servidão vinculadas à internet. “Ao
compartilharmos informações pessoais tão livremente,
sujeitamo-nos a uma forma de servidão digital na qual
os modernos barões dos dados são as empresas e os
governos que os detêm, extraindo as informações de
seus interesses”, explicam em sua pesquisa publicada na
revista Cultura Midiática do programa de pós-graduação
em Comunicação da Universidade Federal da Paraíba em
janeiro de 2017 no artigo “Big Data, advertising and the
scored consumer: the case of the series House of Cards” .
Nos tornamos tão vulneráveis que até mesmo as
informações que geramos sobre nós podem ser usadas
contra nós. A partir de uma consulta em sites que
tratam de proteção ao crédito e empréstimos, pode-se
sugerir que o usuário seja um potencial inadimplente.
Isso pode ser usado para negar a compra de
determinado bem só pelo fato de ter pesquisado, ou
seja, basta que você ligue o celular para que saibam
onde está e até mesmo o que pretende fazer.
Entender, então, como o processo de coleta das
informações que geramos no mundo virtual se dá a partir
da mineração de dados é de extrema importância. Uma
vez que essas informações podem nos ajudar a saber
como nos proteger e a cobrar mecanismos efetivos de
fiscalização que assegure nossos direitos. Vale ressaltar,
que nossos dados pessoais são resguardados por lei e
qualquer empresa que viole isso está sujeita a punição.
Como os dados são minerados
Você já deve ter se perguntado de que maneira o
computador faz todas as tarefas exatamente como
você pede. A resposta para esta pergunta é mais
simples do que parece: ele segue as instruções que
você passa. Mas para que ele consiga captar o que
você comunica, ele precisa de uma linguagem mais
específica. Para fazer esta interpretação entre homem
e máquina, foram desenvolvidas as linguagens de
programação. Estas linguagens utilizam uma lógica
para serem escritas e é aí que entram os algoritmos.
Um algoritmo é basicamente uma receita que mostra
passo a passo os procedimentos necessários para a
resolução de uma tarefa. Ele não responde a pergunta
“o que fazer?”, mas sim “como fazer?”. Em termos
mais técnicos, um algoritmo é uma sequência lógica,
finita e definida de instruções que devem ser seguidas
para resolver um problema ou executar uma tarefa. A
Doutoranda em Comunicação pela Universidade Federal
de Minas Gerais (UFMG), Amanda Chevtchouk Jurno,
com estudo sobre Facebook e algoritmos, comenta
sobre o processo de mineração de dados na rede social.
Ela garante que mesmo que haja a leitura do termo de
compromisso ao criar uma conta, os termos são muito
genéricos e pode não ficar claro ao usuário que os seus
dados estão sendo totalmente captados por aquele
sistema. Um exemplo da “consequência” disto, é que
as curtidas, comentários, em páginas e posts nesta
plataforma, geram informações para que outros dados
surjam, como anúncios de produtos e serviços dispostos
pela tela em meio às publicações, por exemplo.
Durante o processo de mineração de dados, diversas
técnicas devem ser testadas e combinadas a fim de
que comparações possam ser feitas e, então, a melhor
técnica (ou combinação de técnicas) seja utilizada. O
método chamado Regra das Associações (Association
Rules) é um exemplo. Ele consiste basicamente em
identificar a relação dos itens mais frequentes em um
determinado conjunto de informações, permitindo
obter resultados como: se um indivíduo se interessa
pela compra de leite e pão, ele também se interessaria
44
em comprar manteiga. A mineração de dados abrange,
assim, a seleção dos métodos a serem utilizados para
detectar padrões nos dados a partir de cada pessoa.
Parte desse processo está na busca por indicadores de
interesse em uma forma particular de representação,
juntamente com a procura pelo melhor ajuste dos
parâmetros de um algoritmo para realizar uma tarefa.
“O Google consegue rastrear todo o seu trajeto, todo
o seu percurso quando você passa por algum lugar, sua
frequência de visitas a um lugar ou outro, a partir do
seu GPS. Você não necessariamente está conectado
na plataforma, mas ele continua salvando suas
informações”, afirma a pesquisadora Amanda.
Para que se possa usar os dados é preciso avaliá-los, e,
apesar do processo de extração remeter a algo automático,
ele não acontece somente por meio de máquinas. Ainda
que sejam encontradas diversas ferramentas que nos
auxiliam na execução dos algoritmos de mineração, os
resultados precisam de uma análise humana.
Empresas de multimídia e telecomunicações podem
usar modelos analíticos para dar sentido a milhões
de dados de clientes, prever seus comportamentos e
oferecer campanhas altamente segmentadas e relevantes.
Algoritmos automatizados ajudam os bancos a
entenderem sua base de clientes, bem como as bilhões de
transações no coração do sistema financeiro. A mineração
de dados auxilia as empresas do setor a alcançarem uma
visão melhor dos riscos de mercado, detectar fraudes
rapidamente, gerenciar obrigações de conformidade
normativa e obter retornos ideais sobre seus investimentos
de marketing. Possibilitando, que os especialistas da área
da tecnologia concentrem seus esforços apenas em partes
mais expressivas dos dados coletados.
O livro “Cultura Digital, internet e apropriações
políticas: experiências, desafios e horizontes”,
organizado por João Paulo Mehl e Sivaldo Pereira da
Silva em 2017, conta com estudos que explicam a
digitalização da informação e a dataficação (tornar
um negócio já existente em um “negócio de dados”)
dos processos de comunicação se tornaram hoje parte
inevitável da cultura contemporânea. Segundo afirma
Sivaldo Pereira, no segundo capítulo da obra, “os
indivíduos se transformaram, na prática, em produtores
diários de inputs que alimentam diversos sistemas de
captação de informação, ainda que nem sempre se
deem conta disso”. Os algoritmos nos ajudam, além
de encontrar informações, a estabelecer conexões
Rastros Digitais
Os anúncios são exibidos com base
nas buscas que realizamos na internet.
EDIÇÃO 27 | CURINGA
45
Cultura Extrativista
Mineração de dados
É necessário questionar e implantar
leis e projetos que garantam o sigilo
da informação e o direito da posse e
armazenamento de dados pessoais.
entre pessoas e das pessoas com artefatos culturais; e
fornecem significados que influenciam a forma como
entendemos e conhecemos o mundo.
Diversos instrumentos foram desenvolvidos no
intuito de tornar a aplicação da mineração de dados
uma tarefa menos técnica e, com isso, possibilitar que
profissionais de outras áreas possam fazer uso dela.
Um grande exemplo, é o Google Analytics, ferramenta
capaz de analisar como o usuário se comporta no
site de uma empresa, quanto tempo ele permanece
naquela página, em que abas clica.
O Analytics também monitora outros ambientes
virtuais e disponibiliza praticamente tudo o que
as pessoas conectadas acessam, as páginas mais
procuradas, conversões, dispositivos, a localização dos
usuários, faixa etária, e muitos outros dados.
Se o serviço é gratuito, você é o produto.
“ ”
Jefrey Sobreira
Ao mesmo tempo em que esses tipos de ferramentas
trazem benefícios para grandes empresas e pequenos
empreendedores que passaram a conseguir mensurar
seu público alvo, nós consumidores perdemos nossa
privacidade e nos tornamos alvo da aplicação de todas
essas técnicas com intuito de induzir ao consumismo.
Segurança cibernética e direitos digitais
Diante da quantidade de informações que
colocamos na internet, as autoridades tiveram que
criar leis contra crimes cibernéticos que ocorrem por
meio da mineração de dados. A partir da visão do
consumidor sobre a captação de dados pessoais, é
compreensível pensar que este perde a privacidade.
Nesse caso, é necessário questionar e implantar leis
e projetos que garantam o sigilo da informação e o
direito da posse e armazenamento de dados pessoais
para, assim, proteger os usuários da exploração e do
constrangimento no ambiente digital.
Duas regulamentações importantes sobre crimes
digitais foram sancionadas em maio e novembro de
2012, respectivamente, no Brasil. A primeira é a Lei dos
Crimes Cibernéticos (Lei n° 12.737/2012), conhecida
como Lei Carolina Dieckmann, que qualifica crimes de
hackeamento e invasão de outros desktops, roubos de
senhas e de dados, e a violação destes para divulgação
de informações, tais como fotos, vídeos e mensagens
pessoais. A pena para esses crimes é de três meses a
cinco anos, dependendo do delito cometido. O Projeto
de Lei (PL) já estava proposto antes do crime que
divulgou cerca de 36 fotos íntimas e conversas privadas
da atriz copiadas do seu e-mail pessoal. O hacker exigiu
cerca de 10 mil reais para que nada fosse publicado e
Carolina o denunciou à polícia. A pressão da mídia e a
influência da atriz fez com que a Lei fosse sancionada
no governo da ex-presidenta Dilma Rousseff.
A segunda é a Lei n° 12.735/2012, que modifica
o Código Penal para criminalizar atos realizados
em sistemas digitais e eletrônicos praticados contra
sistemas informatizados. Ela torna crime a clonagem
de dados de cartão de crédito ou débito e determina
que os órgãos da Polícia Judiciária criem uma
Delegacia especializada para crimes digitais. Relatada
pelo deputado Eduardo Azeredo, do Partido da Social
Democracia Brasileira (PSDB), a Lei ficou conhecida
como Lei Azeredo, sendo oriunda do PL da Câmara dos
Deputados de nº 84, de 1999. Ela visava incluir diversas
tipificações de crimes no Código Penal que não foram
aprovadas antes, ficando em tramitação por cerca de
treze anos até a sanção presidencial.
O professor do curso de Direito da Universidade
Federal de Ouro Preto (Ufop) e coordenador do
Núcleo de Estudos do Direito do Consumidor, Felipe
Comarela Milanez, relata quais as medidas cabíveis
no caso de clonagem de cartão de crédito ou débito.
“É fundamental que o consumidor adote medidas
de prevenção, como o cancelamento do cartão. Caso
a divulgação de dados pessoais resulte em alguma
lesão à honra e/ou imagem do consumidor, ou ainda
em danos de natureza patrimonial, poderá entrar com
ações judiciais contra os administradores do banco
de dados que deveriam resguardar as condições de
segurança e sigilo dos dados pessoais coletados”,
explica. Ainda segundo ele, além dessas medidas, o
consumidor poderá buscar o Ministério Público para
que, sendo o caso, apure a ocorrência de eventuais
ilícitos de natureza civil e criminal.
Há também a Lei do Marco Civil (Lei n° 12.965/2014)
da Internet, proposta em 2011, que regula os direitos e
deveres dos internautas protegendo os dados pessoais e
a privacidade do usuário. Diferente do que pensam, o
Marco Civil não tem o objetivo de controlar a internet
46
e o modo como a utilizam e sim o de definir princípios,
garantias, direitos e deveres para os internautas
brasileiros. A Lei, que foi sancionada em 23 de abril
de 2014, no governo Dilma Rousseff, busca reforçar o
direito à privacidade e à liberdade de expressão, que já
é garantida para o cidadão pela Constituição Federal
e inclui, segundo o Art. 7, o acesso à internet como
“essencial ao exercício da cidadania”.
O Marco Civil distingue as empresas provedoras de
dados em duas: as que geram conexão a internet, por
exemplo as companhias de telecomunicações; e as de
acesso à internet, tais como as redes sociais, o Google,
entre outros sites. Os dois tipos de provedores “não serão
responsabilizados civilmente por danos decorrentes
de conteúdos gerado por terceiros”, com exceção do
provedor de acesso a internet, que será responsabilizado
caso não tire o conteúdo do ar após a ordem judicial, de
acordo com o Art. 14 da Constituição Federal. O Marco
Civil consegue, assim, promover a retirada de conteúdos
do ar mediante ordem judicial solicitada pela vítima de
crime cibernético, com exceção de fotos íntimas vazadas,
em que a retirada pode ser solicitada ao próprio site ou
domínio em que estão hospedadas.
Segundo Felipe Comarela os principais direitos dos
usuários em relação a proteção dos dados na internet
são: inviolabilidade da intimidade e da vida privada,
sua proteção e indenização pelo dano material ou
moral decorrente de sua violação; inviolabilidade e
sigilo do fluxo de suas comunicações pela internet;
inviolabilidade e sigilo de suas comunicações privadas
armazenadas; exclusão definitiva dos dados pessoais
que tiver fornecido a determinada aplicação de
internet, a seu requerimento; aplicação das normas
de proteção e defesa do consumidor nas relações de
consumo realizadas na internet.
A Lei n° 13.709, de 14 de agosto de 2018, promove
mudanças significativas em relação a proteção de
dados pessoais a partir do Marco Civil da Internet.
A Lei, que foi aprovada, em seu Art. 1º, dispõe
sobre “o tratamento de dados pessoais, inclusive
nos meios digitais, por pessoa natural ou por
pessoa jurídica de direito público ou privado, com
o objetivo de proteger os direitos fundamentais de
liberdade e de privacidade e o livre desenvolvimento
da personalidade da pessoa natural”. Contudo,
Felipe Comarela conta que a nova regra só entra em
vigor a partir de 14 de fevereiro de 2020 para que as
empresas tenham tempo suficiente (18 meses) para
se adaptar às novas regras estabelecidas.
O público infantil em frente às telas
A percepção de que a internet é o lugar onde cada
movimento pode ser rastreado, reforça o cuidado
necessário em relação às crianças e adolescentes que
a utilizam. O perigo da exploração sexual infantil por
meio da web é assunto desde que as redes sociais se
popularizaram, sendo comum ver matérias alertando
sobre os riscos de permitir os menores de participarem
de bate-papos online, ou marcarem encontros com
desconhecidos. Este tipo de ameaça ainda existe, até
porque nunca foi tão fácil ser monitorado.
Hoje, um fator que pode ser observado com
facilidade em relação às crianças que utilizam a
internet é a vulnerabilidade que elas se encontram
diante dos anúncios de publicidade. Os canais do
YouTube voltados para o público infantil somam
milhões de acessos. Nesta plataforma, propagandas
aparecem no início da maioria dos vídeos, e às
vezes, durante, quando o próprio apresentador ou
apresentadora faz a divulgação da marca/produto.
No Brasil, os irmãos Felipe e Luccas Neto têm em
seus canais conteúdos voltados para crianças, onde
acumulam mais de 50 milhões de seguidores, sendo
o segundo e o terceiro maiores youtubers do país.
Com o sucesso e a influência sobre este público, os
irmãos conseguem lucrar com a venda de produtos
da marca própria e também de outras marcas. A
rede Neto´s de coxinha, criada por Felipe e Lucas,
tem quiosques franqueados em vários shoppings
do Rio de Janeiro. A busca pela linha infantil do
Botafogo cresceu 500% após dois dias de uma ação
dos Neto, que investem em patrocínio para o time.
O sucesso dos influenciadores digitais não significa
a ausência de desaprovação. Os nomes da dupla já
geraram críticas de educadores e foram alvos de processo
judicial. Em 2018, os irmãos Neto foram advertidos
pelo Conselho Nacional de Autorregulamentação
Publicitária (Conar) por fazer publicidade velada,
que é quando se faz propaganda sem aviso prévio ao
público. No mesmo ano, os vídeos de Lucas comendo
guloseimas em volumes exagerados, como na ocasião
em que encheu uma banheira com chocolate, foram
tidos como influência a uma alimentação prejudicial
EDIÇÃO 27 | CURINGA
47
Cultura Extrativista
Mineração de dados
à saúde infantil. Após as polêmicas, Felipe afirmou à
imprensa ter contratado uma equipe de pedagogos e
apagou diversos vídeos nos quais ele disse que incluíam
palavrões ou conteúdos inapropriados.
Sobre as estratégias que as empresas utilizam na
web para segurar o público infantil, a professora da
Ufop e pesquisadora de estudos de gênero e infância,
Karina Gomes Barbosa, explica que elas trabalham
intensamente com algoritmos, por meio de vídeos
sugeridos e produtos relacionados. A estratégia
seria criar redes de consumo interminável, onde
quando um produto “termina” sempre tem outro a
consumir. A docente diz que algumas plataformas
criam “primeiras páginas”, ou “homes” planejadas
e de fácil navegação para fidelizar as crianças. Essas
“recomendações” são geradas a partir da observação e
estudo dos hábitos de consumo deste público. Assim,
quanto mais se consome, mais dados são gerados.
Além disso, Karina aponta que companhias como a
Netflix (serviço que conta com um catálogo de milhares
de filmes e séries de TV que podem ser acessados
através de várias plataformas, como notebooks, tablets
e smartphones) têm uma estratégia de estreias que é
invasiva para as crianças: seus lançamentos, como, por
exemplo, a série animada “Super Monstros”, de 2018,
aparece inúmeras vezes nas telas dos perfis “kids” da
plataforma. Desta maneira, fica quase inevitável assistir
ao que a empresa propõe, visto que muitos produtos estão
escondidos e outros são ostensivamente divulgados.
A professora afirma que essas empresas não vendem
apenas produtos audiovisuais, mas também publicidade.
“Assim, ao entrarem nesses relacionamentos com essas
companhias, as crianças já crescem com hábitos de
consumo, gostos, preferências, dados pessoais (como
nome e aniversário) e local de residência completamente
mapeados. As companhias estão aptas a oferecerem
produtos selecionados para cada perfil de consumo
cada vez mais cedo, e uma variada gama deles, visto que
os dados coletados são muito amplos”, declara. Além
disso, Karina lembra que estas empresas estão aptas,
também, a oferecerem esses dados a terceiros, como já
é feito com dados de usuários adultos.
O professor Felipe Comarela, que estuda consumo,
vulnerabilidade e desenvolvimento econômico, fala das
leis de proteção à criança e ao adolescente que podem
ser aplicadas em caso de publicidade abusiva. Ele cita,
além do tratamento certificado pelo Código de Defesa
do Consumidor, a Resolução nº 163, de 13 de março de
2014, do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e
do Adolescente (CONANDA), que considera abusiva
a prática do direcionamento de publicidade e de
comunicação mercadológica à criança, com a intenção
de induzi-la ao consumo de qualquer produto ou serviço
e utilizando-se, dentre outros, dos seguintes aspectos:
“linguagem infantil, efeitos especiais e excesso de cores;
trilhas sonoras de músicas infantis ou cantadas por
vozes de criança; representação de criança; pessoas ou
celebridades com apelo ao público infantil; personagens
ou apresentadores infantis; desenho animado ou
de animação; bonecos ou similares; promoção com
distribuição de prêmios ou de brindes colecionáveis
ou com apelos ao público infantil; e a promoção com
competições ou jogos com apelo ao público infantil”.
Felipe Comarela reforça ainda, que a violação desta
norma pode ocasionar a instauração de inquérito pelo
Ministério Público e resultar, sendo o caso, em ações
judiciais destinadas à empresas e imposição de penalidades
pelo descumprimento das normas de proteção da criança
contra práticas de persuasão para o consumo.
Karina dá dicas para que os responsáveis consigam
manter os menores mais protegidos ao usarem as redes.
“O primeiro conselho é sempre monitorar diretamente os
conteúdos, as regras de privacidade, quais dados a criança
ou adolescente está cedendo, e decidir como família se
aquilo será ou não cedido. Isso não é fácil, requer tempo
e literacia de mídia por parte dos cuidadores. Além disso,
os cuidadores precisam conversar com as crianças sobre
privacidade e consentimento. Consentimento também
tem a ver com o que eu consinto entregar de minha
subjetividade a essas companhias”.
As alternativas de navegação mais seguras, antivírus
potentes, podem auxiliar na proteção dos dados do
público infantil. A pesquisadora Karina argumenta
que decisões como a idade certa para um perfil em
redes sociais; a idade para um celular próprio; quando
permitir a TV ou computador no quarto; monitorar
publicações em redes sociais; são indispensáveis. Ela
enfatiza que, quando essas crianças crescerem, já
haverá um enorme rastro digital delas deixado por
adultos, dos quais elas não tiveram nenhum poder
de decisão. “Essa responsabilidade é nossa, como
cuidadores. O que queremos que as companhias
saibam a respeito de nossas crianças?”, indaga.
48
Publicidade Infantil
A tecnologia deixa as crianças mais
expostas a situações de consumo.
EDIÇÃO 27 | CURINGA
49
Raízes no
Extrativismo
Do extrativismo colonialista ao capitalismo moderno, a exploração globalizada de matéria-prima
fácil segue gerando novos tipos de superdependência econômica, sobretudo em países
onde os recursos naturais são abundantes e a mão de obra é barata.
Texto de Samuel Senra Campos
Fotografias de Clara Lemos
Design de Ana Clara Delella
O
sociólogo polonês Zygmunt Bauman já abordava
em sua obra “Globalização, as consequências
humanas”, de 1999, o conceito de “proprietários
ausentes” para tratar dos efeitos da globalização e
do capitalismo moderno. Não é surpresa que muitas
empresas se movem para onde encontram e recebem
melhores condições e oportunidades, sem compromisso
socioeconômico com as comunidades que as recebem, a
não ser pelo que estiver previsto em legislação.
O Doutor em História Cultural pela Universidade
Estadual de Campinas (Unicamp) e professor da
Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop), Luiz
Estevam Fernandes, comenta o caso da “cidade” de
Fordlândia, situada no Pará (PA). Atualmente um
distrito, ela foi fundada em 1928 por Henry Ford
mediante concessão do Estado para a exploração e
posteriormente o plantio de seringueiras, que serviam
para a fabricação de pneus automotivos. Só que sua
execução equivocada fez com que as árvores nascessem
muito próximas entre si, o que causou a proliferação
de pragas. Essa atividade também foi levada para a
Ásia, onde eram plantadas em modo cartesiano, com
uma seringueira espaçadamente ao lado da outra,
rendendo maior produtividade.
Mesmo com um sistema de tratamento de
água, escolas, hospitais, aproximadamente setenta
quilômetros de estrada ao redor, estação de rádio,
telefonia, escritórios, galpões e mais de duas
mil casas para os trabalhadores seringueiros,
isso na década de 1930, o fato de dependerem da
monocultura tornou a economia da região suscetível
a abalos diante de novos concorrentes, tecnologias e
processos. Nos anos seguintes, o látex foi substituído
por derivados do petróleo na constituição da
borracha para o pneu do automóvel, tornando a
extração e plantio da seringueira em Fordlândia
inviáveis economicamente.
A Ford retira oficialmente suas atividades da cidade
no ano de 1945. Em acordo com o Governo Federal
Brasileiro, a empresa recebeu o pagamento de US$250
mil pela compra da estrutura deixada na região. O
distrito ainda existe com cerca de dois mil habitantes,
correspondente a um terço da população no auge da
produção da borracha, e faz parte do município de Aveiro.
Sua economia é baseada na agricultura, entretanto
as investidas para um futuro promissor ficaram nas
estruturas abandonadas de sua indústria manufatureira.
EDIÇÃO 27 | CURINGA
51
Cultura Extrativista
Superdependência
Mina de Passagem
Localizada na cidade de
Mariana, a extração ocorreu
do séc. VXIII até 1954, onde
foram retiradas mais de 35
toneladas de ouro.
O Berço Colonialista
O professor Luiz Estevam estima que durante o
período colonial europeu, somente no século XVIII,
cerca de seiscentos mil portugueses vieram para
o Brasil à procura de ouro, sem contar o número de
africanos trazidos à força. Eles iriam encontrar esse
metal precioso em abundância no território onde hoje
está localizado o estado de Minas Gerais. Fernandes
afirma que, entre os séculos XVII e XIX, os exploradores
extraíram algo em torno de seis mil toneladas do metal,
só em São Paulo. Isso foi mais do que a quantidade
retirada na região de Mato Grosso no mesmo período,
e metade do que foi na de Goiás, mas nada comparado
ao encontrado em solo mineiro.
O Doutor em Gerenciamento Ambiental pela University
of Wales, no País de Gales, e professor do curso de Engenharia
de Minas da Ufop, Hernani Mota de Lima, aponta que
durante cinquenta anos de exploração extrativista nessa
região foi encontrado mais ouro do que em duzentos anos
de exploração colonial nas Américas. A descoberta desse
recurso natural no Estado mudaria a economia portuguesa
de maneira geral, como também transformou e constituiu
a hoje conhecida Região dos Inconfidentes, localizada na
zona central de Minas Gerais.
O grande boom econômico dessa extração elevou Ouro
Preto, antiga Vila Rica, ao posto de uma das cidades mais
economicamente poderosas do mundo naquele período.
Em passagem pelo campus da Ufop em Mariana, Minas
Gerais, onde ministrou uma palestra sobre os 500 anos da
Reforma Protestante, no Instituto de Ciências Humanas
e Sociais (ICHS), em 2017, o Doutor em História Social e
professor da Unicamp, Leandro Karnal, comentou sobre o
fato de ter sido Ouro Preto, e não Nova York, nos Estados
Unidos, a grande metrópole das Américas no século XVIII,
assim como um século atrás havia sido Potosí, na Bolívia.
Ainda que tenham levado incontáveis toneladas desse
metal precioso, os colonizadores puderam propiciar a criação
de um patrimônio histórico e cultural nessas cidades, o que
foi o caso da construção de igrejas barrocas, por exemplo.
Fernandes ilustra que Mariana foi a primeira cidade planejada
pelos portugueses nas Américas, no século XVIII. Riquíssima,
era cheia de igrejas, ruas calçadas, uma série de coisas. Ouro
Preto recebeu, no ano de 1876, por iniciativa de Dom Pedro
II, a criação de uma Escola de Ensino Superior – a Escola
de Minas de Ouro Preto –, que originaria posteriormente a
Universidade Federal de Ouro Preto, em 1969.
Essas transformações na região só aconteceram
porque naquele período era inviável que os
exploradores regressassem com frequência às suas
terras natais. A cada vez que uma pessoa entrava
em um barco no século XVI, por exemplo, a chance
que ela tinha de morrer era de 50%, argumenta
Luiz Estevam. Então ao virem explorar a terra,
tornava-se natural que fizessem riquezas e que aqui
permanecessem. O professor Hernani Lima comenta
que naquele tempo o mineiro queria ficar perto da
mina dele. “Nós temos uma relação muito próxima
com as minas”, afirma. Hebe Rôla, marianense e
também professora emérita do curso de Letras da
Ufop, ilustra que esse vínculo com a mineração
perdura até no nome dos que nascem no Estado, pois
são denominados “mineiros”.
Uma viagem de Portugal ao Brasil hoje, com
distâncias superiores a mais de sete mil quilômetros,
pode demorar menos de 10 horas, viajando-se
confortavelmente sobre o oceano Atlântico. Com o
encurtamento da distância, essa lógica e sentimento de
identidade compulsório com a terra não permaneceram
exatamente os mesmos. Hoje um engenheiro vem ao
Brasil, fica até a implementação de uma plataforma de
petróleo ou de uma mina e rapidamente é mandado
para Mumbai ou para a África. As pessoas circulam o
mundo, não havendo mais a ideia de permanência
ou pertencimento imutável, elucida o professor de
História Luiz Estevam.
52
11 de Setembro
Henecto et essimin ctecaeped
que nonsequatur? Ratiorero est
quis sus, te coruUdi cus debis
res est mo blam
É tudo sobre o petróleo
A atual situação econômica e política da
Venezuela tem características colonialistas,
assentadas muitos séculos atrás, de modo similar
à história do Brasil e outros países da América.
A venezuelana Livia Vargas González, professora
da Universidade Central da Venezuela (UCV) e
estudante da pós-graduação da Ufop, com pesquisa
sobre a História da Venezuela no século XX,
argumenta que as atividades extrativistas também
estiveram presentes na caracterização de sua
terra natal já no período colonial. Ela conta que a
região, conhecida popularmente por Eldorado, era
explorada pela existência de pérolas, ouro e prata.
O petróleo foi “descoberto” em 1914, porém os
indígenas já o conheciam como “mene”.
É durante o governo do primeiro ditador
venezuelano, Juan Vicente Gómez, entre os anos 1908
a 1935, que se tem início a política de exploração desse
combustível fóssil no país. Entre as décadas de 1910 a
1930, empresas estadunidenses começaram a explorar
o petróleo na região. A economia venezuelana, que
era dedicada fundamentalmente ao plantio de café,
de cacau e de açúcar, assistiu ao declive desses
mercados em paralelo à ascensão petrolífera. Assim,
desde então, a economia da Venezuela naturalmente
se concentrou nessa prática extrativista, por meio da
exploração das petroleiras no país.
González elucida que o petróleo gera muita renda,
sem necessariamente criar retorno em outros
segmentos da economia. É muito dinheiro em caixa
com pouco investimento e diversificação. Como
exemplo disso, toda a política de transporte público na
Venezuela passou a ser pensada a partir do petróleo.
Sistemas de ferrovias existentes no país foram
abandonados, como também os projetos ferroviários
que faziam o transporte dos produtos agrícolas. Cada
vez mais foram nutridos estímulos para a indústria
petrolífera, como a maior utilização de carros
movidos a gasolina, pneus e todos os produtos com
derivados desse recurso mineral.
As políticas para a tentativa de nacionalização do
petróleo, explorado majoritariamente por empresas
dos EUA, tiveram início em governos da segunda
metade do século XX. O processo se deu com base num
antigo decreto de Simón Bolívar, revolucionário na luta
pela independência de países da América Latina, que
reivindicou à nação venezuelana, no século XIX, a posse
de tudo aquilo que estivesse em seu subsolo. A partir
de 1974, no governo de Carlos Andrés Pérez, do Partido
Social Democrata Venezuelano, Acción Democrática (AD),
houve um processo de nacionalização do petróleo, o que
possibilitou um boom econômico no país.
Após esse período, toda a renda da extração petrolífera
pertencia ao Estado, gerando uma ilusão de bem-estar
social muito grande, ainda que se tenha introduzido
investimentos na educação, na saúde e principalmente
EDIÇÃO 27 | CURINGA
53
Cultura Extrativista
Superdependência
VENEZUELA
Entenda as consequências da dependência da
importação de produtos primários e secundários.
Em setembro de 2018, mais de
330 mil
pessoas estavam em risco
devido a falta de medicamentos
Cerca de 80 mil pessoas
com HIV, 32 mil com
câncer ou precisando de
diálise e 4 milhões com
diabetes e hipertensão não
receberam tratamento.
As importações de alimentos
caíram para apenas
2,46 bilhões
de dólares em 2018. Em 2013
eram 11,2 bilhões.
Devido à desnutrição,
cerca de 22% das
crianças menores de
cinco anos não cresceram
nem desenvolveram seus
organismos normalmente.
De acordo com a Pesquisa
Nacional sobre condições
de vida, houve aumento
de 31% na mortalidade
geral de 2017 a 2018,
correspondendo a mais de
40 mil mortes.
Fontes: CodeVida Venezuela (2019);
Federação Médica Venezuelana (2018);
Pesquisa Nacional sobre condições de vida
(2019); Relatório Anual da ONU (2019).
no combate às desigualdades sociais. Sem um plano
para a diversificação econômica, esse crescimento não se
tornou sustentável, já que o valor desse recurso natural no
mercado é bastante oscilante.
O Doutor em Desenvolvimento Econômico
pela Unicamp e professor de Economia da Ufop,
André Mourthé de Oliveira, afirma que é possível
existir diversificação dentro de um mesmo setor,
desde que a cadeia produtiva esteja integrada,
como, por exemplo, o petróleo às suas cadeias
petroquímicas. Ele explica que o preço da matériaprima
bruta é de natureza flutuante, porém os
produtos derivados dela são muito mais estáveis.
Assim, o investimento em tecnologia, como forma
de sofisticar a cadeia produtiva, torna-se fator
essencial para que as consequências negativas
dessa superdependência sejam atenuadas.
Outra variável relacionada à histórica instabilidade
econômica da Venezuela são os acordos internacionais
firmados, acondicionando a economia do país nessa
prática extrativista. Os Estados Unidos manteriam
acordos econômicos essenciais com os venezuelanos,
desde que o país dedicasse toda a sua capacidade
industrial à extração petrolífera. Isso resultou
basicamente em retirar o petróleo bruto do subsolo
com destinação à exportação, quase sem refino. Em
troca desse assujeitamento, a Venezuela gozaria de
certa estabilidade econômica e social, sem precisar
se preocupar com alternativas para sua economia.
Durante as várias turbulências enfrentadas pela
economia da Venezuela a partir dos anos 1980 e 90, em
razão de oscilações negativas no preço desse recurso
mineral no mundo, empresas estadunidenses desse
segmento se empenharam diante de seus interesses
para a realização de um processo de privatizações no
país, rejeitado por Hugo Chávez, presidente em exercício
a partir de 1999, pelo Partido Socialista Unido da
Venezuela (PSUV), o que também se caracterizou como
uma disputa econômica e política por petróleo.
Fato é que a economia do país passou a importar
todo tipo de produto para o consumo diário da
população. “Ah! Tem petróleo! Tem dólar! Então vamos
comprar arroz quando a Venezuela produzia arroz.
Vamos comprar açúcar, quando a Venezuela produzia
açúcar. Vamos comprar farinha de milho branco, que
é fundamental para a nossa ‘alimentação’, e agora a
gente compra farinha de milho amarela, que é a que
chega dos brasileiros, mas que não tem nada a ver”,
exemplifica Livia González ao abordar o processo
de substituição da produção agrícola no país pela
produção unicamente concentrada em petróleo.
Assim como em anos anteriores, o petróleo
bruto correspondeu a mais de 80% das exportações
venezuelanas em 2017, segundo índice do Observatory
of Economic Complexity (OEC). Esse processo de
desindustrialização em outras áreas da economia,
evidentemente, colaborou para o aprofundamento da
crise, possibilitada por sanções políticas dos EUA, que
54
proibiram empresas estadunidenses de negociar com a
Petróleos de Venezuela (PDVSA) – estatal venezuelana
fundada no ano de 1976 como parte do projeto de
nacionalização de seu petróleo. Esses embargos congelaram
ativos da estatal nos Estados Unidos, o que afetou o acesso
do governo venezuelano a recursos que tornam possível
o abastecimento de itens básicos para consumo no país.
Por não possuir indústrias suficientes nos segmentos de
alimentos e remédios, a Venezuela tem de importar todos
eles. Os embargos também afetaram a importação de
produtos químicos que transformam o petróleo pesado
em uma concentração mais leve para ser transportado nos
oleodutos da estatal venezuelana.
“
Infelizmente, tem uma recolonização do
nosso país. Porque, com o extrativismo,
perdeu-se muito da sua soberania.
Recentemente, através do decreto nº 2.248,
promulgado no dia 24 de fevereiro de 2016, centenas de
empresas de vários países receberam autorização para
explorar recursos minerais numa região denominada
Arco Mineiro do Orinoco (AMO), correspondente a 12%
do território venezuelano. Por terem essas garantias
extraconstitucionais, as empresas multinacionais
exploradoras não precisam cumprir as leis da constituição
da Venezuela. São empresas estrangeiras possuidoras de
capital frente a um Estado venezuelano cujos recursos
estão bloqueados. “Por não ter normativa laboral, eles
impõem tudo!”, explica González em tom de denúncia.
“É uma exploração que está destruindo nossas reservas
de água, e isso tudo está acontecendo agora. Tem o
genocídio das populações indígenas, que estão sendo
afastadas das suas terras. É tudo isso, essa é a política
para resolver a nossa crise hoje! Não há aprofundamento
mais. Então, infelizmente, tem uma recolonização
do nosso país. Porque, com o extrativismo, perdeu-se
muito da sua soberania”, completa.
Comunidade do minério
Lívia Gonzáles
Assim como o petróleo, o valor do minério de ferro
é atrelado à questões geopolíticas internacionais. A
lógica de negócios do mercado financeiro está, desde
a década de 1980, cada vez mais rápida e instantânea.
Negociações bilionárias são realizadas todos os dias entre
”
investidores de todas as partes do planeta, em transações que
só se tornaram possíveis devido aos avanços tecnológicos. É
nesse universo que os recursos naturais são comercializados,
através de um sistema de commodities.
A commodity é basicamente uma grande quantidade
definida (normalmente a tonelada) de uma matéria-prima
essencial, podendo ser o petróleo (barril), grãos ou minério,
entre outros produtos manufaturados, com baixo nível de
industrialização, produzida em larga escala e sem tantas
distinções entre marcas. Podendo também ser negociada
no mercado financeiro, sem que se tenha produzido ou
de fato adquirido esses produtos fisicamente. O valor das
commodities é regulado por uma relação de oferta e demanda
internacionais, sobretudo influenciado por questões
geopolíticas, associadas a acordos entre governos e às
negociações nas bolsas de valores.
A tonelada do minério de ferro, por exemplo, chegou
a ser comercializada no mercado acima de US$180 em
2011. Pelo excesso de oferta e também pela aposta de que a
demanda chinesa por esse recurso diminuiria, essa mesma
tonelada passou a ser vendida abaixo de US$50 em 2015,
valor aproximadamente três vezes menor em quatro anos,
segundo índice divulgado pela agência Reuters. Em palestra
realizada no Instituto Federal de Minas Gerais (IFMG),
no campus de Ouro Preto, em que foi abordada a atual
conjuntura econômica mundial, o escritor e educador Emílio
Gennari explicou o crescimento da China, que nas últimas
três décadas alcançou uma média de 10% do seu PIB e
que agora entrou num processo de desaceleração natural
de sua economia, com crescimento anual na casa de 6,5%,
respeitando a premissa de que um crescimento daquela
magnitude não duraria para sempre.
Muitos são os motivos para essa desaceleração, causada
também por uma mudança estratégica do governo chinês
com propósito de fomentar o consumo em seu mercado
interno. Outro fator para essa decisão foi a consciência de
que o êxodo rural chinês para os grandes centros urbanos e
industriais talvez não supra a necessidade de mão de obra
no futuro. De qualquer modo, para a economia mundial,
é preferível que o recuo do gigante chinês seja lento e
gradual ao invés de uma ruptura ou colapso econômico, o
que causaria danos profundos também em seus parceiros
comerciais, principalmente o Brasil.
Devido a essas questões geopolíticas, que impulsionaram
a variação negativa no preço do minério de ferro no mundo,
cidades como Mariana tiveram sua economia e arrecadação
tributária afetadas. Como foi o caso da Compensação
Financeira pela Exploração de Recursos Minerais (CFEM)
EDIÇÃO 27 | CURINGA
55
Cultura Extrativista
Superdependência
No caso de Mariana, principalmente após
o rompimento da barragem de Fundão
em 2015, o movimento do comércio da
cidade também foi afetado.
destinada ao município marianense. Os valores arrecadados
na cidade passaram de R$ 89,6 milhões em 2013 para
R$ 23,5 milhões em 2016, índice três vezes abaixo, de
acordo com a Prefeitura. Com o advento da lei Federal
nº 13.540 de 2017, que alterou as alíquotas de incidência
para recolhimento da CFEM de 2% do resultado líquido
da exploração minerária para 3,5% do faturamento bruto,
foram recolhidos R$ 61,8 milhões em 2018, quantia ainda
inferior ao alcançado cinco anos atrás.
A CFEM é uma espécie de tributo pago por empresas
mineradoras à União, sendo os valores arrecadados
incidentes do lucro econômico obtido por essa extração
mineral. Esses valores são parcialmente repassados como
contraprestação aos municípios onde ocorrem a exploração
e extração desse minério. O repasse está regulamentado
no decreto nº 01/1991, previsto na Constituição Federal de
1988, nas leis nº 7.990/1989 e 8001/1990. Sua aplicabilidade
auxilia em despesas como educação, saúde, assistencialismo
social e segurança, conforme explica o Assessor Técnico em
Planejamento e Execução Orçamentária da Prefeitura de
Mariana, Anderson Stoppa.
No caso de Mariana, principalmente após o rompimento
da barragem de Fundão em 2015, o movimento do
comércio da cidade também foi afetado. Como uma espécie
de dependência da dependência, o sujeito reconhecido
como empregado de uma dessas empresas mineradoras,
que precisa do salário mensal pago a ele para o sustento
familiar, é responsável também, em certa medida, por
fomentar o comércio local, onde comerciantes dependem
desse consumo para constituir sua renda. O reflexo dessa
queda é observado na arrecadação do Imposto Sobre
Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços (ICMS)
em Mariana. Em 2013 e 2014, foram arrecadados R$ 150
milhões em cada ano, comparado à apenas R$74,3 milhões
em 2018, montante reduzida à metade.
Oswaldo Guimol, de 60 anos, é representante
comercial na cidade desde 1989. Assim ele frisa que
já há algum tempo, o comerciante tem se comportado
na defensiva, deixando de fazer estoque para adquirir
somente o indispensável para o consumo do momento.
Segundo ele, as pessoas não têm mais a mesma
previsibilidade de antes, estando receosas por conta
da crise que vem se alastrando já faz alguns anos,
principalmente depois do rompimento da barragem
na região. Guimol afirma também que teve de se
adaptar para manter o rendimento de suas vendas.
Comercializando desde itens de supermercado e
utilidades domésticas à materiais de construção, ele
explica que passou a incluir o sábado como mais um
dia de visitas aos clientes, além de ofertar alternativas
de produtos para que os comerciantes especializados no
segmento operário possam diversificar seus negócios.
“Ao invés de botinas ou maletas de ferramentas, ofereço
aos meus clientes itens domésticos como chuveiros e
lâmpadas elétricas para casa”, conta.
Quais são os caminhos?
Para o professor Luiz Estevam, a necessária
diversificação econômica começa através de
investimento em infraestrutura. Como no caso
de Mariana, por exemplo, introduzindo a própria
população, órgãos públicos e, sobretudo, o meio
acadêmico e universitário na elaboração de projetos.
Ele afirma que para descentralizar a economia local
das práticas extrativistas, é preciso elaborar um
planejamento que seja conciso, possibilitado somente
através de um trabalho de médio a longo prazo.
“
Mas engenheiro para mim é o peão da
mina, que vai trabalhar na mina e gerar
recurso. A gente tem que pular
essa etapa.
Hernani Lima
O docente Hernani Lima explica que as cidades do
quadrilátero ferrífero, cujas economias são voltadas
para a extração mineral, tendem a ganhar muito
dinheiro com essa exploração, mas alguns municípios
aplicam mal esses recursos. Ele ainda salienta sobre
a questão paradigmática das Universidades, como
é o caso da Escola de Minas da Ufop, que tem
contribuído mais com mão de obra. “Isso é uma
crítica, nós continuamos fornecendo mão de obra.
Mas engenheiro para mim é o peão da mina, que vai
trabalhar na mina e gerar recurso. A gente tem que
pular essa etapa”, elucida.
A doutora em Economia Aplicada pela Universidade
Federal de Viçosa (UFV) e professora da Ufop, Cristiane
Márcia dos Santos, responde que é preciso investir em
inovação, através do incentivo à pesquisa e tecnologia. Nesse
caminho, Hernani comenta o caso da Suécia. O país deixou
de ser majoritariamente produtor de bens minerais para
”
56
transformar toda a experiência da mineração acumulada
no passado numa indústria tecnológica voltada para
a fabricação de equipamentos desse segmento. “Eles
vendem equipamentos de mineração para o mundo inteiro.
Onde tem mina, tem um equipamento da Suécia. São
grandes equipamentos, então o volume gerado é grande.
Isso foi criado graças à experiência do passado, eles
adquiriram conhecimento e aplicaram nisso”. Hernani
conclui dizendo que “precisamos gerar recursos aqui,
tecnologias para serem aplicadas nessa área”.
Cristiane complementa com o caso da China, que
é o maior importador do minério de ferro brasileiro.
Ela explica que os chineses compram o minério
daqui e agregam valor, por exemplo, fabricando aço
para investimento em infraestrutura e também em
automóveis que, inclusive, são vendidos de volta ao
Brasil. O mesmo acontece com a soja, que é exportada
em grãos e posteriormente importada triturada ou como
óleo de soja. Isso tem a ver com agregar valor, fomentar
indústrias secundárias e terciárias que sejam menos
vulneráveis, possibilitando a emancipação dessa cultura
extrativista predatória, temporária. Porém, como aponta
André Mourthé, não vai ser através do lucro a curto
prazo para o acionista que isso se tornará possível. Já
que, atualmente, prefere-se comprar tudo da China.
O rompimento de barragens como a de Fundão
e a de Brumadinho, ambas em Minas Gerais,
só comprovaram que o extrativismo imediato e
predatório, sem a contrapartida de investimentos em
infraestrutura, tecnologia e pessoas, não contribui
para o desenvolvimento de uma sociedade sustentável
e soberana. Como consequência, por exemplo, até
o fechamento desta edição, foram registradas 243
mortes e 27 pessoas ainda seguem desaparecidas por
decorrência do crime em Brumadinho. Pouco mais
de quatro meses depois, as autoridades da cidade já
manifestaram preocupação quanto à reestruturação
da economia do município, apontando para o
reconhecimento de que sem o retorno das atividades
extrativistas das mineradoras na região, a sobrevivência
socioeconômica local seguirá ameaçada.
Outra barragem em iminente risco de rompimento no
estado é a de Barão de Cocais, o que tem causado medo e
alerta máximo na população. Centenas de moradores em
zonas de perigo já foram retirados de suas casas. Além disso,
o rompimento atingiria novamente o Rio Doce, contaminado
três anos atrás pelos rejeitos da barragem de Fundão.
Exemplos como esses evidenciam que a mentalidade de
determinados países e empresas, que buscam a maximização
dos lucros de forma rápida para os investidores, sem as
devidas regulações e normativas, precisa ser mensurada.
Pois às custas de vidas humanas e do extermínio do meio
ambiente, ficou claro que não há o que prosperar.
Estação Victorino Dias
O transporte ferroviário é a principal
forma de escoamento dos produtos
provenientes da mineração no Brasil.
EDIÇÃO 27 | CURINGA
57
Eu no
mundo
Vidas
Para todo problema, uma solução. Para
cada circunstância, uma alternativa.
Assim, vamos moldando os problemas
e encontrando uma resposta. Nisso, nos
colocamos como agentes atuantes na
transformação de tudo o que acontece
na nossa vivência por meio do que
criamos e geramos na sociedade. Ao
mesmo tempo em que nos fazemos
presente no mundo em comunidade,
colocamos a resistência como pauta do
nosso cotidiano. Afinal, ela se faz atual
em diversos contextos, seja na forma
dos produtos oriundos do trabalho
de cada pessoa, seja nas histórias
singulares de vida de cada sujeitos que
compõem a sociedade.
A quem serve
o patrimônio?
Uma lógica urbanística que prioriza o turismo causa
modificações espaciais e desfavorece a sensação de
pertencimento da comunidade com o lugar onde vive.
Texto de Iris Ventura
Fotografias de Uriel F. M. Silva
Design de Wallace Vertelo
O
turismo é uma prática que envolve o
deslocamento de pessoas de um determinado
lugar habitual para outro, em um período de
tempo, para o lazer ou até mesmo negócios. A atividade
turística movimenta a economia e a sociedade, gera
emprego e renda e, assim, promove inclusão social, ou
ao menos deveria promover. A prática envolve também a
discussão acerca da preservação patrimonial e questões
de pertencimento em certas cidades. “1 em cada 11
empregos, hoje no mundo, é gerado pela atividade
turística, que representa 10% do PIB mundial de acordo
com a Organização Mundial do Turismo (OMT). Por
outro lado, a atividade turística impacta fortemente
no cotidiano dos moradores de uma cidade” afirma a
doutora em História e professora do curso de Turismo da
Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop), Luana Melo.
O extinto Ministério da Cultura era o órgão
responsável pela preservação do patrimônio cultural
no Brasil. Após o seu fim, em janeiro de 2019, suas
atribuições foram passadas à Secretaria de Cultura,
incorporada ao Ministério da Cidadania, recém criado
pelo atual Governo Federal. Segundo a Constituição
Federal de 1988, “constituem patrimônio cultural
brasileiro os bens de natureza material e imaterial,
tomados individualmente ou em conjunto, portadores
de referência à identidade, à ação, à memória
dos diferentes grupos formadores da sociedade
brasileira”. Todos os bens, monumentos históricos,
tradições e manifestações populares considerados
símbolos importantes para a história de um lugar,
por lei, devem ser protegidos. Antes de servirem
como objetos de estudo e serem valiosos para toda a
humanidade, esses símbolos são representações da
cultura e vivência de um povo. Os danos e ameaças
ao patrimônio cultural são punidos, na forma da lei,
como consta na Constituição Federal.
Além da Secretaria da Cultura, o Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan)
também defende a cultura brasileira e seus tesouros.
Criado em 13 de janeiro de 1937, inicialmente como
Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
(SPHAN), o Iphan desde então trabalha buscando
apoio e investimento para divulgar os bens tombados
e ampliar a preservação patrimonial. Hoje, o instituto
conta com 27 Superintendências (uma em cada
Unidade Federativa); 28 Escritórios Técnicos, a
maioria deles localizados Cidades Históricas; e, ainda,
cinco Unidades Especiais, sendo quatro delas no Rio
de Janeiro e uma em Brasília.
As Superintendências são os órgãos responsáveis
por mediar o diálogo entre o poder público local,
empresas e instituições civis, para manter parcerias
necessárias para a consolidação das leis que protegem
e promovem o Patrimônio Cultural Brasileiro. Já os
Escritórios Técnicos, localizados nas cidades históricas,
administram o patrimônio tombado mais de perto.
Minas Gerais se destaca com quatro patrimônios
históricos, como um dos estados brasileiros que mais
possuem bens declarados Patrimônio da Humanidade,
segundo dados do Iphan, e Ouro Preto foi o primeiro
Conjunto urbano tombado pelo Iphan, em 1938.
Nas cidades históricas, as paisagens naturais, os
casarões antigos, a beleza arquitetônica e a história
por trás dos bens tombados são alguns dos fatores
que influenciam na decisão do destino das férias de
muitos turistas. Não há dúvida de que essa escolha
acarreta benefícios para a cidade: as lojas, os taxistas,
os restaurantes e outros comércios lucram com a
passagem dessas pessoas. O Secretário de Turismo de
Ouro Preto, Felipe Guerra, ressalta a importância da
atividade turística para a cidade, principalmente as
que viveram e ainda vivem uma crise na economia por
conta da mineração. Segundo Felipe, “grande parte
das cidades de Minas Gerais ainda dependem muito
da mineração e essa é também a realidade de Ouro
Preto; mas o que muitas pessoas não sabem é que na
cidade o turismo é uma atividade que emprega mais
funcionários que a mineração”.
O turismo movimenta a economia local: a rede
de hotéis, o ramo alimentício, o artesanato e as
microempresas, principalmente durante os eventos que
acontecem na cidade, como o Festival de Inverno. De
acordo com Felipe, em média, 600 mil turistas visitam
Ouro Preto anualmente. Mas, mesmo com tantos
benefícios, é impossível não perceber como a cidade se
torna suscetível a inúmeros problemas que podem vir
com essa movimentação, como a poluição, a perda da
identidade local e a degradação do patrimônio.
O poder público, às vezes, visando o lucro e a
mercantilização de cidades que recebem turistas, investe
na projeção dos espaços culturais e dos patrimônios
históricos causando ações que reconstroem o espaço
social. Além disso, enquanto áreas das cidades são
preparadas para receber os turistas e movimentar a
economia, uma parte da comunidade local afirma
que não usufrui do espaço e dos recursos da mesma
maneira. Essa lógica urbanística se aproxima de um
processo conhecido como gentrificação.
EDIÇÃO 27 | CURINGA 61
Cultura Extrativista
Exploração Turística
Gentrificação ou exclusão?
A gentrificação significa uma transformação
na dinâmica das cidades, que afeta o cotidiano de
determinados grupos. Quando os bens patrimoniais se
tornam alvo de interesses do Governo e de instituições
privadas, o espaço urbano onde eles estão localizados
passa por um processo de revitalização. O valor dos
aluguéis e imóveis sobe e o espaço que antes servia
de lar para todos deixa de atender as necessidades da
comunidade de baixa renda, enquanto as camadas
mais ricas ocupam a região central dessas cidades.
Esse fenômeno altera o perfil social dos moradores,
a identidade local, as características do espaço e
impulsiona o extrativismo turístico.
Sobre isso, a professora Luana diz que “quando
o turismo transforma o patrimônio em objeto de
consumo ele contribui com a sua preservação,
mas também com a sua fetichização” e ainda cita
exemplos em cidades coloniais que trazem à tona
os problemas de gentrificação: o Pelourinho de
Salvador (BA), a área central de Tiradentes (MG) e
o bairro do Recife Antigo (PE).
O Pelourinho passou por um programa de
recuperação em 1991, realizado pelo Governo do
Estado da Bahia. Segundo Luana, a região ganhou
uma revalorização e foi “transformada em produto
cultural a serviço do consumo e os moradores expulsos
daquele lugar”. No processo, a arquitetura colonial,
as tradições, a musicalidade e tudo o que constrói
a identidade cultural baiana, foi organizado para
produzir uma imagem mercadológica e “produto”
turístico atrativo nacional e internacionalmente.
Um estudo realizado em 2017 e publicado na revista
“Cadernos do CIM”, de autoria de Michel Constantino
Figueira, doutor em Memória Social e Patrimônio
Cultural, aponta esses aspectos do extrativismo turístico
e da gentrificação em um bairro histórico da cidade de
Colônia do Sacramento, no Uruguai, que está inscrito na
lista do Patrimônio Cultural da Humanidade. Segundo
dados trazidos por Michel, o processo se iniciou com as
ações desenvolvidas pelo Conselho Executivo Honorário,
que previam a requalificação do bairro. “Além do
desaparecimento de pessoas, desaparecem, também,
com o decorrer do tempo, manifestações socioculturais
tais como os clubes, as murgas, as atividades teatrais e
os bares tradicionais”, afirma Michel.
Em Ouro Preto, o crescimento da atividade turística
foi acompanhado do processo de refuncionalização do
patrimônio tombado da cidade”, afirmam Victor Lacerda
da Cunha e Altino Barbosa Caldeira em um estudo sobre
o processo de refuncionalização do patrimônio cultural
em Ouro Preto, de 2014. Ainda segundo os autores, as
alterações no conjunto arquitetônico e os interesses
comerciais causaram “a gentrificação do centro histórico
e a periferização da população mais humilde”.
De acordo com Luana Melo, no site do IBGE
consta que a presença negra continua forte em Ouro
Preto, porém vivendo em bairros periféricos. “Não
seria o momento de desenvolvermos uma política de
patrimônio e de turismo que evidencie a diversidade
cultural da nossa população e que levou à produção do
patrimônio que observamos hoje?”
Uma realidade mais próxima
Ouro Preto foi erguida sobre as montanhas de
Minas, em meio ao período áureo da mineração, à
soberania política da Coroa Portuguesa e à influência
da Igreja Católica. Fundada em 1711, a cidade foi
reconhecida como Vila Rica, até 1823, quando recebeu
o título de Imperial Cidade de Ouro Preto. Em setembro
de 1981, Ouro Preto foi declarada Patrimônio Cultural
da Humanidade, pela Unesco, segundo dados do
IPHAN. “Depois que a cidade recebeu esse título,
houve uma supervalorização imobiliária dos terrenos
e das construções, especialmente na região do centro
histórico”, afirmam Victor e Altino.
62
Alessandro Magno, graduado em História pela
Ufop, é morador de Ouro Preto, e, segundo ele, o
tombamento patrimonial do município supervalorizou
uma arquitetura de herança portuguesa enquanto a
herança de afrodescendentes ficou em segundo plano.
O centro se manteve preservado dentro de uma visão
eurocêntrica, enquanto a paisagem de outras áreas se
modificou com a chegada de famílias que venderam seus
casarões por não conseguirem mantê-los.
No cenário atual, muitos moradores da cidade
reclamam que os altos preços dos aluguéis de imóveis
e dos produtos do mercado não os atendem, que os
eventos culturais são excludentes e que o turismo
tem, de certa forma, causado danos à identidade
local e ao patrimônio. “Em Mariana e Ouro Preto é
comum a pichação “é da humanidade mas não é da
comunidade”. Tudo isso é muito simbólico, não só
sobre o turismo mas sobre os usos que são feitos do
patrimônio cultural, da sua transformação em objeto
de consumo”, afirma a professora Luana.
Então, podemos dizer que a gentrificação reflete na
cidade nos dias de hoje? Para o Secretário Municipal
Felipe, não. Para ele, “o problema não é de gentrificação.
Aqui o morador consegue vir no centro histórico,
consegue pagar um preço acessível no comércio, não são
excluídos desse processo”. Para Luana, mesmo que Ouro
Preto tenha vivido experiências diferentes do Pelourinho,
“é inegável que há um aburguesamento do acesso à
moradia, à oferta de restaurantes e outros serviços, é
evidente que a vida no centro histórico de Ouro Preto é
mais cara que nos bairros periféricos, por exemplo”.
Rodney Maiah, de 32 anos, é museólogo, trabalha há
cinco anos com turismo na cidade, e diz que somente
uma parte dos moradores frequentam os eventos que
acontecem no município enquanto outros não têm acesso
às festividades, nem ao menos sabem que, na maioria das
vezes, se trata de eventos gratuitos. “Os ouropretanos têm
acesso liberado aos museus em certos dias da semana,
não pagam como os turistas para visitar as igrejas, porém
muitos desconhecem esses benefícios”, afirma Maiah.
Alessandro ressalta que, durante os finais de semana,
o rigor na visitação de alguns espaços aumenta, por
consequência da maior movimentação de turistas, com
isso “o morador nunca sabe se vai ser reconhecido, se
precisa levar um comprovante de residência, ou se precisa
ter algum cadastro” para conseguir a entrada. Por conta
disso, muitos ouropretanos não se sentem confortáveis
em visitar os espaços que parecem ter sido elitizados.
Para o museólogo, um dos fatores que causam esse
contraste é a falta de divulgação: “as informações que
são disponibilizadas nas redes sociais e outros veículos
de comunicação não chegam para todas as pessoas da
mesma forma, e os mais afetados são os moradores dos
bairros mais afastados da região central do município”.
Rodney morou no bairro Saramenha de Ouro Preto
(localizado a pouco mais de 3 km do centro), há quatro
anos mudou-se para o centro da cidade e tem notado uma
diferença na forma como os moradores das duas áreas
consomem esses espaços urbanos, os eventos e os bens
culturais ali inserido. Por ter vivido as duas realidades ele
afirma que grande parte dos eventos e atividades oficiais
voltados para a cultura se concentra no centro.
Investir nessa divulgação é dever dos órgãos
públicos. De alguma forma, as informações precisam
chegar aos bairros periféricos, assim como chegam aos
turistas e aos moradores do centro histórico. O Secretário
de Turismo, não concorda que o problema seja a falta
de comunicação e sim um problema de inclusão social,
que acontece tanto em Ouro Preto, como em outras
cidades. “Os ouropretanos sabem dos eventos, sabem
onde acontece, mas não se sentem parte, isso é uma
coisa muito séria e necessita de educação patrimonial,
eles tem muito orgulho daqui, mas ainda se sentem à
margem de muita coisa”, afirma Felipe, que completa:
“precisamos trabalhar essa válvula melhor”.
A Secretaria de Turismo (Setur) de Ouro Preto criou
em 2015 o Departamento de Turismo Pedagógico para
trabalhar as questões de pertencimento, inclusão social
e a preservação patrimonial. Mais a frente, em 2017,
as Secretarias de Turismo e Educação desenvolveram
um Programa de Educação para apresentar a história
de Ouro Preto às crianças e levá-las aos monumentos.
Felipe acredita que “qualquer mudança começa pela
educação, que é a base”.
EDIÇÃO 27 | CURINGA 63
Cultura Extrativista
Exploração Turística
Centro preservado x periferia esquecida
O que muitos turistas sabem sobre as cidades históricas
se dá por meio dos veículos de comunicação e
das propagandas de televisão, que geralmente promovem
uma imagem que contrasta com a realidade desses
municípios. Isso não quer dizer que a cidade não tenha
a real beleza transmitida na mídia, mas ela é muito mais
que isso. As cidades sofrem com problemas de infraestrutura
e outros do cotidiano das comunidades que habitam
esses municípios.
Sobre a infraestrutura, existe uma lei que proíbe a
alteração das fachadas das casas, Rodney enxerga pontos
positivos e negativos. Por um lado, a lei resguarda
as características marcadas pela história, mas outra vez
a comunicação precisa ser clara, para que todos entendam
que o conjunto de normas vem como uma forma de
garantir a preservação patrimonial e não como uma imposição.
Por outro, priva as pessoas de realizarem alterações
necessárias em suas residências. “Quando alguém
não se sente parte, se sente excluído de qualquer ação.
Vivemos em uma cidade patrimônio cultural da humanidade,
certas coisas nós não podemos fazer, e uma das
nossas obrigações é manter as fachadas, manter os prédios”,
menciona o Secretário de Turismo sobre a importância
de preservar o encanto que Ouro Preto tem.
Enquanto o centro de algumas cidades turísticas se
enobrecem, as áreas periféricas nem ao menos fazem
parte no percurso turístico. Em Ouro Preto, alguns moradores
notam esse contraste. Segundo Rodney, não só
o centro reflete as memórias da cidade, “os bairros também
têm a ver com a história da cidade, com certeza, o
Morro da Queimada, o bairro Bauxita, Saramenha”.
O Secretário de Turismo afirma que o plano de divulgação
contempla todas as áreas da cidade, mas nem
todas são visitadas, porque os guias de turismo ganham
uma taxa para venderem um produto privado e levar os
turistas em certos pontos, como as igrejas principais e
as minas de ouro. Além disso, Felipe alega a falta de estrutura
de bairros periféricos: “não podemos levar um
turista a um local que não tem a mínima condição de
recebê-lo, porque isso vai queimar o destino”.
Sobre essa questão Luana diz ter uma visão positiva:
“claro que a maioria dos turistas que hoje vem para
Ouro Preto (e isso eu falo a partir de dados concretos)
passam apenas um dia na cidade. Isso faz com que, pela
64
limitação do tempo, essas pessoas priorizem os atrativos
“mais conhecidos”, os circuitos tradicionais. Mas há um
número significativo de pessoas que se deslocam para
experimentar a cidade com mais tempo”.
Para intensificar a divulgação da cidade, Felipe entendeu
que seria preciso criar um setor de comunicação
próprio para a Secretaria de Turismo, mesmo já existindo
outro setor que administrava a comunicação conjunta
de todas as secretarias da prefeitura de Ouro Preto.
“Com essa necessidade, a Setur criou um Departamento
de venda e promoção do destino, para ter um contato
direto com o turista e sermos competitivos no mercado.
O que rendeu várias ações, como o Festival de Turismo
em 2015”, declara Felipe.
Rodney concorda com o Secretário de Turismo, a respeito
da divulgação: “Ouro Preto tem muito potencial,
ter o título de patrimônio não quer dizer que não precisa
de incentivo”. Por outro lado, o morador pede que
o poder público, os guias turísticos e empresas privadas
dêem mais valor a outras áreas: “o pessoal chega aqui,
vai ver uma ou duas igrejas, a mina de ouro, dá uma
volta no centro e acha que em um dia conhece tudo, em
uma cidade que nem em um mês você conhece tudo…
aqui tem muito espaço legal que não é valorizado”.
Os pedidos dos moradores são: que os atrativos sejam
ofertados igualmente para todos, que o turista não
seja privilegiado em certos aspectos em que o morador
é excluído e que o poder público melhore o diálogo com
a população local, para que possam trabalhar juntos.
Porque o turismo precisa ser vendido, a cidade precisa
crescer, mas o patrimônio precisa ser preservado e o morador
precisa se sentir parte dele. Segundo o ponto de
vista da professora Luana, “hoje a gestão sustentável do
turismo e do patrimônio só é possível se feita pela comunidade
que detêm esse patrimônio, que convive diariamente
com o turismo, com a presença do turista, e é
esta comunidade a que deve ser a principal beneficiária
dos recursos que a atividade produz”. Trabalhar a inclusão
é o caminho “para ampliar o sentimento de pertencimento,
de identificação e em consequência a noção de
cidadania e participação na gestão do patrimônio e do
turismo”, ainda de acordo com Luana. Logo o morador
que se aproxima do patrimônio, se sente em casa e passa
a se sentir responsável por sua preservação.
EDIÇÃO 27 | CURINGA 65
Os desafios da
exploração sustentável
O extrativismo é a retirada de recurso ambiental, sem pensar na extinção dos materiais ou no
desequilíbrio de ecossistemas. A prática acontece desde a existência humana e é necessária para
a sobrevivência. Porém, como encontrar alternativas evitando o modo de produção agressivo?
Texto de Amanda Alves e Catharina Mello
Fotografias de Adrienne Pedrosa
Design de Adrienne Pedrosa e Catharina Mello
Segundo a Associação Gaúcha de proteção ao
ambiente natural (Agapan) desde a década
de 1970, perdura no Brasil o sistema de
desenvolvimento predatório baseado na expansão
da pecuária. Um método um tanto quanto perverso,
que retira povos da floresta do seu habitat tradicional
e devasta a flora, que carrega muito de nossas
riquezas brasileiras: plantas medicinais, diversidade
de espécies vegetais, árvores frutíferas e animais
inexistentes em outros lugares do mundo.
O Instituto Homem e Meio Ambiente da Amazônia
(Imazon) detectou, em 2019, um crescimento de 54% em
desmatamento na Amazônia Legal no mês de janeiro em
relação a janeiro do ano anterior, comprometendo cerca de
108 km² de floresta, área um pouco maior do que o estado
de Pernambuco. O Instituto ainda indica resultados de
estudos sobre a degradação florestal em diversas áreas
brasileiras, causada por queimadas e extração seletiva de
madeiras. Em 2019, os estudos detectaram um aumento
em relação a 2018 em estados como o Mato Grosso, 32%,
e Pará 37%. O boletim levantou também um crescimento
no índice de desmatamento de áreas de posse: em
assentamentos o nível chegou a 21%, 7% em terras
Indígenas e 5% em Unidades de Conservação.
A extinção de espécies, fruto do extrativismo
predatório animal, também coloca em risco o
equilíbrio ecológico das regiões que foram desmatadas.
Segundo o Instituto Chico Mendes de Conservação
da Biodiversidade (ICMBio) e o Ministério do Meio
Ambiente (MMA), foram registrados, no final de
2014, cerca de 1.1173 espécies animais ameaçadas
de extinção, como a Arara-azul e o Boto-cor-de-rosa,
ameaçando a biodiversidade tão característica do Brasil.
O extrativismo ambiental no Brasil é marcado,
principalmente, por três categorias: vegetal, mineral e
animal. A extração vegetal se caracteriza pela retirada de
materiais como o látex, madeira e sementes e tem como
marca de destruição o desmatamento e a extinção de
espécies vegetais. A extração mineral é responsável por
remover minério da natureza como ferro, cobre ou alumínio,
alterando o ambiente no qual se concentra, por meio da
destruição da vegetação local e da contaminação dos solos e
rios. Já o extrativismo animal é caracterizado pela captura de
animais por meio da pesca e da caça. No Brasil, a atividade
de caça é fiscalizada pelo Instituto Brasileiro do Meio
Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), e
é permitida desde 1967 pelo Código de Caça apenas para o
próprio sustento, como por exemplo para os indígenas. Para
a atividade pesqueira também é necessária a autorização e
torna-se proibida em períodos de reprodução.
Diante do modelo de extrativismo predatório,
aparecem questionamentos sobre qual será o futuro do
meio ambiente, visto que os recursos naturais, tanto
minerais, animais ou vegetais, em algum momento,
podem deixar de existir. A contaminação da fauna,
assoreamento de rios e lagos, destruição da cobertura
vegetal e desmatamento são efeitos do extrativismo
que não se preocupa com os resultados que acabam por
atingir o equilíbrio dos ecossistemas.
Apesar dos riscos para a natureza, a grande exploração
mostra-se necessária para o desenvolvimento humano.
Como utilizar, então, a natureza de forma equilibrada? Quais
os limites da interferência humana? Questões importantes
que seguem na busca de respostas ou alternativas.
Como e por que as reservas surgiram?
A primeira reserva extrativista nacional, nomeada
Alto do Juruá, surgiu no Acre, no ano de 1990, e marcou
a criação de espaços limitados para serem explorados.
A reserva foi criada depois da morte de Chico Mendes,
ativista ambiental e personagem marcante da luta
pela demarcação de terras no país, que teve início com
os seringueiros no norte do Brasil. Esses produtores
denunciavam o desflorestamento cometido por
fazendeiros, que também invadiam terras e deixavam
os produtores em situação de desamparo, visto que sua
forma de subsistência estava em risco.
Logo, seringueiros e também outros pequenos
produtores que dependiam daquelas terras, como
os castanheiros, se uniram em prol do bem comum:
criaram associações e sindicatos rurais para reivindicar
seu direito à terra e ao uso dos recursos naturais como a
extração da copaíba, andiroba, látex e outros produtos.
Em meados da década de 1970, em junção com
outros grupos, criaram a Aliança dos Povos da Floresta,
união entre ribeirinhos, extrativistas e índios, para
lutar por direitos incorporados às políticas de reforma
agrária e meio ambiente. Esse movimento ganhou
importância e o reconhecimento da luta sindical dos
seringueiros e dos demais povos da floresta.
A ideia de reservas ambientais começou a ser
discutida em meados dos anos 1980, mas apenas em
1989 pode-se ver um avanço em termos de legislação
com a criação da Lei nº 7.804, estabelecendo a
Política Nacional do Meio Ambiente.
Um ano depois, em 1990, foi elaborado o Decreto
nº 98.897, sobre reservas extrativistas, descrevendo as
reservas como espaços territoriais destinados à exploração
auto-sustentável e conservação dos recursos naturais
renováveis, por população extrativista, dando autoridade
ao Poder Executivo para criação de reservas em espaços
considerados de interesse ecológico e social.
As reservas são separadas em dois grupos: o primeiro,
onde não é permitido alterar ou manter alguma atividade
econômica, por exemplo, a floresta amazônica, a não ser
que tenha dentro dessa unidade alguma comunidade
tradicional, como a reserva indígena do Xingu, ao norte
EDIÇÃO 27 | CURINGA
67
Cultura Extrativista
Alternativas sustentáveis
do estado de Mato Grosso. O segundo grupo é permitido fazer
um manejo sustentável, como o extrativismo sustentável, a
título de exemplo a agricultura de subsistência.
Na Lei nº 9.985, do ano 2000, a reserva extrativista
adentra como parte das Unidades de Conservação,
áreas protegidas pelo Sistema Nacional de Unidades de
Conservação (Snuc), que estabelece critérios e normas para
a criação, implantação e gestão das unidades. Segundo a
Doutora em Ecologia Yasmine Antonini, professora do
curso de Biologia da Universidade Federal de Ouro Preto
(Ufop), essas unidades foram criadas para compatibilizar
o uso sustentável dos recursos naturais por populações
tradicionais e a conservação da biodiversidade.
Dentro dessas Unidades de Conservação há uma
série de categorias, além das reservas extrativistas, como,
por exemplo, reserva da biosfera, Reserva Particular do
Patrimônio Natural (RPPN) e os parques nacionais.
Para delimitar uma Unidade de Conservação, é exigido
um documento chamado “Plano de Manejo”. Como
explica o professor e doutorando em Biologia Vegetal pela
Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), Rodolpho
Henrique Waichert, a delimitação dessas áreas pode ser
atribuída por “características ambientais como o clima,
solo e água, por característica biológicas como fauna e a
flora e por também caráter socioambiental, caso aquelas
áreas possuem comunidades tradicionais ou extrativistas”.
Segundo Rodolfo, a legislação ambiental brasileira
é considerada uma das mais avançadas, baseada em
legislações ambientais mundo afora. Surgiu no contexto
pós Convenção de Estocolmo, em 2001, sobre proteção da
saúde humana de efeitos dos poluentes orgânicos, e cobre
basicamente todas as necessidades legais do meio ambiente.
Contudo, o país deixa a desejar em estratégias de fiscalização,
para que as leis sejam realmente efetivas. O professor Rodolpho
Henrique aponta que esses processos se tornam árduos devido
a localização dessas reservas: “É complicado de se entender
quando estamos em áreas de grandes centros, visto que a
maioria da população brasileira se encontra no litoral e isso
facilita as fiscalizações; contudo, em regiões como o Centro-
Oeste e Norte do país, torna-se mais complicado devido a
grandes extensões de terras e mata fechada”.
As questões que dificultam estratégias de fiscalização
acabam por facilitar a expansão da fronteira agrícola em áreas
como o Centro-Oeste e Norte do país. São nessas áreas, ocupadas
para realizar práticas agropecuárias, que podemos encontrar
mais facilmente um número maior de desmatamento.
Outro problema encontrado são as chamadas “terras
de grilagem”, referentes à prática de falsificação de
documentos para se tomar posse de terras públicas. O
termo “grilagem de terras” tem origem na forma como
se envelhecia os papéis que serviam como documentos.
Colocava-se as folhas dentro de compartimentos
fechados junto com grilos, as fezes desse inseto possuem
uma substância química que faz com que a fibra do
papel escureça dando impressão de papel envelhecido
ou documento antigo. Essa prática foi usada no Brasil
por muitos anos para se continuar avançando sobre suas
fronteiras e desmatando-se ilegalmente.
Um exemplo forte em questões sobre o avanço da
fronteira são as plantações de soja no Brasil, processo
iniciado no estado do Rio Grande do Sul e que, atualmente,
se estende para a região do Cerrado e Amazônia. Nele, vemos
grandes extensões de reservas sendo desmatadas em vista
de um agronegócio lucrativo. O plantio de soja tornou-se um
dos principais produtos agrícolas do país e colocou o Brasil
como o segundo maior produtor de soja do mundo, atrás
apenas dos Estados Unidos, ocupando uma área de 33,89
milhões de hectares para a produção de 113,92 milhões de
toneladas do produto, em 2017, segundo o site da Empresa
Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa).
Ilza Girardi, professora da Universidade Federal do Rio Grande
do Sul (UFRGS), com grande experiência na área do Jornalismo
Ambiental, critica como o governo trata a atual situação agrícola
e ambiental do país e como o agronegócio torna-se cada vez mais
perigoso: “na visão dos neoliberais meio ambiente é um entrave ao
desenvolvimento. Pode ser, sim, entrave, mas para a multiplicação
de seus lucros [de quem o explora]”.
Um futuro sob perspectiva
O Brasil no início do século XX encontrava-se em estado
primitivo em relação a qualquer investimento na produção
agrícola. Nesse momento, o país assistiu ao fenômeno chamado
êxodo rural, considerado o maior da história do país. A população
do campo começou a migrar para os centros urbanos em busca
de melhor qualidade de vida, já que o cenário no campo era
de pobreza, enquanto os centros, por meio da industrialização,
foram criando oportunidades de crescimento socioeconômico.
Diferente do que vimos anteriormente durante os grande ciclos
na agricultura, que se tornaram base para a economia do país
desde a era pré-colonial com o Pau-brasil, passando pelo ciclo
da cana-de-açúcar no período colonial, a expansão do café e do
algodão durante os séculos XVIII e XIX e, por fim, o ciclo da
borracha também no século XIX, na região norte.
Nos anos 1950, elaborado pelo então presidente
Juscelino Kubitschek, traçou-se o Plano de Metas, um
programa de industrialização e modernização do Brasil.
Uma das metas importantes a ser solucionada seria: a
68
Agricultura Familiar
O modo de produção familiar
se tornou alternativa e forma
de sustento para agricultores da
região de Ouro Preto e Mariana.
expansão da fronteira agrícola, sistematizar o mercado e
principalmente dar suporte tecnológico aos agricultores.
Os processos de mecanização da agricultura, como o uso
de maquinário que auxilia em procedimentos no plantio
e na colheita, trouxeram aos produtores a possibilidade de
aumentar o volume de sua produção, assim como utilizar
pesticidas e agrotóxicos para a inibição de pragas que
destroem as plantações. Tais processos tornaram possível a
chamada industrialização no meio rural.
A partir do momento em que se vêem grandes
investimentos para o meio rural, é visível uma diminuição
do número de emigrantes que saíam do interior em direção
às grandes cidades. Uma significante melhora aconteceu
na infraestrutura agrícola, como saneamento básico,
energia e principalmente o aumento do rendimento
dessas famílias, que passaram a viver somente do cultivo.
Atualmente, a agricultura familiar, seja ela mecanizada
ou não, desempenha importante papel na economia brasileira
Conforme o Censo Agropecuário realizado em 2017, 84% dos
estabelecimentos rurais são de agricultores familiares e, segundo
os dados coletados pelo Ministério da Agricultura no mesmo ano,
o país possui um faturamento anual de US$ 55,2 bilhões só em
produção familiar, cerca de 65,25% de toda produção brasileira,
considerada a quinta maior produção de alimentos do mundo.
Contudo, grandes investimentos para a agricultura não
significa um olhar atento ao meio ambiente e, apesar de apoiar as
práticas orgânicas, o atual Governo Federal já aprovou a utilização
de mais 31 agrotóxicos, totalizando 197 durante os cinco
meses de mandato. Segundo dados do Greenpeace, é a maior
quantidade de aprovação dos últimos dez anos, fato previsível,
já que antes mesmo de assumir o cargo, Tereza Cristina (DEM-
MS), a atual Ministra da Agricultura, Pecuária e Abastecimento
(Mapa), apelidada pela bancada ruralista, da qual era presidente,
como a “musa do veneno”, afirmou que o uso de agrotóxicos
teria bastante “espaço” durante o seu mandato.
Devido aos retrocessos anunciados, sete ex-Ministros
do Meio Ambiente se reuniram no dia 8 de maio de 2019, na
Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), para anunciarem
sua preocupação e debaterem a atual situação do Governo em
relação ao meio ambiente. Estiveram presentes Rubens Ricupero
(ex-Ministro do governo de Itamar Franco), José Carlos Carvalho
e José Sarney Filho (Ministros durante governo de Fernando
Henrique Cardoso), Marina Silva e Carlos Minc (ambos do
governo Lula), Izabella Teixeira (Ministra nos governos de Lula
e Dilma Rousseff) e Edson Duarte (Ministro durante o mandato
de Michel Temer); nomes que atuaram em um período de quase
30 anos na área do Meio Ambiente no Brasil.
Os ex-Ministros redigiram uma carta se posicionando
contra a atual gestão. No documento, afirmam: “passados
mais de cem dias do novo governo, as iniciativas em curso
vão na direção oposta à de nosso alerta, comprometendo
a imagem e a credibilidade internacional do país”. E
diz ainda: “a governança socioambiental no Brasil está
sendo desmontada, em afronta à Constituição”.
Em nota, o atual Ministro do Meio Ambiente, Ricardo
Salles (Novo/SP), refutou as acusações e afirmou que as
decisões do Governo não colocam em risco as direções
socioambientais do Brasil e culpa as administrações
anteriores pela atual situação ambiental do país.
O que é um agricultor familiar?
A Lei 11.326/2006 agricultores familiares, são
aqueles que praticam atividade de cultivo,
utilizando em seu empreendimento a mão-deobra
da própria família, detendo uma área de até
quatro módulos fiscais e que tenha percentual
mínimo da renda familiar originada de atividades
econômicas do seu estabelecimento.
Podem ser beneficiários da lei silvicultores,
aquicultores, extrativistas, pescadores, indígenas,
quilombolas e assentados da reforma agrária.
EDIÇÃO 27 | CURINGA 69
Cultura Extrativista
Alternativas sustentáveis
Como forma de sobrevivência e de auxílio financeiro,
que não prejudica ao meio ambiente, é possível encontrar
alternativas, desde movimentos sociais até projetos
locais. As iniciativas incluem o conceito de agricultura
sustentável, prática que é caracterizada por não utilizar
agrotóxicos e pesticidas. É uma atividade agrícola
trabalhosa, mas que visa respeitar a natureza em todas
as fases, desde o plantio até a colheita. Como exemplo
das práticas sustentáveis, o Armazém do Campo e o
projeto Circula Agricultura, se baseiam nos conceitos de
agricultura familiar para produzir alimentos.
O Armazém do Campo está localizado na Avenida
Augusto de Lima, em Belo Horizonte e é uma loja de
produtos naturais originários de produtores da Reforma
Agrária, sistema desenvolvido em 1970 responsável
por dividir as terras a partir da alteração do uso das
propriedades. Mais do que um comércio, o Armazém
se configura como espaço de resistência ao modelo de
agronegócio monoculturista, onde apenas uma única
cultura é produzida dentro de latifúndios.
A loja é um espaço inaugurado em 2017 e gerido pelo
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).
O lucro que ela obtém é de cerca de 30% segundo os
funcionários, o que é usado para manutenção da loja.
De doces, farinhas e verduras a produtos medicinais,
a variedade toma conta do lugar. Os produtos dispostos
sobre as prateleiras possuem selo do MST e além da
identificação imediata, permitem ao consumidor analisar
a presente qualidade do produto que está levando para
casa, abaixo do preço de mercado.
Dentro do armazém, tudo remete a consciência política,
desde os produtos até a relação com o espaço, que carrega
fortes referências ao cantor Belchior, ao ambientalista
Chico Mendes e ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Além de ofertar produtos, o Armazém do Campo é palco de
atrações, pensadas pela organização para que transformem
o local em ponto de cultura e integração, buscando dar a
liberdade de expressão linguagens artísticas e manifestações.
Para além do espaço físico, a loja também representa a história de
pessoas. É o caso de Moara de Araújo Pinto, de 19 anos. Ela
trabalha como vendedora no Armazém há cerca de um ano.
Nascida e criada dentro dos acampamentos, os pais se conheceram
dentro do espaço. Hoje, seu pai canta nos eventos dos Sem Terra
e a mãe trabalha como professora, ambos dividem o tempo sendo
agricultores e produtores rurais dentro dos acampamentos.
O MST vai de grandes cooperativas até pequenas
produções individuais. O processo até chegar no produto final
é desenvolvido por etapas, a fim de que os agricultores se
organizem e mantenham a preservação ambiental. Segundo
Moara, a lógica do movimento é ser contra toda forma de
exploração. Então, eles produzem de forma agroecológica,
o que significa pensar em toda vida que está no processo de
produção, do solo, da planta, dos animais e do trabalhador.
O grupo também busca dar apoio e incentivar a agricultura
familiar, se alguém deseja plantar dentro do assentamento,
são fornecidas sementes, repassadas técnicas, além de serem
desenvolvidos cursos de adubação, controle de solos e pragas,
todos ministrados por agrônomos. A produção ecológica tomou
grandes proporções e efeitos positivos para o país, segundo o
Instituto Riograndense do Arroz (Irga), o MST atualmente é
o maior produtor orgânico de grão da América Latina. Além
de também ser um dos maiores produtores de arroz orgânico
do Brasil de produtos originários dos assentamentos do Rio
Grande do Sul. Moara afirma que sua criação dentro do MST
foi de grande importância, principalmente para a formação de
sua identidade. No acampamento, ela aprendeu história aos
seis anos de idade, o que despertou sua curiosidade em relação
a questões sociais e políticas e a se sentir engajada dentro do
Movimento. No MST busca-se dar uma infraestrutura suficiente
para que as famílias vivam bem dentro dos assentamentos.
Segundo Moara, existem postos de saúde, escola, engenheiros,
advogados, pessoas que cuidam das crianças dentro de um
espaço onde as crianças aprendem história e discutem política,
toda uma infraestrutura que possui profissionais qualificados.
A luta continua para legitimação do movimento. “Algumas
pessoas tem muito preconceito com esse grupo, acham que nós
queremos tomar as terras deles. Nós não queremos uma terra
de oito alqueires, queremos terras desocupadas para assentar
70
Armazém do Campo
O Armazém vende produtos
como a Farinha de Milho, além
de frutas e verduras produzidas
em assentamentos.
famílias. Hoje, trabalho no armazém não por salário, mas por
ideologia, por acreditar no espaço e no fruto do trabalho dos
Movimentos dos Trabalhadores Rurais”, declara Moara.
O Armazém do Campo é a terceira loja inaugurada pelo
movimento dos Sem Terra, acompanhadas pelas cidades de São
Paulo e Porto Alegre. A loja representa a luta para além do campo
e segue tentando dialogar com a vida urbana nas cidades.
Circula Agricultura
O Circula Agricultura nasceu da necessidade de pensar
alternativas em relação a mineração, atividade finita e forte
na região de Mariana e Ouro Preto. O projeto faz parte
de um Programa de Extensão da (Ufop) e do Núcleo de
Pesquisa e Extensão em Desenvolvimento Econômico e
Social (Nupedes), que surgiu de uma discussão a partir do
rompimento da Barragem de Fundão, em 2015.
Segundo a coordenadora do projeto, professora Marisa
Alice Singulano, a agricultura da região não recebia nenhum
tipo de investimento e não era vista como fonte de renda. A
partir da discussão de profissionais de diversas áreas, concluiuse
que a agricultura local tinha potencial o suficiente para se
tornar parte do desenvolvimento da cidade.
Os agricultores produziam na região, porém outros feirantes
comercializavam produtos das Centrais de Abastecimento
(Ceasa) e, por isso, os agricultores locais não tinham de
suporte. “Os agricultores precisavam receber mais apoio e
para isso negociamos com a Prefeitura e com a Empresa de
Assistência Técnica e Extensão Rural - MG (Emater), que se
comprometeram a dar apoio. Tinha o problema da venda, porque
muitos produtores não produziam, pois não tinham onde vender,
e aí tivemos a ideia do Circula”, relata Marisa.
Ainda de acordo com a coordenadora, o projeto também
serve como vitrine para os agricultores da região, já que dá
visibilidade à produção agroecológica desenvolvida nas duas
cidades envolvidas, principalmente em seus distritos e zonas rurais.
Os integrantes do projeto são famílias que antes de
conhecer o “Circula Agricultura” já tinham produção
própria. As verduras e legumes são cultivados no sistema de
consórcio, que consiste na técnica em que diferentes tipos
de alimento são plantados e, a partir do tempo determinado
para retirada dos alimentos, o espaço se abre para o
desenvolvimento das variedades que demandam um tempo
maior para estarem prontas para colheita. Além disso, a
técnica aproveita melhor o espaço e rende mais alimentos.
De acordo com Célia Cocirni, agricultora participante
do Circula, os produtos mais procurados são alfaces das
variedades crespa, lisa, americana e roxa, além de brócolis,
almeirão, couve, acelga, couve-flor, cheiro verde e espinafre.
Com a consciência sobre a exploração da natureza e a
necessidade de cuidar do meio ambiente, a plantação é
protegida com biofertilizantes produzidos pelas famílias.
Segundo Célia, a principal diferença entre os fertilizantes
comuns e o biofertilizante é que, além de ser natural, o
biofertilizante acrescenta nutrientes para as plantas e para
o solo e deixa o terreno cada vez mais produtivo e sem
contaminação. Os produtores também preservam a mata
ao redor da plantação, criando a chamada barreira verde,
que impede a contaminação vinda de um meio externo e
protegem as nascentes localizadas dentro das propriedades.
Para auxiliar na conscientização, foi criado em março
de 2018, o Núcleo de Estudos em Agroecologia da Região
dos Inconfidentes (Nea - Inconfidentes) que difunde as
práticas agroecológicas entre os agricultores. “Dentro da
agricultura familiar, o Núcleo ressalta a produção sem
agrotóxicos, em respeito ao meio ambiente e à integração
com o ecossistema local,” explica a professora Marisa.
Além do Circula, os produtores desenvolveram o projeto
Horta Real, que consiste na montagem de cestas a partir
dos pedidos feitos pelos clientes via WhatsApp. A entrega das
cestas acontece em Belo Horizonte, Ouro Preto e Mariana.
Circula Agricultura
As feiras do circula vendem
a produção da agricultura
familiar nos campi da UFOP.
EDIÇÃO 27 | CURINGA 71
O que (re)veste
a moda?
A insustentabilidade ambiental e a exploração do trabalho na indústria da
moda acelerada, alavancadas pela produção em larga escala, contrastam
com o crescente mercado do consumo consciente.
Texto de Sofia Fuscaldi Cerezo
Fotografias de Carolina Durval Carvalho
Design de Stefanny Inacio Rolim
Aroupa se tornou uma expressão do nosso corpo e,
por isso, é um ato político. Usar verde e amarelo ou
vermelho no dia da votação para a presidência do
Brasil em 2018 significava um posicionamento. Mulheres
que usavam calças em 1970 representavam um ideal. Mas
o que as roupas que consumimos hoje escondem?
De acordo com uma pesquisa realizada em 2017
pelo World Resources Institute, uma Organização
Não Governamental sediada em Washington, nos
Estados Unidos, a indústria da moda mundial produz
20 peças de roupa ao ano por pessoa. Todos os dias,
383 milhões de roupas são produzidas, ou seja, 4,4
mil peças por segundo.
No Brasil, o setor da moda emprega 1,5 milhão de
pessoas, e 6,5 milhões indiretamente, tornando esse ramo
o segundo maior empregador do país, perdendo apenas
para alimentos e bebidas (juntos); sendo 75% dessa mão
de obra, feminina. No ano de 2017, o faturamento desse
setor foi de 51,58 bilhões de dólares, contra US$ 42,94
bilhões em 2016, com produção média de 1,3 milhão de
toneladas e 6,71 bilhões de peças para vestuário. O Brasil
é o quinto maior produtor têxtil do mundo, e o quarto
maior em produção de peças de vestuário, segundo
relatório realizado em 2017 pela Associação Brasileira da
Indústria Têxtil e de Confecção (Abit).
Para Vanusa Maria, formada em Gestão e Recursos
Humanos e à frente da administração de um brechó
em Ouro Preto (MG), montado apenas com materiais
reutilizados, a partir da economia colaborativa de 12
empresárias, esses números são acompanhados de
consequências alarmantes: “A indústria da moda é a
segunda mais poluente do planeta, só perde para o
petróleo. Uma calça jeans consome 11 mil litros d’água
para ser confeccionada”.
Nesse sistema de produção massiva de roupas,
chamado de Fast Fashion, as lojas deixam de lançar
coleções para cada estação do ano e passam a lançar uma
coleção por semana. Para que isso seja possível, todo o
ciclo de produção de roupas é afetado. O algodão orgânico,
por exemplo, demora muito tempo para poder ser colhido.
E como o algodão é a matéria prima mais utilizada para a
confecção de roupas, o uso de agrotóxicos nas plantações
é intenso. Vanusa afirma que, para acelerar processos,
utiliza-se cada vez mais química.
Segundo o relatório Pulse Of The Fashion Industry
de 2019, produzido pelo fórum de moda Global Fashion
Agenda, o algodão é responsável por cobrir 3% das terras
férteis do mundo, com uma produção consumindo
estimadamente 16% dos inseticidas e 7% dos herbicidas
produzidos globalmente, com impactos tanto no solo e
na água, como também na saúde das pessoas. Em abril
de 2019, o Instituto Nacional de Câncer (Inca) emitiu
um alerta apontando que regiões com alto uso de
agrotóxicos apresentam incidência de câncer bem acima
da média nacional e mundial, e que, desde 2009, o Brasil
é o maior consumidor desses produtos no planeta.
EDIÇÃO 27 | CURINGA
73
Cultura Extrativista
Retaguarda da moda
Exploração X Fashion Revolution
Ao avançar na cadeia produtiva da moda, nos
deparamos com um outro fator negativo decorrente do
Fast Fashion: a enorme exploração de trabalho envolvida
na Indústria da Moda. Aproximadamente 40 milhões de
pessoas em todo o mundo estão vivendo em situações de
trabalho análogo à escravidão, e a indústria da moda é a
segunda maior contribuinte para essa situação, segundo
o relatório Global Slavery Index de 2018, publicado pela
organização Walk Free, que busca erradicar a escravidão
moderna do mundo até 2030.
Sobre o sistema do Fast Fashion, Vanusa afirma que
“as roupas de [lojas] departamento são feitas sem critério
e possuem erro de modelagem. Você vai num shopping,
todas as lojas de departamento estão praticamente com os
mesmos estilos de peça. Acredito inclusive também que vêm
da mesma China”. A maior parte das roupas produzidas
mundialmente são confeccionadas em países nos quais a
faixa salarial é muito baixa, as condições de trabalho são
precárias, as fábricas não estão sujeitas a verificações de
segurança e as normas trabalhistas quase não existem,
como a China, Bangladesh, Camboja e Vietnam.
Principais origens de importações
de produtos têxteis e confeccionados
(US$)
MADE IN CHINA
304
milhões
MADE IN BANGLADESH
MADE IN INDONÉSIA
20
milhões
22
milhões
MADE IN ÍNDIA
32
milhões
MADE IN VIETNÃ
17
milhões
Valéria Said, jornalista, pesquisadora em moda e
política e co-organizadora e curadora de conteúdo e debates
no movimento Fashion Revolution em Belo Horizonte,
destaca como o consumo consciente é importante: “Para
você comprar uma roupa de 30 reais, é porque alguém lá
atrás foi muito explorado”. Usando um vestido vintage
anos 1960 comprado em brechó, ela fala do preconceito que
existe em comprar roupas de segunda mão. Muitas pessoas
acreditam que as roupas compradas em bazar são roupas de
pessoas que já morreram, e que a energia do morto poderia
passar para elas. Valéria afirma: “você tem medo da energia
de um morto, eu acho que você deveria ter medo da energia
das mulheres vivas que estão sendo escravizadas para
fazer essa roupa, e que você não quer comprar em brechó,
prefere comprar em fast fashion. Espírito por espírito, eu
acho que o espírito de uma viva merece muito mais a sua
misericórdia do que o de um morto.”
O Fashion Revolution é um movimento global sem fins
lucrativos com o objetivo de promover a conscientização
sobre como a atual cadeia de produção das roupas
funciona e o seu impacto, mostrando o verdadeiro custo
da moda que consumimos. A representante do Fashion
Revolution em Belo Horizonte, Lívia Monteiro, 33, conta
que o movimento surgiu em 2013, quando o edifício Rana
Plaza em Bangladesh desabou, causando a morte de 1.134
trabalhadores da indústria de confecção e deixando mais
de 2.500 feridos. As vítimas trabalhavam para marcas
globais, em condições análogas à escravidão, e já haviam
alertado sobre rachaduras no edifício, sem que nenhuma
providência fosse tomada. “Você tem a sua roupa linda,
maravilhosa. Mas a custo de que? Tem gente que está
perdendo a vida para fazer a sua roupa da moda”. Isso
despertou em algumas pessoas na Inglaterra, país berço do
movimento, a vontade de questionar essa cadeia produtiva
da moda, que até então ficava, de certa forma, escondida.
Desde então, todo dia 24 de abril, data do desabamento,
as pessoas passaram a tirar fotos das etiquetas de suas roupas
e enviar para as redes sociais das marcas com a pergunta
“Quem fez minhas roupas?”. Muitas marcas não respondiam.
Assim, o movimento cresceu, espalhando-se para diversos
países e necessitando de mais dias para contemplar os
assuntos que iam surgindo, tornando-se a Semana do
Fashion Revolution, que aborda diversas discussões a respeito
da moda. Temas como feminismo, sustentabilidade, racismo,
direitos humanos e comunicação são recorrentes.
Fonte: Abit (2019)
74
Moda: de onde vem e para onde vai
Pintura de Elisabeth Vigée-Le Brun (1783) Palácio de Versalhes
Durante a 6ª Semana Fashion Revolution em Belo
Horizonte, que ocorreu entre os dias 22 a 28 de abril de 2019,
no Museu da Moda, Valéria Said ministrou uma palestra
sobre “Roupas Subversivas & Feminismo”, na qual ela falou
um pouco sobre como a moda nasceu e como ela é uma
manifestação política que influenciou em várias mudanças
sociais importantes.
Foi durante o reinado de Luís XVI e Maria Antonieta que
a palavra “moda” surgiu. Foi durante esse mesmo reinado
que se desencadeou a Revolução Francesa, no século XVIII.
A realeza era extravagante e ditava as tendências da moda
na época. Valéria Said fala sobre como havia uma competição
por status através da indumentária, pois o consumo era uma
forma de demonstrar o poder de um nobre para outro.
Com o surgimento da burguesia, porém, iniciou-se
o processo de aceleração da moda, já que essa nova classe
tentava copiar os tecidos, cores e moldes das vestimentas
da corte, além da forma de agir. Para que a burguesia não
tivesse tempo de copiá-la, a corte começou a modificar as
tendências de vestimenta e etiqueta de forma mais rápida,
alavancando o mercado da moda na França e tornando Paris
a capital da moda na Europa.
Foi a partir da Revolução Industrial iniciada na
Inglaterra, na segunda metade do século XVIII, que o
setor fabril de tecidos passou a contar com a aceleração
da produção e, portanto, da moda. A Revolução Industrial
trouxe invenções como a máquina de costura e outros
equipamentos para a produção de tecidos, o que diminuiu
La Reine en Gaulle (1783)
Maria Antonieta na
retaguarda da moda.
Quem ama não mata
Valéria Said destaca a subversão e
alforria feminina no mundo fashion.
o custo do produto, e finalmente foi possível que as pessoas
fora da elite pudessem adentrar nesse mundo do fashion.
Por volta de 1820, surgiu, na Inglaterra e na França, a
confecção industrial. Pela primeira vez, às centenas, as
peças saíam prontas das fábricas, idênticas e mais baratas.
Nesse contexto, surge o sistema que conhecemos hoje, o
Fast Fashion. Esse modelo consiste em empresas globais que
captam o que as marcas renomadas estão criando e fabricam
peças parecidas em larga escala, com qualidade inferior, em
países em que a fabricação e a mão de obra são mais baratas,
diminuindo muito o preço do produto final. O sistema de moda
globalizada faz com que os mesmos modelos padronizados
circulem por toda a rede de lojas ao redor do mundo, ignorando
as particularidades de cada local, clima e biotipo corporal.
No Fast Fashion, a ideia é que as tendências durem pouco,
para que as pessoas consumam mais peças em um período de
tempo menor, buscando “estar sempre na moda”, alimentando
o ciclo do mercado. O economista italiano Enrico Cietta fala em
seu livro “A Economia da Moda”, de 2019, que “não foi o fastfashion
que criou a moda veloz, e sim o sistema interconectado
de transmissão que favoreceu o seu sucesso. A média de uma
música foi reduzida a partir do momento em que a transmissão
de rádio tornou a difusão da música muito mais veloz. A
média de tempo em que um filme fica em cartaz nas salas de
cinema diminuiu com a televisão aberta e por assinatura. Por
que deveria ser diferente com a moda?”. O problema é que a
indústria da moda tomou enormes proporções e está causando
consequências negativas irreversíveis no mundo inteiro. Como
uma alternativa ao Fast Fashion, um outro sistema ganha
destaque nas mídias: o Slow Fashion.
EDIÇÃO 27 | CURINGA
75
Cultura Extrativista
Retaguarda da moda
A moda tem futuro?
Natália Mori, especialista em Estética e Gestão de
Moda, escreve que o Slow Fashion é um movimento
de moda sustentável e consciente que se articula em
oposição ao consumismo desenfreado. Ele foi criado
pela inglesa Kate Fletcher, buscando inspiração no
movimento Slow Food, idealizado por Carlo Petrini,
em 1986, na Itália. O Slow Food divulga o consumo
saudável de alimentos e a prática do natural, indo
contra a industrialização e o Fast Food. Já o Slow
Fashion tem por objetivo despertar a consciência ética
e o consumo de produtos com maior qualidade, feitos
em pequena escala, indo contra a massificação da moda
atual. Ele preza despertar a consciência e a prática de
sustentabilidade tanto nos consumidores quanto na
indústria de moda. Esse movimento vem ganhando
força no mercado da moda internacional e, aos poucos,
começa a aparecer no Brasil. Questões como a aceleração
do consumo, a mão de obra escrava, o trabalho infantil,
a baixa qualidade e a pouca durabilidade das peças são
discutidas e criticadas pelo Slow Fashion.
Cristiane Laila, dona do Ateliê de Criação Cris Maria,
em Juiz de Fora (MG), conta que começou os primeiros
pontos da costura aos 5 anos: “Fui criada entre os tecidos,
máquinas, moldes, linhas e agulhas”. Ela é a neta mais
nova de uma família de costureiras de Muriaé (MG).
Em seu ateliê, Cristiane, em conjunto com três outras
costureiras, produz peças artesanais únicas, utilizando
retalhos de tecido que sobram das fábricas de roupas
para venda a varejo e para grandes marcas. Ela zela por
uma cadeia de produção justa, em que a precificação das
peças segue uma lógica de não reproduzir a exploração
de mão de obra vista nas produções em série. Por mês,
ela compra cerca de 4 quilos de tecido, e o desperdício no
ateliê é zero. Isso porque, com o que sobra da produção
de roupas, ela faz standards, ecobags e roupas infantis,
que utilizam pedaços menores de tecido. Para ela, “toda
sobra é um pedaço do planeta que é jogado fora”.
Entre as mulheres que resistem aos males do Fast
Fashion, encontramos também Karen Gutierrez,
fundadora da marca Breshop, atualmente com 4 lojas de
brechó nas cidades de Ouro Preto e Conselheiro Lafaiete.
Ela fala que o Breshop foi uma brincadeira que virou
empresa: “minha mãe custou a acreditar, custou a ir na
loja, porque todo mundo achou que era realmente uma
brincadeira. Só que eu levei muito a sério a brincadeira”.
Hoje, ela possui diversos clientes fidelizados e dispõe de
uma costureira para agregar valor ao negócio, que realiza
consertos tanto para o brechó como para os clientes.
Karen acredita no futuro dos brechós. Para ela, as
lojas que hoje vendem roupas novas passarão a vender
também roupas usadas, pois precisamos consumir as
coisas que produzimos em excesso. Ela quer que sua
marca seja pioneira nesse mercado, pois acredita que há
uma tendência muito forte para isso “pegar”. Até pouco
tempo, brechós eram sinônimos de roupas velhas e mal
conservadas. Todavia, essa conotação não se concretiza.
76
Visualidade e disposição
No Breshop as peças de roupa
são organizadas de acordo
com suas tonalidades e estilos.
Visualidade e disposição
No Breshop as peças de roupa
são organizadas de acordo
com suas tonalidades e estilos.
Karen conta como as roupas que chegam ao seu
brechó passam pelo escritório de avaliação, no qual
são examinadas de acordo com a marca, o estado de
conservação e o estilo, já que o Breshop trabalha com
roupas de lançamento, e não roupas no estilo retrô. Para
ela, “o que os clientes mais procuram em qualquer loja
é autoestima”. Por isso, a importância de oferecer ao
cliente um local em que ele se sinta bem, e que venda
artigos de qualidade a um preço mais acessível.
Vanusa Maria, fundadora do brechó Old Chic,
conta que quando montou a loja, há 7 anos, não
existia, em Ouro Preto, nenhum comércio de roupas
usadas. Apesar de nunca ter entrado em um brechó
até então, Vanusa sempre foi apaixonada por
roupas usadas, e cresceu reutilizando as roupas da
patroa de sua mãe. O Old Chic começou na sala da
sua casa, e veio a se tornar uma rede com 3 lojas
na região. Uma grande preocupação de Vanusa é
saber a procedência das roupas que compra, pois
se não houver essa preocupação, existe o risco de
comercializar roupas furtadas. Assim, ela costuma
manter fornecedores fixos.
Na época que a barragem de Fundão se rompeu,
por exemplo, “apareceu muita roupa de doação, é um
momento em que muitos objetos, principalmente
roupas usadas, acabam não percorrendo o caminho que
deveriam, e acabam em brechós. Há o risco de você fazer
uma doação de roupa para determinada causa, e então
você se depara com ela num brechó”. Por isso, ela ressalta
a importância do consumo consciente. A partir dele, você
sabe o que está comprando, de quem está comprando e
qual o caminho que a peça percorreu até a loja.
Tanto o brechó de Karen quanto o de Vanusa
doam as roupas que não foram compradas para
instituições de caridade da região, e ambas acreditam
que o brechó é uma tendência que veio para ficar.
“Eu sinto uma grande distância da minha realidade
para as lojas de Fast Fashion. É uma prestação de
serviço robotizada”, conta Vanusa. Ela afirma que
a sustentabilidade é um caminho sem volta: uma
das maiores marcas de moda do mundo, a H&M,
anunciou, no dia 9 de abril de 2019, que iria começar
a trabalhar com produtos usados no mundo todo.
O ThredUp, um site para revenda online de roupas de
segunda mão, revelou no ThredUp 2018 Resale Report,
uma pesquisa conjunta com a GlobalData, que, em
2018, o mercado internacional de produtos de segunda
mão cresceu 47% em relação ao ano anterior, enquanto
as vendas no varejo cresceram somente 2% no mesmo
período. No Brasil, segundo dados do Serviço Brasileiro
de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), as
micro e pequenas empresas que comercializam artigos
usados cresceram 210% entre 2010 e 2015. De acordo
com estimativas do ThredUp, a porcentagem de roupas e
acessórios vindos de lojas de departamento nos guardaroupas
ao redor do mundo diminuíram de 22% em 2008
para 14% em 2018, e a estimativa é de que esse número
caia para 9% em 2028.
Esses números sinalizam para um dos possíveis
caminhos que a moda pode seguir daqui em diante. Um
caminho no qual Karen e Vanusa apostam e depositam
seus sonhos. Um momento na história da moda em que
empresas, habituadas a olhar para o lucro e montante
produzido, e consumidores, habituados a considerar
o preço e o produto final e acabado, vão dar um passo
atrás. É preciso que nos afastemos para considerar
as origens daquilo que compramos e o impacto que a
produção acelerada e o consumo desmedido têm no
meio ambiente, na saúde das pessoas e nas condições de
vida dos trabalhadores em economias de baixo custo.
A moda, que tanto se renova, precisa mudar.
EDIÇÃO 27 | CURINGA
77
A luta dos Pataxós
gravada nas ruínas
Terra é sinônimo de pertencimento. Os primeiros índios chegaram
como prisioneiros à Fazenda Guarani e, em meio à luta e resistência,
ressignificam o lugar mantendo vivas as tradições do povo Pataxó.
Foto: Glauciene Oliveira
Texto de Joice Valverde
Fotografias de Márcio Gomes
Design de Glauciene Oliveira
O
povo Pataxó nasceu na aldeia Barra Velha no século XVIII, na Bahia. Os conflitos de terra, invasões e perseguições
sofridas, tiveram o ápice no “Fogo de 51”, grande ataque comandado pela polícia baiana e que quase resultou no
extermínio dos Pataxós, em 1951. Com o território tradicional reduzido pela invasão de fazendeiros e o trauma do
massacre, nem todos os Pataxós conseguiram retornar à Barra Velha e acabaram por dividir-se em outros grupos dispersos
pela Bahia e região norte de Minas Gerais. Atualmente, são registradas 36 aldeias Pataxós no Estado da Bahia e seis em
Minas Gerais, das quais três delas estão localizadas em uma fazenda na cidade de Carmésia.
EDIÇÃO 27 | CURINGA
79
Cultura Extrativista
Resistência Indígena
Foto: Márcio Gomes Foto: Márcio Gomes
Pertencer à terra
Os primeiros índios Pataxós chegaram na Fazenda
Guarani, antiga fazenda açucareira já em ruínas, no
município de Carmésia (MG), por volta de 1972 como
prisioneiros. Na época, em meio a Ditadura Civil Militar,
o território foi utilizado como reformatório e confinava
indígenas de todo o país por diversos atos ilícitos. Passada
a Ditadura Civil Militar e o fechamento do reformatório,
os Pataxós permaneceram na Fazenda Guarani e
reivindicaram a demarcação do território, uma vez que os
outros presos já haviam retornado a suas aldeias de origem.
O Decreto Estadual 270, homologado em 30 de
outubro de 1991 e registrado pela FUNAI, reconhece a
reserva como terra dos Pataxós. De acordo com os últimos
dados do Sistema de Informação da Atenção à Saúde
Indígena (SIASI), em 2014, 335 pessoas vivem em uma
área de 3 mil hectares de reserva indígena da Fazenda
Guarani. Na reserva, as aldeias são separadas em três
clãs independentes e liderados por caciques diferentes, a
Sede, liderada pelo cacique Mesaque Pataxó, a Imbiruçu,
pelo cacique Romildo Pataxó e a Encontro das Águas,
liderada pela cacique Apinaera Pataxó.
80
Foto: Márcio Gomes
Filhos da Água
Os Pataxós se denominam filhos da água. A
origem do nome Pataxó, segundo a tradição do
povo, está ligada a um velho índio que observava o
movimento das águas na beira do mar e notou que,
quando as ondas se chocavam com as pedras, emitia
os sons “Pá” do movimento, “Tá” ao bater na pedra e
”Xó” quando retornava ao mar.
Ainda segundo a mitologia Pataxó, o índio teria
surgido da chuva. Txopai, para eles o primeiro Pataxó e
dono de toda a sabedoria da natureza, antes de morrer
fez um ritual para chover e cada pingo de chuva teria se
transformado em um Pataxó.
A água é então o príncipio do povo Pataxó, é
sagrada aos rituais de batismo e purificação e é fonte
de sobrevivência à lavoura e ao consumo. Deste modo, a
Festa da Chuva é um tradicional ritual em agradecimento
ao tempo da chuva e, consequentemente, da colheita.
As danças, músicas e brincadeiras, celebram o protetor
das águas Txopai e o Deus (Niamissu) pela plantação
sucedida. Ao final da festa, os índios banham-se no lago,
para eles sagrado, para purificar o corpo.
Foto: Márcio Gomes
“
Com a chegada da chuva surgem novas
vidas, fartura para nossa alimentação e,
é através da chuva que nós retiramos o
sustento da terra.
”
Araribe Pataxó
EDIÇÃO 27 | CURINGA
81
Cultura Extrativista
Resistência Indígena
Língua de Guerreiro
A raíz dos Pataxós está na preservação da sua língua
e dos elementos tradicionais da cultura do povo. A língua
mãe é o Patxohã, que significa linguagem de guerreiro
(pat são as iniciais de Pataxó: atxohã é língua e Xôhã é
guerreiro). Durante muitos anos, os Pataxós perderam
completamente o contato com a língua materna, pois,
desde a chegada dos portugueses ao Brasil, eram
proibidos de se comunicarem na sua língua. O Patxohã
era falado de forma oculta apenas entre os mais velhos.
A necessidade de se resgatar a história motivou o
processo de revitalização da língua, através de pesquisa
em registros e principalmente conversas com os índios
mais velhos das aldeias sobre as palavras que eram
faladas no dia-a-dia, nas músicas e rituais tradicionais. O
processo de pesquisa possibilitou o acesso a mais de
2.500 palavras e, atualmente, o Patxohã é ensinado
nas escolas indígenas para preservar a história e
memória do povo.
Raízes da Cultura
Do alto dos seus 94 anos, Dona Maria simboliza
dentro da aldeia o elo de ligação entre o passado e o
presente. Nascida na Fazenda Guarani e casada com o
antigo cacique Pataxó, foi submetida a trabalho análogo
ao escravo, assim como seu pai e toda a família, e hoje
guarda, com invejável lucidez, as transformações pelas
quais viu o lugar passar.
O relato de Dona Maria aponta que a fazenda era
quase uma cidade particular com banco, fábricas e
comércios, em propriedade do português Guimarães,
erguida e mantida por força escrava. Ela conta que
trabalhou na extração do fio de seda nas lagartas e
recebia pelo trabalho 1 “boró”, cartão de papelão que
circulava monetariamente em comércios dentro da
própria fazenda. Dona Maria é um acervo vivo do qual
floresce a memória dos Pataxós.
Natureza como Patrimônio
Os conhecimentos da natureza foram transmitidos de
Txopai para os mais velhos e são repassados aos mais novos.
É da terra onde se extraem as plantas, raízes e frutas
para banho ou chá contra veneno de cobra, recursos para
acompanhar nascimentos, o banho com banana da terra
ou banha de gambá para amenizar as dores do parto.
Além da medicina tradicional, a relação com a
natureza se apresenta no respeito aos conhecimentos
tradicionais. As quadras da Lua são seguidas
rigorosamente para determinar o tempo certo para
se obter melhor qualidade na caça e durabilidade na
extração de recursos.
Foto: Márcio Gomes
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Foto: Joice Valverde
“
No tempo dele, isso aqui tudo era lavoura, tinha
todo tipo de planta. Carro para tirar os mantimentos
daqui era “carcunda” de burro. E tinham os pastos
tudo separados e fechados com essa madeira forte,
que não quebra nunca,
” Dona Maria
EDIÇÃO 27 | CURINGA
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Cultura Extrativista
Resistência Indígena
Foto: Joice Valverde
Foto: Joice Valverde
Mãos Artesãs
Os Pataxós são conhecidos pela diversidade de seus
artesanatos, desde miniaturas à canoas e barcos. A arte
representa tanto uma forma de disseminar a prática do
artesanato aprendida com os antepassados, como também
uma fonte de renda complementar para a comunidade.
Cada artesanato tem um significado e uma adequação
para um determinado ritual, além da produção ser
também dividida entre mulheres e homens. As mulheres
são responsáveis pela confecção de pequenas peças,
como colares, brincos, pulseiras e cocares, enquanto
os homens produzem as peças maiores, como arcos e
flechas, lanças, zarabatanas e canoas.
84
Foto: Márcio Gomes
Originalmente, todos os recursos são extraídos da natureza, como a linha
da palmeira Tucum, mas, devido a escassez de recursos pela devastação das
florestas, a matéria prima dos artesanatos vêm sendo substituídas por materiais
comercializados, mesclando, por exemplo, entre sementes e miçangas.
EDIÇÃO 27 | CURINGA
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Cultura Extrativista
Resistência Indígena
Foto: Joice Valverde
Segunda pele
A pintura corporal Pataxó é um forte elemento espiritual de expressão da história e tradições do povo.
Elas são utilizadas com o objetivo de representar sentimentos de acordo com cada ritual, casamentos
e danças; para simbolizar união, proteção, fartura, alegria e força. As pinturas são diferenciadas por
tamanhos e traços para mulheres e homens, assim como solteiras (os) e casadas (os). Os recursos para
a pintura são extraídos da natureza. O urucum para a cor vermelha, que representa o sangue derramado
do povo Pataxó e o jenipapo ou carvão para o preto, que representa o luto pelos ancestrais assassinados.
Uma das pinturas tradicionais que acompanha os Pataxós faz referência às principais aldeias da Bahia
(Boca da Mata e Coroa Vermelha) e à aldeia mãe. Um traço maior representando a aldeia mãe é feito ao
centro de outros dois menores, em memória às duas outras aldeias.
Foto: Márcio Gomes
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Waykgohã Pataxó
“Lute guerreiro.”
Foto: Glauciene Oliveira
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