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VERÃO 2022 – EDIÇÃO 6

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<strong>VERÃO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 6<br />

Et cetera<br />

Gente com Bossa<br />

Claude Troisgros, o chef franco-carrrioca<br />

Viviane Mosé, a filósofa que ama a vida<br />

Papatinho, o produtor musical dos hits<br />

Sandra Cinto, a artista dos céus e mares<br />

O X da Bossa<br />

1822, 1922 e <strong>2022</strong>: reflexões sobre independência,<br />

modernismo e futuro do Brasil<br />

Comportamento<br />

Três imigrantes contam como foram (ou não)<br />

acolhidos pelos brasileiros<br />

“Nos momentos difíceis a gente tem que<br />

tirar a melhor lição, ser criativo e humilde<br />

para aprender com os acontecimentos”<br />

Claude Troisgros<br />

Distribuição gratuita


vintage typewriter | foto: Getty Images<br />

Expediente<br />

Direção Geral Alessandra Lotufo | Direção Editorial e Edição: Daniela Macedo | Textos: Daniel Motta, Daniela<br />

Macedo, Diego Braga Norte, Mariana Amaro, Sérgio Martins e Simone Costa | Arte e Diagramação: Alessandra Lotufo<br />

Produção: Danielle Pasqualoto | Revisão: Ronaldo Barbosa | Gráfica: Elyon<br />

Et cetera é uma publicação trimestral da Bossa.etc. Entre em contato conosco pelo revista@bossa.etc.br


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Sumário<br />

Capa: Claude Troisgros<br />

Foto: divulgação<br />

06<br />

Roteiro<br />

10<br />

Nesta edição, a Et cetera traz as melhores dicas de filmes,<br />

livros, podcast, discos e documentários para você relaxar<br />

e curtir as férias de verão<br />

22<br />

Comportamento<br />

34<br />

Como o Brasil acolhe os estrangeiros forçados a<br />

abandonar casa, família e carreira para fugir da<br />

fome ou da guerra? As histórias de uma venezuelana,<br />

um congolês e um sírio mostram a dura realidade<br />

de imigrantes e refugiados que buscam uma<br />

vida melhor em um país que se diz hospitaleiro<br />

O X da Bossa<br />

Em seu artigo Bossa Além do Quadrado, Daniel Motta<br />

convida o leitor para uma viagem no tempo. Antes de<br />

pisar com os dois pés em <strong>2022</strong>, ano que celebra o bicentenário<br />

da independência e o centenário do movimento<br />

modernista brasileiro, voltamos para 1822 e para 1922 a<br />

fim de refletir sobre a formação da identidade do Brasil<br />

Gente com Bossa<br />

Até onde o pensamento inovador, que desperta novas<br />

ideias, conceitos e conexões, pode nos levar? A resposta<br />

está nas quatro histórias que a seção Gente com Bossa<br />

apresenta nesta edição: um chef, uma artista plástica,<br />

um produtor musical e uma filósofa que alcançaram o<br />

sucesso driblando o tradicional<br />

Foto: Zzn Peres<br />

36<br />

Claude Troisgros<br />

Com alma carioca, o chef francês que desembarcou no<br />

Brasil em 1979 ajudou a mudar a forma como os ingredientes<br />

brasileiros aparecem na alta gastronomia, abriu<br />

pelo menos uma dezena de restaurantes e ganhou notoriedade<br />

comandando panelas (e esbanjando carisma)<br />

em programas de televisão<br />

Foto: Lana Pinho<br />

Foto: divulgação<br />

Foto: arquivo pessoal<br />

44<br />

Viviane Mosé<br />

52<br />

A filósofa, psicanalista, poeta, atriz, coautora de samba e<br />

ex-ginasta Viviane Mosé se dedica a entender os desafios<br />

do mundo contemporâneo, a traduzir filosofia para<br />

as massas e a disseminar diversas manifestações de<br />

arte enquanto lida com suas próprias dores emocionais.<br />

E sem perder o otimismo e o amor à vida<br />

Papatinho<br />

Tiago da Cal Alves, conhecido no showbiz (e até no círculo<br />

familiar) como Papatinho, é um dos mais bem-sucedidos<br />

e requisitados produtores musicais do país. Com um currículo<br />

extenso, esse carioca de 35 anos incorpora beats e<br />

samples que transformam em sucesso produções do rap,<br />

do funk, do samba, do pop e da soul music<br />

60<br />

Sandra Cinto<br />

Na juventude, Sandra Cinto sonhava ser professora de artes,<br />

mas seu talento para criar obras em diferentes modalidades<br />

artísticas falou mais alto. Suas paisagens de céu e<br />

mar desenhadas com canetas de ponta fina já percorreram<br />

o mundo, e ela se tornou uma das principais expoentes<br />

artistas plásticas brasileiras contemporâneas<br />

68<br />

Uma Palavra<br />

69<br />

A seção Uma Palavra desta edição homenageia Fiódor<br />

Dostoiévski. Para celebrar os 200 anos de nascimento<br />

do romancista russo, a página dedicada à literatura<br />

publica um trecho de Crime e Castigo (1866), obra que<br />

reflete sobre o que define justiça e vingança<br />

Um Sabor<br />

Quem não gosta de caju bom sujeito não é. Neste verão, experimente<br />

recriar a brasileiríssima receita de ceviche de<br />

caju da chef Helena Rizzo, que comanda os restaurantes<br />

Maní e Manioca. Vai bem como entrada ou prato principal!<br />

70<br />

Uma Imagem<br />

Anita Malfatti já era moderna antes mesmo da Semana<br />

de Arte de 1922, que impulsionou o movimento no país.<br />

No quadro O Farol, de 1915, há ecos do impressionismo,<br />

com generosas pinceladas à la Van Gogh. Nele estão as<br />

marcas inconfundíveis de Anita: colorido intenso e ousadia<br />

na representação da realidade


[ R O T E I R O ] [ R O T E I R O ]<br />

Séries, filmes etc.<br />

Nomadland<br />

Onde ver: Telecine Play<br />

Duração: 1h46min<br />

Ruína do sonho<br />

americano<br />

O grande vencedor do último Oscar,<br />

enfim, chega ao streaming. Ganhador<br />

nas categorias de melhor filme, direção<br />

(Chloé Zhao) e atriz (Frances McDormand),<br />

Nomadland narra a história de<br />

Fern, uma das vítimas da crise econômica<br />

de 2008. A protagonista perde o<br />

emprego e a casa, e passa a viver em<br />

sua van. Viajando de um local para<br />

outro, segue atrás de oportunidades<br />

sazonais de trabalho. Pelo caminho e<br />

nas paradas, Fern conhece pessoas<br />

em situação semelhante à sua. Misto<br />

de documentário (com vários nômades<br />

reais interpretando eles mesmos) e<br />

ficção, o filme retrata o ocaso do sonho<br />

americano: emprego estável, casa própria<br />

e família feliz. A diretora acerta o<br />

tom na sensibilidade da história e evita<br />

pieguices e dramalhões, mostrando a<br />

jornada de Fern de maneira sóbria, com<br />

fotografia que propositalmente remete<br />

aos clássicos faroestes hollywoodianos<br />

e faz, ao mesmo tempo, uma homenagem<br />

e desconstrução do gênero americano<br />

por excelência.<br />

A Fuller Life<br />

Onde ver: Sesc Digital<br />

Duração: 1h20min<br />

Being the Ricardos<br />

Onde ver: Amazon Prime Video<br />

Duração: 2h05min<br />

Drama de bastidores<br />

Sucesso absoluto enquanto esteve no<br />

ar, entre 1951 e 1957, a sitcom I Love<br />

Lucy ultrapassou as fronteiras dos<br />

EUA e conquistou o mundo. Exibido<br />

na Europa, Ásia e América Latina (no<br />

Brasil, pelas TVs Tupi, Gazeta e Bandeirantes),<br />

ajudou a consolidar o american<br />

way of life do pós-guerra. O que<br />

poucos sabem é que os protagonistas<br />

Lucille Ball (Lucy) e Desi Arnaz (Ricky<br />

Ricardo) foram duramente perseguidos,<br />

ameaçados e difamados no auge<br />

do macarthismo, a paranoia anticomunista<br />

americana. Aaron Sorkin (diretor<br />

de Os Sete de Chicago e roteirista de West<br />

Foto: reprodução<br />

Wing, A Rede Social e outros) é o responsável<br />

por contar a história da complexa<br />

relação profissional e romântica do casal<br />

<strong>–</strong> interpretado por Nicole Kidman e<br />

Javier Bardem <strong>–</strong> em Being the Ricardos.<br />

O filme enfoca uma semana especialmente<br />

crítica na vida dos atores,<br />

acossados politicamente e vítimas de<br />

preconceitos (Arnaz era cubano). Por<br />

sua interpretação, Kidman já desponta<br />

como uma das favoritas ao Oscar.<br />

De filha para pai<br />

Para aprender<br />

Autor e diretor de clássicos como Paixões<br />

Que Alucinam (1963), O Beijo Amargo<br />

(1964) e Agonia e Glória (1980), o<br />

americano Samuel Fuller é um dos<br />

poucos cineastas que viraram sucesso<br />

de público e objeto de devoção de cinéfilos.<br />

O documentário A Fuller Life é<br />

dirigido por sua filha, Samantha Fuller,<br />

e baseado em uma premiada autobiografia<br />

do diretor, intitulada The Third<br />

Face. O filme é dividido em 12 segmen-<br />

tos, que rememoram a vida e a obra de<br />

Samuel Fuller. Imagens pessoais, de<br />

bastidores e de filmes do cineasta são<br />

intercaladas ao som de trechos da autobiografia<br />

lidos por atores e diretores<br />

como William Friedkin, James Franco,<br />

Jennifer Beals, Tim Roth, Mark Hamill<br />

e Wim Wenders. A filha faz uma bela e<br />

criativa homenagem ao pai, mas, assim<br />

como ele, não recorre a invencionices.<br />

O segredo está na sobreposição precisa<br />

do áudio narrado e das imagens que<br />

vão surgindo na tela.<br />

Get Back<br />

Onde ver: Disney+<br />

Duração: 3 episódios<br />

Beatles no estúdio<br />

Em 2 de janeiro de 1969, os Beatles<br />

entraram no hoje mítico estúdio londrino<br />

Abbey Road para gravar aquele<br />

que seria o último álbum da banda, Let<br />

It Be. Uma equipe de filmagem acompanhava<br />

o quarteto de Liverpool com<br />

o objetivo de produzir um especial de<br />

televisão para mostrar o que o grupo<br />

melhor sabia fazer: trabalhar em estúdio<br />

<strong>–</strong> os Beatles nunca foram uma<br />

grande banda ao vivo e abandonaram<br />

os palcos em 1966. Depois de terminadas<br />

as gravações (do disco e do especial),<br />

o clima hostil entre os músicos<br />

acabou motivando o cancelamento do<br />

programa de TV e o fim da banda. O<br />

álbum saiu e foi um sucesso, mas as<br />

mais de 200 horas de gravações ficaram<br />

na gaveta. Coube ao diretor Peter<br />

Jackson, que assina a franquia O Senhor<br />

dos Anéis, editar e depurar o material. O<br />

resultado é Get Back, o mais belo, intimista<br />

e complexo registro da maior<br />

banda pop de todos os tempos.<br />

Educar para crescer<br />

Engana-se quem pensa que educação<br />

é um assunto que diz respeito apenas<br />

a estudantes, professores, pedagogos<br />

e gestores educacionais. Desfazer esse<br />

engano é o maior mérito do podcast<br />

Artigo 205. Apresentado pelos jornalistas<br />

Marta Avancini e Rubem Barros,<br />

ambos com grande experiência escrevendo<br />

sobre o assunto para diversos<br />

veículos da imprensa, o programa conversa<br />

com acadêmicos, legisladores e<br />

profissionais da educação sobre como<br />

a melhoria das políticas públicas pode<br />

garantir que todos os jovens aprendam<br />

com qualidade a partir de experiências<br />

escolares. Por meio de histórias, fatos<br />

e projetos que fogem do academicismo,<br />

os capítulos demonstram como a educação<br />

universal e de qualidade é o melhor<br />

investimento para o futuro do país<br />

e por que ela deve ser uma bandeira de<br />

toda a sociedade.<br />

Artigo 205<br />

Onde ouvir: Spotify, Deezer, Apple<br />

Podcasts, Google Podcast<br />

e SoundCloud<br />

<strong>VERÃO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 6 • PÁG. 7<br />

<strong>VERÃO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 6 • PÁG. 6


[ R O T E I R O ] [ R O T E I R O ]<br />

Para ler<br />

560 páginas<br />

Todavia<br />

109,90 reais ou 59,90 (e-book)<br />

O poeta mineral<br />

O apreço pelo equilíbrio reflete-se até<br />

em seu nome: João Cabral de Melo Neto<br />

é um perfeito verso octossílabo. Meticuloso,<br />

eliminou um “l” do Mello de sua<br />

família para evitar que o vocábulo de<br />

difícil divisão silábica prejudicasse o<br />

conjunto. O poeta pernambucano aca-<br />

ba de ganhar uma biografia digna de<br />

sua estatura: João Cabral de Melo Neto<br />

<strong>–</strong> Uma Biografia, de Ivan Marques, professor<br />

da USP e especialista em poesia<br />

brasileira. Diplomata, João Cabral viveu<br />

a maior parte da vida fora do país, mas<br />

nunca se afastou das margens do Rio<br />

Capibaribe. Famoso por uma obra que<br />

renegou por anos, Morte e Vida Severina,<br />

foi o poeta mais cerebral e antilírico da<br />

literatura nacional, um ourives da pedra<br />

bruta e sem brilhos.<br />

Para ouvir<br />

Adele acerta de novo<br />

Um novo álbum da britânica Adele é<br />

sempre mais que um conjunto de músicas,<br />

é um produto meticulosamente<br />

planejado. O quarto disco da cantora<br />

segue a linha dos anteriores em vários<br />

aspectos. No nome, 30 (os outros são 19,<br />

21 e 25 <strong>–</strong> sua idade quando os gravou),<br />

na capa (todos estampam um retrato<br />

da cantora) e na sonoridade (aquela<br />

mistura quase infalível de baladas e<br />

pop dançante). Considerado o melhor<br />

trabalho da cantora após o estonteante<br />

21, o novo disco traz apenas composições<br />

de Adele e reflete sua separação<br />

de Simon Konecki <strong>–</strong> ex-empresário e<br />

pai de seu filho, Angelo. A artista pediu<br />

ao Spotify que removesse o botão de<br />

shuffle, de reprodução aleatória. “Não<br />

criamos álbuns com tanto cuidado e<br />

reflexão em nossa lista de faixas à toa.<br />

Nossa arte conta uma história, e nossas<br />

histórias devem ser ouvidas como<br />

gostaríamos”, tuitou Adele.<br />

30<br />

Onde ouvir: Spotify, Deezer, iTunes e Tidal<br />

336 páginas<br />

Intrínseca<br />

59,90 reais ou 39,90 reais (e-book)<br />

Um mundo melhor<br />

é possível<br />

Com apenas 36 anos, a respeitada economista<br />

Minouche Shafik foi a mais<br />

jovem pessoa a ocupar a vice-presidência<br />

do Banco Mundial. No livro Cuidar<br />

Uns dos Outros: Um Novo Contrato<br />

Social, ela foge do economês tecnicista<br />

para conduzir o leitor por um passeio<br />

pelos estágios da experiência humana<br />

<strong>–</strong> estudar, casar, adoecer, trabalhar,<br />

envelhecer <strong>–</strong> mostrando como a reorganização<br />

social é possível. Zelar pelo<br />

bem dos outros, pagar impostos e usufruir<br />

de serviços públicos são elementos<br />

do contrato social que nos sustenta<br />

e nos une. Com argumentos sólidos,<br />

Shafik aponta soluções para desafios<br />

atuais, como envelhecimento populacional<br />

e mudanças climáticas, e indica<br />

como é possível construir uma sociedade<br />

melhor.<br />

Caetano em forma<br />

Para delírio dos fãs, Caetano Veloso<br />

interrompeu um hiato de nove anos e<br />

lançou um disco de músicas inéditas.<br />

Gravado quase todo em seu apartamento<br />

no Rio (por causa da pandemia),<br />

o disco está longe de soar caseiro,<br />

rústico ou qualquer outro adjetivo que<br />

denote amadorismo. Meu Coco é, sim,<br />

um autêntico Caetano. Está tudo lá: a<br />

temática poético-social, as mensagens<br />

políticas, as homenagens aos amigos<br />

(Gilgal é ótima), a experimentação e a<br />

abertura para o novo, dando espaço a<br />

jovens instrumentistas, produtores e<br />

arranjadores. Destaque para a belíssima<br />

Autoacalanto (dedicada a seu neto<br />

Benjamin) e para o fado Você-Você, cantado<br />

com a portuguesa Carminho. Aos<br />

79 anos, Caetano está afiado e otimista,<br />

retoma propostas do tropicalismo e vê<br />

na fusão cultural das heranças negro-<br />

-luso-indígena saídas para o Brasil.<br />

Meu Coco<br />

Onde ouvir: : Spotify, Deezer,<br />

Apple Music e Tidal<br />

432 páginas<br />

Ubu<br />

99,00 reais ou 49,90 reais (e-book)<br />

Clássico obrigatório<br />

A metáfora do homem vivendo sozinho<br />

numa ilha, com todos os seus defeitos<br />

e virtudes, é poderosa a ponto<br />

de tornar o livro Robinson Crusoe universal<br />

e atemporal. A nova edição da<br />

editora Ubu tem capa dura e projeto<br />

editorial ousado, incluindo páginas que<br />

vão esmaecendo a cor à medida que a<br />

trama se aproxima do final. A inédita<br />

tradução do poeta Leonardo Fróes dá<br />

nova vida ao texto de 1729, de Daniel<br />

Defoe. Desenhos do artista argentino<br />

Nicolás Robbio e textos de apoio de J.M.<br />

Coetzee, Virginia Woolf, James Joyce,<br />

Karl Marx e Jean-Jacques Rousseau<br />

completam o livro. A ficção é tida como<br />

a primeira imagem da noção de individualismo<br />

moderno, com toda a complexidade<br />

que o conceito denota, para o<br />

bem e para mal.<br />

Blues autêntico<br />

A faixa de abertura Blues Before Sunrise,<br />

regravação da canção de Elmore<br />

James, dá uma boa ideia do alto nível<br />

do álbum Heavy Load Blues, primeiro<br />

disco do quarteto Gov’t Mule totalmente<br />

dedicado ao blues. A banda liderada<br />

por Warren Haynes, guitarrista e vocalista<br />

do The Allman Brothers, acerta<br />

em cheio misturando covers e originais<br />

gravados ao vivo dentro do estúdio. O<br />

disco foi produzido em fita analógica,<br />

em que a equipe usa guitarras vintage,<br />

amplificadores e outros equipamentos<br />

para capturar um som autêntico. Uma<br />

viagem sonora para quem engata os 78<br />

minutos das 13 faixas, entre elas Make<br />

It Rain, do americano Tom Waits, e a<br />

original Wake Up Dead, e principalmente<br />

para os fãs que dedicam 50 minutos<br />

adicionais às oito faixas bônus da versão<br />

deluxe do álbum, que traz riffs de<br />

guitarra na regravação de Have Mercy<br />

on the Criminal, de Elton John.<br />

Heavy Load Blues<br />

Onde ouvir: Spotify, Deezer,<br />

Apple Music e Tidal<br />

<strong>VERÃO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 6 • PÁG. 9<br />

<strong>VERÃO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 6 • PÁG. 8


[O X DA BOSSA]<br />

Bossa<br />

além do<br />

quadrado<br />

Por Daniel Augusto Motta <strong>–</strong> Senior Tupinambá Maverick da Bossa<br />

Bicentenário da independência, centenário<br />

do movimento modernista brasileiro e,<br />

claro, segundo aniversário da Bossa.etc.<br />

Para entrar em <strong>2022</strong> com o pé direito, é<br />

preciso entender como chegamos até aqui<br />

Foto: Getty Images<br />

<strong>VERÃO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 6 • PÁG. 11<br />

<strong>VERÃO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 6 • PÁG. 10


O<br />

ano <strong>2022</strong> será especial também<br />

por ser o primeiro da segunda<br />

década do terceiro milênio já<br />

além do surto pandêmico que isolou e<br />

assolou o planeta. Sim, vivemos os dois<br />

primeiros anos desta nova década fora<br />

do eixo cotidiano das coisas, estupefatos<br />

dentro do nosso lar. Agora, estamos<br />

abandonando as máscaras encardidas<br />

e os cotonetes sádicos, voltando a desbravar<br />

novas paisagens mundo afora,<br />

reconectando-nos com o ser humano.<br />

Saímos da nossa casa diferentes do<br />

momento em que nos fechamos lá dentro,<br />

em 2020. Refletimos sobre inúmeras<br />

coisas, sobretudo sobre o tempo <strong>–</strong> e<br />

não só o tempo objetivo, mas também<br />

o tempo subjetivo quântico. Fomos levados<br />

a uma espiral paradoxal em que<br />

celebramos o tempo ganho com o fim<br />

dos deslocamentos urbanos e das reuniões<br />

inúteis enquanto sofremos pelo<br />

tempo distante daquilo que apreciamos,<br />

daqueles que amamos. E, mesmo<br />

assim, talvez mais conscientes do<br />

avanço implacável do tempo que nos<br />

envelhece, prosseguimos ineficientes<br />

na alocação do nosso precioso tempo,<br />

cada vez mais capturado pelas irresistíveis<br />

mídias sociais, jogos eletrônicos<br />

e afins. Quão irracionais continuamos<br />

apesar da tão aclamada racionalidade<br />

da era dos algoritmos? É fato que estamos<br />

totalmente conectados ao mundo<br />

pelas avenidas digitais, em que o tempo<br />

adquire outras feições, outras dinâmicas.<br />

Eis a questão quintessencial<br />

da pandemia: Quanto do nosso tempo<br />

tem sido dedicado ao inútil? Estou certo<br />

de que todos nos surpreenderíamos<br />

com tamanho desperdício.<br />

Mas sempre é tempo de refletirmos<br />

sobre a nossa jornada contínua em<br />

aprendizagem, não restrita apenas ao<br />

contexto das organizações, mas, notadamente,<br />

como sociedade em expansão<br />

de consciência. A natureza e o<br />

social evoluem em ciclos de expansão e<br />

retração desde sempre e para sempre.<br />

Podemos antecipar sinais fracos a respeito<br />

do futuro, ao mesmo tempo que<br />

refletimos sobre o impacto dos contextos<br />

passados em nosso momento<br />

atual. Futuro e passado conectam-se<br />

com frequência na busca por significados<br />

presentes. E, mesmo que não precisemos<br />

retornar a viver como índios<br />

coletores para estarmos em harmonia<br />

com a natureza, podemos nos inspirar<br />

em princípios de sustentabilidade digital<br />

para calibrarmos o novo equilíbrio<br />

sustentável que não coloque em xeque<br />

a própria sobrevivência humana no<br />

planeta <strong>–</strong> outras escalas, outros pesos<br />

e medidas, outros nexos e ethos, mas,<br />

ainda assim, as mesmas questões essenciais<br />

subjacentes à existência humana<br />

neste plano natural.<br />

A Bossa.etc avança em espiral exponencial<br />

a partir de seu modelo operacional<br />

baseado em learning streaming.<br />

No nosso segundo ano, vamos além do<br />

dobro, além do quadrado, em busca de<br />

alguma função matemática que explique<br />

nossos saltos quânticos em múltiplas<br />

dimensões <strong>–</strong> evoluímos além dos<br />

indicadores operacionais e financeiros<br />

para a compreensão sistêmica dos fenômenos<br />

sociais, das sinapses neurais,<br />

das conexões afetivas, das relações<br />

ecossistêmicas. Somos a expressão<br />

concreta do abstrato contemporâneo,<br />

em uma trajetória disruptiva de geração<br />

de riqueza além das meras combinações<br />

mecânicas entre trabalho e capital.<br />

Nosso posicionamento asset light<br />

produz valor além do capital empregado,<br />

nossos ramos em inovação aberta<br />

nos inserem como ponto de referência<br />

em biomas criativos em prol da aprendizagem,<br />

nossa estrutura organizacional<br />

orgânica em células desafia os modelos<br />

gerenciais mais convencionais<br />

em caixas e fluxogramas. A Bossa.etc<br />

é produto e vetor de seu tempo.<br />

De qualquer modo, diante da relevância<br />

simbólica do ano <strong>2022</strong>, vale a<br />

pena expandir nossa reflexão sobre<br />

os tempos e movimentos, com seus<br />

personagens e dramas. Viajemos<br />

pelo tempo para compreender melhor<br />

nosso atual momento no Brasil.<br />

1822 <strong>–</strong> Independência<br />

ou morte, dependência<br />

e sorte<br />

A transformação do Brasil Colônia em<br />

Brasil Império é um caso exemplar na<br />

história mundial. A corte portuguesa<br />

havia deixado sua sede secular na<br />

Europa para se instalar na colônia ultramar<br />

em 1808, constituindo aqui<br />

os precários fundamentos sociais e<br />

econômicos que mudariam gradualmente<br />

a dinâmica político-econômica<br />

de exploração de bens naturais para<br />

uma economia de mercado interno e<br />

desafiariam a lógica social em torno da<br />

agropecuária escravagista para uma<br />

ordem emergente baseada em burocracia<br />

governamental, investimentos<br />

público-privados e consumo burguês.<br />

A chegada da aristocracia real lusitana<br />

rompeu com a pacata vivência colonial<br />

como entreposto comercial nas quentes<br />

terras tropicais. Por aqui viviam<br />

mercadores simplórios, fazendeiros<br />

poderosos, traficantes inescrupulosos,<br />

escravos negros, índios rebeldes<br />

e burocratas enviados pela Coroa.<br />

Vivia-se numa terra que não se enxergava<br />

como terra, mas sim como apêndice<br />

comercial, fonte de riquezas para os<br />

interesses metropolitanos. Por aqui se<br />

cantavam cânticos estrangeiros miscigenados,<br />

em que a gaita portuguesa se<br />

fundia com os batuques africanos em<br />

transes necessários para enfrentar a<br />

dureza do trabalho forçado nas roças e<br />

nas minas. Sentia-se que neste pedaço<br />

de terra fértil, fora do eixo civilizatório,<br />

quase tudo era permitido, promíscuo,<br />

oportunista, e quase nada era humanista,<br />

sagrado, sustentável.<br />

É fato que alguns rompantes libertários<br />

surgiram aqui e acolá, notadamente<br />

com algum interesse econômico convergente<br />

frente aos elevados tributos<br />

exigidos pela Coroa. Dentre eles, a Inconfidência<br />

Mineira ganhou destaque<br />

na historiografia nacional, com o bode<br />

expiatório Tiradentes sendo transformado<br />

em mártir simbólico décadas<br />

Moeda do Brasil Império,<br />

20 réis, ano 1868 |<br />

foto: Getty Images<br />

mais tarde. Mas, em geral, aceitava-se<br />

pacificamente a ordem natural das coisas<br />

em um ambiente predatório contra<br />

a natureza e as pessoas. A ganância,<br />

disfarçada pelo fervor cristão, dominava<br />

estas bandas.<br />

Daí a relevância dos feitos acelerados<br />

pela chegada da corte portuguesa aos<br />

trópicos. A presença da realeza com a<br />

promoção do Brasil a Império trouxe<br />

verniz para as relações sociais, estimulou<br />

certo orgulho em pertencer,<br />

construiu bases institucionais para<br />

a vida em sociedade urbana, desenvolveu<br />

fundamentos (ainda precários)<br />

econômicos para uma evolução<br />

da matriz produtiva/exportadora e<br />

elevou a consciência social contra os<br />

horrores escravocratas. Ocorria uma<br />

lenta e contínua revolução dos usos<br />

e costumes coloniais para um centro<br />

civilizatório que, embora ainda extremamente<br />

rural, já buscava uma<br />

identidade agregadora.<br />

<strong>VERÃO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 6 • PÁG. 13<br />

<strong>VERÃO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 6 • PÁG. 12


Dom João VI | Gravura do acervo da Biblioteca Nacional<br />

Rei em fuga <strong>–</strong> Apenas 14 anos depois de sua chegada ao Brasil, assegurada a<br />

derrota definitiva das ameaçadoras tropas napoleônicas alguns anos antes, o rei retornou<br />

a Lisboa com sua corte. É provável que seu orgulho pela obra construída em<br />

poucos anos tenha se misturado com uma indagação mais íntima acerca do tempo<br />

perdido com descaso por tantas gerações reais lusitanas. O rei deixava no Brasil um<br />

potencial de geração de riqueza infinitamente superior a todo o acúmulo de reservas<br />

douradas extraídas nos 300 anos coloniais, mas era tarde demais. Seu retorno a<br />

Portugal era a viagem derradeira de um rei em declínio diante da supremacia militar<br />

do Império Britânico. A história avançava em novas cenas.<br />

Mundo afora, a fuga do rei seria motivo para algum levante organizado pelos colonos<br />

e compatriotas em busca de sua independência política. Laços seriam desfeitos,<br />

batalhas seriam travadas, sangue seria heroicamente derramado, uma nova identidade<br />

seria cantada aos quatro ventos. Nada disso ocorreu por estes trópicos complacentes.<br />

Por aqui, o filho do rei, seu herdeiro natural na Coroa portuguesa, apressou-<br />

-se em proclamar a independência do Brasil, num ato de (pretensa) rebeldia juvenil<br />

contra seu pai. Antes de ser cômico ou caricato, tal ato marcou imensamente a essência<br />

da nossa cultura brasileira como um ambiente avesso a grandes gritos e grilos.<br />

Essa foi a expressão cultural de um povo explorado por mais de 300 anos àquela<br />

altura, em que mesmo a elite incipiente não se enxergava como representante de<br />

valores nacionais, mas sim como europeus desbravadores de fronteiras agrícolas<br />

e minerais, proprietários de índios e negros. Um eventual conflito entre patriotas e<br />

colonizadores também se mostrou inviável: a população em geral era composta de<br />

pessoas alienadas e alheias às questões nacionais, e a elite estabelecida mantinha<br />

seus privilégios e ativos. Somos, ainda hoje, cordiais na forma, cordatos no conteúdo.<br />

Nosso Primeiro Reinado como nação foi marcado pela indiferença e pelo abandono.<br />

Dom Pedro I estava mais interessado em viver sua vida do que em liderar as vidas<br />

nacionais. Não completou nem uma década no trono. Em 1831, deixou o Brasil nas<br />

mãos de seu filho de 6 anos de idade, providencialmente tutelado por regentes. O<br />

mesmo imperador que havia, alguns anos antes, reivindicado a nação para si, para<br />

o bem de todos e felicidade geral, terminava por abandoná-la. Era já tempo de retornar<br />

à real civilização.<br />

Pátria com p minúsculo <strong>–</strong> O Segundo<br />

Reinado seria um dos períodos<br />

mais tensos de nossa frágil pátria em<br />

formação. Seus mecanismos operacionais<br />

limitavam-se ao agronegócio<br />

exportador, enquanto a elite político-<br />

-econômica desenvolvia-se com dificuldades<br />

diante de tantos conflitos<br />

provincianos, tantas lacunas institucionais,<br />

tantas fragilidades em infraestrutura.<br />

As famílias brasileiras em<br />

ascensão econômica orgulhavam-se<br />

de enviar seus jovens herdeiros para se<br />

formar nas universidades europeias,<br />

ganhando ares civilizatórios ausentes<br />

nos quentes campos rurais. Por meio<br />

do golpe da maioridade, o jovem dom<br />

Pedro II assumiu o trono em 1840 e<br />

acalmou os ânimos liberais e conservadores.<br />

Reinaria por quase 50 anos <strong>–</strong><br />

nosso recorde jamais superado por outro<br />

governante <strong>–</strong>, enfrentando crises<br />

políticas e fortalecendo instituições relevantes<br />

para o país. Deixou o poder em<br />

1889, já idoso, com a celebrada proclamação<br />

da República Federativa do Brasil<br />

por um marechal <strong>–</strong> novamente, sem<br />

um único tiro. O Brasil avançava em<br />

berço esplêndido de Colônia a República,<br />

financeiramente dependente de capital<br />

estrangeiro, socialmente dividido<br />

entre elites aristocráticas latifundiárias<br />

e negros recém-emancipados.<br />

A identidade nacional ainda era algo difuso,<br />

ausente nos usos e costumes dos<br />

locais, inexistente no arcabouço semiótico<br />

da sociedade que se desenvolvia na<br />

transição lenta do campo para as cidades.<br />

Mas o país se conectava por emergentes<br />

ferrovias, telégrafos e portos,<br />

as cidades cresciam com as emergentes<br />

classes mercantis, os escravos<br />

haviam sido finalmente libertados e<br />

os símbolos nacionais eram gradualmente<br />

consolidados. O Império durou<br />

apenas 67 anos, reticente diante de<br />

raízes ausentes, narrativas fabricadas,<br />

personagens apáticos. Por outro lado, o<br />

período imperial iniciou uma trajetória<br />

autônoma de nação, com todos os seus<br />

desafios e incongruências, mas ainda<br />

assim uma nação brasileira.<br />

Mesmo o período republicano já nasceu<br />

como República Velha, justamente<br />

por seu apego aos valores e princípios,<br />

usos e costumes do período<br />

monárquico. É verdade que tivemos<br />

uma nova Constituição promulgada,<br />

mas nada que impactasse nossa identidade<br />

patriótica. Após dois militares,<br />

tivemos uma sequência de civis na<br />

Presidência Executiva, todos oriundos<br />

das elites agrárias dominantes. O<br />

efetivo status quo agrário exportador<br />

manteve-se quase intacto na transição<br />

política, com insignificantes mudanças<br />

nos controles dos meios de produção<br />

<strong>–</strong> algo raro em grandes movimentos<br />

de transformação sociopolítica de nações.<br />

No Brasil, a elite latifundiária não<br />

apenas manteve seus privilégios como<br />

ainda ampliou seus poderes, conquistando<br />

inclusive a Presidência da República.<br />

Nossas eleições eram peças<br />

de ficção diante de massas populares<br />

com voto de cabresto e profusa manipulação<br />

dos votos <strong>–</strong> um Carnaval fora<br />

de época. Nas primeiras três décadas<br />

republicanas, instituições foram reformadas<br />

para deixar suas referências<br />

monárquicas, novas lideranças políticas<br />

emergiram no cenário nacional,<br />

velhas questões econômicas e sociais<br />

continuaram sendo procrastinadas.<br />

D. Pedro II e a imperatriz em viagem <strong>–</strong> vista do porto do Rio de Janeiro no dia 25 de maio de 1871 | Gravura do acervo da Biblioteca Nacional<br />

<strong>VERÃO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 6 • PÁG. 15<br />

<strong>VERÃO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 6 • PÁG. 14


Embrião nacionalista <strong>–</strong> No plano simbólico, a República foi fundamental para<br />

a construção da identidade nacional. Buscava-se o fio condutor nacionalista <strong>–</strong> muitas<br />

vezes, ufanista <strong>–</strong> que apresentaria a narrativa inspiradora para uma nova pátria<br />

no “novo mundo” com seus valores, heróis e lendas. Usos e costumes importados do<br />

Velho Continente já vinham sendo aqui tropicalizados e fundidos com referências<br />

africanas e indígenas, com manifestações dessa dinâmica antropológica na gastronomia,<br />

no vestuário, na música e na arquitetura, por exemplo. Hinos e canções foram<br />

criados para celebrar a jovem nação (e seus grandes desafios sociais e econômicos).<br />

O Brasil nascia endividado em moeda estrangeira, fragmentado em sua infraestrutura,<br />

sem mercado consumidor pujante, com baixo conhecimento científico e tecnológico,<br />

abismos sociais entre raças, concentrado em sua pauta de exportações.<br />

O projeto nacional precisava, acima de tudo, reunir forças em torno de agendas de<br />

desenvolvimento socioeconômico nas diversas regiões, com ênfase na industrialização<br />

da matriz produtiva, no aumento de bem-estar da população e na criação<br />

de um mercado de capitais que pudesse financiar tamanha agenda empreendedora.<br />

Quase tudo precisava ser construído. Havia certamente um entusiasmo com<br />

tamanho desafio, e vários projetos empreendedores foram iniciados em múltiplas<br />

dimensões. Apesar de os grandes produtores e exportadores agrários ainda<br />

manterem sua dominância político-econômica, já havia sinais claros da migração<br />

do epicentro financeiro para os centros urbanos que se desenvolviam com massas<br />

populares imigrantes europeias formadas por operários, comerciantes, industriais,<br />

funcionários públicos, mascates e autônomos, a base das classes médias nas regiões<br />

Sul e Sudeste.<br />

Nota-se, portanto, que 1822 foi, de fato, um ano de inflexão na trajetória brasileira,<br />

com a proclamação da independência. Mesmo com traços de continuidade e conservadorismo,<br />

mesmo sem aspirações impetuosas e revoluções míticas, o país passaria<br />

a se enxergar efetivamente como Brasil, não mais como Reino Unido. Isso já foi um<br />

salto muito importante, com raízes em 1808 e desdobramentos concluídos em 1889.<br />

Grito do Ipiranga | Gravura do acervo da Biblioteca Nacional<br />

Construção de Futuro, Influência<br />

Sistêmica e Catalisação da Mudança<br />

são as soft skills da independência<br />

Soft skills da independência <strong>–</strong><br />

A saga brasileira também se apresentou<br />

como agenda de aprendizagem. A<br />

meu ver, três soft skills dominaram esse<br />

primeiro século independente: Construção<br />

de Futuro, Influência Sistêmica<br />

e Catalisação da Mudança.<br />

Naqueles tempos de Construção de Futuro,<br />

um projeto nacional representava<br />

uma nação miscigenada e integrada<br />

em torno de uma agenda de construção<br />

da identidade independente. Alteridade,<br />

por exemplo, mostrou-se um desafio<br />

colossal ao exigir um olhar inclusivo<br />

por parte de uma sociedade dividida<br />

em abismos, em que a própria escravidão<br />

apresentava-se como crença cristalizada<br />

no mapa mental coletivo. Todo<br />

o arcabouço institucional monárquico<br />

manteve-se intacto, inclusive já adaptado<br />

como centro decisório na cidade<br />

do Rio de Janeiro. Entre dom João VI e<br />

dom Pedro I, os usos e costumes alteraram-se<br />

muito pouco, tanto quanto a<br />

própria expansão de consciência manteve-se<br />

relativamente contida nesses<br />

primórdios. Foram necessárias mais<br />

algumas décadas, inclusive com pressões<br />

políticas externas por parte do<br />

Império Britânico e dos Estados Unidos<br />

da América, para que o desejo abolicionista<br />

se espalhasse pela jovem nação<br />

brasileira. E, mesmo assim, com baixa<br />

intensidade em alteridade, uma vez<br />

que a sociedade brasileira continuaria<br />

sendo dominada por uma classe agrária<br />

conservadora, alienada com relação<br />

a um projeto nacional de inclusão e<br />

emancipação negra.<br />

Exploração Interativa, outra habilidade<br />

intrínseca à soft skill Construção<br />

de Futuro, mostrou-se fator crítico<br />

de sucesso na transição. A mudança<br />

de mentalidade colonial-predatório-<br />

-provinciano-submisso para patriota-<br />

-desenvolvimentista-integrado-protagonista<br />

mostrou-se extremamente<br />

desafiadora aos líderes nacionais. O<br />

próprio imperador não demonstrou<br />

visão e energia nessa direção. Explorar<br />

cenários possíveis com interação<br />

multistakeholder estava longe do modus<br />

operandi utilizado no cotidiano das<br />

elites políticas. Mais uma vez, prevalecia<br />

a ótica de evolução gradual<br />

sem sobressaltos.<br />

Além da Construção de Futuro, também<br />

a Influência Sistêmica se destacava<br />

como fator crítico de sucesso em<br />

1822 e nos anos seguintes. Construir e<br />

cultivar relações mostravam-se como<br />

fundamentais na articulação das lideranças<br />

regionais em um projeto único<br />

de país. Aventuras separatistas já incomodavam<br />

a metrópole, e precisaram<br />

ser suprimidas para que um projeto<br />

nacional se tornasse viável. O pacto<br />

federativo, que seria o esteio republicano<br />

décadas mais tarde, teve já aqui<br />

seu embrião por meio da convergência<br />

e da calibragem de interesses regionais<br />

para a construção da rede política de<br />

apoio ao governo imperial. Na tensão<br />

criada às vésperas do golpe da maioridade,<br />

esse acordo de interesses federalistas<br />

se esfacelava à medida que o<br />

eixo de poder econômico se fortalecia<br />

nas plantações paulistas de café, em<br />

detrimento dos engenhos nordestinos<br />

e dos ímpetos bairristas sulistas. Novamente,<br />

nos anos da República Velha,<br />

a própria governabilidade se constitui<br />

em torno de delicado equilíbrio de forças<br />

entre Minas Gerais e São Paulo.<br />

Por último, a Catalisação da Mudança<br />

mostrou-se uma competência essencial<br />

ao movimento de consolidação do<br />

Brasil independente. Pensar um país<br />

livre além dos controles metropolitanos<br />

lusitanos demandou esforço de<br />

integração de diferentes grupos e personagens<br />

voltados ao projeto nacional.<br />

O foco esteve na efetiva mobilização<br />

de um povo sem identidade para algo<br />

significativo em conteúdo e forma. Ao<br />

longo de décadas, os usos e costumes,<br />

os mapas mentais e as instituições se<br />

transformaram. O processo foi lento,<br />

mas, ao final desse primeiro século, já<br />

apresentava um pensamento coletivo<br />

articulado em torno de um novo conceito<br />

para o Brasil.<br />

<strong>VERÃO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 6 • PÁG. 17<br />

<strong>VERÃO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 6 • PÁG. 16


1922 <strong>–</strong> Manifesto em falsete<br />

A Semana de Arte Moderna de 1922 foi simbólica em vários<br />

aspectos. Em primeiro lugar, sua realização em São Paulo<br />

ecoava o Grito da Independência, dado 100 anos antes, às<br />

margens do Ipiranga, consolidando a capital paulista não só<br />

como motor econômico da jovem nação mas também como<br />

influente nos planos sociais, políticos e culturais brasileiros.<br />

O manifesto revolucionário capitaneado por artistas sob a liderança<br />

intelectual de Mário de Andrade, Oswald de Andrade,<br />

Anita Malfatti e Menotti del Picchia reafirmou ainda nossa<br />

inclinação soft power ao promovermos mudanças significativas.<br />

E foi um despertar para a brasilidade original, libertada<br />

das instituições europeias e influências forasteiras que ainda<br />

dominavam nosso establishment.<br />

O Brasil buscava sua identidade não no retrovisor primitivo,<br />

mas no futuro autoral. Sim, por vezes, com certos ares ufanistas,<br />

mas ainda assim orgulhosos e originais. Propunha um<br />

Brasil plural e heroico em contraposição ao modelo hierárquico<br />

oligárquico, construindo referências mais urbanas, industriais,<br />

democráticas e livres. Inspiradas, certamente, pelas<br />

massas imigrantes europeias que haviam se estabelecido<br />

para empreender, progredir e expandir. Rompia com as estruturas<br />

mais acadêmicas e clássicas. Promovia alternativas<br />

anárquicas, revolucionárias. Contra o Parnasse Contemporain,<br />

emergia o Manifesto da Poesia Pau-Brasil.<br />

A dinâmica antropofágica já se estabelecia muito antes da<br />

própria Abaporu ao pautar o modernismo brasileiro como<br />

uma fusão interpretativa dos movimentos artísticos europeus<br />

denominados cubismo, dadaísmo, expressionismo e<br />

surrealismo, que, por sua vez, eclodiam diante das rupturas<br />

causadas pela Primeira Guerra Mundial, como a ruína do<br />

imaginário coletivo em torno da belle époque. Nosso ímpeto<br />

identitário nos trouxe o lendário Macunaíma como ícone<br />

iconoclasta. A revolução cultural que se desenvolvia tinha<br />

influência generalizada, da arquitetura e do vestuário às expressões<br />

artísticas.<br />

O próprio contexto político não passaria incólume ao movimento:<br />

em 1930, e pelos 15 anos seguintes, a Era Vargas romperia<br />

com o controle oligárquico da política. O país retomou<br />

sua vocação totalitária, atávica ao inconsciente coletivo de um<br />

povo acostumado a viver sob rígidas estruturas sociais, militares<br />

e políticas. Paradoxalmente, durante a Segunda Guerra<br />

Mundial, fomos uma ditadura apoiando Aliados contra os regimes<br />

totalitários. Com o desfecho dos conflitos globais, nossas<br />

instituições totalitárias também se tornaram insustentáveis.<br />

No turbilhão que se seguiu, o Brasil vivenciou seus Anos<br />

Dourados sob a gestão de Juscelino Kubitschek, em que o<br />

orgulho nacional talvez tenha alcançado seu ápice. O crescimento<br />

econômico era pujante, a seleção brasileira de futebol<br />

celebrava o encontro de Pelé e Garrincha, o concretismo encontrava<br />

Oscar Niemeyer, Lucio Costa e Lygia Clark, o cinema<br />

novo e a bossa nova completavam o cenário de ebulição<br />

cultural e euforia nacional.<br />

A criativa, irreverente e inovadora Klaxon foi<br />

a primeira revista modernista do Brasil<br />

Klaxon (1922-1923), a primeira revista modernista do Brasil<br />

O Brasil é, finalmente, Brasil! <strong>–</strong> A jovem nação tropical avançava em seu processo de consolidação política, social e<br />

econômica. Apesar das conquistas, muito ainda permanecia negligenciada. O crescimento econômico andava em descompasso<br />

com o desenvolvimento social. Desde a independência, o país mantinha-se absolutamente dependente do estrangeiro em relação<br />

a poupança para financiamento de investimentos, mercado consumidor de exportações brasileiras de recursos naturais e mercado<br />

fornecedor de bens de alto valor agregado, ausentes de nossa matriz industrial. É fato que construímos nossa identidade<br />

própria, mas não consolidamos, de modo algum, nossa independência.<br />

Ainda retornaríamos, mais uma vez, ao modus operandi totalitário por mais 21 anos durante o regime militar. Algo que tornaria<br />

a República Federativa do Brasil uma das menos democráticas desde sua origem, mas não por isso menos cordial. Somos, essencialmente,<br />

um povo tranquilo. O país que mais uma vez ressurgiu com eleições gerais nos anos 1980 já estava desolado com<br />

hiperinflação e estagnação econômica, desesperado diante dos abismos sociais entre favelados e poderosos, desconectado das<br />

grandes revoluções tecnológicas. Mas somos um povo resiliente, e novamente encontramos esteios de esperança com o sucesso<br />

do Plano Real, quando recuperamos poder aquisitivo e novas espirais de crescimento econômico (apesar de anos-luz de diferença<br />

do boom econômico vivenciado pelos Tigres Asiáticos). Anos mais tarde, o país teria novo impulso com o boom de nossas<br />

commodities agrícolas e minerais, enquanto internamente o governo Lula implementava amplo programa social com o Bolsa<br />

Família. Lamentavelmente, não tivemos muito tempo para celebrarmos e cultivarmos: escândalos de corrupção assolaram o país<br />

com a desestruturação governamental e criaram as bases para novas aventuras ideológicas extremistas. O Brasil encontra-se,<br />

hoje, em tensas trevas.<br />

<strong>VERÃO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 6 • PÁG. 19<br />

<strong>VERÃO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 6 • PÁG. 18


Soft skills da brasilidade <strong>–</strong> O segundo século independente<br />

se apresentou como nova agenda de aprendizagem.<br />

Eis o trio de habilidades que, a meu ver, refletiu aquele<br />

período: Expansão de Consciência, Coragem Disruptiva<br />

e Gestão de Crises.<br />

A Expansão de Consciência que se desenvolvia com fervor<br />

nas primeiras décadas do século XX na metrópole paulista<br />

estimulou uma nova geração de intelectuais a compreender e<br />

consolidar sua Prontidão Protagonista, a fim de romper com<br />

os dogmas clássicos arraigados naquela sociedade essencialmente<br />

oligárquica rural. Ao perceberem as incongruências<br />

entre as referências tradicionais e as possibilidades inspiradoras,<br />

Mário de Andrade e companheiros disseminaram aos<br />

quatro ventos um novo ideal para a Pátria Brasil, mais indígena,<br />

mais original, mais tropical, mais anárquica, mais urbana,<br />

mais livre, mais miscigenada. Ressignificavam, assim,<br />

a própria essência individual do brasileiro. Menos cartolas e<br />

casacas, mais sandálias. Menos harpas e cravos, mais berimbaus<br />

e violas. Menos pó de arroz, mais ébano. Na esteira desse<br />

movimento protagonista, o Brasil conheceria Vinicius de<br />

Moraes, Graciliano Ramos, Jorge Amado, João Cabral de Melo<br />

Neto, Carlos Drummond de Andrade, Erico Verissimo, João<br />

Guimarães Rosa, entre outros. E, anos depois, a incomparável<br />

Clarice Lispector.<br />

Como todo o processo de Expansão de Consciência, a configuração<br />

da nossa própria identidade nacional foi lenta,<br />

gradual, errática e ambígua. Vivenciamos altos e baixos.<br />

Convivemos, ainda hoje, com incoerências fundamentais,<br />

lacunas lamentáveis e conflitos irreconciliáveis. Mas também<br />

construímos muitos fundamentos que sustentam nossa<br />

trajetória patriótica. Não somos uma república de bananas<br />

como muitos, inclusive aqui dentro da nossa própria pátria,<br />

querem nos fazer acreditar. Já somos, há bastante tempo,<br />

uma das principais potências globais. Mas poderíamos<br />

ser muito mais, indubitavelmente.<br />

Nossa Coragem Disruptiva manifestou-se principalmente<br />

no rompimento com as oligarquias agrárias escravocratas<br />

em prol de um desenvolvimento industrial-urbano. O crescimento<br />

da economia doméstica em consumo, investimento e<br />

gastos públicos, na virada do primeiro século independente,<br />

foi extremamente desbravador. Exigiu-se articulação de diferentes<br />

stakeholders em torno de um novo pacto social para<br />

o Brasil. Não foi nada simples. Nesse período de transição,<br />

vivenciamos uma dura ditadura getulista durante longos<br />

15 anos <strong>–</strong> Getúlio Vargas foi o governante mais longevo da<br />

história brasileira, depois de dom Pedro II <strong>–</strong> para alcançarmos,<br />

alguns anos depois, a euforia máxima dos 50 anos em<br />

cinco e, logo em seguida, uma sequência de governos militares<br />

em regime de exceção. O país democrático que emergiu<br />

no final dos anos 1980 já era completamente diferente<br />

do país republicano de meados de 1880, sendo a Coragem<br />

Disruptiva dos setores público e privado um vetor relevante<br />

de transformação socioeconômica.<br />

Finalmente, Gestão de Crises foi uma habilidade presente durante<br />

toda a evolução do Brasil. Neste segundo século independente,<br />

o país enfrentou inúmeras crises globais, como a<br />

Grande Depressão, a Segunda Guerra Mundial, a Guerra Fria,<br />

os Choques de Petróleo, a Crise Asiática, a Crise Russa, o Estouro<br />

Ponto.com, a Crise Subprime e a atual pandemia. Também<br />

superou graves instabilidades domésticas provocadas<br />

por colapso das exportações cafeeiras, Revolução de 1930,<br />

suicídio de Getúlio Vargas, renúncia de Jânio Quadros, Regime<br />

Militar, Crise da Dívida Externa, sucessivos planos econômicos<br />

anti-inflacionários, impeachment de Collor e Dilma,<br />

entre outros. É razoável afirmar que o brasileiro, acima de<br />

tudo, é um sujeito resiliente. Enfrentamos duras crises sem<br />

perder a esperança por dias melhores. Esse povo misturado<br />

tem suas raízes em índios nativos, negros sobreviventes, imigrantes<br />

europeus destemidos. É justo o epíteto “bravo” para<br />

descrever essa gente brasileira que luta diariamente para seguir<br />

em frente.<br />

<strong>2022</strong><br />

É razoável afirmar que o brasileiro, acima de tudo, é um<br />

sujeito resiliente. Enfrentamos duras crises sem perder<br />

a esperança por dias melhores. Esse povo misturado<br />

tem suas raízes em índios nativos, negros sobreviventes,<br />

imigrantes europeus destemidos. É justo o epíteto “bravo”<br />

para descrever essa gente brasileira que luta diariamente<br />

para seguir em frente<br />

<strong>2022</strong> <strong>–</strong> Expressão quântica sustentável<br />

Com dois séculos de independência, vivemos em um Brasil diferente e similar ao mesmo tempo. Ampliamos nosso repertório<br />

produtivo, consolidamos nossa estrutura institucional, melhoramos as condições sociais mínimas em todo o país, construímos<br />

empresas relevantes na arena competitiva global e expandimos nossa consciência ambiental. Mas continuamos com enormes desigualdades<br />

sociais, dependemos ainda de capital estrangeiro, temos dificuldade para atuar na vanguarda tecnológica/científica,<br />

permanecemos irrelevantes na geopolítica militar global e padecemos de frágil capital humano acumulado em nossa sociedade.<br />

O Brasil dos próximos 100 anos tem,<br />

ao menos, três grandes prioridades:<br />

1 <strong>–</strong> ciclos contínuos de desenvolvimento econômico acelerado em detrimento de vales<br />

e picos erráticos, incluindo revisão simplificadora do arcabouço institucional em<br />

prol de empreendedorismo privado, redução do tamanho do Estado e construção de<br />

infraestrutura aderente às melhores práticas sustentáveis;<br />

2 <strong>–</strong> salto quântico em bem-estar social com ênfase em habitação, saúde, educação,<br />

alimentação, inclusão tecnológica, empregabilidade e assistência social com a erradicação<br />

de moradias impróprias nos grandes centros urbanos;<br />

3 <strong>–</strong> capital humano sólido capaz de posicionar o país na fronteira de conhecimento<br />

aplicado a ciência e tecnologia, com papel relevante e protagonista nas principais<br />

cadeias de valor globais.<br />

Em poucas palavras, nosso desafio seria desenvolver<br />

rapidamente as competências Adaptabilidade,<br />

Intraempreendedorismo e Consciência Coletiva em<br />

amplos setores de nossa sociedade. Um projeto especial<br />

para este próximo centenário<br />

<strong>VERÃO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 6 • PÁG. 21<br />

<strong>VERÃO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 6 • PÁG. 20


[COMPORTAMENTO]<br />

(Nova)<br />

pátria<br />

amada<br />

Como a sociedade brasileira recebe estrangeiros<br />

que tiveram de abandonar casa, carreira e família<br />

para fugir da fome ou da guerra? Três histórias<br />

de refugiados e imigrantes revelam a realidade de<br />

quem tenta recomeçar a vida no Brasil<br />

Por Diego Braga Norte<br />

Foto: Getty Images<br />

<strong>VERÃO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 6 • PÁG. 23<br />

<strong>VERÃO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 6 • PÁG. 22


A<br />

venezuelana Adriana Camargo saiu de sua terra natal<br />

para fazer faculdade de administração na Colômbia<br />

e após concluir o curso, em 2014, ouviu de sua mãe:<br />

“Não volte, a Venezuela está terrível”. Vivendo sem muitas<br />

perspectivas na Colômbia, Adriana viu-se, em suas palavras,<br />

“perdida”. Dois anos depois, Luís, seu então namorado e atual<br />

marido, conseguiu uma bolsa de estudos para um mestrado<br />

na Universidade de Brasília. Era a chance que eles esperavam<br />

para iniciar uma nova vida. Enquanto ele se dedicava aos estudos,<br />

ela partiu em busca de um emprego. Sem falar português<br />

nem conhecer ninguém na cidade, Adriana carregava<br />

um diploma universitário com o mesmo valor de uma folha<br />

de papel em branco. A saída foi se apegar à única oportunidade<br />

que lhe apareceu: trabalhar como empregada doméstica<br />

para uma família de classe média alta em Brasília. Como o<br />

trajeto entre sua casa, em Taguatinga, e o trabalho era longo<br />

e demorado, aceitou a proposta de dormir na casa dos patrões<br />

durante a semana. De segunda a sexta-feira, o lar de Adriana<br />

era o “quarto de empregada”, essa famigerada instituição<br />

arquitetônica nacional.<br />

“Foi um dos maiores erros da minha vida, fui explorada como<br />

uma escrava. A família tinha quatro filhos e eu virei doméstica<br />

e babá”, conta. Ganhava 900 reais mensais mantendo<br />

uma rotina exaustiva, que se estendia por mais de 12 horas<br />

todos os dias. Tinha direito a 45 minutos de descanso após o<br />

almoço, mas as crianças não a deixavam em paz. Onze meses<br />

depois, o casal avisou que iria viajar e ela teria de cuidar<br />

das quatro crianças no fim de semana. Diante da recusa<br />

de Adriana, que alegou não poder se responsabilizar pelos<br />

menores <strong>–</strong> afinal, havia sido contratada como doméstica, e<br />

não como babá <strong>–</strong>, foi demitida. Sabendo que sua demissão<br />

sem nenhuma compensação financeira era ilegal, procurou<br />

a defensoria pública e, com a ajuda de um advogado, conseguiu<br />

um acordo em que receberia indenização e férias proporcionais<br />

ao período trabalhado. Tendo de recomeçar, ela<br />

imprimiu 50 currículos <strong>–</strong> “Era o que eu podia pagar”, diz<br />

<strong>–</strong> e saiu à procura de uma nova oportunidade.<br />

A rede de restaurantes Outback iria inaugurar uma nova unidade<br />

e estava com 120 vagas abertas. Adriana encarou nove<br />

horas de fila até finalmente conseguir entregar o currículo e,<br />

dois dias depois, foi chamada para uma entrevista. Saiu-se<br />

muito bem, mas, mais uma vez, seu diploma fora ignorado: foi<br />

contratada como auxiliar de cozinha. Nesse período, sofreu<br />

um ataque xenófobo de um colega de trabalho. “Ele falava que<br />

eu deveria voltar para a Venezuela, que eu era ilegal, chavista,<br />

comunista.” Pouco depois, Luís conseguiu um emprego em<br />

São Paulo, e o casal se mudou para a metrópole paulista, já no<br />

fim de 2018. Animada com a nova vida em uma cidade “enorme<br />

e cheia de possibilidades”, concluiu cursos no Sebrae, no<br />

Senac e no Migraflix, uma plataforma de empreendedorismo<br />

gastronômico e cultural voltada para imigrantes e refugiados.<br />

Mas as inúmeras rejeições em processos seletivos e o temperamento<br />

dos habitantes da cidade <strong>–</strong> “Os paulistanos são muito<br />

fechados” <strong>–</strong> desencadearam crises de ansiedade e tristeza.<br />

Para combater a ansiedade e socializar com brasileiros, recorreu<br />

à terapia e voltou a praticar escalada, seu esporte favorito.<br />

Como era muito experiente, foi contratada como monitora da<br />

academia. A estabilidade financeira permitiu que ela incentivasse<br />

seus parentes (mãe, padrasto, irmã e cunhado) a imigrarem<br />

para o Brasil. “Não dá para ficar lá. Faltam empregos,<br />

comida, luz, água, internet, e tem muita violência.” Na zona<br />

oeste da capital paulista, a família abriu o Aromas Café &<br />

Cake, onde também vende as tradicionais arepas venezuelanas,<br />

embora Adriana confesse que hoje prefere a brasileiríssima<br />

tapioca. Segue como monitora de escalada e ainda faz<br />

consultoria de espanhol para uma empresa de RH. Articulada,<br />

comunicativa e dona de um português fluente, Adriana conta<br />

que sempre teve facilidade em se relacionar com as pessoas e<br />

fazer amizades. Gosta de MPB e açaí, dança forró. Questionada<br />

se um dia pretende voltar ao seu país, ela não hesita: “Não.<br />

Minha família está aqui, minha vida está aqui”, diz.<br />

Erick Lira | foto: Giulianno Scotti<br />

Adriana Camargo | foto: arquivo pessoal<br />

<strong>VERÃO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 6 • PÁG. 25<br />

<strong>VERÃO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 6 • PÁG. 24


Sociedade cruel<br />

Longe de ser exceção, a história de<br />

Adriana é apenas mais um entre tantos<br />

casos de xenofobia. “Venezuelanos<br />

sofrem preconceito apenas por serem<br />

venezuelanos; entra toda uma carga de<br />

ignorância política no tratamento que<br />

eles recebem aqui”, explica Marcelo<br />

Haydu, diretor-executivo da ONG Instituto<br />

Adus, que ajuda refugiados a se<br />

integrarem à sociedade brasileira. Ele<br />

conta que, assim como muitos brasileiros,<br />

sempre viu o Brasil como um país<br />

acolhedor, que recebe bem imigrantes<br />

e refugiados. Depois de mais de dez<br />

anos trabalhando com isso, Haydu mudou<br />

sua opinião. “Há esse senso comum<br />

de que somos simpáticos, acolhedores,<br />

mas o Brasil não é esse paraíso. Temos<br />

ainda em nossa sociedade muito racismo,<br />

machismo e xenofobia”, afirma.<br />

Muitos imigrantes que aqui desembarcam<br />

também chegam com essa visão<br />

idílica de estarem entrando em uma<br />

sociedade multicultural e multiétnica,<br />

livre de preconceitos. “Quando eles<br />

passam a se movimentar pela cidade e<br />

melhoram a compreensão dos códigos<br />

culturais e do idioma, percebem que<br />

não é bem assim, que o Brasil pode ser<br />

bem cruel.” Haydu explica que o país é<br />

signatário da Convenção da Organização<br />

das Nações Unidas (ONU) de 1951 e<br />

é obrigado, por lei, a acolher refugiados<br />

<strong>–</strong> pessoas que estão fora de seu país de<br />

origem devido a perseguição por raça,<br />

religião, nacionalidade, pertencimento<br />

a determinado grupo social ou opinião<br />

política, como também devido a grave<br />

violação de direitos humanos e conflitos<br />

armados. Já imigrantes são aqueles<br />

que saem de seu país com o objetivo de<br />

conseguir melhores condições de vida.<br />

Entretanto, apesar de o Brasil ter toda<br />

a legislação para receber refugiados e<br />

imigrantes, o especialista conta que o<br />

país “não tem uma política estruturada<br />

de acolhimento” e “pouco faz além<br />

de conceder o visto e o RNE [Registro<br />

Nacional de Estrangeiros]”. Com ou sem<br />

visto, os refugiados e imigrantes devem<br />

se apresentar à Polícia Federal e<br />

solicitar o RNE. Com esse documento<br />

em mãos, podem pedir uma carteira<br />

de trabalho e abrir conta em banco, por<br />

exemplo. “O papel do Estado brasileiro<br />

praticamente se encerra aqui. Os refugiados<br />

e os imigrantes não têm uma<br />

rede de apoio oficial, e quem faz esse<br />

trabalho são as ONGs, a Acnur [agência<br />

da ONU para refugiados], a Igreja Católica<br />

e setores da sociedade civil.”<br />

Lavi Kasongo | foto: reprodução redes sociais<br />

“Os refugiados e<br />

os imigrantes não<br />

têm uma rede<br />

de apoio oficial,<br />

e quem faz esse<br />

trabalho são as<br />

ONGs, a Acnur<br />

[agência da ONU<br />

para refugiados],<br />

a Igreja Católica<br />

e setores da<br />

sociedade civil”<br />

Marcelo Haydu, diretor-executivo<br />

da ONG Instituto Adus<br />

Tela intitulada Elegância (2021), de Lavi Kasongo |<br />

foto: reprodução redes sociais<br />

Cores brasileiras<br />

“O Brasil mudou a forma como eu vejo as cores”, diz o congolês<br />

Lavi Kasongo. O garoto que adorava desenhar durante a<br />

infância em Kinshasa, capital da República Democrática do<br />

Congo, acabou por seguir a carreira nas artes plásticas. Antes<br />

mesmo de conseguir entrar na Académie des Beaux-Arts<br />

de Kinshasa, Lavi já pintava seus primeiros quadros e muros<br />

nas ruas de Lemba, bairro onde morava. Durante o último<br />

ano da graduação, a delicada situação política de seu país (em<br />

uma guerra civil que se arrasta há quase 20 anos) piorou e ele<br />

se envolveu mais ativamente na resistência política. O então<br />

presidente, Joseph Kabila, controlava as Forças Armadas, ignorava<br />

a Constituição, adiava eleições, reprimia opositores e<br />

assim manteve-se no cargo entre 2001 e 2019.<br />

Nas ruas, Lavi e seus companheiros faziam grafites e pinturas<br />

criticando o governo. Ao ver amigos e colegas universitários<br />

presos e mortos apenas por manifestarem suas opiniões,<br />

decidiu sair do país. Foi para Casablanca, no Marrocos, mas<br />

não conseguiu um visto de permanência, tampouco ter seu<br />

status de refugiado político reconhecido. Soube que o Brasil<br />

aceitava refugiados e, como nutria “simpatia” pelo país, o jovem<br />

de 23 anos resolveu vir para cá. Seu voo pousou em São<br />

Paulo no dia 10 de fevereiro de 2015, dia em que Lavi ouviu,<br />

pela primeira vez na vida, o idioma português. Falando “apenas”<br />

francês e o dialeto lingala, dois dos cinco idiomas oficiais<br />

de seu país, teve muita dificuldade de comunicação. “Muitas<br />

pessoas aqui falam inglês, mas é muito difícil encontrar nas<br />

ruas alguém que entenda e fale francês”, diz.<br />

Lavi só conseguiu se orientar na cidade e na burocracia para<br />

conseguir seus documentos após fazer contato com outros<br />

refugiados africanos e haitianos que falam francês. Sem<br />

conseguir emprego e já sem dinheiro, ele teve de sair da pensão<br />

onde morava, no centro da cidade. “Perdi as esperanças.<br />

Passei por muitas dificuldades, dormi um tempo nas ruas,<br />

sofri muita humilhação e preconceitos. Não gosto nem de me<br />

lembrar dessa época”, conta. Ele vivia de caridade quando foi<br />

localizado pela ONG Estou Refugiado, que o ajudou a conseguir<br />

uma vaga em um albergue comunitário e um emprego.<br />

“Durante quatro anos, trabalhei na agência de publicidade Sotaque<br />

Brasil. Só saí para perseguir meu sonho de ser artista.”<br />

Ingressou na Quanta Academia de Artes, e suas pinturas e<br />

desenhos rapidamente se destacaram pela técnica apurada<br />

e expressividade. Pouco tempo depois, já participava de exposições<br />

individuais e coletivas, inclusive na Pinacoteca do<br />

Estado de São Paulo. Foi descoberto pelos curadores do Sesc,<br />

expôs seus trabalhos e ministrou workshops em várias unidades<br />

da instituição. No Sesc Vila Mariana, na capital paulista,<br />

Lavi foi convidado para pintar um mural de mais de 8 metros<br />

no saguão externo. Segundo ele, no Congo, suas pinturas<br />

tinham menos cores e mais mensagens políticas. “Aqui, meus<br />

trabalhos ficaram mais coloridos”, garante. Hoje, o artista<br />

plástico tem um ateliê na zona leste e integra o projeto Cores<br />

do Mundo, iniciativa da ONG Estou Refugiado, que transforma<br />

espaços cedidos por empresas, como muros, tapumes de<br />

obras e painéis, em grandes pinturas. Casado com uma brasileira,<br />

ele já aprendeu a gostar de arroz com feijão, mas revela<br />

que ainda não consegue acertar o ponto do churrasco.<br />

<strong>VERÃO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 6 • PÁG. 27<br />

<strong>VERÃO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 6 • PÁG. 26


Programa de capacitação para mercado de trabalho do<br />

Instituto Adus | foto: reprodução redes sociais<br />

Cidade cosmopolita e multiétnica<br />

“Pois eu tive fome, e vocês me deram de comer; tive sede, e<br />

vocês me deram de beber; fui estrangeiro, e vocês me acolheram.”<br />

A passagem bíblica (Mateus 25:35) é o lema dos<br />

scalabrinianos, uma congregação de missionários católicos<br />

fundada em 1887 por dom João Batista Scalabrini, em Placência,<br />

na Itália. Essa é a ordem religiosa do padre italiano Paolo<br />

Parisi, coordenador da Missão Paz, em São Paulo. Com sede<br />

no bairro do Glicério, no centro de São Paulo, ele e sua equipe<br />

atendem cerca de 800 pessoas por mês, oferecendo moradia,<br />

alimentação, cursos de português, auxílio jurídico, oficinas de<br />

capacitação profissional e outras ações. Padre Paolo trabalha<br />

com refugiados há mais de 35 anos <strong>–</strong> primeiro no sul da Itália,<br />

depois em Roma <strong>–</strong> e chegou ao Brasil em 2010 para ajudar<br />

seus colegas scalabrinianos. Depois de mais de uma década<br />

aqui, seu sotaque soa familiar e ele poderia muito bem se passar<br />

por um paulistano da Mooca.<br />

O religioso consegue explicar a importância dos imigrantes<br />

e refugiados de forma simples e precisa: “São Paulo é resultado<br />

dessa intensa troca cultural, é uma cidade construída e<br />

formada por imigrantes e seus descendentes. Dá para notar<br />

essa rica mistura na arquitetura, na moda, na culinária e até<br />

na forma como as pessoas se expressam e se relacionam”. E<br />

o mesmo vale para o resto do país, já que, com exceção dos<br />

nativos indígenas, todos os demais brasileiros são descendentes<br />

de escravos trazidos ao país à força ou de imigrantes,<br />

estrangeiros de diferentes nacionalidades que vieram<br />

em uma das diversas ondas migratórias ao longo dos últimos<br />

cinco séculos.<br />

Atualmente, os haitianos constituem o maior contingente de<br />

estrangeiros que a Missão Paz atende. Entre janeiro e outubro<br />

de 2021, foram quase 4 mil. Os venezuelanos aparecem em<br />

segundo, seguidos pelos angolanos. “Neste momento, temos<br />

em nosso abrigo mais de 30 mulheres angolanas, muitas com<br />

crianças.” Há ainda aqueles que nunca deixaram de vir: bolivianos,<br />

paraguaios e peruanos. Convivendo diariamente e<br />

há décadas com imigrantes e refugiados, o padre relata que<br />

enriqueceu como pessoa. “Repensei minha biografia cultural<br />

e pessoal, revi várias coisas e conceitos que julgava importantes,<br />

mas não são. Eu, como padre italiano, vi várias fragilidades<br />

em minha formação humanística e pessoal”, conta. Padre<br />

Paolo diz que mudou até em relação a questões espirituais,<br />

aprendendo a admirar outras religiões. “Tem muita riqueza<br />

e ensinamentos nisso. Acho que me tornei mais humano, no<br />

sentido de ser mais tolerante, mais aberto às diferenças.”<br />

<strong>VERÃO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 6 • PÁG. 29<br />

<strong>VERÃO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 6 • PÁG. 28


Professor nato<br />

Em 2011, o então estudante de linguagem<br />

audiovisual e cinema Mohamad<br />

Alsaheb trabalhava em um popular<br />

canal de televisão infantil em Damasco<br />

quando eclodiu a guerra civil que<br />

dilaceraria a Síria. Enquanto a maioria<br />

de seus familiares fugia para o Egito,<br />

Mohamad partia para Dubai, na esperança<br />

de seguir trabalhando em sua<br />

área e concluir seus estudos. Sem permissão<br />

para permanecer nos Emirados<br />

Árabes, seguiu para Beirute, no Líbano.<br />

Pouco mais de dois anos depois,<br />

novamente sem conseguir regularizar<br />

sua situação, ele teria de deixar o país.<br />

Mohamad já vivia havia três anos<br />

longe de casa quando descobriu que<br />

o consulado brasileiro estava concedendo<br />

vistos a refugiados. Ele queria<br />

ir para a Europa e, como o voo para o<br />

Brasil fazia escala em Paris, resolveu<br />

pegar o visto para tentar ficar na França.<br />

“Não consegui nem sair do aeroporto.<br />

Me colocaram no voo para o Brasil<br />

e cheguei aqui com a roupa do corpo,<br />

um par de tênis e uma mochila.” Seu<br />

conhecimento do país resumia-se ao<br />

trio clichê carnaval-praia-futebol. Não<br />

conseguiu se comunicar com os agentes<br />

da Polícia Federal porque, embora<br />

falasse muito bem inglês, ninguém ali<br />

sabia outro idioma além do português.<br />

“Sozinho, com medo e nervoso, quase<br />

arrumei briga, fui muito maltratado”,<br />

recorda-se. Em São Paulo, ele morou<br />

em abrigos comunitários e passou<br />

oito meses procurando emprego, sem<br />

sucesso. Para se manter ocupado, tornou-se<br />

instrutor voluntário de inglês<br />

na própria ONG em que estudava português,<br />

o Instituto Base Gênesis. “Eu<br />

nunca tinha dado aulas, mas me encontrei<br />

como professor”, explica.<br />

Foi contratado como professor de inglês<br />

na ONG Abraço Cultural, onde<br />

era incentivado a também oferecer<br />

aulas a alunos interessados em aprender<br />

árabe. Quatro anos depois, Mohamad<br />

inaugurava sua própria escola<br />

de caligrafia e língua árabe, no centro<br />

de São Paulo. “O estudante de árabe é<br />

diferente da pessoa que estuda inglês.<br />

Ninguém aprende árabe porque é necessário<br />

ou o trabalho exige. Estudam<br />

porque querem, se interessam mesmo<br />

pela língua e pela cultura”, relata. Na<br />

busca por um imóvel para instalar sua<br />

escola, o novo empreendedor deparou-se<br />

com diferenças culturais. “Nós,<br />

árabes, gostamos de negociar tudo,<br />

até na compra de um lanche nas ruas.<br />

No Brasil, vale o preço anunciado.” Por<br />

causa do hábito de sempre oferecer<br />

contrapropostas, chegou a perder bons<br />

contratos de locação.<br />

Quando ele finalmente conseguiu<br />

alugar um espaço e se estabelecer, a<br />

pandemia o obrigou a fechar a escola.<br />

Versado em tecnologia, adaptou rapidamente<br />

seus cursos para o modelo<br />

online. Apostando nas redes sociais <strong>–</strong><br />

e também graças à propaganda boca a<br />

boca de seus estudantes <strong>–</strong>, sua escola<br />

cresceu em um período em que muitos<br />

negócios faliram. Hoje, Mohamad tem<br />

mais de 200 alunos em todo o Brasil e<br />

no exterior, e ele teve de contratar outros<br />

quatro professores. “Meus alunos<br />

são médicos, advogados e empresários<br />

descendentes de sírios e libaneses, estudantes<br />

e professores da USP, jogadores<br />

de futebol que estão em países<br />

árabes e outros interessados”, explica.<br />

Comunicativo e inquieto, fechou<br />

parceria com a Câmara de Comércio<br />

Árabe-Brasileira para ensinar funcionários<br />

de empresas nacionais que têm<br />

contatos com países árabes. E, enquanto<br />

esperava a volta das aulas presenciais,<br />

Mohamad instalou uma churrasqueira,<br />

uma grande mesa e cadeiras na<br />

área externa da escola, ansiando por<br />

confraternizar com seus alunos.<br />

Mohamad Alsaheb | foto: reprodução redes sociais<br />

<strong>VERÃO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 6 • PÁG. 31<br />

<strong>VERÃO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 6 • PÁG. 30


“Conheço médicos bolivianos<br />

trabalhando na costura, arquitetos<br />

africanos varrendo ruas. Todos<br />

os trabalhos são dignos, mas ver<br />

pessoas assim sendo desperdiçadas<br />

é uma perda enorme de capital<br />

humano qualificado”<br />

Padre Paolo Parisi, coordenador da instituição Missão Paz<br />

Dados sobre refugiados e imigrantes no Brasil<br />

Há 57.099<br />

pessoas<br />

refugiadas<br />

legalmente<br />

reconhecidas<br />

pelo Brasil<br />

Entre 2011 e<br />

2019, o Brasil<br />

recebeu<br />

1.085.673<br />

imigrantes<br />

de diversas<br />

nacionalidades<br />

O país tem<br />

ainda 193 mil<br />

solicitantes<br />

de refúgio<br />

aguardando<br />

uma resposta<br />

oficial<br />

A maior parte,<br />

142 mil, é de<br />

venezuelanos<br />

Difícil adaptação<br />

Com sua experiência no acolhimento,<br />

padre Paolo ressalta que o choque cultural<br />

varia de acordo com a origem do<br />

recém-chegado. Há variáveis sociais<br />

e culturais envolvidas e, claro, cada<br />

pessoa reage de um jeito às mudanças,<br />

mas há alguns traços em comum.<br />

Por exemplo: colombianos e peruanos<br />

costumam sentir menos a mudança;<br />

bolivianos são geralmente reservados<br />

e mantêm a convivência entre seus<br />

conterrâneos, já possuem uma grande<br />

colônia em São Paulo; angolanos já falam<br />

português, o que ajuda bastante no<br />

processo de adaptação; muitos sírios<br />

têm ensino superior, mas demoram a<br />

se encaixar por causa da língua e dos<br />

costumes. E assim por diante.<br />

“Para os imigrantes e refugiados, trabalho<br />

e moradia são os maiores desafios”,<br />

detalha o padre. E, nesse processo<br />

de busca por uma casa e emprego,<br />

vários talentos são desperdiçados.<br />

“Conheço médicos bolivianos trabalhando<br />

na costura, arquitetos africanos<br />

varrendo ruas. Todos os trabalhos são<br />

dignos, mas ver pessoas assim sendo<br />

desperdiçadas é uma perda enorme de<br />

capital humano qualificado.” E, mesmo<br />

quando conseguem um emprego,<br />

as imobiliárias impõem condições que<br />

eles não conseguem cumprir, como<br />

conseguir um fiador ou a necessidade<br />

de um depósito antecipado de três<br />

meses de aluguel. Além disso, há a burocracia<br />

brasileira, outra famigerada<br />

instituição nacional. “Regularizar a situação<br />

de um refugiado é complicado<br />

e leva muito tempo. Para um imigrante<br />

se regularizar, esse processo é quase<br />

impossível”, diz o padre italiano, que<br />

espera há meses por um horário na<br />

Polícia Federal para renovar seu visto<br />

de permanência.<br />

Mas, otimista “por fé e por opção”, padre<br />

Paolo segue seu trabalho. “Tem<br />

um Brasil que acolhe e ajuda, e tem<br />

um grupo menor, xenófobo, racista.<br />

Os que acolhem trabalham mais e são<br />

silenciosos; os preconceituosos estão<br />

em menor número, mas são mais barulhentos”,<br />

constata. Andando pelo<br />

centro de São Paulo, é possível passear<br />

pela diversidade cultural e presença<br />

estrangeira. São asiáticos, sul-americanos,<br />

africanos, árabes convivendo<br />

com brasileiros de diversas partes do<br />

país. “Essas influências vão se enraizar<br />

e se misturar ainda mais”, prevê o padre.<br />

“Não temos ainda noção de como<br />

será São Paulo e o Brasil depois das ondas<br />

migratórias atuais. Estamos construindo<br />

o futuro hoje.” E, esperamos,<br />

esse futuro será construído à base de<br />

tolerância e empatia.<br />

Obs.: os números referem-se apenas aos imigrantes legais. Não há estimativa oficial do número de imigrantes ilegais no país.<br />

Fontes:<br />

6ª edição do relatório “Refúgio em<br />

Números” (2020), do Comitê Nacional<br />

para os Refugiados (Conare), e Dados<br />

Consolidados da Imigração no Brasil<br />

(2020), do Ministério da Justiça.<br />

Serviço<br />

Aromas Café & Cake<br />

Instagram: @aromascafe46<br />

Rua Caraíbas, 46, Perdizes,<br />

São Paulo, SP<br />

WhatsApp: (11) 95978-6122<br />

Centro de Língua Árabe<br />

www.centroarabe.com.br<br />

R. Afonso de Freitas, 45,<br />

conj. 01, Paraíso, São Paulo, SP<br />

Telefone/WhatsApp:<br />

(11) 93009-9689<br />

Lavi Kasongo<br />

Instagram: @lavikasongo<br />

E-mail: kasongolavi@gmail.com<br />

Telefone: (11) 95999-0933<br />

Instituto Adus<br />

www.adus.org.br<br />

Missão Paz<br />

www.missaonspaz.org<br />

<strong>VERÃO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 6 • PÁG. 33<br />

<strong>VERÃO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 6 • PÁG. 32


[GENTE COM BOSSA]<br />

Imagem: Getty Images<br />

Ponto fora<br />

da curva<br />

Convencional é uma palavra quase esquecida no vocabulário<br />

das quatro personalidades retratadas na seção Gente com<br />

Bossa. Ideias inovadoras e soluções inusitadas são parte da<br />

rotina desses profissionais que, como muitas pessoas que não<br />

se deixam intimidar pelo status quo, criam novos conceitos,<br />

elaboram novas conexões e buscam novas referências para<br />

driblar o convencional. As histórias que a Et cetera apresenta<br />

nas próximas páginas comprovam que o pensamento inovador<br />

não requer um ambiente propício para se manifestar. Na<br />

cozinha, na escola, diante de uma plateia, à frente do computador<br />

ou no quintal, sob uma “chuva azul”, há sempre espaço<br />

para as ideias pouco (ou nada) convencionais.<br />

Quando desembarcou no Rio pela primeira vez, em 1979,<br />

Claude Troisgros sentiu um cheiro descrito por ele como “calor<br />

úmido, mar, maresia”. Se os ares cariocas mudaram para<br />

sempre o jovem cozinheiro francês, o mesmo se pode dizer<br />

de sua influência na gastronomia nacional. O chef começou<br />

revolucionando o menu do restaurante que assumiu, com a<br />

decisão de incorporar ingredientes brasileiríssimos à cozinha<br />

francesa. Não demorou para que jabuticabas, maracujás e<br />

outras iguarias tropicais transformassem receitas convencionais<br />

em pratos da alta gastronomia brasileira. O chef foi<br />

parar na TV e conquistou, definitivamente, seus quase compatriotas<br />

com o carisma e o talento que nunca lhe faltaram.<br />

Na vida da filósofa, psicanalista, poeta e atriz Viviane Mosé<br />

não cabem rótulos caretas. A capixaba que dá palestras<br />

transformadoras despista rígidos padrões preestabelecidos<br />

para incorporar sentido poético à filosofia, psicologia à<br />

poesia, filosofia às artes cênicas... Há dois anos, atenta às<br />

reivindicações feministas que buscam a igualdade entre os<br />

gêneros, resolveu mudar o nome de seu livro O Homem Que<br />

Sabe, em que promove uma análise nietzschiana da evolução<br />

da humanidade da maneira que ela melhor sabe fazer, levando<br />

conteúdo filosófico para além do universo acadêmico. A<br />

publicação traz na capa agora o título A Espécie Que Sabe, uma<br />

forma de interromper um poder masculino que se perpetua<br />

na linguagem.<br />

Tiago da Cal Alves, carioca conhecido no showbiz como Papatinho,<br />

ajudou a redefinir o papel do produtor musical. Começou<br />

vendendo CDs com coletâneas de músicas que ele gravava<br />

e vendia aos amigos na escola, mas o empreendimento<br />

logo ganharia novos contornos com a veia inovadora do produtor<br />

nato. Uniu batidas dançantes a samples perfeitos para<br />

produzir as próprias músicas em vez de utilizar composições<br />

de outros artistas. Coautor de inúmeros sucessos, do funk ao<br />

pop, um dos mais requisitados produtores musicais do país<br />

mistura estilos, abusa da versatilidade e deixa sua assinatura<br />

em todos os seus trabalhos.<br />

Poucas crianças absorvem tantos sentimentos e emoções<br />

de meras roupas penduradas no varal como fazia a artista<br />

plástica paulista Sandra Cinto. Do tecido que desbotava do<br />

uniforme molhado do pai pingavam gotas azuis no chão do<br />

quintal de casa, uma chuva azulada que mexia com a imaginação<br />

da menina. As recordações de infância ainda vivem em<br />

suas grandes paisagens de céu e mar produzidas em paredes<br />

de dezenas de metros quadrados com... tinta e pincel? Não. A<br />

artista usa canetas de ponta fina em um trabalho meticuloso<br />

que resulta em belíssimas obras de arte. Seus trabalhos já<br />

foram expostos em diversos espaços culturais do mundo ao<br />

longo de suas três décadas de carreira.<br />

Claude Troisgros, Viviane Mosé, Papatinho e Sandra Cinto<br />

sabem que mexer em time que está ganhando pode dar um<br />

gás extra à equipe. E eles jogam pra vencer de goleada.<br />

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Nome: Claude Jean Baptiste Troisgros<br />

Idade: 65 anos<br />

Profissão: cozinheiro e apresentador de televisão<br />

Cidade onde nasceu: Roanne/França<br />

Meio<br />

brasileiro,<br />

moitié<br />

français<br />

Por Mariana Amaro<br />

Em 1979, o chef Claude Troisgros<br />

desembarcou no Brasil para viver um “sonho<br />

tropical”. Quatro décadas depois, um dos<br />

mais importantes nomes da gastronomia<br />

nacional fala francês com sotaque brasileiro<br />

Foto: reprodução mídias sociais<br />

<strong>VERÃO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 6 • PÁG. 37<br />

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“O<br />

que é que há, pois, num nome?”, questionou William<br />

Shakespeare na tragédia Romeu e Julieta. Para Claude<br />

Troisgros, havia muita pressão. O chef francês cheio<br />

de bossa carrega um sobrenome que, muito antes de se tornar<br />

conhecido entre os brasileiros, já era célebre na Europa,<br />

especialmente em uma pequena cidade chamada Roanne, a<br />

menos de 100 quilômetros de Lyon, a capital gastronômica<br />

francesa. Era ali que o sobrenome estampava a entrada do<br />

restaurante agraciado com três estrelas do Guia Michelin <strong>–</strong> a<br />

mais alta nota do guia turístico publicado desde 1900. E foi<br />

na cozinha daquele prestigiado restaurante que Claude Jean<br />

Baptiste Troisgros cresceu, testou seus primeiros pratos e recebeu,<br />

aos 23 anos, uma proposta que mudaria sua vida: a<br />

chance de comandar uma cozinha no Brasil.<br />

O convite ocorreu em 1979. De lá para cá, o cozinheiro ajudou<br />

a mudar a forma como os ingredientes brasileiros estão<br />

inseridos na alta gastronomia; abriu pelo menos uma dezena<br />

de restaurantes (e fechou alguns); tornou-se dono do grupo<br />

Troisgros, que conta com as casas Chez Claude, CT Brasserie,<br />

CT Boucherie e Le Blond (além de uma sociedade com o Do Batista);<br />

ficou famoso no Brasil por seus programas de televisão;<br />

e transformou seu sotaque frrrrancês em marca registrada.<br />

A história de Claude se confunde com a história da própria<br />

gastronomia. Ele pertence a uma família que revolucionou a<br />

cozinha francesa e, consequentemente, a culinária mundial.<br />

O avô Jean-Baptiste Troisgros era um “homem de salão”,<br />

como eram chamados os grandes conhecedores de vinhos<br />

que dominavam a arte de receber pessoas. Casado com Marie<br />

Badaut, uma cozinheira de mão cheia, Jean-Baptiste decidiu<br />

mudar a forma como a comida era servida no restaurante do<br />

casal. Originalmente, e em todos os restaurantes franceses,<br />

a comida era oferecida em uma bandeja para que o próprio<br />

cliente se servisse. Para valorizar o trabalho de Marie, que<br />

comandava a cozinha, ele sugeriu que ela montasse os pratos<br />

lá mesmo, antes de entregá-los aos clientes. Na época, o<br />

restaurante Troisgros foi bastante criticado pelo novo jeito de<br />

servir, mas ele acabou adotado pela grande maioria dos estabelecimentos<br />

mundo afora.<br />

Jean-Baptiste e Marie tiveram três filhos: Jean, Pierre (pai de<br />

Claude) e a caçula Madeleine. Os dois meninos começaram a<br />

trabalhar cedo na cozinha do restaurante e logo se tornaram<br />

chefs. Pierre se casou com Olympia, uma cozinheira italiana<br />

que tinha sua própria história entre as panelas. Quando<br />

criança, ela fora capturada por oficiais alemães quando a<br />

família tentava escapar da Itália durante a Segunda Guerra.<br />

O pai foi mandado para um campo de concentração, mas a<br />

menina, a mãe e o irmão escaparam do destino trágico porque<br />

um oficial alemão levou a mãe de Olympia para trabalhar<br />

como cozinheira em sua casa. Quando a guerra acabou, o trio<br />

fugiu para a França, onde Olympia virou Olympe <strong>–</strong> o mesmo<br />

nome que batizaria o mais longevo dos empreendimentos<br />

culinários de Claude.<br />

“Meu prato afetivo é o nhoque com molho de<br />

tomate da minha avó italiana. Ela deixava o molho<br />

cozinhando por horas, e esse perfume ficou<br />

guardado pra sempre na memória”<br />

A infância na cozinha<br />

Por causa de suas inúmeras possibilidades de acidente, crianças<br />

não costumam ser bem-vindas à cozinha. Para Claude,<br />

nascido em abril de 1956, a realidade era outra. “Cresci fazendo<br />

as refeições na cozinha do restaurante e vendo meu pai e meu<br />

tio trabalharem”, conta. A família, composta de 12 pessoas,<br />

entre adultos e crianças (e um cachorro), vivia, literalmente,<br />

dentro do restaurante. Em cima do salão, para ser mais exato.<br />

Suas memórias de infância são bem diferentes do funcionamento<br />

atual de um estabelecimento comercial. Naquela<br />

época, os cozinheiros tinham de acender o carvão do fogão<br />

bem cedo e receber fornecedores que vinham entregar alimentos,<br />

como os apanhadores de cogumelos e os caçadores<br />

que traziam lebres e outras caças ainda vivas. Mas, apesar<br />

de conviver desde o ventre materno com a culinária francesa,<br />

Claude atribuiu à cozinha italiana o status de comfort food.<br />

“Meu prato afetivo é o nhoque com molho de tomate da minha<br />

avó italiana. Ela deixava o molho cozinhando por horas, e esse<br />

perfume ficou guardado pra sempre na memória”, lembra.<br />

Como os pais de Claude trabalhavam juntos no restaurante,<br />

o garoto passava muito tempo com a avó materna. “Ela<br />

cuidou da família inteira”, diz. O nhoque da avó acabou incorporado<br />

ao cardápio de um dos restaurantes que Claude<br />

inauguraria muitos anos depois. “Nunca aprendi a dominar<br />

totalmente os segredos da culinária italiana, mas via minha<br />

avó realizar suas preparações. Foi uma grande influência<br />

na minha formação”, diz.<br />

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O clã Troisgros | foto: reprodução redes sociais


Destino entre as panelas<br />

Claude sabia que seu futuro estava na cozinha. Prova disso é<br />

que, aos 6 anos, assinou “contrato” com o renomado chef Paul<br />

Bocuse, amigo da família, se comprometendo a passar por um<br />

estágio no restaurante dele. E a promessa se cumpriu 11 anos<br />

depois. Bocuse era o estereótipo do chef que grita, atira panelas<br />

e aumenta ainda mais a pressão no ambiente quase explosivo<br />

de uma cozinha profissional. A amizade entre o chef e<br />

os Troisgros não garantia nenhuma regalia: Claude começou<br />

descascando batatas, como a maioria dos novatos, e, quando<br />

cometia um deslize, como enviar o prato na temperatura errada<br />

para o salão, era mandado para a confeitaria <strong>–</strong> enrolar<br />

massa folhada era a punição para quem errava.<br />

Nesse período, Claude viu de perto o nascimento do movimento<br />

chamando nouvelle cuisine française, capitaneado por<br />

Bocuse, Jean e Pierre Troisgros e outros cerca de 15 cozinheiros,<br />

que pregava uma espécie de evolução na maneira de<br />

cozinhar, valorizando pequenos produtores locais, alimentos<br />

frescos e adaptando o cardápio às estações. “Todos os movimentos<br />

que vieram depois, como fusion cuisine e cozinha molecular,<br />

foram baseados na nouvelle cuisine française”, explica.<br />

Após a temporada com o “general” das panelas, Claude foi<br />

convocado para o serviço militar obrigatório. O sobrenome<br />

famoso se mostrou uma vantagem na ocasião: Claude foi<br />

destacado como chef da residência do almirante. A experiência<br />

foi seguida por uma viagem a diversos países, trabalhando<br />

enquanto conhecia outras culturas, antes de voltar<br />

para Roanne e o restaurante da família. Alguns meses depois,<br />

enquanto preparava o serviço do dia na cozinha, Claude ouviu<br />

o pai dizer que um famoso restaurante francês abriria uma<br />

filial no Rio de Janeiro. Eles estavam buscando um chef para<br />

tocar a cozinha durante dois anos. “Alguém se habilita?”, perguntou<br />

Troisgros pai. “Eu!”, respondeu o filho.<br />

Ao embarcar para o Brasil, no fim de 1979, o jovem Claude<br />

não sabia nada sobre o país: achava que a Amazônia ficava<br />

no Rio de Janeiro e não sabia que aqui se falava o português,<br />

mas estava certo de que viveria um “sonho tropical”. E, claro,<br />

o salário (em dólar) compensaria. Chegou ao Rio de Janeiro<br />

em um dia particularmente quente. Ao sair do avião, sentiu<br />

o cheiro que permanece gravado em sua memória até hoje,<br />

descrito por ele como “calor úmido, mar, maresia”. Logo no<br />

primeiro dia no Le Pré Catelan, cuja cozinha comandaria, conheceu<br />

Marlene Pereira da Silva, com quem se casaria e teria<br />

seus dois filhos, Thomas e Carolina.<br />

Claude e Batista | foto: Victor Pollak - divulgação Globo<br />

Fincando a bandeira<br />

Da esquerda para a direita: Paul Bocuse, Pierre Troisgros, Jacques Pic, Georges Blanc e<br />

Alain Chapel, em Alpe d’Huez, em 1983 | foto: Edmond Pinaud/AFP<br />

Com a inauguração do Le Pré Catelan,<br />

o Rio de Janeiro ganhava seu primeiro<br />

restaurante verdadeiramente francês,<br />

apesar de toda a dificuldade em conseguir<br />

mão de obra especializada e,<br />

principalmente, adquirir ingredientes.<br />

“Não havia azeite, manteiga, creme de<br />

leite com a qualidade a que estávamos<br />

acostumados na Europa”, conta Claude.<br />

Passou três meses tentando encontrar<br />

os produtos com os quais estava<br />

habituado a trabalhar na França, até<br />

o dia em que ligou para o chef que o<br />

havia contratado (e que assinava o cardápio<br />

do restaurante) e sugerir mudar<br />

o menu, a fim de incorporar os ingredientes<br />

locais, como seu pai o havia ensinado<br />

a fazer.<br />

Não foi um processo simples. Muitos<br />

clientes reclamaram, mas, aos poucos,<br />

Claude desenvolveu sua própria versão<br />

de uma culinária franco-brasileira.<br />

O kir royal, drinque que mistura licor<br />

de cassis com espumante, ganhou licor<br />

de jabuticaba e foi rebatizado para<br />

Jabukir. Pato com laranja virou pato<br />

com maracujá, purê de castanhas portuguesas<br />

foi substituído por purê de<br />

feijão-branco. E assim, com carta branca<br />

do chefe para criar e adaptar o cardápio,<br />

Claude foi firmando seu nome<br />

no Brasil. Lá fora, no entanto, continuava<br />

sendo apenas o filho, sobrinho e<br />

neto de grandes chefs.<br />

Ao final dos dois anos do contrato com<br />

o Le Pré Catelan, Claude abriu um restaurante<br />

em Búzios, que só recebia<br />

clientes aos fins de semana. Decididos<br />

a voltar para o Rio, ele e a esposa<br />

venderam tudo <strong>–</strong> um carro velho e algumas<br />

joias <strong>–</strong>, juntaram 5 mil dólares<br />

e alugaram um espaço de 30 metros<br />

quadrados no Leblon, onde cabiam 18<br />

banquinhos ao redor de seis mesas. O<br />

restaurante levava o nome da cidade de<br />

Claude: Roanne.<br />

No segundo dia após a inauguração,<br />

dois clientes contaram ao chef que<br />

haviam entrado por causa do nome<br />

do restaurante. Afirmaram ser fãs de<br />

um restaurante localizado em Roanne,<br />

chamado Troisgros. Para não envergonhar<br />

a família com seu acanhado estabelecimento,<br />

Claude respondeu apenas<br />

que havia nascido na cidade, sem<br />

revelar que também era um Troisgros.<br />

A dupla elogiou a comida e saiu com a<br />

promessa de indicar o local aos amigos.<br />

Os clientes eram José Bonifácio<br />

de Oliveira Sobrinho, o Boni, executivo<br />

da Rede Globo de Televisão, e Armando<br />

Nogueira, diretor de jornalismo da<br />

emissora. No dia seguinte, havia fila na<br />

porta do Roanne. E, pouco tempo depois,<br />

bateria à porta um rapaz franzino<br />

chamado João Batista Barbosa de Souza,<br />

se oferecendo para ajudar na cozinha.<br />

Foi assim que entrou na vida de<br />

Claude o “Batiiiista”, que acompanha<br />

o chef até hoje nos empreendimentos<br />

gastronômicos e na televisão.<br />

<strong>VERÃO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 6 • PÁG. 41<br />

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Passada de bastão (ou<br />

de panelas)<br />

Com os filhos, Thomas e Carolina | foto: arquivo pessoal<br />

Novos sonhos<br />

Com o sucesso do Roanne, Claude decidiu<br />

apostar em um espaço maior.<br />

Abriu o Claude Troisgros, no Jardim<br />

Botânico, que depois mudaria de nome<br />

para Olympe (em homenagem à mãe),<br />

que conquistou uma estrela no Guia<br />

Michelin. Mas Claude tinha planos mais<br />

ousados: ele queria chegar a Nova<br />

York. Em 1994, deixou o Olympe sob<br />

os cuidados de Batista e foi firmar seu<br />

nome no cenário internacional, que<br />

vivia o começo da fusion cuisine, inaugurando<br />

o CT em Manhattan. “Estava<br />

cheio de restaurante franco-oriental,<br />

franco-tailandês. Cheguei com um<br />

franco-brasileirrro.” E o CT foi um<br />

sucesso imediato, com fila na porta.<br />

“Em um mundo de cozinheiros imitadores,<br />

ele é único”, escreveu o crítico<br />

do jornal The New York Times sobre<br />

o chef recém-chegado.<br />

Claude deixava, assim, de ser apenas<br />

o parente de grandes chefs e passou a<br />

ser reconhecido por sua gastronomia<br />

mundialmente. Dois anos depois, os<br />

investidores venderam o restaurante<br />

nova-iorquino, e Claude decidiu voltar<br />

para o lugar que ele já considerava seu<br />

lar. Foi recebido no Brasil com o carinho<br />

de um filho que retorna à casa e<br />

com uma ideia na cabeça: trabalhar<br />

na televisão. Durante a temporada nos<br />

Estados Unidos, ele percebeu a enorme<br />

quantidade de programas de TV<br />

sobre alta gastronomia. “Participei de<br />

alguns programas lá e vi que gostava<br />

disso”, diz. Muito bem relacionado,<br />

conseguiu o contato de produtores<br />

no GNT, e em 2004 estreou o quadro<br />

Adivinha o Que Tem para o Jantar em um<br />

programa de variedades no canal. Era<br />

o início de uma parceria de sucesso.<br />

Depois viriam o Menu Confiança, com o<br />

jornalista Renato Machado, os programas<br />

da série Que Marravilha! e o reality<br />

show Mestres do Sabor. “E lá se vão 16<br />

anos na televisão. Hoje, me vejo como<br />

um cozinheiro que virou apresentador.<br />

Vou ser sempre um cozinheiro”, diz.<br />

Como preparação para entrar no universo<br />

da TV, fez sessões de fonoaudiologia,<br />

mas a ideia nunca foi acabar<br />

com o sotaque, sua marca registrada.<br />

“Queria apenas trabalhar a voz. Isso<br />

é importante para a televisão”, acalma<br />

Claude. Quando visita a família na<br />

França, leva consigo outro sotaque.<br />

“Minha família diz que falo com sotaque<br />

brasileiro. O incrível é que não sinto<br />

isso”, garante.<br />

Assim como o pai famoso, Thomas e<br />

Carolina cresceram em meio às panelas.<br />

Thomas mostrou, desde cedo, o<br />

interesse em seguir a profissão da família<br />

e foi estudar e trabalhar na área.<br />

Carolina optou pelo lado da administração<br />

e marketing de restaurantes.<br />

Aos poucos, Thomas foi assumindo a<br />

cozinha até se tornar chef do Olympe.<br />

Para dar espaço ao filho, Claude deixou<br />

a casa principal e voltou às origens:<br />

abriu o Chez Claude, um restaurante<br />

intimista, com 80 metros quadrados<br />

e uma cozinha no meio do salão, ao<br />

lado de onde ficava o Roanne. Com a<br />

pandemia, o estrelado Olympe acabou<br />

fechando as portas. “Eu sempre digo<br />

que nos momentos difíceis a gente tem<br />

que tirar a melhor lição, ser criativo e<br />

humilde para aprender com os acontecimentos.<br />

Foi assim na pandemia. O<br />

Olympe estava sob o comando do meu<br />

filho Thomas. Ele optou por fechar e eu<br />

respeitei a decisão dele”, diz.<br />

Quando está fora da cozinha, Claude<br />

gosta de praticar esportes variados: de<br />

trilhas e parapente a mergulho e kitesurf.<br />

E ama viajar, principalmente com<br />

sua moto. “Meu sonho de vida é dar a<br />

volta ao mundo. Quero largar tudo e<br />

me mandar, sem data de volta”, diz. O<br />

chef também tem seu lado músico: estudou<br />

saxofone por dez anos. Embora<br />

tenha aprendido a técnica, não consegue<br />

tocar bem porque lhe falta, como<br />

ele mesmo diz, “ouvido”. Sem a audição<br />

aguçada, Claude diz que tem a “boca<br />

perfeita”, que lhe permite sentir o<br />

Que dica daria ao jovem Claude:<br />

equilíbrio entre os sabores com sensibilidade.<br />

É isso, segundo ele, que separa<br />

um bom cozinheiro daqueles extraordinários.<br />

Para Claude, sensibilidade<br />

e técnica são as duas características<br />

mais importantes para um chef. Ele<br />

acredita que, assim como qualquer outro<br />

profissional, um cozinheiro precisa<br />

estar se aprimorando constantemente,<br />

repetindo as receitas, melhorando a<br />

prática por décadas enquanto lida com<br />

muito calor, pressão, trabalho pesado e<br />

horas em pé.<br />

Após quatro décadas no Brasil, Claude<br />

identifica uma revolução no paladar<br />

dos brasileiros nos últimos anos. Mas<br />

faz um alerta acerca da formação dos<br />

futuros profissionais <strong>–</strong> a gastronomia<br />

estava entre os dez cursos de graduação<br />

tecnológica mais buscados na<br />

rede privada em 2019. Para ele, não<br />

basta ser criativo na cozinha, é preciso<br />

também “saber fazer um bom caldo<br />

de frango”. Ele critica tanto as escolas<br />

quanto os alunos que têm como objetivo<br />

formar ou ser chefs, perdendo de<br />

vista o ofício de cozinheiro. “Chef é um<br />

posto, uma função, como a de general.<br />

Chegar lá depende de muitos fatores”,<br />

afirma. Para ele, ser um chef é uma<br />

conquista que vem com muitos anos de<br />

cozinha, e inclui noções de administração,<br />

relacionamento pessoal, conhecimento<br />

para fazer boas compras, saber<br />

escolher produtos e fornecedores e,<br />

claro, comandar uma equipe. Tudo o<br />

que esse carioca nascido na França faz<br />

marrrravilhosamente bem.<br />

“Ser um chef é uma conquista que vem com<br />

muitos anos de cozinha. Se quer chegar lá, é<br />

preciso começar treinando muito na cozinha”<br />

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<strong>VERÃO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 6 • PÁG. 42


Nome: Viviane de Souza Mosé<br />

Idade: 57 anos<br />

Profissão: filósofa, poeta, psicóloga, psicanalista<br />

Cidade onde nasceu: Vitória/ES<br />

“A vida é<br />

conflito”<br />

Por Daniela Macedo<br />

A filósofa e psicanalista Viviane Mosé<br />

tem arte correndo nas veias desde<br />

a infância: é poeta, atriz e assina a<br />

autoria de canções em parceria com<br />

a sambista Mart’nália<br />

Foto: divulgação<br />

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Lugar de fala<br />

“A felicidade é uma ideia idiota. A vida é luta, é conflito<br />

que nos faz crescer, que nos faz aprender. É um lugar<br />

de aprendizado, de expansão de si. Nós estamos em<br />

expansão, junto com o Universo, e expandir dói”<br />

A<br />

filósofa, poeta e psicóloga Viviane Mosé resume de<br />

maneira brilhante o sentido da vida: para ela, a razão<br />

de viver seria justamente aprender a lidar com a vida.<br />

Aos 57 anos, a pensadora que traz ciência e arte na bagagem<br />

entende que viver não deve ser uma eterna busca pela felicidade.<br />

E ela não recorre a discursos empolados para enterrar<br />

o ideal de vida feliz. Vai direto ao ponto: “A felicidade é uma<br />

ideia idiota. A vida é luta, é conflito que nos faz crescer, que<br />

nos faz aprender. É um lugar de aprendizado, de expansão<br />

de si. Nós estamos em expansão, junto com o Universo, e expandir<br />

dói”.<br />

Ao longo do último ano, Viviane mergulhou fundo na dor. No<br />

início de 2021, seu casamento de quase seis anos com a economista<br />

Eduarda La Rocque terminou abruptamente. “Levei<br />

um fora, fui mandada embora”, resume. Viviane teve de sair<br />

de casa e viu ruir, no auge da pandemia, uma estrutura familiar<br />

que escorava sua saúde mental. “Foi muito inesperado, e<br />

eu sustento a minha vida na minha casa. Tenho um poema<br />

que diz ‘A casa é o corpo que me sustenta quando o meu próprio<br />

me falta’.” A separação na vida pessoal não interrompeu<br />

a convivência, já que ambas são sócias na Usina Pensamento,<br />

uma empresa de produção de conteúdo e editora de livros, o<br />

que deixa a experiência ainda mais dolorosa, como sabe qualquer<br />

pessoa que já levou um fora. Entre os vários projetos desenvolvidos<br />

em parceria <strong>–</strong> antes e depois da separação <strong>–</strong> está<br />

o livro Política: Nós Também Sabemos Fazer, que a dupla produziu<br />

ao lado dos professores Clóvis Barros de Filho e Oswaldo<br />

Giacoia Junior.<br />

O sofrimento da separação é o tema de seu novo livro, ainda<br />

sem título definido. Viviane pretende explorar um sentimento<br />

real por meio de uma obra de ficção. “É preciso demonstrar<br />

respeito e carinho por casais que se separam. A gente trata o<br />

amor como se fosse frescura, diz ‘Ah, tá sofrendo por amor,<br />

não é nada’. Mas é um luto terrível”, diz. Assim como fala<br />

abertamente sobre um assunto tão pessoal, a filósofa pretende<br />

transmitir as lições que tirou de seu próprio luto. “Estou<br />

entrando na terceira idade como uma criança. Com rugas,<br />

sim, mas me sinto uma criança. Eu fui ao fundo do meu poço<br />

e saí com uma energia incrível pra carregar o mundo nas costas,<br />

se for preciso.”<br />

A filósofa teve de aprender a lidar<br />

com intempéries relacionadas à saúde<br />

mental logo na infância. Ainda antes<br />

de completar 10 anos de idade, já<br />

manifestava uma hipersensibilidade<br />

emocional e corporal, característica<br />

percebida pela família e pela própria<br />

Viviane. “Todos temos uma ferida na<br />

alma, esta é a minha. Sinto tudo o tempo<br />

todo, este poema me define bem:<br />

Não tenho pele / Tudo me fere / Sofro<br />

de carne viva / De carne vida eu sofro<br />

/ De vida”, explica. Essa hipersensibilidade<br />

ganhou nome, décadas depois,<br />

nos consultórios de analistas e psicanalistas:<br />

transtorno de personalidade<br />

limítrofe, também conhecido como<br />

borderline. “Quando eu falo de luta psíquica,<br />

eu sei do que estou falando. Sinto<br />

dores imensas até hoje, então falo de<br />

cadeira, não levianamente”, afirma.<br />

Com o tempo, aprendeu a transformar<br />

a dor em ação. “Primeiro: eu não<br />

fujo do sofrimento; eu vou nele, e sofro<br />

mesmo. Naquele momento, parece<br />

que a vida acaba, mas o sofrimento<br />

sempre passa”, ensina. E complementa<br />

com outra lição valiosa: “Não culpe<br />

ninguém. O sofrimento é sempre seu.<br />

Isto é maturidade: aprender a lidar<br />

com a frustração”. Aqui, mais uma<br />

vez, Viviane ilustra a teoria com suas<br />

próprias experiências: “Quando eu fui<br />

abandonada pelo meu amor, que eu<br />

achava que era para sempre, eu não<br />

tive ódio dela. Eu entendi que aquele<br />

era um corte que estava acontecendo<br />

comigo. Era eu quem precisava lidar<br />

com aquilo. E eu me tornei mais forte”.<br />

Diferentemente de muita gente que<br />

atravessa sem apoio os vales solitários<br />

dos transtornos psiquiátricos, Viviane<br />

teve a sorte de sempre contar com<br />

a família e com a psicanálise, combinação<br />

que a afastou de crises graves.<br />

Filha da dona de casa Joêmia e de Anselmo,<br />

um protético (profissional que,<br />

no passado, realizava procedimentos<br />

odontológicos tendo aprendido o ofício<br />

com um mestre), a filósofa cresceu<br />

com a casa cheia, na Vitória das<br />

décadas de 1960 e 1970. O pai, que era<br />

autodidata, criou um cursinho pré-<br />

-vestibular e “discutia mitocôndrias na<br />

mesa de jantar” com os seis filhos, fazia<br />

questão de gastar o que sobrava em<br />

diversão para a família. “Não passava<br />

um final de semana sem que recebêssemos<br />

amigos em casa. Aos sábados,<br />

éramos acordados ao som de Mozart,<br />

Beethoven, logo às 8 horas da manhã,<br />

com meu pai dizendo ‘Tem que acordar<br />

pra ser feliz!’”, lembra.<br />

A união dos irmãos Mosé se estendia<br />

além do portão de casa, principalmente<br />

quando a turma se juntava para defender<br />

a irmã mais velha, Neusa, que fora<br />

adotada por Anselmo e Joêmia antes<br />

mesmo do casamento <strong>–</strong> a menina até<br />

acompanhou o casal na lua de mel.<br />

“Neusa é negra, e nós brigávamos na<br />

rua quando ela era vítima de racismo”,<br />

conta. “Quando saíamos todos juntos,<br />

ela tinha que ir à nossa frente, na entrada<br />

dos lugares, porque era barrada<br />

se tentasse entrar depois da gente. Ela<br />

era tratada pelos outros como se fosse<br />

a empregada da família.” Mais tarde, o<br />

casal adotaria outra criança negra, a<br />

caçula da turma, Alina.<br />

Aos 3 anos no jardim da casa da avó | foto: arquivo pessoal<br />

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Com a amiga e parceira musical Mart’nália | foto: arquivo pessoal<br />

Vida multidisciplinar<br />

Viviane mantinha ocupada a agenda de atividades culturais e esportivas: frequentava aulas de teatro, incrementadas por apresentações<br />

para a vizinhança no quintal de casa, e era atleta mirim de ginástica artística <strong>–</strong> chegou a integrar a equipe capixaba<br />

de ginástica de solo, treinando quatro horas por dia. As atividades não tiravam seu foco na sala de aula: “Adoro estudar, faço<br />

isso por prazer”. Aos 16 anos, passou em segundo lugar no vestibular de psicologia da Universidade Federal do Espírito Santo. O<br />

feito foi noticiado no jornal da cidade, mas não marcou sua estreia na imprensa local, que ela já frequentava por causa das competições<br />

de ginástica e dos desfiles escolares de 7 de setembro <strong>–</strong> Viviane emprestava as habilidades de ginasta para se destacar<br />

como baliza à frente dos colegas.<br />

Filosofia para as<br />

massas<br />

Ironicamente, foram os poemas que<br />

abriram as portas da Rede Globo para<br />

a Viviane filósofa. Uma matéria sobre<br />

a poeta capixaba no jornal O Globo chamou<br />

a atenção de Roberto Irineu Marinho,<br />

presidente do grupo, que convidou<br />

Viviane para declamar seus poemas<br />

em um jantar em sua casa. Além do<br />

executivo, estavam no sarau alguns<br />

diretores da emissora carioca, e logo<br />

ela seria convidada para comandar o<br />

quadro no Fantástico intitulado Ser Ou<br />

Não Ser, que apresentou entre 2005 e<br />

2006. Sua participação no dominical,<br />

em que Viviane levava a filosofia para<br />

as massas, impulsionou sua popularidade.<br />

Em certa ocasião, foi abordada<br />

por um desconhecido “forte, enorme”<br />

que descarregava um caminhão de<br />

mudanças no centro do Rio. “Ouvi uma<br />

voz grave chamar ‘Viviane Mosé! Viviane<br />

Mosé!’ e estranhei. Disse ‘Eu?’, e<br />

ele: ‘Claro, tu não é a filósofa? Não perco<br />

um programa teu e boto meus filhos<br />

pra assistir. Adoro!’”, conta.<br />

O reconhecimento chegava também<br />

pelo correio, a exemplo da carta escrita<br />

à mão enviada por uma telespectadora.<br />

“Ela contava que a filha costumava dizer<br />

que ela era burra, mas ela entendia<br />

tudo o que eu falava, e a filha, não. Era<br />

ela quem explicava pra filha o que eu<br />

dizia. Sabe por quê? Porque eu falava<br />

da vida, e ela entendia da vida”, lembra.<br />

O quadro deixou de ser exibido há 15<br />

anos, mas a relação de Viviane com o<br />

Grupo Globo dura até hoje, com participações<br />

na rádio CBN e no programa<br />

Encontro com Fátima Bernardes. Suas lives<br />

e palestras disponíveis na internet<br />

atraem milhares de fãs. Recentemente,<br />

foi surpreendida por uma camelô, que<br />

chegou a mostrar na tela do celular o<br />

canal de Viviane no YouTube para provar<br />

que é seguidora. “Esse carinho não<br />

tem preço, é uma alegria indescritível.”<br />

Tanta popularidade pode alimentar<br />

críticas de filósofos mais conservadores.<br />

Alguns dizem que Viviane não é<br />

acadêmica por ser pop demais. “Isso<br />

não me agride porque não é verdade. É<br />

preconceito”, resume. E ela tem razão.<br />

Seu livro Nietzsche e a Grande Política da<br />

Linguagem, por exemplo, em que analisa<br />

a obra do filósofo alemão, já foi inúmeras<br />

vezes citado em teses de mestrado<br />

e doutorado. Se a popularidade<br />

gera comentários preconceituosos, o<br />

fato de ser uma mulher bonita ajudou,<br />

sim, como ela própria reconhece. “Tenho<br />

que ser honesta: sempre fui muito<br />

beneficiada por ser mulher. Sempre<br />

fui bonita, e isso abriu portas.” Ela faz<br />

questão de deixar claro que não se trata<br />

de sedução ou de usar a aparência<br />

para obter vantagens. “A beleza abre<br />

portas. Não é um mérito meu”, explica.<br />

Aos 17 anos, a universitária dedicada<br />

começou a dar aulas de introdução à<br />

psicologia em um curso de formação<br />

de professores. Seguiu a carreira atendendo<br />

em consultório por duas décadas<br />

(até o nascimento do filho, Davi, em<br />

2004), mas o interesse pela filosofia<br />

nasceu cedo, nas aulas de introdução<br />

à filosofia da graduação em psicologia.<br />

A paixão virou relacionamento sério<br />

quando se mudou para o Rio de Janeiro,<br />

onde concluiu mestrado e doutorado<br />

estudando Friedrich Nietzsche. Autora<br />

de seis livros sobre filosofia <strong>–</strong> além<br />

das seis obras de poesia <strong>–</strong>, Viviane se<br />

dedica há duas décadas a entender os<br />

desafios contemporâneos, tema dos<br />

estudos do filósofo alemão. Com a arte<br />

no DNA, levou Nietzsche para os palcos:<br />

ela atua ao lado do cultuado diretor<br />

de teatro Amir Haddad no espetáculo<br />

Assim Falava Zaratustra, interpretando o<br />

próprio Nietzsche.<br />

Com a vida estabelecida em terras cariocas,<br />

dividia o tempo entre o consultório<br />

de psicanálise, os estudos filosóficos<br />

e a poesia. Declamava seus poemas<br />

em encontros culturais, cultivava amizade<br />

com músicos e atores, e chegou a<br />

compor sambas com Mart’nália, como<br />

Não Me Balança Mais e Contradição. A<br />

parceria com a filha de Martinho da<br />

Vila foi retomada na pandemia, a distância:<br />

a cantora cria a melodia e ajuda<br />

Viviane a escrever a letra. “É muito<br />

difícil pra mim porque meu texto tem<br />

ritmo próprio, aí eu tento combinar o<br />

ritmo da música com o do texto. Não<br />

sei se vou conseguir fazer músicas<br />

boas, mas o aprendizado tem sido maravilhoso”,<br />

revela a aprendiz de letrista.<br />

<strong>VERÃO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 6 • PÁG. 49<br />

Com Amir Haddad no espetáculo Assim Falava Zaratustra | foto: reprodução Sympla<br />

<strong>VERÃO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 6 • PÁG. 48


Bela, desinibida e livre<br />

Viviane recorda o episódio em que sua<br />

aparência a prejudicou durante um<br />

processo seletivo para integrar o corpo<br />

docente de uma universidade. Após<br />

ser informada da reprovação, encontrou-se<br />

por acaso com o único membro<br />

da comissão (masculina, frisa-se) que<br />

havia discordado da decisão. Segundo<br />

esse integrante, ela foi reprovada logo<br />

na inscrição. “O argumento era de que<br />

uma professora de filosofia pode até<br />

ser bonita, mas não pode ser sensual.<br />

Ela disse que ouviu a frase ‘Até parece<br />

que uma mulher com esse corpo<br />

vai ser professora aqui’”, diz. O caso<br />

isolado de discriminação não reflete a<br />

carreira da psicóloga e filósofa. “Em todos<br />

os lugares onde trabalhei, ganhava<br />

mais do que os homens.”<br />

Se a vida profissional não foi afetada<br />

pelo machismo, o mesmo não se pode<br />

dizer da vida pessoal. Durante os tempos<br />

de solteira <strong>–</strong> antes de se casar, aos<br />

38 anos, com o diretor de audiovisual<br />

Daniel Duarte, com quem viveu por 13<br />

anos <strong>–</strong>, Viviane lidou com o preconceito<br />

comumente dispensado às mulheres<br />

que não abrem mão da liberdade.<br />

“Sempre fiquei com os caras que eu<br />

quis, e isso não é respeitado. Fui livre,<br />

mas sofri muito por causa da minha liberdade<br />

sexual.” Sofreu inclusive com<br />

a insistência de homens que não aceitam<br />

rejeição. “Isso pra mim é a grande<br />

merda do feminino. Se a mulher transa<br />

com quem quer, é vadia. Quando eu era<br />

mais jovem, isso era insuportável.”<br />

Viviane celebra o feminismo que vem<br />

quebrando tabus e permitindo que as<br />

jovens de hoje tenham mais liberdade<br />

que ela teve na juventude. “Ainda temos<br />

muita coisa pra conquistar, mas é<br />

importante falar dessa mudança. Parabéns<br />

pras meninas”, comemora. E leva<br />

para sua obra a influência de alunas<br />

feministas. Em 2019, mudou o nome de<br />

“A palavra Homem não pode<br />

substituir a palavra Humano<br />

seu livro O Homem Que Sabe <strong>–</strong> Do Homo<br />

Sapiens à Crise da Razão, que faz uma<br />

análise nietzschiana da evolução da<br />

humanidade, para A Espécie Que Sabe.<br />

As edições atualizadas do livro trazem<br />

a explicação: “Não queremos mais que<br />

o poder masculino, que guiou os séculos<br />

até essa exclusão contemporânea,<br />

se perpetue na linguagem. A palavra<br />

Homem não pode substituir a palavra<br />

Humano ou Humanidade, sustentando<br />

a exclusão do feminino. Acatando<br />

e afirmando essa questão, este livro<br />

passa a se chamar a partir de agora A<br />

Espécie Que Sabe, e a palavra Homem,<br />

quando usada no sentido de espécie<br />

no decorrer do livro, foi substituída<br />

por Ser Humano ou apenas Humano”.<br />

E a autora vai além: “Estou tentando<br />

mudar o conceito nietzschiano de super-homem<br />

para super-humano. Academicamente,<br />

isso é uma afronta, mas<br />

a mulher tem que estar incluída”, diz.<br />

ou Humanidade, sustentando a<br />

exclusão do feminino. Acatando<br />

e afirmando essa questão, este<br />

Foto: arquivo pessoal<br />

Apesar de tudo, otimista<br />

A filósofa que estuda os desafios do<br />

mundo atual e acumula mais de duas<br />

décadas de experiência como psicanalista<br />

mantém no radar um fenômeno<br />

mundial alarmante: o aumento no índice<br />

de suicídio, principalmente entre<br />

jovens e crianças. Segundo a Organização<br />

Mundial da Saúde (OMS), a cada<br />

quatro segundos, uma pessoa tira a<br />

própria vida. Viviane faz questão de<br />

trazer o tema à tona em lives, entrevistas<br />

e palestras para o setor corporativo<br />

e para a educação pública e privada. “O<br />

suicídio na infância cresce no mundo<br />

todo. Já é a maior causa de morte de<br />

crianças de 8 a 14 anos nos Estados Unidos”,<br />

afirma. Viviane acredita que esse<br />

é um problema de saúde pública que<br />

exige a atenção de toda a sociedade. “O<br />

mundo está desabando em nossa cabeça.<br />

Nós nos tornamos uma civilização<br />

doente. Além de sermos hospedeiros<br />

de vírus, estamos à mercê de destruições<br />

ambientais como um rato roendo<br />

nosso calcanhar que nos impede de<br />

andar. Precisamos parar de olhar para<br />

o nosso próprio umbigo e discutir essa<br />

questão. As pessoas estão pulando da<br />

janela!”, ressalta a pensadora.<br />

No entanto, nem a pandemia, nem a<br />

crise ambiental, nem o “mundo desabando<br />

em nossa cabeça” abalam o<br />

otimismo da filósofa. “Eu me vinculo<br />

ao que tem luz, à vida, às galáxias.<br />

Elas não estão aí à toa, o Universo não<br />

está expandido à toa, e o ser humano<br />

não chegou aqui à toa”, diz. Habituada<br />

a ministrar palestras a professores,<br />

Viviane tenta levar o otimismo a esses<br />

profissionais que viram seu trabalho<br />

virar de cabeça para baixo na pandemia.<br />

“Eu digo para os professores que<br />

estão sofrendo: ‘Vocês precisam sobreviver<br />

pra plantar a semente de um<br />

novo mundo’.” Ela acredita nas novas<br />

gerações, que novos valores possam<br />

vencer as “ideias paquidérmicas dos<br />

velhos”. Mas, nesse momento, ela faz<br />

uma pausa, e explica: “Quando eu falo<br />

de velhos e novos, não me refiro à idade<br />

nem à aparência. Eu tenho 57 anos,<br />

mas sou jovem. Ser jovem é se dar<br />

mais, saber que pode amar e namorar<br />

aos 60 anos. Sem preconceito!”, esclarece.<br />

“E eu quero viver até os 100 anos.<br />

E eu vou viver, porque eu amo a vida.”<br />

Capa do livro cujo título original era O Homem<br />

Que Sabe <strong>–</strong> Do Homo Sapiens à Crise da Razão<br />

livro passa a se chamar a partir<br />

de agora A Espécie Que Sabe”<br />

Que dica daria à jovem Viviane?<br />

“Calma, esse peso que você carrega na<br />

alma é amor em excesso, contido, sem<br />

vazão. Aprenda a soltá-lo aos poucos.<br />

Exponha-se, expanda”<br />

<strong>VERÃO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 6 • PÁG. 51<br />

<strong>VERÃO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 6 • PÁG. 50


Nome: Tiago da Cal Alves (Papatinho)<br />

Idade: 35 anos<br />

Profissão: produtor musical<br />

Cidade onde nasceu: Rio de Janeiro/RJ<br />

Entre beats<br />

e samples<br />

Por Sérgio Martins<br />

Aos 35 anos, Papatinho é um dos<br />

produtores musicais mais requisitados do<br />

mercado. Do funk ao pop, suas batidas e<br />

timbres guardam a receita do sucesso<br />

Foto: Lana Pinho<br />

<strong>VERÃO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 6 • PÁG. 53<br />

<strong>VERÃO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 6 • PÁG. 52


Black Alien, Papatinho e Seu Jorge | foto: Lana Pinho<br />

C<br />

erta manhã de 2021, o carioca Tiago da Cal Alves foi acordado pelo porteiro<br />

do condomínio onde mora no Recreio dos Bandeirantes, na zona oeste do Rio<br />

de Janeiro, porque havia um estranho insistindo em falar com o morador.<br />

“Está há mais de três horas gritando pelo senhor”, avisou. Tiago desceu à portaria<br />

do edifício e se deparou com um jovem que desejava conhecê-lo para mostrar<br />

suas músicas. Só estranha o fato de alguém passar horas à espera de Tiago quem<br />

não sabe seu nome artístico nem faz ideia do currículo que ele ostenta no showbiz<br />

nacional. Conhecido como Papatinho (“Nem meus pais me chamam de Tiago,<br />

no máximo usam filho”, diz), ele é um dos produtores musicais mais requisitados<br />

do mercado. Trabalhou com as popstars Anitta e Ludmilla, o rapper Gustavo Black<br />

Alien, o funkeiro Mr. Catra e o sambista Péricles; tem parcerias com o rapper Snoop<br />

Dogg e com o produtor Will.i.am (Black Eyed Peas); é dono do Papatunes, selo que<br />

descobre e produz talentos da soul music moderna, como Califfa e L7nnon; possui<br />

o Baile do Papato, no qual assume o posto de mestre de cerimônias e apresenta seus<br />

contratados; e já fechou parcerias comerciais com uma plataforma de redes sociais<br />

e uma loja de departamentos. Mas, afinal, qual o segredo desse carioca de 35 anos<br />

para ser requisitado por artistas de tantos estilos?<br />

Antes de mergulhar na biografia de<br />

Papatinho, é preciso explicar a função<br />

do produtor musical e sua importância<br />

dentro do showbiz. Nos anos 1960,<br />

esse tipo de profissional atuava como<br />

uma espécie de “facilitador”: o artista<br />

tinha a ideia, e cabia ao produtor <strong>–</strong> então<br />

funcionário da gravadora <strong>–</strong> transformar<br />

o rascunho numa composição<br />

de sucesso, reunindo os melhores músicos,<br />

arranjadores e até engenheiros<br />

de som. Um dos casos mais exemplares<br />

de produtor que deixou sua marca<br />

foi George Martin, parceiro de criação<br />

dos Beatles, que chegou a acelerar a<br />

velocidade de um piano para que ele<br />

soasse como um cravo (em In My Life) e<br />

deu as condições técnicas necessárias<br />

para que o quarteto inglês gravasse o<br />

histórico Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club<br />

Band. Martin era funcionário do Parlophone,<br />

selo pelo qual gravou até discos<br />

de piadas, e sua dobradinha com o<br />

quarteto mais importante do Universo<br />

lhe deu forças para sair em projetos<br />

solo. Mas são poucos os nomes daquele<br />

período que sobressaíam fora<br />

do meio das empresas fonográficas.<br />

Phil Spector, na música pop, e Quincy<br />

Jones, no mundo do jazz, são algumas<br />

das honrosas exceções.<br />

O papel do produtor foi sendo reconhecido<br />

com mais propriedade nos<br />

anos 1970 e 1980, quando ele passou a<br />

se tornar uma grife às vezes maior do<br />

que os artistas com quem trabalhava <strong>–</strong><br />

caso do próprio Quincy no período em<br />

que trabalhou com Michael Jackson.<br />

O showbiz brasileiro possui personagens<br />

emblemáticos desse período, a<br />

exemplo de Guto Graça Mello, mentor<br />

de trilhas sonoras das novelas da Rede<br />

Globo na década de 1970 e articulador<br />

da virada de Rita Lee rumo ao estrelato;<br />

Marco Mazzola, que assinou as obras<br />

mais emblemáticas de Raul Seixas naquele<br />

período; e Liminha, que moldou<br />

o rock nacional na década seguinte.<br />

Mazzola pontua que muitas vezes sua<br />

função ia além de burilar o trabalho<br />

de um contratado da gravadora. “Um<br />

produtor de sucesso na década de 1970<br />

tinha de entender de tudo: do contrato<br />

da gravadora, da seleção de músicos e<br />

arranjadores, dar pitaco na capa e no<br />

marketing, masterizar e mixar, e tinha<br />

uma remuneração muito baixa”, diz<br />

ele, que trabalhou com Ney Matogrosso,<br />

Milton Nascimento, Simone, Fafá de<br />

Belém e até Paul Simon.<br />

No estúdio da Papatunes | foto: Fernando Schlaepfer<br />

Nova visão<br />

Atualmente, a atuação do produtor<br />

é mais ampla: pega o artista do zero,<br />

cria uma identidade musical para seu<br />

contratado e colabora nas parcerias.<br />

O futuro popstar chega praticamente<br />

pronto às companhias de disco, que se<br />

tornaram uma espécie de distribuidora<br />

<strong>–</strong> tempos atrás, cabia a ela trabalhar<br />

exaustivamente na formatação e produção<br />

de sua aposta. Papatinho segue<br />

essa cartilha: descobre, aprimora, produz<br />

e se torna parceiro na autoria das<br />

músicas. “Se tem um beat meu, exijo<br />

parceria”, diz. “Meu envolvimento com<br />

esses artistas é total.” Muitos veteranos<br />

apoiam essa nova visão de produção.<br />

“Nada mais justo que eles sejam coautores.<br />

Uma boa produção e arranjo<br />

transformam a música num hit”, reconhece<br />

Liminha, que recentemente<br />

trabalhou com Papatinho num remix<br />

do grupo Capital Inicial. “Ele é o cara.”<br />

Tiago da Cal Alves já era conhecido<br />

como Papatinho quando estudava na<br />

Tijuca, bairro da zona norte do Rio. A<br />

alcunha nasceu de uma variação de<br />

“sapatinho”, seu apelido de infância. As<br />

primeiras incursões musicais se deram<br />

por meio de coletâneas em CDs que ele<br />

mesmo fazia e vendia aos amigos da<br />

escola. A destreza com que organizava<br />

a passagem de uma música para outra<br />

era sempre elogiada pelos, digamos,<br />

clientes. O sucesso no grupo incentivou<br />

Papatinho a se envolver cada vez<br />

mais com o universo musical. Decidiu<br />

que faria as próprias músicas em vez<br />

de utilizar composições de outros artistas.<br />

As primeiras produções saíram<br />

de um computador. Ele tomou gosto<br />

em criar batidas dançantes, depois se<br />

preocupou em achar o sample (trecho<br />

de músicas que vai entre uma batida e<br />

outra) perfeito para cada composição<br />

e, posteriormente, passou a se preocupar<br />

com o feat, aquela participação<br />

especial que um DJ, um cantor ou um<br />

rapper fazem na música de um artista<br />

amigo. O passo seguinte era adquirir<br />

uma MPC (bateria eletrônica usada<br />

para criar aqueles pancadões do funk<br />

carioca), que ele comprou de segunda<br />

mão de um certo MC Goiaba.<br />

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<strong>VERÃO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 6 • PÁG. 54


Criativo e versátil<br />

O talento de Papatinho fez com que ele<br />

sobrevivesse ao tsunami causado pela<br />

ConeCrewDiretoria. Produtor cuidadoso,<br />

tinha bom gosto ao escolher os<br />

samples do conjunto. O álbum Com os<br />

Neurônios Evoluindo, lançado em 2011,<br />

tinha samba, blues, rock, soul music<br />

e até I Put a Spell on You, cantada pela<br />

jazzista Nina Simone (na já citada Chama<br />

os Mulekes). O esmero dessas produções<br />

chamou a atenção de artistas<br />

do chamado mainstream. Um deles foi<br />

o rapper carioca Gabriel O Pensador.<br />

“Conheci o Papatinho e o pessoal da<br />

ConeCrew numa competição de skate<br />

e os convidei para participar do meu<br />

último álbum, Sem Crise. A gente acabou<br />

ficando amigo e fiz outros singles<br />

com ele”, conta o rapper. “Uma música<br />

muito importante para mim foi<br />

Muito Orgulho, Meu Pai. Fizemos ainda<br />

Fé na Luta [que tem o sample de Dias de<br />

Glória, do Charlie Brown Jr.] e Tô Feliz<br />

(Matei o Presidente) 2. Ele é um cara<br />

que trabalha muito, é muito focado e<br />

criativo. Admiro essa versatilidade”,<br />

derrete-se Gabriel.<br />

Torcedor fanático do Flamengo, Papatinho<br />

estende essa versatilidade para<br />

além do universo dos cantores. Em<br />

agosto deste ano, ele lançou Sei Lá, canção<br />

que tem participação de Gabigol,<br />

atacante do Flamengo. A música, que<br />

eternizou o refrão “Quando eu tô louro,<br />

esquece”, foi lançada no dia em que o<br />

jogador fez três gols na partida contra<br />

o Santos. “Eu sabia que ele iria pedir a<br />

música do Fantástico, o que acontece<br />

quando um jogador marca três gols no<br />

mesmo jogo. Saí feito louco procurando<br />

gente da equipe dele para que o Gabigol<br />

pedisse a música e ainda corri para<br />

mandar a canção para a Rede Globo<br />

passar na hora dos gols da rodada.”<br />

Em 2015, Papatinho sentiu necessidade<br />

de expandir suas batidas para o mercado<br />

internacional. Viajou até Los Angeles<br />

e se encontrou com Scoop DeVille,<br />

produtor que trabalha com rappers<br />

celebrados como Kendrick Lamar. O<br />

encontro se assemelhou aos duelos do<br />

western spaghetti, em que dois pistoleiros<br />

medem forças na rua principal<br />

da cidade. Papato e DeVille exibiram<br />

seus beats um ao outro a fim de provar<br />

sua criatividade. Deu certo: o brasileiro<br />

passou a contar com a admiração<br />

do produtor americano, que o colocou<br />

em contato com Snoop Dogg e Travis<br />

Barker, ex-baterista do grupo de punk<br />

pop Blink 182, que se aventurou pelo<br />

hip hop, e a mandar beats para DeVille.<br />

Outro agregado foi Will.i.am, dos Black<br />

Eyed Peas, que aproveitou um rasante<br />

pelo Brasil em 2019, quando o grupo se<br />

apresentou no Rock in Rio, para conhecer<br />

o carioca. “Ele quis meus beats de<br />

funk porque acha que é o gênero do futuro”,<br />

conta. O resultado foi 5 Estrelas,<br />

single que traz ainda a participação de<br />

Kevin o Chris, atual fenômeno do novo<br />

funk carioca <strong>–</strong> que hoje tem uma batida<br />

mais acelerada. A retomada dessa<br />

trajetória no exterior está entre seus<br />

próximos projetos. “Quero voltar e reconstruir<br />

minha carreira internacional.<br />

Passei quatro, cinco anos indo para lá<br />

em busca do sonho.”<br />

ConeCrew | foto: Sergio Blazer<br />

Senhor Nunes e a ConeCrew<br />

Em 2005, Papatinho uniu-se aos rappers e amigos de infância Cert, Bartoré, Maomé, Rany Money e Ari para prosseguir com seu<br />

sonho de ter uma carreira musical. Nascia a ConeCrewDiretoria, primeiro fenômeno do hip hop na era da internet, que marcou<br />

presença nos grandes festivais de música do país com seus versos que iam da ostentação ao libidinoso. O desejo de se levar a<br />

sério num meio marcado pela informalidade fez com que Papatinho criasse um personagem: ele era o Senhor Nunes, empresário<br />

do grupo, que entrava em contato com as casas de show para negociar as apresentações da ConeCrew. Muitos contratantes<br />

jamais desconfiaram da identidade secreta do produtor. O furor causado pelo grupo fez com que Papatinho deixasse de lado o<br />

sonho do emprego formal <strong>–</strong> chegou a estudar contabilidade <strong>–</strong> para se dedicar inteiramente à música. Baseou-se nos rappers e<br />

empresários americanos Kanye West e Dr. Dre, que tinham uma visão mais avançada de como gerir seus negócios, para direcionar<br />

sua carreira.<br />

“O Dre, por exemplo, me inspiraria tempos depois para criar<br />

minha própria gravadora”, diz ele. Outra lição importante que<br />

aprendeu com o tempo foi a necessidade de se destacar em<br />

meio a um combinado de rappers talentosos. “Antigamente,<br />

eu levava os CDs com os beats para eles fazerem versos<br />

em cima. Aí gravava partes do show, ia para a banquinha<br />

de merchandising... Quando adquiri minha bateria eletrônica,<br />

passei a fazer parte do show. Ia criando as batidas na hora<br />

para o pessoal do grupo.”<br />

A ConeCrewDiretoria fez história no universo do hip hop<br />

pelas performances catárticas e hits como Chama os Mulekes<br />

com seus versos “Bacana chama grana, e grana chama fama<br />

/ Fama chama apart no Hotel Copacabana / Mente insana,<br />

luzes, flash, flechada na sua cara / Foram te chamar pra te<br />

botar numa furada / Que mancada, mas não faça enxame,<br />

talvez me chame / Se os cara tira onda, nós tiramo tsunami”.<br />

Outra reputação da ConeCrew trouxe dissabores para Papatinho<br />

e seu grupo. Eles eram conhecidos como criadores de<br />

encrenca, pessoas de comportamento instável, que transformavam<br />

quartos de hotéis e aviões em campos de batalha. As<br />

traquinagens iam de guerras de amendoim e água dentro da<br />

aeronave a festas para lá de animadas em quarto de hotel.<br />

“A gente chegava ao hotel e já escutava do gerente que estávamos<br />

proibidos de passar a noite ali. Ou então via caras de<br />

terno preto entrar no avião, se aproximar de nós, se anunciar<br />

como policiais federais e nos tirar dali”, enumera. “Os moleques<br />

eram malucos, era muita energia para gastar”, comenta.<br />

A má fama aumentou quando o combo de hip hop ganhou um<br />

programa na MTV, onde exibia seus dotes de causadores de<br />

encrenca. “Um dia, um engravatado veio na minha direção e<br />

disse: ‘Vocês não são aqueles caras da MTV que não podem<br />

entrar no avião?’”, lembra o produtor.<br />

Com Apl.de.ap e Will.i.am, dos Black Eyed Peas, e Pedro Pool, diretor da Papatunes (ao fundo) | foto: arquivo pessoal<br />

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<strong>VERÃO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 6 • PÁG. 56


Caça-talentos<br />

Como todo bom produtor, Papatinho<br />

tem ouvidos atentos. Muitos anos atrás,<br />

convocou uma cantora que chamava<br />

sua atenção na equipe de baile Furacão<br />

2000 para um dueto com um rapper<br />

chamado Gil Metralha. A menina agradeceu<br />

o convite, mas seu contrato com<br />

a Furacão a impedia de participar de<br />

projetos paralelos. Tempos depois, a<br />

garota, que atende pelo nome de Anitta,<br />

voltou a procurar Papato, avisou que<br />

tinha se desligado da companhia e podia<br />

participar de futuros projetos que<br />

ele tivesse em mente. A parceria com<br />

a popstar rendeu singles significativos,<br />

como Onda Diferente <strong>–</strong> que traz Snoop<br />

Dogg e Ludmilla <strong>–</strong> e Tá com o Papato,<br />

ao lado dos rappers Dfideliz (do grupo<br />

Recayd Mob) e BIN. Em um Réveillon<br />

em Búzios, no Rio de Janeiro, se encantou<br />

com o rap feito por um menino que<br />

vendia trufas de chocolate. Ele chamou<br />

o sujeito para se encontrar com<br />

ele mais tarde, pois queria ouvir suas<br />

rimas. Graças a esse empurrãozinho, o<br />

vendedor engatou uma carreira ascendente<br />

no funk com o nome de Kaemi.<br />

Papatinho não é um músico formal. Ele<br />

é mestre das batidas e tem gosto na<br />

hora de escolher seus timbres e parcerias.<br />

Uma postura muito diferente da<br />

dos produtores de outrora, em que era<br />

necessário ter um conhecimento mais<br />

formal do instrumento. Os principais<br />

nomes da história da produção, contudo,<br />

não veem problema nessa nova<br />

linha de pensamento. “Não é compulsório<br />

saber tocar. Existe uma estética<br />

criada em cima da tecnologia que<br />

funciona muito bem. Conheci DJs que<br />

nem sequer conseguiam batucar numa<br />

mesa e faziam música. Coisas incríveis<br />

podem acontecer quando a tecnologia<br />

encontra um bom músico”, diz Liminha.<br />

“Papatinho é um fenômeno da geração<br />

dos beats, em que uma boa ideia<br />

rítmica vale ouro e ajuda a criar um<br />

novo universo. Ele tem boas ideias”,<br />

completa Mazzola.<br />

Ecletismo popular<br />

Outra qualidade dele está na sua vontade<br />

de buscar outros estilos. Recentemente,<br />

se uniu ao sambista Péricles,<br />

ao MC Hariel e ao onipresente Dfideliz<br />

para criar Traje de Verão, uma canção<br />

próxima ao trap, uma espécie de<br />

versão mais “suja” do rap. “Foi minha<br />

chance de cantar algo nesse estilo. Papatinho<br />

é um excelente produtor e logo<br />

o mundo irá conhecer o talento dele”,<br />

exalta o sambista. Papato diz que seu<br />

estilo é baseado na união do trap com<br />

a linguagem do funk. Mas sempre se<br />

permitiu se aventurar por outros caminhos.<br />

Uma de suas mais recentes<br />

produções, feitas para uma empresa<br />

de streaming, juntou batidas eletrônicas<br />

com a Marcha Turca, do compositor<br />

clássico Wolfgang Amadeus Mozart.<br />

Para um comercial do campeonato<br />

de basquete, ele colocou um efeito de<br />

bumbo na bola e fez um loop (aquela<br />

repetição da música) com as derrapadas<br />

de tênis na quadra. “Não gosto de<br />

recusar trabalho.”<br />

MC Hariel, Papatinho, Péricles e Dfideliz | foto: Waldir Evora<br />

porque faz a música com muito prazer.<br />

Saí com três músicas prontas logo na<br />

primeira vez que fui ao estúdio”, diz o<br />

cantor Califfa. O aumento da popularidade<br />

impulsionou o assédio. Recentemente,<br />

participou do popular Jogo<br />

do Banquinho, quadro do programa do<br />

apresentador Raul Gil. “Na época da<br />

ConeCrew, quem me conhecia parecia<br />

pertencer a uma sociedade secreta.<br />

Hoje ando na rua e vem gente gritar<br />

Papatinho”, orgulha-se. Não faltam<br />

pessoas que buscam mostrar suas músicas<br />

ao produtor. “Um dia, um cara<br />

bateu no estúdio e eu disse para ele<br />

me procurar às 10h30, horário em que<br />

tomo meu açaí. “O moleque mostrou as<br />

músicas e dei uns toques porque o senti<br />

meio desanimado.” Com tanta gente<br />

procurando Papatinho e até atormentando<br />

seu sono, será que ele encontra<br />

tempo para dormir? “Sim. No aeroporto,<br />

quando dá problema com o voo.”<br />

Com Anitta | foto: arquivo pessoal<br />

A Papatunes Records foi criada em<br />

2018, da necessidade de trabalhar<br />

com novos artistas e estender seus<br />

horizontes como empresário. O site da<br />

companhia divulga seus artistas, mas<br />

também tem um potente merchandising<br />

<strong>–</strong> há grifes de roupas, bonés e outros<br />

acessórios. Papatinho é um produtor<br />

rigoroso, mas que deixa seus pupilos<br />

à vontade. “A gente se sente de férias<br />

Que dica daria ao<br />

jovem Tiago?<br />

“Vai nessa porque o<br />

futuro será lindo”<br />

<strong>VERÃO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 6 • PÁG. 59<br />

<strong>VERÃO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 6 • PÁG. 58


O azul das<br />

recordações<br />

Por Simone Costa<br />

Uma das principais representantes da arte brasileira<br />

contemporânea, a artista plástica Sandra Cinto usa<br />

caneta de ponta fina para produzir céus e mares<br />

carregados de referências de sua infância<br />

Nome: Sandra Regina Cinto<br />

Idade: 53 anos<br />

Profissão: artista plástica<br />

Cidade onde nasceu: Santo André/SP<br />

Foto: arquivo pessoal<br />

<strong>VERÃO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 6 • PÁG. 61<br />

<strong>VERÃO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 6 • PÁG. 60


.<br />

E<br />

nquanto brincava no quintal de casa, a pequena Sandra Regina Cinto gostava<br />

de passar sob o varal onde sua mãe, Maria Teresa, pendurava os uniformes<br />

do marido para secar. Albertino, pai de Sandra, era operário de uma fábrica<br />

de pneus em Santo André, na região metropolitana de São Paulo, e usava um uniforme<br />

de brim azul para trabalhar. Da roupa molhada estendida no varal pingavam<br />

gotas azuis, e Sandra se divertia com a cena. Três décadas depois, ao falar sobre a<br />

inspiração para desenhar a imensidão dos mares ou dos céus presentes em suas<br />

obras, a renomada artista plástica recorre às lembranças da “chuva azul” no quintal<br />

de casa, provocada pelo tecido molhado que desbotava. “Essa lembrança me emociona.<br />

Eu passava embaixo do varal e caía aquela aguinha, aquele pinguinho azul<br />

de tinta”, diz.<br />

Tornar-se artista plástica foi uma construção em sua vida, “tijolinho por tijolinho”,<br />

como a paulista de 53 anos gosta de dizer. Sandra Cinto conta que, durante anos, ao<br />

preencher uma ficha na recepção do hotel, por exemplo, escrevia a palavra “professora”<br />

no espaço reservado à profissão. “Não estava no meu radar me tornar artista.<br />

Eu nem sabia o que era isso, queria dar aula de arte”, diz. “Foi difícil assumir que<br />

a minha prática de artista tinha ganhado dimensão. Acho que isso tem a ver com<br />

a dificuldade de ser artista e até com uma questão de entendimento, que leva um<br />

tempo para acontecer.”<br />

Sandra se formou em educação artística nas Faculdades Integradas Teresa D’Ávila<br />

(Fatea, hoje Unifatea) em 1990. Quando ingressou no curso, já lecionava artes a alunos<br />

da educação infantil. Começou aos 16 anos, como parte dos estágios do curso<br />

de magistério que fez no segundo grau (atual ensino médio).<br />

Carreira internacional<br />

Encontro das Águas, 2012 <strong>–</strong> Seattle Art Museum | foto: Robert Wade<br />

A construção da<br />

artista<br />

Por uma dessas escolhas que parecem<br />

ter a mão do destino, Sandra viu<br />

naquela faculdade a praticidade de<br />

poder estudar perto de casa, além de<br />

permitir que ela trabalhasse durante<br />

o dia para pagar o curso noturno. Ali,<br />

ela teve aulas com importantes artistas<br />

plásticas, como Mônica Nador e<br />

Ana Tavares, de quem Sandra se tornaria<br />

assistente logo depois de receber<br />

o diploma. Enquanto via seu interesse<br />

pelas atividades se intensificar, percebeu<br />

que poderia desenvolver algo autoral<br />

para apresentar ao público. Ainda<br />

como estudante, Sandra participou do<br />

Salão Universitário de Artes Plásticas,<br />

em 1988. Nele, ganhou uma menção<br />

honrosa e uma caixa de tintas. “Guardo<br />

até hoje a caixa de madeira que veio<br />

com as tintas. Foi tão bom porque havia<br />

muita dificuldade para comprar os<br />

materiais. E foi, de fato, um estímulo”,<br />

afirma a artista.<br />

Quatro anos mais tarde, ela foi selecionada<br />

para dois programas importantes,<br />

considerados ritos de passagem<br />

para os artistas daquela época: o do<br />

Centro Cultural São Paulo (CCSP) e o<br />

do Projeto Macunaíma, da Fundação<br />

Nacional de Artes (Funarte), no Rio de<br />

Janeiro <strong>–</strong> o primeiro existe até hoje; já o<br />

segundo foi extinto. No CCSP, Sandra<br />

fez sua primeira exposição individual,<br />

apresentando três obras. Nesses trabalhos<br />

já estavam presentes as imagens<br />

de céu com sua assinatura, mas ainda<br />

pintadas a óleo. Mais tarde, elas ganhariam<br />

grandes dimensões e seriam<br />

produzidas com canetas de ponta fina,<br />

algo que se tornou marca registrada<br />

da artista. “A cosmologia, essa ideia de<br />

infinito cósmico, está presente no meu<br />

trabalho até hoje”, diz.<br />

A exposição no CCSP foi a primeira a<br />

dar visibilidade ao trabalho de Sandra.<br />

Naquele mesmo ano, ela foi convidada<br />

a trabalhar com a Casa Triângulo,<br />

que até hoje a representa no Brasil.<br />

Em 1996, esteve entre os artistas que<br />

participaram de um importante projeto<br />

realizado pelo jornal Folha de S.Paulo, o<br />

Antarctica Artes com a Folha. Ao todo,<br />

foram selecionados 62 artistas emergentes<br />

com menos de 32 anos. Eles foram<br />

escolhidos por cinco curadores e<br />

seus assistentes, que rodaram o Brasil<br />

em busca de novos talentos.<br />

No ano seguinte, Sandra saiu do país<br />

pela primeira vez para apresentar seu<br />

trabalho na famosa Arco, a Feira Internacional<br />

de Arte Contemporânea<br />

de Madri, na Espanha. Além da estreia<br />

em uma viagem ao exterior, a artista se<br />

recorda da experiência como um momento<br />

marcante em sua vida pessoal<br />

e profissional. Na capital espanhola, a<br />

brasileira pôde visitar museus como o<br />

do Prado e o Reina Sofia, onde teve a<br />

oportunidade de estar frente a frente<br />

com obras de pintores como Francisco<br />

de Goya e Diego Velázquez. “Isso foi incrível!<br />

E ainda conheci vários artistas<br />

de outros países e pude mostrar meu<br />

trabalho internacionalmente”, lembra.<br />

A carreira de Sandra foi marcada por<br />

outra importante estreia em 1998,<br />

quando participou da 24ª Bienal Internacional<br />

de São Paulo, organizada<br />

pelo renomado curador Paulo Herkenhoff.<br />

Precisou de 30 dias para pintar<br />

uma parede de 64 metros quadrados<br />

para apresentar naquela mostra.<br />

A obra lhe rendeu bons frutos. Foi<br />

por causa dela que a galerista Tanya<br />

Bonakdar, de Nova York, quis representá-la<br />

nos Estados Unidos. “Graças<br />

a isso, já fiz exposições em vários<br />

lugares, como Washington, São<br />

Francisco, Seattle, muitas instalações<br />

monumentais e individuais, além de<br />

obras públicas”, conta.<br />

Ao completar 30 anos de carreira, em<br />

2020, a artista teve a chance de rever<br />

seus trabalhos e refletir sobre eles para<br />

uma panorâmica exibida no Itaú Cultural,<br />

em São Paulo. Sob curadoria de<br />

Herkenhoff, a exposição Sandra Cinto:<br />

Das Ideias na Cabeça aos Olhos no Céu<br />

ocupou três pisos do espaço, na Avenida<br />

Paulista. Por causa da pandemia<br />

de Covid-19, a mostra, prevista para<br />

ocorrer entre março e novembro de<br />

2020, permaneceu fechada para visitas<br />

presenciais por sete meses. “Havia<br />

80 escolas agendadas para visitar<br />

a exposição. Foi difícil ver um projeto<br />

construído com tanto amor ficar<br />

fechado”, desabafa.<br />

Os inúmeros encontros entre a artista e<br />

o curador ao longo de 2019 renderam,<br />

além da panorâmica de três décadas,<br />

um livro homônimo sobre a carreira de<br />

Sandra. Nesse período, enquanto olhava<br />

para sua trajetória, ela recordou histórias<br />

como a “chuva azul” que caía no<br />

quintal de casa e outros fatos da infância<br />

que influenciaram seus desenhos.<br />

<strong>VERÃO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 6 • PÁG. 63<br />

<strong>VERÃO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 6 • PÁG. 62


Mar Aberto, 2014 <strong>–</strong> Centro Atlántico de Arte Moderno <strong>–</strong> CAAM | foto: Tereza Arozena<br />

“Nos anos 1980, houve um<br />

boom da pintura colorida,<br />

festiva. Na virada da<br />

década, veio uma espécie<br />

de ressaca, resultado do<br />

advento da aids, do sonho<br />

perdido das Diretas Já e da<br />

crise econômica”<br />

Recordações de infância<br />

Sandra guarda na memória os quatro volumes de uma Bíblia<br />

com ilustrações de Gustave Doré que sua mãe possuía. Os<br />

céus e as nuvens dos desenhos do artista francês são suas<br />

referências ainda hoje. Essa mesma temática também está<br />

associada às viagens da família à casa dos avós maternos, na<br />

cidade de Tietê, a 140 quilômetros da capital paulista. Ao passar<br />

alguns dias ali, a garota costumava brincar no quintal de<br />

um seminário, cuja igreja era ornamentada com pinturas celestiais.<br />

“Creio que veio dali o meu repertório de céus”, afirma.<br />

Outra forte memória afetiva que influencia a obra da artista<br />

vem dos períodos em que a família se hospedava em uma colônia<br />

de férias em Praia Grande ou em uma pousada simples<br />

em Santos. No dia a dia, como o pai trabalhava à noite e dormia<br />

durante o dia, ela e o irmão, Mauricio, tinham de fazer silêncio<br />

enquanto Albertino descansava. E, por causa desse fuso<br />

horário invertido, os filhos também não conseguiam passar<br />

muito tempo com o pai. Portanto, era durante essas viagens<br />

para o litoral paulista que a família finalmente conseguia<br />

aproveitar o tempo juntos. Daí a relevância do mar em seus<br />

desenhos. “Essas viagens tinham o sabor de quando podíamos<br />

estar com nossos pais. Eu fiz até uma série de trabalhos<br />

que intitulei Dias Felizes, Noites de Esperança, que é uma homenagem<br />

a esses dias alegres na praia com a família reunida.”<br />

Além dos desenhos bíblicos e das férias na casa dos avós ou<br />

à beira-mar, Sandra também guarda como boas recordações<br />

as brincadeiras na tranquila rua onde morava, na periferia de<br />

Santo André. “Não tínhamos muitos brinquedos, mas havia<br />

farta imaginação. O lúdico e o brincar estão presentes na minha<br />

obra também”, diz.<br />

Sandra conta que sua produção artística guarda ainda reflexos<br />

de uma atividade que ela praticou na juventude. Quando<br />

era criança, ela queria fazer balé. Embora a mãe quisesse<br />

realizar o desejo da filha, a família não podia arcar com as<br />

despesas das aulas. Um dia, durante uma visita a uma unidade<br />

do Sesi na cidade, Maria Teresa viu um grupo de garotas<br />

dançando com alguns acessórios ao som de uma mulher ao<br />

piano. Como aquilo parecia balé, ela desconfiou que a filha poderia<br />

se interessar. E o melhor: era um curso gratuito. A mãe,<br />

então, matriculou Sandra nas aulas de ginástica rítmica, das<br />

quais a menina não só gostou como frequentou por 12 anos,<br />

até os 18 anos de idade.<br />

Os trabalhos de Sandra ocupam grandes espaços, paredes de<br />

dezenas de metros quadrados. Olhando em retrospectiva, ela<br />

acredita que a experiência na ginástica rítmica, que mescla<br />

elementos do balé e da dança teatral, unindo arte, criatividade<br />

e capacidade física, deu-lhe a noção de espacialidade que<br />

orienta suas criações. “Sempre penso que os meus desenhos<br />

são coreografias no espaço”, diz Sandra.<br />

<strong>VERÃO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 6 • PÁG. 65<br />

<strong>VERÃO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 6 • PÁG. 64


O desenho como fio condutor<br />

Suas obras incluem diferentes formas de produção artística,<br />

como instalações e esculturas, mas o fio condutor está no desenho.<br />

Para explicar sua trajetória nessa modalidade de produção<br />

artística, Sandra observa que desenho não era uma<br />

linguagem recorrente no fim dos anos 1980 e início da década<br />

seguinte. Seu interesse pelo formato despertou quando<br />

viu as criações do artista cearense Leonilson (1957-1993).<br />

“Nos anos 1980, houve um boom da pintura colorida, festiva.<br />

Na virada da década, veio uma espécie de ressaca, resultado<br />

do advento da aids, do sonho perdido das Diretas Já e da<br />

crise econômica. Várias questões fizeram com que a minha<br />

geração olhasse para o mundo e buscasse um trabalho mais<br />

intimista”, explica. “Para desenhar, não precisa de mais nada<br />

além de um pedaço de papel e um lápis.”<br />

Inicialmente, a artista criava desenhos na própria pele, que<br />

renderam uma série de fotografias. Em seguida, as produções<br />

passaram a ocupar as paredes. Para conseguir realizar<br />

trabalhos em tamanhos monumentais com poucos recursos,<br />

veio a ideia de utilizar canetas de ponta fina. Esse material,<br />

de acordo com Sandra, ainda lhe permite fazer traçados milimétricos,<br />

que, em grandes quantidades, mostram a força da<br />

imagem. “É uma atividade de persistência, de obsessão. Há<br />

nisso uma similaridade com a vida, em que a gente vai devagarzinho,<br />

um pouquinho por dia para construir uma obra,<br />

uma carreira ou a educação de uma criança”, compara.<br />

No início, Sandra desenhava sozinha. Quando começou a<br />

produzir grandes montagens para museus importantes, em<br />

que o prazo para finalizar a obra é curto, a artista começou a<br />

recrutar assistentes. Os primeiros ajudantes saíram da equipe<br />

que já trabalhava com ela em seu ateliê. Depois, ela passou<br />

a convidar estudantes de arte. Mais recentemente, impôs<br />

apenas dois pré-requisitos aos candidatos: pessoas que gostem<br />

de desenhar e que sejam calmas para realizar um trabalho<br />

que chega a ser meditativo. “Descobri que dividir a prática<br />

do desenho era algo didático e até terapêutico”, afirma.<br />

Antes de começar um novo desenho, Sandra monta o grupo<br />

de assistentes voluntários com a participação de pessoas que<br />

estejam inseridas na comunidade onde vai atuar. Quando esclarece<br />

que eles não vão reproduzir seu desenho, mas sim trabalhar<br />

a mão livre, muitos recém-chegados dizem que, dessa<br />

forma, não são capazes de ajudar. “Eu traço, então, as linhas<br />

principais e realizo um treinamento no primeiro dia. Nessa<br />

hora, eu digo: ‘Calma, eu vou segurar na sua mão e vamos fazer<br />

um pedaço juntos’. É um trabalho de confiança”, explica.<br />

A artista observa cada assistente para descobrir como tirar<br />

o melhor de cada um. E, ao final de dias de trabalho, os voluntários<br />

comparecem à inauguração da exposição levando<br />

a família para mostrar, cheios de orgulho, a parte do trabalho<br />

que ajudaram a criar. “Muita gente que participou já me escreveu<br />

dizendo que começou a pintar depois que me auxiliou.<br />

É um verdadeiro processo de empoderamento por meio<br />

do desenho”, diz.<br />

A artista acredita que todos podem desenhar e que a atividade<br />

é uma expressão importante de comunicação, principalmente<br />

para as crianças. Não raro, no entanto, os adultos<br />

podam a criatividade dos pequenos dizendo, por exemplo,<br />

que não é de tal forma que se desenha uma casa, ou que as<br />

folhas de uma árvore não podem ser azuis. “Por volta dos 10<br />

anos, as crianças começam a fazer os desenhos todos iguais<br />

ou deixam de desenhar”, afirma. “Os pais compram aqueles<br />

livros com desenhos prontos para colorir. Eu nunca daria um<br />

livro desses a uma criança.”<br />

A arte de lecionar<br />

Assistentes trabalhando em Dallas | foto: Albano Afonso<br />

O processo que desenvolve com os assistentes<br />

voluntários não deixa de ser<br />

um viés de Sandra como professora.<br />

Concomitantemente ao trabalho artístico,<br />

ela nunca deixou de lecionar. Por<br />

uma década, foi professora na rede<br />

pública municipal de ensino de Santo<br />

André. Também já deu aula em importantes<br />

cursos de artes, como o da<br />

Fundação Armando Alvares Penteado<br />

(FAAP), em São Paulo.<br />

Com o marido, o também artista plástico<br />

Albano Afonso, ela mantém o Ateliê<br />

Fidalga, na Vila Madalena, na zona<br />

oeste da capital paulista. O ambiente de<br />

trabalho é também de troca e de ensino.<br />

O casal oferece a artistas de todas<br />

as partes do mundo estada, alimentação,<br />

espaço para trabalhar, além da<br />

possibilidade de realizar uma exposição<br />

e até uma publicação. O casal promove<br />

ainda um grupo de estudos sobre<br />

arte. Paralisado desde o ano passado<br />

em função da pandemia, o grupo deve<br />

voltar à ativa em <strong>2022</strong>. “Quero ainda<br />

retomar os projetos de educação para<br />

promover cursos para professores<br />

da rede pública. Eles são importantes<br />

agentes multiplicadores”, afirma.<br />

Ainda que isolada em seu ateliê por<br />

causa da Covid-19 <strong>–</strong> ela conviveu por<br />

meses apenas com o marido, a mãe e a<br />

sogra <strong>–</strong>, Sandra produziu bastante. Por<br />

videoconferência, por exemplo, está<br />

atuando na criação de um boulevard<br />

de 700 metros quadrados para uma<br />

praça na cidade de Korat, onde ocorre<br />

a Bienal da Tailândia, um trabalho em<br />

azulejo que contou com a participação<br />

de mais de 100 crianças da cidade.<br />

Ela também ganhou um concurso<br />

para construir uma parede de azulejos<br />

no campus da Universidade Johns<br />

Hopkins, em Washington, nos Estados<br />

Unidos. Lançou ainda um livro infantil<br />

sobre a pandemia. Ao todo, mil cópias<br />

foram vendidas, o que rendeu outros<br />

mil exemplares para doação a crianças<br />

em situação de vulnerabilidade.<br />

“Eu quero ser ponte com meu trabalho,<br />

conectando saberes e também pessoas<br />

com poder aquisitivo maior que possam<br />

ajudar quem tem pouco. Em <strong>2022</strong>,<br />

essa ponte vai funcionar mais do que<br />

nunca.” A sociedade agradece.<br />

Que dica daria à<br />

jovem Sandra?<br />

“Não desista, siga<br />

o seu sonho. Não é<br />

fácil, nunca é, mas<br />

vale a pena”<br />

<strong>VERÃO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 6 • PÁG. 67<br />

<strong>VERÃO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 6 • PÁG. 66


Um sabor<br />

Na temporada mais quente do ano, que tal exaltar uma das frutas mais tropicais do planeta? Com seu inconfundível<br />

sabor adocicado adstringente, o caju é a estrela do ceviche criado pela chef Helena Rizzo, que<br />

comanda os restaurantes Maní e Manioca. Leve, original e brasileiríssimo, o ceviche de caju é uma boa pedida<br />

como entrada ou prato principal.<br />

CEVICHE DE CAJU<br />

Chef Helena Rizzo<br />

INGREDIENTES<br />

MODO DE PREPARO<br />

Uma palavra<br />

Sim, eu sou realmente um piolho <strong>–</strong> continuou ele,<br />

agarrando-se com maldade a esse pensamento,<br />

escarafunchando nele, brincando e distraindo-se<br />

com ele <strong>–</strong> e já unicamente porque, em primeiro lugar,<br />

neste momento raciocino sobre o fato de que<br />

sou um piolho; porque, em segundo lugar, passei<br />

um mês inteiro incomodando a Providência em sua<br />

excelsa bondade, apelando para que testemunhasse<br />

que eu não estaria fazendo aquilo com vista a<br />

vantagens materiais mas a um objetivo magnífico e<br />

agradável <strong>–</strong> eh-eh! Porque, em terceiro lugar, decidi<br />

observar a justiça possível na execução, o peso e a<br />

medida, e a aritmética; de todos os piolhos eu escolhi<br />

o mais inútil e, depois de matá-lo, decidi tomar<br />

dele exatamente tanto quanto me era necessário<br />

para o primeiro passo, não mais nem menos (e o<br />

restante, portanto, que fosse para os mosteiros, por<br />

testamento espiritual <strong>–</strong> he-he!)... Porque, porque<br />

eu sou definitivamente um piolho <strong>–</strong> acrescentou<br />

rangendo os dentes <strong>–</strong>, porque eu mesmo, é possível,<br />

sou ainda pior e mais torpe que o piolho morto,<br />

e pressenti de antemão que viria a dizer isso a mim<br />

mesmo depois que o matasse! É, será que alguma<br />

coisa pode comparar-se a tamanho horror? Ó, torpeza!<br />

Ó, torpeza!... Ó, como eu compreendo o “profeta”<br />

de sabre em punho, a cavalo. Alá manda, então<br />

obedece, “trêmula” criatura! Está certo, está certo o<br />

“profeta” quando coloca no cruzamento de alguma<br />

rua uma bo-o-o-o-a bateria e a aciona contra o justo<br />

e o culpado, sem se dignar sequer a dar explicações!<br />

Obedece, trêmula criatura, e evita querer, porque<br />

isto não é problema teu!... Ó, não perdoo, não perdoo<br />

por nada a velhusca!<br />

Raspadinha de cajuína:<br />

• 1,5 kg de cajus maduros<br />

• 50 ml de cachaça<br />

Leite de castanha de caju:<br />

• 1 kg de castanhas de caju<br />

• 1 litro de água mineral<br />

Ceviche:<br />

• 8 cajus maduros<br />

• Sal<br />

• 2 pimentas dedo-de-moça<br />

picadas, sem as sementes<br />

• 1 cebola roxa pequena, cortada<br />

em juliana<br />

• Suco de 2 limões-taiti<br />

• 50 ml de leite de castanha de caju<br />

• 10 g de coentro picado<br />

• Brotos de coentro<br />

Raspadinha de cajuína: lave bem os cajus e remova as castanhas. Corte os cajus em<br />

pedaços e coloque-os numa centrífuga para extrair o suco. Coloque o suco de caju na<br />

geladeira em recipiente fechado e deixe decantar durante 12 horas. Uma vez decantado,<br />

retire a espuma e a parte sólida do caju, que terá flutuado para a superfície. Passe o<br />

líquido por um coador fino. Despeje 150 ml de suco em uma panela e deixe ferver em<br />

fogo baixo. Despeje o restante do suco, adicione a cachaça e coloque no congelador.<br />

Leite de castanha de caju: triture as castanhas com a água e centrifugue<br />

o purê para obter o leite. Passe o leite por um coador fino e reserve.<br />

Ceviche: descasque os cajus e corte-os em cubos. Misture o sal, a pimenta, a cebola, o suco<br />

de limão e o leite de castanha de caju numa tigela e adicione o coentro picado. Reserve.<br />

Sirva o ceviche numa tigela com uma colherada de raspadinha<br />

de cajuína, decorado com os brotos de coentro.<br />

Rendimento: 4 porções<br />

Fiódor Dostoiévski<br />

Trecho do livro Crime e Castigo<br />

Tradução de Paulo Bezerra / Editora 34<br />

Foto: Lufe Gomes/divulgação<br />

<strong>VERÃO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 6 • PÁG. 69<br />

<strong>VERÃO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 6 • PÁG. 68


Uma imagem<br />

Foto: Coleção Gilberto Chateaubriand <strong>–</strong> MAM Rio/divulgação<br />

Curiosamente, um dos nomes mais associados à Semana de<br />

Arte Moderna de 1922 é Tarsila do Amaral, mas a pintora morava<br />

em Paris e nem participou da festa que comemora seu<br />

centenário em fevereiro. O fato é que a artista que mais cedeu<br />

quadros para expor no saguão do Theatro Municipal de São<br />

Paulo durante o evento foi Anita Malfatti: ao todo, 20 obras<br />

levavam sua assinatura, entre elas estava O Farol. Com seu<br />

trabalho à sombra de Tarsila, engana-se quem cogite alguma<br />

rivalidade entre as duas artistas. Elas se tornaram grandes<br />

amigas e, junto com Mário de Andrade, Menotti del Picchia<br />

e Oswald de Andrade, formariam o inseparável Grupo dos<br />

Cinco, que impulsionou o movimento modernista brasileiro.<br />

Para muitos críticos e historiadores de arte, Anita é uma pintora<br />

tão importante quanto Tarsila. Pioneira, ela partiu para<br />

estudar artes em Berlim, em 1910. De volta ao Brasil, fez sua<br />

primeira exposição em 1914. No ano seguinte, viajou para a<br />

ilha de Monhegan, na costa leste dos Estados Unidos, para ter<br />

aulas com o mestre Homer Boss, que teve como pupilos nomes<br />

como Rockwell Kent, George Bellows e Edward Hopper.<br />

Foi a paisagem de Monhegan que a inspirou a pintar O Farol,<br />

em 1915. Com um céu magnífico, a tela retrata o cenário de<br />

forma colorida e luminosa, com ecos do impressionismo e generosas<br />

pinceladas à la Van Gogh. Anita já era moderna antes<br />

do pontapé inicial do modernismo.<br />

<strong>VERÃO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 6 • PÁG. 70

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