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Pense no Garfo! - Bee Wilson

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norte-americanos, que meu marido trouxe para mim de uma viagem a

Washington. Era nessa caneca que eu tomava meu chá, de manhã cedo. Usar

qualquer outra caneca não teria o mesmo efeito; ela era parte crucial do ritual

matutino. Aos poucos, os rostos dos presidentes foram desbotando, e era difícil

distinguir Chester Arthur de Grover Cleveland. Passei a gostar ainda mais da

caneca. Se via outra pessoa bebendo alguma coisa nela, tinha a sensação secreta

de que essa pessoa estava pisando no meu túmulo. A caneca por fim se espatifou

na lava-louça, o que foi um alívio, de certo modo. Não a substituí.

Os fragmentos ou “cacos” de cerâmica são frequentemente os vestígios mais

duradouros deixados por uma civilização, e a melhor porta de acesso para

conhecermos os valores dos indivíduos que os usaram. Por isso, os arqueólogos

gostam de denominar os povos de acordo com os objetos de cerâmica deixados

por eles. Houve a Cultura dos Vasos Campaniformes, do terceiro milênio antes da

era cristã, que atravessou toda a Europa, desde a península Ibérica e da região

central da Alemanha, até chegar às ilhas britânicas, por volta de 2000 a.C. Essa

população veio depois da Cultura dos Vasos em Forma de Funil e da Cultura da

Cerâmica Cordada. Em todos os lugares onde esteve, a Cultura Campaniforme

deixou vestígios de recipientes para bebida, feitos de argila castanhoavermelhada,

em formato de sino. Ele poderia ter sido chamado de Povo da

Adaga de Sílex ou Povo do Machado de Pedra (já que também os usava), mas,

por alguma razão, a cerâmica é mais evocativa de culturas inteiras. Sabemos que

os integrantes da Cultura dos Vasos Campaniformes gostavam de ser sepultados

com um vaso cerâmico a seus pés – presume-se que para o alimento e a bebida

de que necessitariam na vida após a morte. Nossa própria cultura possui tantas

coisas que a cerâmica perdeu grande parte de sua importância anterior, mas

ainda é uma das poucas posses universais. Talvez, daqui a muitas centenas de

anos, quando nossa cultura tiver sido enterrada por este ou aquele apocalipse, os

arqueólogos comecem a escavar nossos restos e nos chamem de Comunidade

das Taças: fomos um povo que gostava que sua cerâmica tivesse cores vivas,

fosse grande o bastante para conter volumes consideráveis de bebidas cafeinadas

reconfortantes e, acima de tudo, pudesse ir à lava-louça.

A própria existência da cerâmica marcou uma etapa tecnológica de suma

importância no desenvolvimento da cultura humana. O oleiro pega a argila

grosseira e amorfa e a umedece, tempera, molda e queima, dando-lhe uma

forma duradoura: trata-se de uma ordem de criação diferente de tirar lascas de

pedras, madeira ou ossos. Os vasos de argila trazem as marcas das mãos

humanas. Há algo de mágico no processo da olaria e, com efeito, era comum os

primeiros oleiros terem na comunidade um segundo papel, como xamãs. A

arqueóloga Kathleen Kenyon, que desenterrou em Jericó muitos fragmentos de

cerâmica datados de 7000 a.C., descreveu os primórdios da olaria como uma

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