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Dom João VI | Gravura do acervo da Biblioteca Nacional<br />
Rei em fuga <strong>–</strong> Apenas 14 anos depois de sua chegada ao Brasil, assegurada a<br />
derrota definitiva das ameaçadoras tropas napoleônicas alguns anos antes, o rei retornou<br />
a Lisboa com sua corte. É provável que seu orgulho pela obra construída em<br />
poucos anos tenha se misturado com uma indagação mais íntima acerca do tempo<br />
perdido com descaso por tantas gerações reais lusitanas. O rei deixava no Brasil um<br />
potencial de geração de riqueza infinitamente superior a todo o acúmulo de reservas<br />
douradas extraídas nos 300 anos coloniais, mas era tarde demais. Seu retorno a<br />
Portugal era a viagem derradeira de um rei em declínio diante da supremacia militar<br />
do Império Britânico. A história avançava em novas cenas.<br />
Mundo afora, a fuga do rei seria motivo para algum levante organizado pelos colonos<br />
e compatriotas em busca de sua independência política. Laços seriam desfeitos,<br />
batalhas seriam travadas, sangue seria heroicamente derramado, uma nova identidade<br />
seria cantada aos quatro ventos. Nada disso ocorreu por estes trópicos complacentes.<br />
Por aqui, o filho do rei, seu herdeiro natural na Coroa portuguesa, apressou-<br />
-se em proclamar a independência do Brasil, num ato de (pretensa) rebeldia juvenil<br />
contra seu pai. Antes de ser cômico ou caricato, tal ato marcou imensamente a essência<br />
da nossa cultura brasileira como um ambiente avesso a grandes gritos e grilos.<br />
Essa foi a expressão cultural de um povo explorado por mais de 300 anos àquela<br />
altura, em que mesmo a elite incipiente não se enxergava como representante de<br />
valores nacionais, mas sim como europeus desbravadores de fronteiras agrícolas<br />
e minerais, proprietários de índios e negros. Um eventual conflito entre patriotas e<br />
colonizadores também se mostrou inviável: a população em geral era composta de<br />
pessoas alienadas e alheias às questões nacionais, e a elite estabelecida mantinha<br />
seus privilégios e ativos. Somos, ainda hoje, cordiais na forma, cordatos no conteúdo.<br />
Nosso Primeiro Reinado como nação foi marcado pela indiferença e pelo abandono.<br />
Dom Pedro I estava mais interessado em viver sua vida do que em liderar as vidas<br />
nacionais. Não completou nem uma década no trono. Em 1831, deixou o Brasil nas<br />
mãos de seu filho de 6 anos de idade, providencialmente tutelado por regentes. O<br />
mesmo imperador que havia, alguns anos antes, reivindicado a nação para si, para<br />
o bem de todos e felicidade geral, terminava por abandoná-la. Era já tempo de retornar<br />
à real civilização.<br />
Pátria com p minúsculo <strong>–</strong> O Segundo<br />
Reinado seria um dos períodos<br />
mais tensos de nossa frágil pátria em<br />
formação. Seus mecanismos operacionais<br />
limitavam-se ao agronegócio<br />
exportador, enquanto a elite político-<br />
-econômica desenvolvia-se com dificuldades<br />
diante de tantos conflitos<br />
provincianos, tantas lacunas institucionais,<br />
tantas fragilidades em infraestrutura.<br />
As famílias brasileiras em<br />
ascensão econômica orgulhavam-se<br />
de enviar seus jovens herdeiros para se<br />
formar nas universidades europeias,<br />
ganhando ares civilizatórios ausentes<br />
nos quentes campos rurais. Por meio<br />
do golpe da maioridade, o jovem dom<br />
Pedro II assumiu o trono em 1840 e<br />
acalmou os ânimos liberais e conservadores.<br />
Reinaria por quase 50 anos <strong>–</strong><br />
nosso recorde jamais superado por outro<br />
governante <strong>–</strong>, enfrentando crises<br />
políticas e fortalecendo instituições relevantes<br />
para o país. Deixou o poder em<br />
1889, já idoso, com a celebrada proclamação<br />
da República Federativa do Brasil<br />
por um marechal <strong>–</strong> novamente, sem<br />
um único tiro. O Brasil avançava em<br />
berço esplêndido de Colônia a República,<br />
financeiramente dependente de capital<br />
estrangeiro, socialmente dividido<br />
entre elites aristocráticas latifundiárias<br />
e negros recém-emancipados.<br />
A identidade nacional ainda era algo difuso,<br />
ausente nos usos e costumes dos<br />
locais, inexistente no arcabouço semiótico<br />
da sociedade que se desenvolvia na<br />
transição lenta do campo para as cidades.<br />
Mas o país se conectava por emergentes<br />
ferrovias, telégrafos e portos,<br />
as cidades cresciam com as emergentes<br />
classes mercantis, os escravos<br />
haviam sido finalmente libertados e<br />
os símbolos nacionais eram gradualmente<br />
consolidados. O Império durou<br />
apenas 67 anos, reticente diante de<br />
raízes ausentes, narrativas fabricadas,<br />
personagens apáticos. Por outro lado, o<br />
período imperial iniciou uma trajetória<br />
autônoma de nação, com todos os seus<br />
desafios e incongruências, mas ainda<br />
assim uma nação brasileira.<br />
Mesmo o período republicano já nasceu<br />
como República Velha, justamente<br />
por seu apego aos valores e princípios,<br />
usos e costumes do período<br />
monárquico. É verdade que tivemos<br />
uma nova Constituição promulgada,<br />
mas nada que impactasse nossa identidade<br />
patriótica. Após dois militares,<br />
tivemos uma sequência de civis na<br />
Presidência Executiva, todos oriundos<br />
das elites agrárias dominantes. O<br />
efetivo status quo agrário exportador<br />
manteve-se quase intacto na transição<br />
política, com insignificantes mudanças<br />
nos controles dos meios de produção<br />
<strong>–</strong> algo raro em grandes movimentos<br />
de transformação sociopolítica de nações.<br />
No Brasil, a elite latifundiária não<br />
apenas manteve seus privilégios como<br />
ainda ampliou seus poderes, conquistando<br />
inclusive a Presidência da República.<br />
Nossas eleições eram peças<br />
de ficção diante de massas populares<br />
com voto de cabresto e profusa manipulação<br />
dos votos <strong>–</strong> um Carnaval fora<br />
de época. Nas primeiras três décadas<br />
republicanas, instituições foram reformadas<br />
para deixar suas referências<br />
monárquicas, novas lideranças políticas<br />
emergiram no cenário nacional,<br />
velhas questões econômicas e sociais<br />
continuaram sendo procrastinadas.<br />
D. Pedro II e a imperatriz em viagem <strong>–</strong> vista do porto do Rio de Janeiro no dia 25 de maio de 1871 | Gravura do acervo da Biblioteca Nacional<br />
<strong>VERÃO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 6 • PÁG. 15<br />
<strong>VERÃO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 6 • PÁG. 14