06.02.2021 Views

BARTHES, Roland. Aula inaugural da cadeira de semiologia do Colégio de França (07-01-1977)

Barthes auf Portugiesisch

Barthes auf Portugiesisch

SHOW MORE
SHOW LESS
  • No tags were found...

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

de repercussões, de voltas, de rodeios, de redentes; ela assume o fazer ouvir um

sujeito ao mesmo tempo insistente e insituável, desconhecido e no entanto

reconhecido segundo uma inquietante familiaridade: as palavras não são mais

concebidas ilusoriamente como simples instrumentos, são lançadas como projeções,

explosões, vibrações, maquinarias, sabores: a escritura faz do saber uma festa.

O paradigma que aqui proponho não segue a partilha das funções; não visa a

colocar de um lado os cientistas, os pesquisadores, e de outro os escritores, os

ensaístas; ele sugere, pelo contrário, que a escritura se encontra em toda parte onde

as palavras têm sabor (saber e sabor têm, em latim, a mesma etimologia). Curnonski

dizia que, na culinária, é preciso que “as coisas tenham o gosto do que são”. Na

ordem do saber, para que as coisas se [pág. 20] tornem o que são, o que foram, é

necessário esse ingrediente, o sal das palavras. É esse gosto das palavras que faz o

saber profundo, fecundo. Sei, por exemplo, que muitas proposições de Michelet são

recusadas pela ciência histórica; isso não impede que Michelet tenha fundado algo

como a etnologia da França e que, cada vez que um historiador desloca o saber

histórico, no sentido mais largo do termo e qualquer que seja seu objeto, nele

encontramos simplesmente: uma escritura.

A segunda força da literatura, é sua força de representação. Desde os tempos

antigos até as tentativas da vanguarda, a literatura se afaina na representação de

alguma coisa. O quê? Direi brutalmente: o real. O real não é representável, e é

porque os homens querem constantemente representá-lo por palavras que há uma

história da literatura. Que o real não seja representável — mas somente

demonstrável — pode ser dito de vários modos: quer o definamos, com Lacan, como

o impossível, o que não pode ser atingido e escapa ao discurso, quer se verifique, em

termos topológicos, que não se pode fazer coincidir uma ordem pluridimensional (o

real) e uma ordem unidimensional [pág. 21] (a linguagem). Ora, é precisamente a

essa impossibilidade topológica que a literatura não quer, nunca quer render-se. Que

não haja paralelismo entre o real e a linguagem, com isso os homens não se

conformam, e é essa recusa, talvez tão velha quanto a própria linguagem, que

produz, numa faina incessante, a literatura. Poderíamos imaginar uma história da

literatura, ou, melhor, das produções de linguagem, que seria a história dos

expedientes verbais, muitas vezes louquíssimos, que os homens usaram para reduzir,

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!