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VERÃO 2022 – EDIÇÃO 6

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Dom João VI | Gravura do acervo da Biblioteca Nacional<br />

Rei em fuga <strong>–</strong> Apenas 14 anos depois de sua chegada ao Brasil, assegurada a<br />

derrota definitiva das ameaçadoras tropas napoleônicas alguns anos antes, o rei retornou<br />

a Lisboa com sua corte. É provável que seu orgulho pela obra construída em<br />

poucos anos tenha se misturado com uma indagação mais íntima acerca do tempo<br />

perdido com descaso por tantas gerações reais lusitanas. O rei deixava no Brasil um<br />

potencial de geração de riqueza infinitamente superior a todo o acúmulo de reservas<br />

douradas extraídas nos 300 anos coloniais, mas era tarde demais. Seu retorno a<br />

Portugal era a viagem derradeira de um rei em declínio diante da supremacia militar<br />

do Império Britânico. A história avançava em novas cenas.<br />

Mundo afora, a fuga do rei seria motivo para algum levante organizado pelos colonos<br />

e compatriotas em busca de sua independência política. Laços seriam desfeitos,<br />

batalhas seriam travadas, sangue seria heroicamente derramado, uma nova identidade<br />

seria cantada aos quatro ventos. Nada disso ocorreu por estes trópicos complacentes.<br />

Por aqui, o filho do rei, seu herdeiro natural na Coroa portuguesa, apressou-<br />

-se em proclamar a independência do Brasil, num ato de (pretensa) rebeldia juvenil<br />

contra seu pai. Antes de ser cômico ou caricato, tal ato marcou imensamente a essência<br />

da nossa cultura brasileira como um ambiente avesso a grandes gritos e grilos.<br />

Essa foi a expressão cultural de um povo explorado por mais de 300 anos àquela<br />

altura, em que mesmo a elite incipiente não se enxergava como representante de<br />

valores nacionais, mas sim como europeus desbravadores de fronteiras agrícolas<br />

e minerais, proprietários de índios e negros. Um eventual conflito entre patriotas e<br />

colonizadores também se mostrou inviável: a população em geral era composta de<br />

pessoas alienadas e alheias às questões nacionais, e a elite estabelecida mantinha<br />

seus privilégios e ativos. Somos, ainda hoje, cordiais na forma, cordatos no conteúdo.<br />

Nosso Primeiro Reinado como nação foi marcado pela indiferença e pelo abandono.<br />

Dom Pedro I estava mais interessado em viver sua vida do que em liderar as vidas<br />

nacionais. Não completou nem uma década no trono. Em 1831, deixou o Brasil nas<br />

mãos de seu filho de 6 anos de idade, providencialmente tutelado por regentes. O<br />

mesmo imperador que havia, alguns anos antes, reivindicado a nação para si, para<br />

o bem de todos e felicidade geral, terminava por abandoná-la. Era já tempo de retornar<br />

à real civilização.<br />

Pátria com p minúsculo <strong>–</strong> O Segundo<br />

Reinado seria um dos períodos<br />

mais tensos de nossa frágil pátria em<br />

formação. Seus mecanismos operacionais<br />

limitavam-se ao agronegócio<br />

exportador, enquanto a elite político-<br />

-econômica desenvolvia-se com dificuldades<br />

diante de tantos conflitos<br />

provincianos, tantas lacunas institucionais,<br />

tantas fragilidades em infraestrutura.<br />

As famílias brasileiras em<br />

ascensão econômica orgulhavam-se<br />

de enviar seus jovens herdeiros para se<br />

formar nas universidades europeias,<br />

ganhando ares civilizatórios ausentes<br />

nos quentes campos rurais. Por meio<br />

do golpe da maioridade, o jovem dom<br />

Pedro II assumiu o trono em 1840 e<br />

acalmou os ânimos liberais e conservadores.<br />

Reinaria por quase 50 anos <strong>–</strong><br />

nosso recorde jamais superado por outro<br />

governante <strong>–</strong>, enfrentando crises<br />

políticas e fortalecendo instituições relevantes<br />

para o país. Deixou o poder em<br />

1889, já idoso, com a celebrada proclamação<br />

da República Federativa do Brasil<br />

por um marechal <strong>–</strong> novamente, sem<br />

um único tiro. O Brasil avançava em<br />

berço esplêndido de Colônia a República,<br />

financeiramente dependente de capital<br />

estrangeiro, socialmente dividido<br />

entre elites aristocráticas latifundiárias<br />

e negros recém-emancipados.<br />

A identidade nacional ainda era algo difuso,<br />

ausente nos usos e costumes dos<br />

locais, inexistente no arcabouço semiótico<br />

da sociedade que se desenvolvia na<br />

transição lenta do campo para as cidades.<br />

Mas o país se conectava por emergentes<br />

ferrovias, telégrafos e portos,<br />

as cidades cresciam com as emergentes<br />

classes mercantis, os escravos<br />

haviam sido finalmente libertados e<br />

os símbolos nacionais eram gradualmente<br />

consolidados. O Império durou<br />

apenas 67 anos, reticente diante de<br />

raízes ausentes, narrativas fabricadas,<br />

personagens apáticos. Por outro lado, o<br />

período imperial iniciou uma trajetória<br />

autônoma de nação, com todos os seus<br />

desafios e incongruências, mas ainda<br />

assim uma nação brasileira.<br />

Mesmo o período republicano já nasceu<br />

como República Velha, justamente<br />

por seu apego aos valores e princípios,<br />

usos e costumes do período<br />

monárquico. É verdade que tivemos<br />

uma nova Constituição promulgada,<br />

mas nada que impactasse nossa identidade<br />

patriótica. Após dois militares,<br />

tivemos uma sequência de civis na<br />

Presidência Executiva, todos oriundos<br />

das elites agrárias dominantes. O<br />

efetivo status quo agrário exportador<br />

manteve-se quase intacto na transição<br />

política, com insignificantes mudanças<br />

nos controles dos meios de produção<br />

<strong>–</strong> algo raro em grandes movimentos<br />

de transformação sociopolítica de nações.<br />

No Brasil, a elite latifundiária não<br />

apenas manteve seus privilégios como<br />

ainda ampliou seus poderes, conquistando<br />

inclusive a Presidência da República.<br />

Nossas eleições eram peças<br />

de ficção diante de massas populares<br />

com voto de cabresto e profusa manipulação<br />

dos votos <strong>–</strong> um Carnaval fora<br />

de época. Nas primeiras três décadas<br />

republicanas, instituições foram reformadas<br />

para deixar suas referências<br />

monárquicas, novas lideranças políticas<br />

emergiram no cenário nacional,<br />

velhas questões econômicas e sociais<br />

continuaram sendo procrastinadas.<br />

D. Pedro II e a imperatriz em viagem <strong>–</strong> vista do porto do Rio de Janeiro no dia 25 de maio de 1871 | Gravura do acervo da Biblioteca Nacional<br />

<strong>VERÃO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 6 • PÁG. 15<br />

<strong>VERÃO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 6 • PÁG. 14

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