BARTHES, Roland. Aula inaugural da cadeira de semiologia do Colégio de França (07-01-1977)
Barthes auf Portugiesisch
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de repercussões, de voltas, de rodeios, de redentes; ela assume o fazer ouvir um
sujeito ao mesmo tempo insistente e insituável, desconhecido e no entanto
reconhecido segundo uma inquietante familiaridade: as palavras não são mais
concebidas ilusoriamente como simples instrumentos, são lançadas como projeções,
explosões, vibrações, maquinarias, sabores: a escritura faz do saber uma festa.
O paradigma que aqui proponho não segue a partilha das funções; não visa a
colocar de um lado os cientistas, os pesquisadores, e de outro os escritores, os
ensaístas; ele sugere, pelo contrário, que a escritura se encontra em toda parte onde
as palavras têm sabor (saber e sabor têm, em latim, a mesma etimologia). Curnonski
dizia que, na culinária, é preciso que “as coisas tenham o gosto do que são”. Na
ordem do saber, para que as coisas se [pág. 20] tornem o que são, o que foram, é
necessário esse ingrediente, o sal das palavras. É esse gosto das palavras que faz o
saber profundo, fecundo. Sei, por exemplo, que muitas proposições de Michelet são
recusadas pela ciência histórica; isso não impede que Michelet tenha fundado algo
como a etnologia da França e que, cada vez que um historiador desloca o saber
histórico, no sentido mais largo do termo e qualquer que seja seu objeto, nele
encontramos simplesmente: uma escritura.
A segunda força da literatura, é sua força de representação. Desde os tempos
antigos até as tentativas da vanguarda, a literatura se afaina na representação de
alguma coisa. O quê? Direi brutalmente: o real. O real não é representável, e é
porque os homens querem constantemente representá-lo por palavras que há uma
história da literatura. Que o real não seja representável — mas somente
demonstrável — pode ser dito de vários modos: quer o definamos, com Lacan, como
o impossível, o que não pode ser atingido e escapa ao discurso, quer se verifique, em
termos topológicos, que não se pode fazer coincidir uma ordem pluridimensional (o
real) e uma ordem unidimensional [pág. 21] (a linguagem). Ora, é precisamente a
essa impossibilidade topológica que a literatura não quer, nunca quer render-se. Que
não haja paralelismo entre o real e a linguagem, com isso os homens não se
conformam, e é essa recusa, talvez tão velha quanto a própria linguagem, que
produz, numa faina incessante, a literatura. Poderíamos imaginar uma história da
literatura, ou, melhor, das produções de linguagem, que seria a história dos
expedientes verbais, muitas vezes louquíssimos, que os homens usaram para reduzir,