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<strong>VERÃO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 6<br />
Et cetera<br />
Gente com Bossa<br />
Claude Troisgros, o chef franco-carrrioca<br />
Viviane Mosé, a filósofa que ama a vida<br />
Papatinho, o produtor musical dos hits<br />
Sandra Cinto, a artista dos céus e mares<br />
O X da Bossa<br />
1822, 1922 e <strong>2022</strong>: reflexões sobre independência,<br />
modernismo e futuro do Brasil<br />
Comportamento<br />
Três imigrantes contam como foram (ou não)<br />
acolhidos pelos brasileiros<br />
“Nos momentos difíceis a gente tem que<br />
tirar a melhor lição, ser criativo e humilde<br />
para aprender com os acontecimentos”<br />
Claude Troisgros<br />
Distribuição gratuita
vintage typewriter | foto: Getty Images<br />
Expediente<br />
Direção Geral Alessandra Lotufo | Direção Editorial e Edição: Daniela Macedo | Textos: Daniel Motta, Daniela<br />
Macedo, Diego Braga Norte, Mariana Amaro, Sérgio Martins e Simone Costa | Arte e Diagramação: Alessandra Lotufo<br />
Produção: Danielle Pasqualoto | Revisão: Ronaldo Barbosa | Gráfica: Elyon<br />
Et cetera é uma publicação trimestral da Bossa.etc. Entre em contato conosco pelo revista@bossa.etc.br
A revista Et cetera tem<br />
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fatos curiosos e dicas<br />
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Sumário<br />
Capa: Claude Troisgros<br />
Foto: divulgação<br />
06<br />
Roteiro<br />
10<br />
Nesta edição, a Et cetera traz as melhores dicas de filmes,<br />
livros, podcast, discos e documentários para você relaxar<br />
e curtir as férias de verão<br />
22<br />
Comportamento<br />
34<br />
Como o Brasil acolhe os estrangeiros forçados a<br />
abandonar casa, família e carreira para fugir da<br />
fome ou da guerra? As histórias de uma venezuelana,<br />
um congolês e um sírio mostram a dura realidade<br />
de imigrantes e refugiados que buscam uma<br />
vida melhor em um país que se diz hospitaleiro<br />
O X da Bossa<br />
Em seu artigo Bossa Além do Quadrado, Daniel Motta<br />
convida o leitor para uma viagem no tempo. Antes de<br />
pisar com os dois pés em <strong>2022</strong>, ano que celebra o bicentenário<br />
da independência e o centenário do movimento<br />
modernista brasileiro, voltamos para 1822 e para 1922 a<br />
fim de refletir sobre a formação da identidade do Brasil<br />
Gente com Bossa<br />
Até onde o pensamento inovador, que desperta novas<br />
ideias, conceitos e conexões, pode nos levar? A resposta<br />
está nas quatro histórias que a seção Gente com Bossa<br />
apresenta nesta edição: um chef, uma artista plástica,<br />
um produtor musical e uma filósofa que alcançaram o<br />
sucesso driblando o tradicional<br />
Foto: Zzn Peres<br />
36<br />
Claude Troisgros<br />
Com alma carioca, o chef francês que desembarcou no<br />
Brasil em 1979 ajudou a mudar a forma como os ingredientes<br />
brasileiros aparecem na alta gastronomia, abriu<br />
pelo menos uma dezena de restaurantes e ganhou notoriedade<br />
comandando panelas (e esbanjando carisma)<br />
em programas de televisão<br />
Foto: Lana Pinho<br />
Foto: divulgação<br />
Foto: arquivo pessoal<br />
44<br />
Viviane Mosé<br />
52<br />
A filósofa, psicanalista, poeta, atriz, coautora de samba e<br />
ex-ginasta Viviane Mosé se dedica a entender os desafios<br />
do mundo contemporâneo, a traduzir filosofia para<br />
as massas e a disseminar diversas manifestações de<br />
arte enquanto lida com suas próprias dores emocionais.<br />
E sem perder o otimismo e o amor à vida<br />
Papatinho<br />
Tiago da Cal Alves, conhecido no showbiz (e até no círculo<br />
familiar) como Papatinho, é um dos mais bem-sucedidos<br />
e requisitados produtores musicais do país. Com um currículo<br />
extenso, esse carioca de 35 anos incorpora beats e<br />
samples que transformam em sucesso produções do rap,<br />
do funk, do samba, do pop e da soul music<br />
60<br />
Sandra Cinto<br />
Na juventude, Sandra Cinto sonhava ser professora de artes,<br />
mas seu talento para criar obras em diferentes modalidades<br />
artísticas falou mais alto. Suas paisagens de céu e<br />
mar desenhadas com canetas de ponta fina já percorreram<br />
o mundo, e ela se tornou uma das principais expoentes<br />
artistas plásticas brasileiras contemporâneas<br />
68<br />
Uma Palavra<br />
69<br />
A seção Uma Palavra desta edição homenageia Fiódor<br />
Dostoiévski. Para celebrar os 200 anos de nascimento<br />
do romancista russo, a página dedicada à literatura<br />
publica um trecho de Crime e Castigo (1866), obra que<br />
reflete sobre o que define justiça e vingança<br />
Um Sabor<br />
Quem não gosta de caju bom sujeito não é. Neste verão, experimente<br />
recriar a brasileiríssima receita de ceviche de<br />
caju da chef Helena Rizzo, que comanda os restaurantes<br />
Maní e Manioca. Vai bem como entrada ou prato principal!<br />
70<br />
Uma Imagem<br />
Anita Malfatti já era moderna antes mesmo da Semana<br />
de Arte de 1922, que impulsionou o movimento no país.<br />
No quadro O Farol, de 1915, há ecos do impressionismo,<br />
com generosas pinceladas à la Van Gogh. Nele estão as<br />
marcas inconfundíveis de Anita: colorido intenso e ousadia<br />
na representação da realidade
[ R O T E I R O ] [ R O T E I R O ]<br />
Séries, filmes etc.<br />
Nomadland<br />
Onde ver: Telecine Play<br />
Duração: 1h46min<br />
Ruína do sonho<br />
americano<br />
O grande vencedor do último Oscar,<br />
enfim, chega ao streaming. Ganhador<br />
nas categorias de melhor filme, direção<br />
(Chloé Zhao) e atriz (Frances McDormand),<br />
Nomadland narra a história de<br />
Fern, uma das vítimas da crise econômica<br />
de 2008. A protagonista perde o<br />
emprego e a casa, e passa a viver em<br />
sua van. Viajando de um local para<br />
outro, segue atrás de oportunidades<br />
sazonais de trabalho. Pelo caminho e<br />
nas paradas, Fern conhece pessoas<br />
em situação semelhante à sua. Misto<br />
de documentário (com vários nômades<br />
reais interpretando eles mesmos) e<br />
ficção, o filme retrata o ocaso do sonho<br />
americano: emprego estável, casa própria<br />
e família feliz. A diretora acerta o<br />
tom na sensibilidade da história e evita<br />
pieguices e dramalhões, mostrando a<br />
jornada de Fern de maneira sóbria, com<br />
fotografia que propositalmente remete<br />
aos clássicos faroestes hollywoodianos<br />
e faz, ao mesmo tempo, uma homenagem<br />
e desconstrução do gênero americano<br />
por excelência.<br />
A Fuller Life<br />
Onde ver: Sesc Digital<br />
Duração: 1h20min<br />
Being the Ricardos<br />
Onde ver: Amazon Prime Video<br />
Duração: 2h05min<br />
Drama de bastidores<br />
Sucesso absoluto enquanto esteve no<br />
ar, entre 1951 e 1957, a sitcom I Love<br />
Lucy ultrapassou as fronteiras dos<br />
EUA e conquistou o mundo. Exibido<br />
na Europa, Ásia e América Latina (no<br />
Brasil, pelas TVs Tupi, Gazeta e Bandeirantes),<br />
ajudou a consolidar o american<br />
way of life do pós-guerra. O que<br />
poucos sabem é que os protagonistas<br />
Lucille Ball (Lucy) e Desi Arnaz (Ricky<br />
Ricardo) foram duramente perseguidos,<br />
ameaçados e difamados no auge<br />
do macarthismo, a paranoia anticomunista<br />
americana. Aaron Sorkin (diretor<br />
de Os Sete de Chicago e roteirista de West<br />
Foto: reprodução<br />
Wing, A Rede Social e outros) é o responsável<br />
por contar a história da complexa<br />
relação profissional e romântica do casal<br />
<strong>–</strong> interpretado por Nicole Kidman e<br />
Javier Bardem <strong>–</strong> em Being the Ricardos.<br />
O filme enfoca uma semana especialmente<br />
crítica na vida dos atores,<br />
acossados politicamente e vítimas de<br />
preconceitos (Arnaz era cubano). Por<br />
sua interpretação, Kidman já desponta<br />
como uma das favoritas ao Oscar.<br />
De filha para pai<br />
Para aprender<br />
Autor e diretor de clássicos como Paixões<br />
Que Alucinam (1963), O Beijo Amargo<br />
(1964) e Agonia e Glória (1980), o<br />
americano Samuel Fuller é um dos<br />
poucos cineastas que viraram sucesso<br />
de público e objeto de devoção de cinéfilos.<br />
O documentário A Fuller Life é<br />
dirigido por sua filha, Samantha Fuller,<br />
e baseado em uma premiada autobiografia<br />
do diretor, intitulada The Third<br />
Face. O filme é dividido em 12 segmen-<br />
tos, que rememoram a vida e a obra de<br />
Samuel Fuller. Imagens pessoais, de<br />
bastidores e de filmes do cineasta são<br />
intercaladas ao som de trechos da autobiografia<br />
lidos por atores e diretores<br />
como William Friedkin, James Franco,<br />
Jennifer Beals, Tim Roth, Mark Hamill<br />
e Wim Wenders. A filha faz uma bela e<br />
criativa homenagem ao pai, mas, assim<br />
como ele, não recorre a invencionices.<br />
O segredo está na sobreposição precisa<br />
do áudio narrado e das imagens que<br />
vão surgindo na tela.<br />
Get Back<br />
Onde ver: Disney+<br />
Duração: 3 episódios<br />
Beatles no estúdio<br />
Em 2 de janeiro de 1969, os Beatles<br />
entraram no hoje mítico estúdio londrino<br />
Abbey Road para gravar aquele<br />
que seria o último álbum da banda, Let<br />
It Be. Uma equipe de filmagem acompanhava<br />
o quarteto de Liverpool com<br />
o objetivo de produzir um especial de<br />
televisão para mostrar o que o grupo<br />
melhor sabia fazer: trabalhar em estúdio<br />
<strong>–</strong> os Beatles nunca foram uma<br />
grande banda ao vivo e abandonaram<br />
os palcos em 1966. Depois de terminadas<br />
as gravações (do disco e do especial),<br />
o clima hostil entre os músicos<br />
acabou motivando o cancelamento do<br />
programa de TV e o fim da banda. O<br />
álbum saiu e foi um sucesso, mas as<br />
mais de 200 horas de gravações ficaram<br />
na gaveta. Coube ao diretor Peter<br />
Jackson, que assina a franquia O Senhor<br />
dos Anéis, editar e depurar o material. O<br />
resultado é Get Back, o mais belo, intimista<br />
e complexo registro da maior<br />
banda pop de todos os tempos.<br />
Educar para crescer<br />
Engana-se quem pensa que educação<br />
é um assunto que diz respeito apenas<br />
a estudantes, professores, pedagogos<br />
e gestores educacionais. Desfazer esse<br />
engano é o maior mérito do podcast<br />
Artigo 205. Apresentado pelos jornalistas<br />
Marta Avancini e Rubem Barros,<br />
ambos com grande experiência escrevendo<br />
sobre o assunto para diversos<br />
veículos da imprensa, o programa conversa<br />
com acadêmicos, legisladores e<br />
profissionais da educação sobre como<br />
a melhoria das políticas públicas pode<br />
garantir que todos os jovens aprendam<br />
com qualidade a partir de experiências<br />
escolares. Por meio de histórias, fatos<br />
e projetos que fogem do academicismo,<br />
os capítulos demonstram como a educação<br />
universal e de qualidade é o melhor<br />
investimento para o futuro do país<br />
e por que ela deve ser uma bandeira de<br />
toda a sociedade.<br />
Artigo 205<br />
Onde ouvir: Spotify, Deezer, Apple<br />
Podcasts, Google Podcast<br />
e SoundCloud<br />
<strong>VERÃO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 6 • PÁG. 7<br />
<strong>VERÃO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 6 • PÁG. 6
[ R O T E I R O ] [ R O T E I R O ]<br />
Para ler<br />
560 páginas<br />
Todavia<br />
109,90 reais ou 59,90 (e-book)<br />
O poeta mineral<br />
O apreço pelo equilíbrio reflete-se até<br />
em seu nome: João Cabral de Melo Neto<br />
é um perfeito verso octossílabo. Meticuloso,<br />
eliminou um “l” do Mello de sua<br />
família para evitar que o vocábulo de<br />
difícil divisão silábica prejudicasse o<br />
conjunto. O poeta pernambucano aca-<br />
ba de ganhar uma biografia digna de<br />
sua estatura: João Cabral de Melo Neto<br />
<strong>–</strong> Uma Biografia, de Ivan Marques, professor<br />
da USP e especialista em poesia<br />
brasileira. Diplomata, João Cabral viveu<br />
a maior parte da vida fora do país, mas<br />
nunca se afastou das margens do Rio<br />
Capibaribe. Famoso por uma obra que<br />
renegou por anos, Morte e Vida Severina,<br />
foi o poeta mais cerebral e antilírico da<br />
literatura nacional, um ourives da pedra<br />
bruta e sem brilhos.<br />
Para ouvir<br />
Adele acerta de novo<br />
Um novo álbum da britânica Adele é<br />
sempre mais que um conjunto de músicas,<br />
é um produto meticulosamente<br />
planejado. O quarto disco da cantora<br />
segue a linha dos anteriores em vários<br />
aspectos. No nome, 30 (os outros são 19,<br />
21 e 25 <strong>–</strong> sua idade quando os gravou),<br />
na capa (todos estampam um retrato<br />
da cantora) e na sonoridade (aquela<br />
mistura quase infalível de baladas e<br />
pop dançante). Considerado o melhor<br />
trabalho da cantora após o estonteante<br />
21, o novo disco traz apenas composições<br />
de Adele e reflete sua separação<br />
de Simon Konecki <strong>–</strong> ex-empresário e<br />
pai de seu filho, Angelo. A artista pediu<br />
ao Spotify que removesse o botão de<br />
shuffle, de reprodução aleatória. “Não<br />
criamos álbuns com tanto cuidado e<br />
reflexão em nossa lista de faixas à toa.<br />
Nossa arte conta uma história, e nossas<br />
histórias devem ser ouvidas como<br />
gostaríamos”, tuitou Adele.<br />
30<br />
Onde ouvir: Spotify, Deezer, iTunes e Tidal<br />
336 páginas<br />
Intrínseca<br />
59,90 reais ou 39,90 reais (e-book)<br />
Um mundo melhor<br />
é possível<br />
Com apenas 36 anos, a respeitada economista<br />
Minouche Shafik foi a mais<br />
jovem pessoa a ocupar a vice-presidência<br />
do Banco Mundial. No livro Cuidar<br />
Uns dos Outros: Um Novo Contrato<br />
Social, ela foge do economês tecnicista<br />
para conduzir o leitor por um passeio<br />
pelos estágios da experiência humana<br />
<strong>–</strong> estudar, casar, adoecer, trabalhar,<br />
envelhecer <strong>–</strong> mostrando como a reorganização<br />
social é possível. Zelar pelo<br />
bem dos outros, pagar impostos e usufruir<br />
de serviços públicos são elementos<br />
do contrato social que nos sustenta<br />
e nos une. Com argumentos sólidos,<br />
Shafik aponta soluções para desafios<br />
atuais, como envelhecimento populacional<br />
e mudanças climáticas, e indica<br />
como é possível construir uma sociedade<br />
melhor.<br />
Caetano em forma<br />
Para delírio dos fãs, Caetano Veloso<br />
interrompeu um hiato de nove anos e<br />
lançou um disco de músicas inéditas.<br />
Gravado quase todo em seu apartamento<br />
no Rio (por causa da pandemia),<br />
o disco está longe de soar caseiro,<br />
rústico ou qualquer outro adjetivo que<br />
denote amadorismo. Meu Coco é, sim,<br />
um autêntico Caetano. Está tudo lá: a<br />
temática poético-social, as mensagens<br />
políticas, as homenagens aos amigos<br />
(Gilgal é ótima), a experimentação e a<br />
abertura para o novo, dando espaço a<br />
jovens instrumentistas, produtores e<br />
arranjadores. Destaque para a belíssima<br />
Autoacalanto (dedicada a seu neto<br />
Benjamin) e para o fado Você-Você, cantado<br />
com a portuguesa Carminho. Aos<br />
79 anos, Caetano está afiado e otimista,<br />
retoma propostas do tropicalismo e vê<br />
na fusão cultural das heranças negro-<br />
-luso-indígena saídas para o Brasil.<br />
Meu Coco<br />
Onde ouvir: : Spotify, Deezer,<br />
Apple Music e Tidal<br />
432 páginas<br />
Ubu<br />
99,00 reais ou 49,90 reais (e-book)<br />
Clássico obrigatório<br />
A metáfora do homem vivendo sozinho<br />
numa ilha, com todos os seus defeitos<br />
e virtudes, é poderosa a ponto<br />
de tornar o livro Robinson Crusoe universal<br />
e atemporal. A nova edição da<br />
editora Ubu tem capa dura e projeto<br />
editorial ousado, incluindo páginas que<br />
vão esmaecendo a cor à medida que a<br />
trama se aproxima do final. A inédita<br />
tradução do poeta Leonardo Fróes dá<br />
nova vida ao texto de 1729, de Daniel<br />
Defoe. Desenhos do artista argentino<br />
Nicolás Robbio e textos de apoio de J.M.<br />
Coetzee, Virginia Woolf, James Joyce,<br />
Karl Marx e Jean-Jacques Rousseau<br />
completam o livro. A ficção é tida como<br />
a primeira imagem da noção de individualismo<br />
moderno, com toda a complexidade<br />
que o conceito denota, para o<br />
bem e para mal.<br />
Blues autêntico<br />
A faixa de abertura Blues Before Sunrise,<br />
regravação da canção de Elmore<br />
James, dá uma boa ideia do alto nível<br />
do álbum Heavy Load Blues, primeiro<br />
disco do quarteto Gov’t Mule totalmente<br />
dedicado ao blues. A banda liderada<br />
por Warren Haynes, guitarrista e vocalista<br />
do The Allman Brothers, acerta<br />
em cheio misturando covers e originais<br />
gravados ao vivo dentro do estúdio. O<br />
disco foi produzido em fita analógica,<br />
em que a equipe usa guitarras vintage,<br />
amplificadores e outros equipamentos<br />
para capturar um som autêntico. Uma<br />
viagem sonora para quem engata os 78<br />
minutos das 13 faixas, entre elas Make<br />
It Rain, do americano Tom Waits, e a<br />
original Wake Up Dead, e principalmente<br />
para os fãs que dedicam 50 minutos<br />
adicionais às oito faixas bônus da versão<br />
deluxe do álbum, que traz riffs de<br />
guitarra na regravação de Have Mercy<br />
on the Criminal, de Elton John.<br />
Heavy Load Blues<br />
Onde ouvir: Spotify, Deezer,<br />
Apple Music e Tidal<br />
<strong>VERÃO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 6 • PÁG. 9<br />
<strong>VERÃO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 6 • PÁG. 8
[O X DA BOSSA]<br />
Bossa<br />
além do<br />
quadrado<br />
Por Daniel Augusto Motta <strong>–</strong> Senior Tupinambá Maverick da Bossa<br />
Bicentenário da independência, centenário<br />
do movimento modernista brasileiro e,<br />
claro, segundo aniversário da Bossa.etc.<br />
Para entrar em <strong>2022</strong> com o pé direito, é<br />
preciso entender como chegamos até aqui<br />
Foto: Getty Images<br />
<strong>VERÃO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 6 • PÁG. 11<br />
<strong>VERÃO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 6 • PÁG. 10
O<br />
ano <strong>2022</strong> será especial também<br />
por ser o primeiro da segunda<br />
década do terceiro milênio já<br />
além do surto pandêmico que isolou e<br />
assolou o planeta. Sim, vivemos os dois<br />
primeiros anos desta nova década fora<br />
do eixo cotidiano das coisas, estupefatos<br />
dentro do nosso lar. Agora, estamos<br />
abandonando as máscaras encardidas<br />
e os cotonetes sádicos, voltando a desbravar<br />
novas paisagens mundo afora,<br />
reconectando-nos com o ser humano.<br />
Saímos da nossa casa diferentes do<br />
momento em que nos fechamos lá dentro,<br />
em 2020. Refletimos sobre inúmeras<br />
coisas, sobretudo sobre o tempo <strong>–</strong> e<br />
não só o tempo objetivo, mas também<br />
o tempo subjetivo quântico. Fomos levados<br />
a uma espiral paradoxal em que<br />
celebramos o tempo ganho com o fim<br />
dos deslocamentos urbanos e das reuniões<br />
inúteis enquanto sofremos pelo<br />
tempo distante daquilo que apreciamos,<br />
daqueles que amamos. E, mesmo<br />
assim, talvez mais conscientes do<br />
avanço implacável do tempo que nos<br />
envelhece, prosseguimos ineficientes<br />
na alocação do nosso precioso tempo,<br />
cada vez mais capturado pelas irresistíveis<br />
mídias sociais, jogos eletrônicos<br />
e afins. Quão irracionais continuamos<br />
apesar da tão aclamada racionalidade<br />
da era dos algoritmos? É fato que estamos<br />
totalmente conectados ao mundo<br />
pelas avenidas digitais, em que o tempo<br />
adquire outras feições, outras dinâmicas.<br />
Eis a questão quintessencial<br />
da pandemia: Quanto do nosso tempo<br />
tem sido dedicado ao inútil? Estou certo<br />
de que todos nos surpreenderíamos<br />
com tamanho desperdício.<br />
Mas sempre é tempo de refletirmos<br />
sobre a nossa jornada contínua em<br />
aprendizagem, não restrita apenas ao<br />
contexto das organizações, mas, notadamente,<br />
como sociedade em expansão<br />
de consciência. A natureza e o<br />
social evoluem em ciclos de expansão e<br />
retração desde sempre e para sempre.<br />
Podemos antecipar sinais fracos a respeito<br />
do futuro, ao mesmo tempo que<br />
refletimos sobre o impacto dos contextos<br />
passados em nosso momento<br />
atual. Futuro e passado conectam-se<br />
com frequência na busca por significados<br />
presentes. E, mesmo que não precisemos<br />
retornar a viver como índios<br />
coletores para estarmos em harmonia<br />
com a natureza, podemos nos inspirar<br />
em princípios de sustentabilidade digital<br />
para calibrarmos o novo equilíbrio<br />
sustentável que não coloque em xeque<br />
a própria sobrevivência humana no<br />
planeta <strong>–</strong> outras escalas, outros pesos<br />
e medidas, outros nexos e ethos, mas,<br />
ainda assim, as mesmas questões essenciais<br />
subjacentes à existência humana<br />
neste plano natural.<br />
A Bossa.etc avança em espiral exponencial<br />
a partir de seu modelo operacional<br />
baseado em learning streaming.<br />
No nosso segundo ano, vamos além do<br />
dobro, além do quadrado, em busca de<br />
alguma função matemática que explique<br />
nossos saltos quânticos em múltiplas<br />
dimensões <strong>–</strong> evoluímos além dos<br />
indicadores operacionais e financeiros<br />
para a compreensão sistêmica dos fenômenos<br />
sociais, das sinapses neurais,<br />
das conexões afetivas, das relações<br />
ecossistêmicas. Somos a expressão<br />
concreta do abstrato contemporâneo,<br />
em uma trajetória disruptiva de geração<br />
de riqueza além das meras combinações<br />
mecânicas entre trabalho e capital.<br />
Nosso posicionamento asset light<br />
produz valor além do capital empregado,<br />
nossos ramos em inovação aberta<br />
nos inserem como ponto de referência<br />
em biomas criativos em prol da aprendizagem,<br />
nossa estrutura organizacional<br />
orgânica em células desafia os modelos<br />
gerenciais mais convencionais<br />
em caixas e fluxogramas. A Bossa.etc<br />
é produto e vetor de seu tempo.<br />
De qualquer modo, diante da relevância<br />
simbólica do ano <strong>2022</strong>, vale a<br />
pena expandir nossa reflexão sobre<br />
os tempos e movimentos, com seus<br />
personagens e dramas. Viajemos<br />
pelo tempo para compreender melhor<br />
nosso atual momento no Brasil.<br />
1822 <strong>–</strong> Independência<br />
ou morte, dependência<br />
e sorte<br />
A transformação do Brasil Colônia em<br />
Brasil Império é um caso exemplar na<br />
história mundial. A corte portuguesa<br />
havia deixado sua sede secular na<br />
Europa para se instalar na colônia ultramar<br />
em 1808, constituindo aqui<br />
os precários fundamentos sociais e<br />
econômicos que mudariam gradualmente<br />
a dinâmica político-econômica<br />
de exploração de bens naturais para<br />
uma economia de mercado interno e<br />
desafiariam a lógica social em torno da<br />
agropecuária escravagista para uma<br />
ordem emergente baseada em burocracia<br />
governamental, investimentos<br />
público-privados e consumo burguês.<br />
A chegada da aristocracia real lusitana<br />
rompeu com a pacata vivência colonial<br />
como entreposto comercial nas quentes<br />
terras tropicais. Por aqui viviam<br />
mercadores simplórios, fazendeiros<br />
poderosos, traficantes inescrupulosos,<br />
escravos negros, índios rebeldes<br />
e burocratas enviados pela Coroa.<br />
Vivia-se numa terra que não se enxergava<br />
como terra, mas sim como apêndice<br />
comercial, fonte de riquezas para os<br />
interesses metropolitanos. Por aqui se<br />
cantavam cânticos estrangeiros miscigenados,<br />
em que a gaita portuguesa se<br />
fundia com os batuques africanos em<br />
transes necessários para enfrentar a<br />
dureza do trabalho forçado nas roças e<br />
nas minas. Sentia-se que neste pedaço<br />
de terra fértil, fora do eixo civilizatório,<br />
quase tudo era permitido, promíscuo,<br />
oportunista, e quase nada era humanista,<br />
sagrado, sustentável.<br />
É fato que alguns rompantes libertários<br />
surgiram aqui e acolá, notadamente<br />
com algum interesse econômico convergente<br />
frente aos elevados tributos<br />
exigidos pela Coroa. Dentre eles, a Inconfidência<br />
Mineira ganhou destaque<br />
na historiografia nacional, com o bode<br />
expiatório Tiradentes sendo transformado<br />
em mártir simbólico décadas<br />
Moeda do Brasil Império,<br />
20 réis, ano 1868 |<br />
foto: Getty Images<br />
mais tarde. Mas, em geral, aceitava-se<br />
pacificamente a ordem natural das coisas<br />
em um ambiente predatório contra<br />
a natureza e as pessoas. A ganância,<br />
disfarçada pelo fervor cristão, dominava<br />
estas bandas.<br />
Daí a relevância dos feitos acelerados<br />
pela chegada da corte portuguesa aos<br />
trópicos. A presença da realeza com a<br />
promoção do Brasil a Império trouxe<br />
verniz para as relações sociais, estimulou<br />
certo orgulho em pertencer,<br />
construiu bases institucionais para<br />
a vida em sociedade urbana, desenvolveu<br />
fundamentos (ainda precários)<br />
econômicos para uma evolução<br />
da matriz produtiva/exportadora e<br />
elevou a consciência social contra os<br />
horrores escravocratas. Ocorria uma<br />
lenta e contínua revolução dos usos<br />
e costumes coloniais para um centro<br />
civilizatório que, embora ainda extremamente<br />
rural, já buscava uma<br />
identidade agregadora.<br />
<strong>VERÃO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 6 • PÁG. 13<br />
<strong>VERÃO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 6 • PÁG. 12
Dom João VI | Gravura do acervo da Biblioteca Nacional<br />
Rei em fuga <strong>–</strong> Apenas 14 anos depois de sua chegada ao Brasil, assegurada a<br />
derrota definitiva das ameaçadoras tropas napoleônicas alguns anos antes, o rei retornou<br />
a Lisboa com sua corte. É provável que seu orgulho pela obra construída em<br />
poucos anos tenha se misturado com uma indagação mais íntima acerca do tempo<br />
perdido com descaso por tantas gerações reais lusitanas. O rei deixava no Brasil um<br />
potencial de geração de riqueza infinitamente superior a todo o acúmulo de reservas<br />
douradas extraídas nos 300 anos coloniais, mas era tarde demais. Seu retorno a<br />
Portugal era a viagem derradeira de um rei em declínio diante da supremacia militar<br />
do Império Britânico. A história avançava em novas cenas.<br />
Mundo afora, a fuga do rei seria motivo para algum levante organizado pelos colonos<br />
e compatriotas em busca de sua independência política. Laços seriam desfeitos,<br />
batalhas seriam travadas, sangue seria heroicamente derramado, uma nova identidade<br />
seria cantada aos quatro ventos. Nada disso ocorreu por estes trópicos complacentes.<br />
Por aqui, o filho do rei, seu herdeiro natural na Coroa portuguesa, apressou-<br />
-se em proclamar a independência do Brasil, num ato de (pretensa) rebeldia juvenil<br />
contra seu pai. Antes de ser cômico ou caricato, tal ato marcou imensamente a essência<br />
da nossa cultura brasileira como um ambiente avesso a grandes gritos e grilos.<br />
Essa foi a expressão cultural de um povo explorado por mais de 300 anos àquela<br />
altura, em que mesmo a elite incipiente não se enxergava como representante de<br />
valores nacionais, mas sim como europeus desbravadores de fronteiras agrícolas<br />
e minerais, proprietários de índios e negros. Um eventual conflito entre patriotas e<br />
colonizadores também se mostrou inviável: a população em geral era composta de<br />
pessoas alienadas e alheias às questões nacionais, e a elite estabelecida mantinha<br />
seus privilégios e ativos. Somos, ainda hoje, cordiais na forma, cordatos no conteúdo.<br />
Nosso Primeiro Reinado como nação foi marcado pela indiferença e pelo abandono.<br />
Dom Pedro I estava mais interessado em viver sua vida do que em liderar as vidas<br />
nacionais. Não completou nem uma década no trono. Em 1831, deixou o Brasil nas<br />
mãos de seu filho de 6 anos de idade, providencialmente tutelado por regentes. O<br />
mesmo imperador que havia, alguns anos antes, reivindicado a nação para si, para<br />
o bem de todos e felicidade geral, terminava por abandoná-la. Era já tempo de retornar<br />
à real civilização.<br />
Pátria com p minúsculo <strong>–</strong> O Segundo<br />
Reinado seria um dos períodos<br />
mais tensos de nossa frágil pátria em<br />
formação. Seus mecanismos operacionais<br />
limitavam-se ao agronegócio<br />
exportador, enquanto a elite político-<br />
-econômica desenvolvia-se com dificuldades<br />
diante de tantos conflitos<br />
provincianos, tantas lacunas institucionais,<br />
tantas fragilidades em infraestrutura.<br />
As famílias brasileiras em<br />
ascensão econômica orgulhavam-se<br />
de enviar seus jovens herdeiros para se<br />
formar nas universidades europeias,<br />
ganhando ares civilizatórios ausentes<br />
nos quentes campos rurais. Por meio<br />
do golpe da maioridade, o jovem dom<br />
Pedro II assumiu o trono em 1840 e<br />
acalmou os ânimos liberais e conservadores.<br />
Reinaria por quase 50 anos <strong>–</strong><br />
nosso recorde jamais superado por outro<br />
governante <strong>–</strong>, enfrentando crises<br />
políticas e fortalecendo instituições relevantes<br />
para o país. Deixou o poder em<br />
1889, já idoso, com a celebrada proclamação<br />
da República Federativa do Brasil<br />
por um marechal <strong>–</strong> novamente, sem<br />
um único tiro. O Brasil avançava em<br />
berço esplêndido de Colônia a República,<br />
financeiramente dependente de capital<br />
estrangeiro, socialmente dividido<br />
entre elites aristocráticas latifundiárias<br />
e negros recém-emancipados.<br />
A identidade nacional ainda era algo difuso,<br />
ausente nos usos e costumes dos<br />
locais, inexistente no arcabouço semiótico<br />
da sociedade que se desenvolvia na<br />
transição lenta do campo para as cidades.<br />
Mas o país se conectava por emergentes<br />
ferrovias, telégrafos e portos,<br />
as cidades cresciam com as emergentes<br />
classes mercantis, os escravos<br />
haviam sido finalmente libertados e<br />
os símbolos nacionais eram gradualmente<br />
consolidados. O Império durou<br />
apenas 67 anos, reticente diante de<br />
raízes ausentes, narrativas fabricadas,<br />
personagens apáticos. Por outro lado, o<br />
período imperial iniciou uma trajetória<br />
autônoma de nação, com todos os seus<br />
desafios e incongruências, mas ainda<br />
assim uma nação brasileira.<br />
Mesmo o período republicano já nasceu<br />
como República Velha, justamente<br />
por seu apego aos valores e princípios,<br />
usos e costumes do período<br />
monárquico. É verdade que tivemos<br />
uma nova Constituição promulgada,<br />
mas nada que impactasse nossa identidade<br />
patriótica. Após dois militares,<br />
tivemos uma sequência de civis na<br />
Presidência Executiva, todos oriundos<br />
das elites agrárias dominantes. O<br />
efetivo status quo agrário exportador<br />
manteve-se quase intacto na transição<br />
política, com insignificantes mudanças<br />
nos controles dos meios de produção<br />
<strong>–</strong> algo raro em grandes movimentos<br />
de transformação sociopolítica de nações.<br />
No Brasil, a elite latifundiária não<br />
apenas manteve seus privilégios como<br />
ainda ampliou seus poderes, conquistando<br />
inclusive a Presidência da República.<br />
Nossas eleições eram peças<br />
de ficção diante de massas populares<br />
com voto de cabresto e profusa manipulação<br />
dos votos <strong>–</strong> um Carnaval fora<br />
de época. Nas primeiras três décadas<br />
republicanas, instituições foram reformadas<br />
para deixar suas referências<br />
monárquicas, novas lideranças políticas<br />
emergiram no cenário nacional,<br />
velhas questões econômicas e sociais<br />
continuaram sendo procrastinadas.<br />
D. Pedro II e a imperatriz em viagem <strong>–</strong> vista do porto do Rio de Janeiro no dia 25 de maio de 1871 | Gravura do acervo da Biblioteca Nacional<br />
<strong>VERÃO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 6 • PÁG. 15<br />
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Embrião nacionalista <strong>–</strong> No plano simbólico, a República foi fundamental para<br />
a construção da identidade nacional. Buscava-se o fio condutor nacionalista <strong>–</strong> muitas<br />
vezes, ufanista <strong>–</strong> que apresentaria a narrativa inspiradora para uma nova pátria<br />
no “novo mundo” com seus valores, heróis e lendas. Usos e costumes importados do<br />
Velho Continente já vinham sendo aqui tropicalizados e fundidos com referências<br />
africanas e indígenas, com manifestações dessa dinâmica antropológica na gastronomia,<br />
no vestuário, na música e na arquitetura, por exemplo. Hinos e canções foram<br />
criados para celebrar a jovem nação (e seus grandes desafios sociais e econômicos).<br />
O Brasil nascia endividado em moeda estrangeira, fragmentado em sua infraestrutura,<br />
sem mercado consumidor pujante, com baixo conhecimento científico e tecnológico,<br />
abismos sociais entre raças, concentrado em sua pauta de exportações.<br />
O projeto nacional precisava, acima de tudo, reunir forças em torno de agendas de<br />
desenvolvimento socioeconômico nas diversas regiões, com ênfase na industrialização<br />
da matriz produtiva, no aumento de bem-estar da população e na criação<br />
de um mercado de capitais que pudesse financiar tamanha agenda empreendedora.<br />
Quase tudo precisava ser construído. Havia certamente um entusiasmo com<br />
tamanho desafio, e vários projetos empreendedores foram iniciados em múltiplas<br />
dimensões. Apesar de os grandes produtores e exportadores agrários ainda<br />
manterem sua dominância político-econômica, já havia sinais claros da migração<br />
do epicentro financeiro para os centros urbanos que se desenvolviam com massas<br />
populares imigrantes europeias formadas por operários, comerciantes, industriais,<br />
funcionários públicos, mascates e autônomos, a base das classes médias nas regiões<br />
Sul e Sudeste.<br />
Nota-se, portanto, que 1822 foi, de fato, um ano de inflexão na trajetória brasileira,<br />
com a proclamação da independência. Mesmo com traços de continuidade e conservadorismo,<br />
mesmo sem aspirações impetuosas e revoluções míticas, o país passaria<br />
a se enxergar efetivamente como Brasil, não mais como Reino Unido. Isso já foi um<br />
salto muito importante, com raízes em 1808 e desdobramentos concluídos em 1889.<br />
Grito do Ipiranga | Gravura do acervo da Biblioteca Nacional<br />
Construção de Futuro, Influência<br />
Sistêmica e Catalisação da Mudança<br />
são as soft skills da independência<br />
Soft skills da independência <strong>–</strong><br />
A saga brasileira também se apresentou<br />
como agenda de aprendizagem. A<br />
meu ver, três soft skills dominaram esse<br />
primeiro século independente: Construção<br />
de Futuro, Influência Sistêmica<br />
e Catalisação da Mudança.<br />
Naqueles tempos de Construção de Futuro,<br />
um projeto nacional representava<br />
uma nação miscigenada e integrada<br />
em torno de uma agenda de construção<br />
da identidade independente. Alteridade,<br />
por exemplo, mostrou-se um desafio<br />
colossal ao exigir um olhar inclusivo<br />
por parte de uma sociedade dividida<br />
em abismos, em que a própria escravidão<br />
apresentava-se como crença cristalizada<br />
no mapa mental coletivo. Todo<br />
o arcabouço institucional monárquico<br />
manteve-se intacto, inclusive já adaptado<br />
como centro decisório na cidade<br />
do Rio de Janeiro. Entre dom João VI e<br />
dom Pedro I, os usos e costumes alteraram-se<br />
muito pouco, tanto quanto a<br />
própria expansão de consciência manteve-se<br />
relativamente contida nesses<br />
primórdios. Foram necessárias mais<br />
algumas décadas, inclusive com pressões<br />
políticas externas por parte do<br />
Império Britânico e dos Estados Unidos<br />
da América, para que o desejo abolicionista<br />
se espalhasse pela jovem nação<br />
brasileira. E, mesmo assim, com baixa<br />
intensidade em alteridade, uma vez<br />
que a sociedade brasileira continuaria<br />
sendo dominada por uma classe agrária<br />
conservadora, alienada com relação<br />
a um projeto nacional de inclusão e<br />
emancipação negra.<br />
Exploração Interativa, outra habilidade<br />
intrínseca à soft skill Construção<br />
de Futuro, mostrou-se fator crítico<br />
de sucesso na transição. A mudança<br />
de mentalidade colonial-predatório-<br />
-provinciano-submisso para patriota-<br />
-desenvolvimentista-integrado-protagonista<br />
mostrou-se extremamente<br />
desafiadora aos líderes nacionais. O<br />
próprio imperador não demonstrou<br />
visão e energia nessa direção. Explorar<br />
cenários possíveis com interação<br />
multistakeholder estava longe do modus<br />
operandi utilizado no cotidiano das<br />
elites políticas. Mais uma vez, prevalecia<br />
a ótica de evolução gradual<br />
sem sobressaltos.<br />
Além da Construção de Futuro, também<br />
a Influência Sistêmica se destacava<br />
como fator crítico de sucesso em<br />
1822 e nos anos seguintes. Construir e<br />
cultivar relações mostravam-se como<br />
fundamentais na articulação das lideranças<br />
regionais em um projeto único<br />
de país. Aventuras separatistas já incomodavam<br />
a metrópole, e precisaram<br />
ser suprimidas para que um projeto<br />
nacional se tornasse viável. O pacto<br />
federativo, que seria o esteio republicano<br />
décadas mais tarde, teve já aqui<br />
seu embrião por meio da convergência<br />
e da calibragem de interesses regionais<br />
para a construção da rede política de<br />
apoio ao governo imperial. Na tensão<br />
criada às vésperas do golpe da maioridade,<br />
esse acordo de interesses federalistas<br />
se esfacelava à medida que o<br />
eixo de poder econômico se fortalecia<br />
nas plantações paulistas de café, em<br />
detrimento dos engenhos nordestinos<br />
e dos ímpetos bairristas sulistas. Novamente,<br />
nos anos da República Velha,<br />
a própria governabilidade se constitui<br />
em torno de delicado equilíbrio de forças<br />
entre Minas Gerais e São Paulo.<br />
Por último, a Catalisação da Mudança<br />
mostrou-se uma competência essencial<br />
ao movimento de consolidação do<br />
Brasil independente. Pensar um país<br />
livre além dos controles metropolitanos<br />
lusitanos demandou esforço de<br />
integração de diferentes grupos e personagens<br />
voltados ao projeto nacional.<br />
O foco esteve na efetiva mobilização<br />
de um povo sem identidade para algo<br />
significativo em conteúdo e forma. Ao<br />
longo de décadas, os usos e costumes,<br />
os mapas mentais e as instituições se<br />
transformaram. O processo foi lento,<br />
mas, ao final desse primeiro século, já<br />
apresentava um pensamento coletivo<br />
articulado em torno de um novo conceito<br />
para o Brasil.<br />
<strong>VERÃO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 6 • PÁG. 17<br />
<strong>VERÃO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 6 • PÁG. 16
1922 <strong>–</strong> Manifesto em falsete<br />
A Semana de Arte Moderna de 1922 foi simbólica em vários<br />
aspectos. Em primeiro lugar, sua realização em São Paulo<br />
ecoava o Grito da Independência, dado 100 anos antes, às<br />
margens do Ipiranga, consolidando a capital paulista não só<br />
como motor econômico da jovem nação mas também como<br />
influente nos planos sociais, políticos e culturais brasileiros.<br />
O manifesto revolucionário capitaneado por artistas sob a liderança<br />
intelectual de Mário de Andrade, Oswald de Andrade,<br />
Anita Malfatti e Menotti del Picchia reafirmou ainda nossa<br />
inclinação soft power ao promovermos mudanças significativas.<br />
E foi um despertar para a brasilidade original, libertada<br />
das instituições europeias e influências forasteiras que ainda<br />
dominavam nosso establishment.<br />
O Brasil buscava sua identidade não no retrovisor primitivo,<br />
mas no futuro autoral. Sim, por vezes, com certos ares ufanistas,<br />
mas ainda assim orgulhosos e originais. Propunha um<br />
Brasil plural e heroico em contraposição ao modelo hierárquico<br />
oligárquico, construindo referências mais urbanas, industriais,<br />
democráticas e livres. Inspiradas, certamente, pelas<br />
massas imigrantes europeias que haviam se estabelecido<br />
para empreender, progredir e expandir. Rompia com as estruturas<br />
mais acadêmicas e clássicas. Promovia alternativas<br />
anárquicas, revolucionárias. Contra o Parnasse Contemporain,<br />
emergia o Manifesto da Poesia Pau-Brasil.<br />
A dinâmica antropofágica já se estabelecia muito antes da<br />
própria Abaporu ao pautar o modernismo brasileiro como<br />
uma fusão interpretativa dos movimentos artísticos europeus<br />
denominados cubismo, dadaísmo, expressionismo e<br />
surrealismo, que, por sua vez, eclodiam diante das rupturas<br />
causadas pela Primeira Guerra Mundial, como a ruína do<br />
imaginário coletivo em torno da belle époque. Nosso ímpeto<br />
identitário nos trouxe o lendário Macunaíma como ícone<br />
iconoclasta. A revolução cultural que se desenvolvia tinha<br />
influência generalizada, da arquitetura e do vestuário às expressões<br />
artísticas.<br />
O próprio contexto político não passaria incólume ao movimento:<br />
em 1930, e pelos 15 anos seguintes, a Era Vargas romperia<br />
com o controle oligárquico da política. O país retomou<br />
sua vocação totalitária, atávica ao inconsciente coletivo de um<br />
povo acostumado a viver sob rígidas estruturas sociais, militares<br />
e políticas. Paradoxalmente, durante a Segunda Guerra<br />
Mundial, fomos uma ditadura apoiando Aliados contra os regimes<br />
totalitários. Com o desfecho dos conflitos globais, nossas<br />
instituições totalitárias também se tornaram insustentáveis.<br />
No turbilhão que se seguiu, o Brasil vivenciou seus Anos<br />
Dourados sob a gestão de Juscelino Kubitschek, em que o<br />
orgulho nacional talvez tenha alcançado seu ápice. O crescimento<br />
econômico era pujante, a seleção brasileira de futebol<br />
celebrava o encontro de Pelé e Garrincha, o concretismo encontrava<br />
Oscar Niemeyer, Lucio Costa e Lygia Clark, o cinema<br />
novo e a bossa nova completavam o cenário de ebulição<br />
cultural e euforia nacional.<br />
A criativa, irreverente e inovadora Klaxon foi<br />
a primeira revista modernista do Brasil<br />
Klaxon (1922-1923), a primeira revista modernista do Brasil<br />
O Brasil é, finalmente, Brasil! <strong>–</strong> A jovem nação tropical avançava em seu processo de consolidação política, social e<br />
econômica. Apesar das conquistas, muito ainda permanecia negligenciada. O crescimento econômico andava em descompasso<br />
com o desenvolvimento social. Desde a independência, o país mantinha-se absolutamente dependente do estrangeiro em relação<br />
a poupança para financiamento de investimentos, mercado consumidor de exportações brasileiras de recursos naturais e mercado<br />
fornecedor de bens de alto valor agregado, ausentes de nossa matriz industrial. É fato que construímos nossa identidade<br />
própria, mas não consolidamos, de modo algum, nossa independência.<br />
Ainda retornaríamos, mais uma vez, ao modus operandi totalitário por mais 21 anos durante o regime militar. Algo que tornaria<br />
a República Federativa do Brasil uma das menos democráticas desde sua origem, mas não por isso menos cordial. Somos, essencialmente,<br />
um povo tranquilo. O país que mais uma vez ressurgiu com eleições gerais nos anos 1980 já estava desolado com<br />
hiperinflação e estagnação econômica, desesperado diante dos abismos sociais entre favelados e poderosos, desconectado das<br />
grandes revoluções tecnológicas. Mas somos um povo resiliente, e novamente encontramos esteios de esperança com o sucesso<br />
do Plano Real, quando recuperamos poder aquisitivo e novas espirais de crescimento econômico (apesar de anos-luz de diferença<br />
do boom econômico vivenciado pelos Tigres Asiáticos). Anos mais tarde, o país teria novo impulso com o boom de nossas<br />
commodities agrícolas e minerais, enquanto internamente o governo Lula implementava amplo programa social com o Bolsa<br />
Família. Lamentavelmente, não tivemos muito tempo para celebrarmos e cultivarmos: escândalos de corrupção assolaram o país<br />
com a desestruturação governamental e criaram as bases para novas aventuras ideológicas extremistas. O Brasil encontra-se,<br />
hoje, em tensas trevas.<br />
<strong>VERÃO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 6 • PÁG. 19<br />
<strong>VERÃO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 6 • PÁG. 18
Soft skills da brasilidade <strong>–</strong> O segundo século independente<br />
se apresentou como nova agenda de aprendizagem.<br />
Eis o trio de habilidades que, a meu ver, refletiu aquele<br />
período: Expansão de Consciência, Coragem Disruptiva<br />
e Gestão de Crises.<br />
A Expansão de Consciência que se desenvolvia com fervor<br />
nas primeiras décadas do século XX na metrópole paulista<br />
estimulou uma nova geração de intelectuais a compreender e<br />
consolidar sua Prontidão Protagonista, a fim de romper com<br />
os dogmas clássicos arraigados naquela sociedade essencialmente<br />
oligárquica rural. Ao perceberem as incongruências<br />
entre as referências tradicionais e as possibilidades inspiradoras,<br />
Mário de Andrade e companheiros disseminaram aos<br />
quatro ventos um novo ideal para a Pátria Brasil, mais indígena,<br />
mais original, mais tropical, mais anárquica, mais urbana,<br />
mais livre, mais miscigenada. Ressignificavam, assim,<br />
a própria essência individual do brasileiro. Menos cartolas e<br />
casacas, mais sandálias. Menos harpas e cravos, mais berimbaus<br />
e violas. Menos pó de arroz, mais ébano. Na esteira desse<br />
movimento protagonista, o Brasil conheceria Vinicius de<br />
Moraes, Graciliano Ramos, Jorge Amado, João Cabral de Melo<br />
Neto, Carlos Drummond de Andrade, Erico Verissimo, João<br />
Guimarães Rosa, entre outros. E, anos depois, a incomparável<br />
Clarice Lispector.<br />
Como todo o processo de Expansão de Consciência, a configuração<br />
da nossa própria identidade nacional foi lenta,<br />
gradual, errática e ambígua. Vivenciamos altos e baixos.<br />
Convivemos, ainda hoje, com incoerências fundamentais,<br />
lacunas lamentáveis e conflitos irreconciliáveis. Mas também<br />
construímos muitos fundamentos que sustentam nossa<br />
trajetória patriótica. Não somos uma república de bananas<br />
como muitos, inclusive aqui dentro da nossa própria pátria,<br />
querem nos fazer acreditar. Já somos, há bastante tempo,<br />
uma das principais potências globais. Mas poderíamos<br />
ser muito mais, indubitavelmente.<br />
Nossa Coragem Disruptiva manifestou-se principalmente<br />
no rompimento com as oligarquias agrárias escravocratas<br />
em prol de um desenvolvimento industrial-urbano. O crescimento<br />
da economia doméstica em consumo, investimento e<br />
gastos públicos, na virada do primeiro século independente,<br />
foi extremamente desbravador. Exigiu-se articulação de diferentes<br />
stakeholders em torno de um novo pacto social para<br />
o Brasil. Não foi nada simples. Nesse período de transição,<br />
vivenciamos uma dura ditadura getulista durante longos<br />
15 anos <strong>–</strong> Getúlio Vargas foi o governante mais longevo da<br />
história brasileira, depois de dom Pedro II <strong>–</strong> para alcançarmos,<br />
alguns anos depois, a euforia máxima dos 50 anos em<br />
cinco e, logo em seguida, uma sequência de governos militares<br />
em regime de exceção. O país democrático que emergiu<br />
no final dos anos 1980 já era completamente diferente<br />
do país republicano de meados de 1880, sendo a Coragem<br />
Disruptiva dos setores público e privado um vetor relevante<br />
de transformação socioeconômica.<br />
Finalmente, Gestão de Crises foi uma habilidade presente durante<br />
toda a evolução do Brasil. Neste segundo século independente,<br />
o país enfrentou inúmeras crises globais, como a<br />
Grande Depressão, a Segunda Guerra Mundial, a Guerra Fria,<br />
os Choques de Petróleo, a Crise Asiática, a Crise Russa, o Estouro<br />
Ponto.com, a Crise Subprime e a atual pandemia. Também<br />
superou graves instabilidades domésticas provocadas<br />
por colapso das exportações cafeeiras, Revolução de 1930,<br />
suicídio de Getúlio Vargas, renúncia de Jânio Quadros, Regime<br />
Militar, Crise da Dívida Externa, sucessivos planos econômicos<br />
anti-inflacionários, impeachment de Collor e Dilma,<br />
entre outros. É razoável afirmar que o brasileiro, acima de<br />
tudo, é um sujeito resiliente. Enfrentamos duras crises sem<br />
perder a esperança por dias melhores. Esse povo misturado<br />
tem suas raízes em índios nativos, negros sobreviventes, imigrantes<br />
europeus destemidos. É justo o epíteto “bravo” para<br />
descrever essa gente brasileira que luta diariamente para seguir<br />
em frente.<br />
<strong>2022</strong><br />
É razoável afirmar que o brasileiro, acima de tudo, é um<br />
sujeito resiliente. Enfrentamos duras crises sem perder<br />
a esperança por dias melhores. Esse povo misturado<br />
tem suas raízes em índios nativos, negros sobreviventes,<br />
imigrantes europeus destemidos. É justo o epíteto “bravo”<br />
para descrever essa gente brasileira que luta diariamente<br />
para seguir em frente<br />
<strong>2022</strong> <strong>–</strong> Expressão quântica sustentável<br />
Com dois séculos de independência, vivemos em um Brasil diferente e similar ao mesmo tempo. Ampliamos nosso repertório<br />
produtivo, consolidamos nossa estrutura institucional, melhoramos as condições sociais mínimas em todo o país, construímos<br />
empresas relevantes na arena competitiva global e expandimos nossa consciência ambiental. Mas continuamos com enormes desigualdades<br />
sociais, dependemos ainda de capital estrangeiro, temos dificuldade para atuar na vanguarda tecnológica/científica,<br />
permanecemos irrelevantes na geopolítica militar global e padecemos de frágil capital humano acumulado em nossa sociedade.<br />
O Brasil dos próximos 100 anos tem,<br />
ao menos, três grandes prioridades:<br />
1 <strong>–</strong> ciclos contínuos de desenvolvimento econômico acelerado em detrimento de vales<br />
e picos erráticos, incluindo revisão simplificadora do arcabouço institucional em<br />
prol de empreendedorismo privado, redução do tamanho do Estado e construção de<br />
infraestrutura aderente às melhores práticas sustentáveis;<br />
2 <strong>–</strong> salto quântico em bem-estar social com ênfase em habitação, saúde, educação,<br />
alimentação, inclusão tecnológica, empregabilidade e assistência social com a erradicação<br />
de moradias impróprias nos grandes centros urbanos;<br />
3 <strong>–</strong> capital humano sólido capaz de posicionar o país na fronteira de conhecimento<br />
aplicado a ciência e tecnologia, com papel relevante e protagonista nas principais<br />
cadeias de valor globais.<br />
Em poucas palavras, nosso desafio seria desenvolver<br />
rapidamente as competências Adaptabilidade,<br />
Intraempreendedorismo e Consciência Coletiva em<br />
amplos setores de nossa sociedade. Um projeto especial<br />
para este próximo centenário<br />
<strong>VERÃO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 6 • PÁG. 21<br />
<strong>VERÃO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 6 • PÁG. 20
[COMPORTAMENTO]<br />
(Nova)<br />
pátria<br />
amada<br />
Como a sociedade brasileira recebe estrangeiros<br />
que tiveram de abandonar casa, carreira e família<br />
para fugir da fome ou da guerra? Três histórias<br />
de refugiados e imigrantes revelam a realidade de<br />
quem tenta recomeçar a vida no Brasil<br />
Por Diego Braga Norte<br />
Foto: Getty Images<br />
<strong>VERÃO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 6 • PÁG. 23<br />
<strong>VERÃO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 6 • PÁG. 22
A<br />
venezuelana Adriana Camargo saiu de sua terra natal<br />
para fazer faculdade de administração na Colômbia<br />
e após concluir o curso, em 2014, ouviu de sua mãe:<br />
“Não volte, a Venezuela está terrível”. Vivendo sem muitas<br />
perspectivas na Colômbia, Adriana viu-se, em suas palavras,<br />
“perdida”. Dois anos depois, Luís, seu então namorado e atual<br />
marido, conseguiu uma bolsa de estudos para um mestrado<br />
na Universidade de Brasília. Era a chance que eles esperavam<br />
para iniciar uma nova vida. Enquanto ele se dedicava aos estudos,<br />
ela partiu em busca de um emprego. Sem falar português<br />
nem conhecer ninguém na cidade, Adriana carregava<br />
um diploma universitário com o mesmo valor de uma folha<br />
de papel em branco. A saída foi se apegar à única oportunidade<br />
que lhe apareceu: trabalhar como empregada doméstica<br />
para uma família de classe média alta em Brasília. Como o<br />
trajeto entre sua casa, em Taguatinga, e o trabalho era longo<br />
e demorado, aceitou a proposta de dormir na casa dos patrões<br />
durante a semana. De segunda a sexta-feira, o lar de Adriana<br />
era o “quarto de empregada”, essa famigerada instituição<br />
arquitetônica nacional.<br />
“Foi um dos maiores erros da minha vida, fui explorada como<br />
uma escrava. A família tinha quatro filhos e eu virei doméstica<br />
e babá”, conta. Ganhava 900 reais mensais mantendo<br />
uma rotina exaustiva, que se estendia por mais de 12 horas<br />
todos os dias. Tinha direito a 45 minutos de descanso após o<br />
almoço, mas as crianças não a deixavam em paz. Onze meses<br />
depois, o casal avisou que iria viajar e ela teria de cuidar<br />
das quatro crianças no fim de semana. Diante da recusa<br />
de Adriana, que alegou não poder se responsabilizar pelos<br />
menores <strong>–</strong> afinal, havia sido contratada como doméstica, e<br />
não como babá <strong>–</strong>, foi demitida. Sabendo que sua demissão<br />
sem nenhuma compensação financeira era ilegal, procurou<br />
a defensoria pública e, com a ajuda de um advogado, conseguiu<br />
um acordo em que receberia indenização e férias proporcionais<br />
ao período trabalhado. Tendo de recomeçar, ela<br />
imprimiu 50 currículos <strong>–</strong> “Era o que eu podia pagar”, diz<br />
<strong>–</strong> e saiu à procura de uma nova oportunidade.<br />
A rede de restaurantes Outback iria inaugurar uma nova unidade<br />
e estava com 120 vagas abertas. Adriana encarou nove<br />
horas de fila até finalmente conseguir entregar o currículo e,<br />
dois dias depois, foi chamada para uma entrevista. Saiu-se<br />
muito bem, mas, mais uma vez, seu diploma fora ignorado: foi<br />
contratada como auxiliar de cozinha. Nesse período, sofreu<br />
um ataque xenófobo de um colega de trabalho. “Ele falava que<br />
eu deveria voltar para a Venezuela, que eu era ilegal, chavista,<br />
comunista.” Pouco depois, Luís conseguiu um emprego em<br />
São Paulo, e o casal se mudou para a metrópole paulista, já no<br />
fim de 2018. Animada com a nova vida em uma cidade “enorme<br />
e cheia de possibilidades”, concluiu cursos no Sebrae, no<br />
Senac e no Migraflix, uma plataforma de empreendedorismo<br />
gastronômico e cultural voltada para imigrantes e refugiados.<br />
Mas as inúmeras rejeições em processos seletivos e o temperamento<br />
dos habitantes da cidade <strong>–</strong> “Os paulistanos são muito<br />
fechados” <strong>–</strong> desencadearam crises de ansiedade e tristeza.<br />
Para combater a ansiedade e socializar com brasileiros, recorreu<br />
à terapia e voltou a praticar escalada, seu esporte favorito.<br />
Como era muito experiente, foi contratada como monitora da<br />
academia. A estabilidade financeira permitiu que ela incentivasse<br />
seus parentes (mãe, padrasto, irmã e cunhado) a imigrarem<br />
para o Brasil. “Não dá para ficar lá. Faltam empregos,<br />
comida, luz, água, internet, e tem muita violência.” Na zona<br />
oeste da capital paulista, a família abriu o Aromas Café &<br />
Cake, onde também vende as tradicionais arepas venezuelanas,<br />
embora Adriana confesse que hoje prefere a brasileiríssima<br />
tapioca. Segue como monitora de escalada e ainda faz<br />
consultoria de espanhol para uma empresa de RH. Articulada,<br />
comunicativa e dona de um português fluente, Adriana conta<br />
que sempre teve facilidade em se relacionar com as pessoas e<br />
fazer amizades. Gosta de MPB e açaí, dança forró. Questionada<br />
se um dia pretende voltar ao seu país, ela não hesita: “Não.<br />
Minha família está aqui, minha vida está aqui”, diz.<br />
Erick Lira | foto: Giulianno Scotti<br />
Adriana Camargo | foto: arquivo pessoal<br />
<strong>VERÃO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 6 • PÁG. 25<br />
<strong>VERÃO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 6 • PÁG. 24
Sociedade cruel<br />
Longe de ser exceção, a história de<br />
Adriana é apenas mais um entre tantos<br />
casos de xenofobia. “Venezuelanos<br />
sofrem preconceito apenas por serem<br />
venezuelanos; entra toda uma carga de<br />
ignorância política no tratamento que<br />
eles recebem aqui”, explica Marcelo<br />
Haydu, diretor-executivo da ONG Instituto<br />
Adus, que ajuda refugiados a se<br />
integrarem à sociedade brasileira. Ele<br />
conta que, assim como muitos brasileiros,<br />
sempre viu o Brasil como um país<br />
acolhedor, que recebe bem imigrantes<br />
e refugiados. Depois de mais de dez<br />
anos trabalhando com isso, Haydu mudou<br />
sua opinião. “Há esse senso comum<br />
de que somos simpáticos, acolhedores,<br />
mas o Brasil não é esse paraíso. Temos<br />
ainda em nossa sociedade muito racismo,<br />
machismo e xenofobia”, afirma.<br />
Muitos imigrantes que aqui desembarcam<br />
também chegam com essa visão<br />
idílica de estarem entrando em uma<br />
sociedade multicultural e multiétnica,<br />
livre de preconceitos. “Quando eles<br />
passam a se movimentar pela cidade e<br />
melhoram a compreensão dos códigos<br />
culturais e do idioma, percebem que<br />
não é bem assim, que o Brasil pode ser<br />
bem cruel.” Haydu explica que o país é<br />
signatário da Convenção da Organização<br />
das Nações Unidas (ONU) de 1951 e<br />
é obrigado, por lei, a acolher refugiados<br />
<strong>–</strong> pessoas que estão fora de seu país de<br />
origem devido a perseguição por raça,<br />
religião, nacionalidade, pertencimento<br />
a determinado grupo social ou opinião<br />
política, como também devido a grave<br />
violação de direitos humanos e conflitos<br />
armados. Já imigrantes são aqueles<br />
que saem de seu país com o objetivo de<br />
conseguir melhores condições de vida.<br />
Entretanto, apesar de o Brasil ter toda<br />
a legislação para receber refugiados e<br />
imigrantes, o especialista conta que o<br />
país “não tem uma política estruturada<br />
de acolhimento” e “pouco faz além<br />
de conceder o visto e o RNE [Registro<br />
Nacional de Estrangeiros]”. Com ou sem<br />
visto, os refugiados e imigrantes devem<br />
se apresentar à Polícia Federal e<br />
solicitar o RNE. Com esse documento<br />
em mãos, podem pedir uma carteira<br />
de trabalho e abrir conta em banco, por<br />
exemplo. “O papel do Estado brasileiro<br />
praticamente se encerra aqui. Os refugiados<br />
e os imigrantes não têm uma<br />
rede de apoio oficial, e quem faz esse<br />
trabalho são as ONGs, a Acnur [agência<br />
da ONU para refugiados], a Igreja Católica<br />
e setores da sociedade civil.”<br />
Lavi Kasongo | foto: reprodução redes sociais<br />
“Os refugiados e<br />
os imigrantes não<br />
têm uma rede<br />
de apoio oficial,<br />
e quem faz esse<br />
trabalho são as<br />
ONGs, a Acnur<br />
[agência da ONU<br />
para refugiados],<br />
a Igreja Católica<br />
e setores da<br />
sociedade civil”<br />
Marcelo Haydu, diretor-executivo<br />
da ONG Instituto Adus<br />
Tela intitulada Elegância (2021), de Lavi Kasongo |<br />
foto: reprodução redes sociais<br />
Cores brasileiras<br />
“O Brasil mudou a forma como eu vejo as cores”, diz o congolês<br />
Lavi Kasongo. O garoto que adorava desenhar durante a<br />
infância em Kinshasa, capital da República Democrática do<br />
Congo, acabou por seguir a carreira nas artes plásticas. Antes<br />
mesmo de conseguir entrar na Académie des Beaux-Arts<br />
de Kinshasa, Lavi já pintava seus primeiros quadros e muros<br />
nas ruas de Lemba, bairro onde morava. Durante o último<br />
ano da graduação, a delicada situação política de seu país (em<br />
uma guerra civil que se arrasta há quase 20 anos) piorou e ele<br />
se envolveu mais ativamente na resistência política. O então<br />
presidente, Joseph Kabila, controlava as Forças Armadas, ignorava<br />
a Constituição, adiava eleições, reprimia opositores e<br />
assim manteve-se no cargo entre 2001 e 2019.<br />
Nas ruas, Lavi e seus companheiros faziam grafites e pinturas<br />
criticando o governo. Ao ver amigos e colegas universitários<br />
presos e mortos apenas por manifestarem suas opiniões,<br />
decidiu sair do país. Foi para Casablanca, no Marrocos, mas<br />
não conseguiu um visto de permanência, tampouco ter seu<br />
status de refugiado político reconhecido. Soube que o Brasil<br />
aceitava refugiados e, como nutria “simpatia” pelo país, o jovem<br />
de 23 anos resolveu vir para cá. Seu voo pousou em São<br />
Paulo no dia 10 de fevereiro de 2015, dia em que Lavi ouviu,<br />
pela primeira vez na vida, o idioma português. Falando “apenas”<br />
francês e o dialeto lingala, dois dos cinco idiomas oficiais<br />
de seu país, teve muita dificuldade de comunicação. “Muitas<br />
pessoas aqui falam inglês, mas é muito difícil encontrar nas<br />
ruas alguém que entenda e fale francês”, diz.<br />
Lavi só conseguiu se orientar na cidade e na burocracia para<br />
conseguir seus documentos após fazer contato com outros<br />
refugiados africanos e haitianos que falam francês. Sem<br />
conseguir emprego e já sem dinheiro, ele teve de sair da pensão<br />
onde morava, no centro da cidade. “Perdi as esperanças.<br />
Passei por muitas dificuldades, dormi um tempo nas ruas,<br />
sofri muita humilhação e preconceitos. Não gosto nem de me<br />
lembrar dessa época”, conta. Ele vivia de caridade quando foi<br />
localizado pela ONG Estou Refugiado, que o ajudou a conseguir<br />
uma vaga em um albergue comunitário e um emprego.<br />
“Durante quatro anos, trabalhei na agência de publicidade Sotaque<br />
Brasil. Só saí para perseguir meu sonho de ser artista.”<br />
Ingressou na Quanta Academia de Artes, e suas pinturas e<br />
desenhos rapidamente se destacaram pela técnica apurada<br />
e expressividade. Pouco tempo depois, já participava de exposições<br />
individuais e coletivas, inclusive na Pinacoteca do<br />
Estado de São Paulo. Foi descoberto pelos curadores do Sesc,<br />
expôs seus trabalhos e ministrou workshops em várias unidades<br />
da instituição. No Sesc Vila Mariana, na capital paulista,<br />
Lavi foi convidado para pintar um mural de mais de 8 metros<br />
no saguão externo. Segundo ele, no Congo, suas pinturas<br />
tinham menos cores e mais mensagens políticas. “Aqui, meus<br />
trabalhos ficaram mais coloridos”, garante. Hoje, o artista<br />
plástico tem um ateliê na zona leste e integra o projeto Cores<br />
do Mundo, iniciativa da ONG Estou Refugiado, que transforma<br />
espaços cedidos por empresas, como muros, tapumes de<br />
obras e painéis, em grandes pinturas. Casado com uma brasileira,<br />
ele já aprendeu a gostar de arroz com feijão, mas revela<br />
que ainda não consegue acertar o ponto do churrasco.<br />
<strong>VERÃO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 6 • PÁG. 27<br />
<strong>VERÃO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 6 • PÁG. 26
Programa de capacitação para mercado de trabalho do<br />
Instituto Adus | foto: reprodução redes sociais<br />
Cidade cosmopolita e multiétnica<br />
“Pois eu tive fome, e vocês me deram de comer; tive sede, e<br />
vocês me deram de beber; fui estrangeiro, e vocês me acolheram.”<br />
A passagem bíblica (Mateus 25:35) é o lema dos<br />
scalabrinianos, uma congregação de missionários católicos<br />
fundada em 1887 por dom João Batista Scalabrini, em Placência,<br />
na Itália. Essa é a ordem religiosa do padre italiano Paolo<br />
Parisi, coordenador da Missão Paz, em São Paulo. Com sede<br />
no bairro do Glicério, no centro de São Paulo, ele e sua equipe<br />
atendem cerca de 800 pessoas por mês, oferecendo moradia,<br />
alimentação, cursos de português, auxílio jurídico, oficinas de<br />
capacitação profissional e outras ações. Padre Paolo trabalha<br />
com refugiados há mais de 35 anos <strong>–</strong> primeiro no sul da Itália,<br />
depois em Roma <strong>–</strong> e chegou ao Brasil em 2010 para ajudar<br />
seus colegas scalabrinianos. Depois de mais de uma década<br />
aqui, seu sotaque soa familiar e ele poderia muito bem se passar<br />
por um paulistano da Mooca.<br />
O religioso consegue explicar a importância dos imigrantes<br />
e refugiados de forma simples e precisa: “São Paulo é resultado<br />
dessa intensa troca cultural, é uma cidade construída e<br />
formada por imigrantes e seus descendentes. Dá para notar<br />
essa rica mistura na arquitetura, na moda, na culinária e até<br />
na forma como as pessoas se expressam e se relacionam”. E<br />
o mesmo vale para o resto do país, já que, com exceção dos<br />
nativos indígenas, todos os demais brasileiros são descendentes<br />
de escravos trazidos ao país à força ou de imigrantes,<br />
estrangeiros de diferentes nacionalidades que vieram<br />
em uma das diversas ondas migratórias ao longo dos últimos<br />
cinco séculos.<br />
Atualmente, os haitianos constituem o maior contingente de<br />
estrangeiros que a Missão Paz atende. Entre janeiro e outubro<br />
de 2021, foram quase 4 mil. Os venezuelanos aparecem em<br />
segundo, seguidos pelos angolanos. “Neste momento, temos<br />
em nosso abrigo mais de 30 mulheres angolanas, muitas com<br />
crianças.” Há ainda aqueles que nunca deixaram de vir: bolivianos,<br />
paraguaios e peruanos. Convivendo diariamente e<br />
há décadas com imigrantes e refugiados, o padre relata que<br />
enriqueceu como pessoa. “Repensei minha biografia cultural<br />
e pessoal, revi várias coisas e conceitos que julgava importantes,<br />
mas não são. Eu, como padre italiano, vi várias fragilidades<br />
em minha formação humanística e pessoal”, conta. Padre<br />
Paolo diz que mudou até em relação a questões espirituais,<br />
aprendendo a admirar outras religiões. “Tem muita riqueza<br />
e ensinamentos nisso. Acho que me tornei mais humano, no<br />
sentido de ser mais tolerante, mais aberto às diferenças.”<br />
<strong>VERÃO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 6 • PÁG. 29<br />
<strong>VERÃO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 6 • PÁG. 28
Professor nato<br />
Em 2011, o então estudante de linguagem<br />
audiovisual e cinema Mohamad<br />
Alsaheb trabalhava em um popular<br />
canal de televisão infantil em Damasco<br />
quando eclodiu a guerra civil que<br />
dilaceraria a Síria. Enquanto a maioria<br />
de seus familiares fugia para o Egito,<br />
Mohamad partia para Dubai, na esperança<br />
de seguir trabalhando em sua<br />
área e concluir seus estudos. Sem permissão<br />
para permanecer nos Emirados<br />
Árabes, seguiu para Beirute, no Líbano.<br />
Pouco mais de dois anos depois,<br />
novamente sem conseguir regularizar<br />
sua situação, ele teria de deixar o país.<br />
Mohamad já vivia havia três anos<br />
longe de casa quando descobriu que<br />
o consulado brasileiro estava concedendo<br />
vistos a refugiados. Ele queria<br />
ir para a Europa e, como o voo para o<br />
Brasil fazia escala em Paris, resolveu<br />
pegar o visto para tentar ficar na França.<br />
“Não consegui nem sair do aeroporto.<br />
Me colocaram no voo para o Brasil<br />
e cheguei aqui com a roupa do corpo,<br />
um par de tênis e uma mochila.” Seu<br />
conhecimento do país resumia-se ao<br />
trio clichê carnaval-praia-futebol. Não<br />
conseguiu se comunicar com os agentes<br />
da Polícia Federal porque, embora<br />
falasse muito bem inglês, ninguém ali<br />
sabia outro idioma além do português.<br />
“Sozinho, com medo e nervoso, quase<br />
arrumei briga, fui muito maltratado”,<br />
recorda-se. Em São Paulo, ele morou<br />
em abrigos comunitários e passou<br />
oito meses procurando emprego, sem<br />
sucesso. Para se manter ocupado, tornou-se<br />
instrutor voluntário de inglês<br />
na própria ONG em que estudava português,<br />
o Instituto Base Gênesis. “Eu<br />
nunca tinha dado aulas, mas me encontrei<br />
como professor”, explica.<br />
Foi contratado como professor de inglês<br />
na ONG Abraço Cultural, onde<br />
era incentivado a também oferecer<br />
aulas a alunos interessados em aprender<br />
árabe. Quatro anos depois, Mohamad<br />
inaugurava sua própria escola<br />
de caligrafia e língua árabe, no centro<br />
de São Paulo. “O estudante de árabe é<br />
diferente da pessoa que estuda inglês.<br />
Ninguém aprende árabe porque é necessário<br />
ou o trabalho exige. Estudam<br />
porque querem, se interessam mesmo<br />
pela língua e pela cultura”, relata. Na<br />
busca por um imóvel para instalar sua<br />
escola, o novo empreendedor deparou-se<br />
com diferenças culturais. “Nós,<br />
árabes, gostamos de negociar tudo,<br />
até na compra de um lanche nas ruas.<br />
No Brasil, vale o preço anunciado.” Por<br />
causa do hábito de sempre oferecer<br />
contrapropostas, chegou a perder bons<br />
contratos de locação.<br />
Quando ele finalmente conseguiu<br />
alugar um espaço e se estabelecer, a<br />
pandemia o obrigou a fechar a escola.<br />
Versado em tecnologia, adaptou rapidamente<br />
seus cursos para o modelo<br />
online. Apostando nas redes sociais <strong>–</strong><br />
e também graças à propaganda boca a<br />
boca de seus estudantes <strong>–</strong>, sua escola<br />
cresceu em um período em que muitos<br />
negócios faliram. Hoje, Mohamad tem<br />
mais de 200 alunos em todo o Brasil e<br />
no exterior, e ele teve de contratar outros<br />
quatro professores. “Meus alunos<br />
são médicos, advogados e empresários<br />
descendentes de sírios e libaneses, estudantes<br />
e professores da USP, jogadores<br />
de futebol que estão em países<br />
árabes e outros interessados”, explica.<br />
Comunicativo e inquieto, fechou<br />
parceria com a Câmara de Comércio<br />
Árabe-Brasileira para ensinar funcionários<br />
de empresas nacionais que têm<br />
contatos com países árabes. E, enquanto<br />
esperava a volta das aulas presenciais,<br />
Mohamad instalou uma churrasqueira,<br />
uma grande mesa e cadeiras na<br />
área externa da escola, ansiando por<br />
confraternizar com seus alunos.<br />
Mohamad Alsaheb | foto: reprodução redes sociais<br />
<strong>VERÃO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 6 • PÁG. 31<br />
<strong>VERÃO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 6 • PÁG. 30
“Conheço médicos bolivianos<br />
trabalhando na costura, arquitetos<br />
africanos varrendo ruas. Todos<br />
os trabalhos são dignos, mas ver<br />
pessoas assim sendo desperdiçadas<br />
é uma perda enorme de capital<br />
humano qualificado”<br />
Padre Paolo Parisi, coordenador da instituição Missão Paz<br />
Dados sobre refugiados e imigrantes no Brasil<br />
Há 57.099<br />
pessoas<br />
refugiadas<br />
legalmente<br />
reconhecidas<br />
pelo Brasil<br />
Entre 2011 e<br />
2019, o Brasil<br />
recebeu<br />
1.085.673<br />
imigrantes<br />
de diversas<br />
nacionalidades<br />
O país tem<br />
ainda 193 mil<br />
solicitantes<br />
de refúgio<br />
aguardando<br />
uma resposta<br />
oficial<br />
A maior parte,<br />
142 mil, é de<br />
venezuelanos<br />
Difícil adaptação<br />
Com sua experiência no acolhimento,<br />
padre Paolo ressalta que o choque cultural<br />
varia de acordo com a origem do<br />
recém-chegado. Há variáveis sociais<br />
e culturais envolvidas e, claro, cada<br />
pessoa reage de um jeito às mudanças,<br />
mas há alguns traços em comum.<br />
Por exemplo: colombianos e peruanos<br />
costumam sentir menos a mudança;<br />
bolivianos são geralmente reservados<br />
e mantêm a convivência entre seus<br />
conterrâneos, já possuem uma grande<br />
colônia em São Paulo; angolanos já falam<br />
português, o que ajuda bastante no<br />
processo de adaptação; muitos sírios<br />
têm ensino superior, mas demoram a<br />
se encaixar por causa da língua e dos<br />
costumes. E assim por diante.<br />
“Para os imigrantes e refugiados, trabalho<br />
e moradia são os maiores desafios”,<br />
detalha o padre. E, nesse processo<br />
de busca por uma casa e emprego,<br />
vários talentos são desperdiçados.<br />
“Conheço médicos bolivianos trabalhando<br />
na costura, arquitetos africanos<br />
varrendo ruas. Todos os trabalhos são<br />
dignos, mas ver pessoas assim sendo<br />
desperdiçadas é uma perda enorme de<br />
capital humano qualificado.” E, mesmo<br />
quando conseguem um emprego,<br />
as imobiliárias impõem condições que<br />
eles não conseguem cumprir, como<br />
conseguir um fiador ou a necessidade<br />
de um depósito antecipado de três<br />
meses de aluguel. Além disso, há a burocracia<br />
brasileira, outra famigerada<br />
instituição nacional. “Regularizar a situação<br />
de um refugiado é complicado<br />
e leva muito tempo. Para um imigrante<br />
se regularizar, esse processo é quase<br />
impossível”, diz o padre italiano, que<br />
espera há meses por um horário na<br />
Polícia Federal para renovar seu visto<br />
de permanência.<br />
Mas, otimista “por fé e por opção”, padre<br />
Paolo segue seu trabalho. “Tem<br />
um Brasil que acolhe e ajuda, e tem<br />
um grupo menor, xenófobo, racista.<br />
Os que acolhem trabalham mais e são<br />
silenciosos; os preconceituosos estão<br />
em menor número, mas são mais barulhentos”,<br />
constata. Andando pelo<br />
centro de São Paulo, é possível passear<br />
pela diversidade cultural e presença<br />
estrangeira. São asiáticos, sul-americanos,<br />
africanos, árabes convivendo<br />
com brasileiros de diversas partes do<br />
país. “Essas influências vão se enraizar<br />
e se misturar ainda mais”, prevê o padre.<br />
“Não temos ainda noção de como<br />
será São Paulo e o Brasil depois das ondas<br />
migratórias atuais. Estamos construindo<br />
o futuro hoje.” E, esperamos,<br />
esse futuro será construído à base de<br />
tolerância e empatia.<br />
Obs.: os números referem-se apenas aos imigrantes legais. Não há estimativa oficial do número de imigrantes ilegais no país.<br />
Fontes:<br />
6ª edição do relatório “Refúgio em<br />
Números” (2020), do Comitê Nacional<br />
para os Refugiados (Conare), e Dados<br />
Consolidados da Imigração no Brasil<br />
(2020), do Ministério da Justiça.<br />
Serviço<br />
Aromas Café & Cake<br />
Instagram: @aromascafe46<br />
Rua Caraíbas, 46, Perdizes,<br />
São Paulo, SP<br />
WhatsApp: (11) 95978-6122<br />
Centro de Língua Árabe<br />
www.centroarabe.com.br<br />
R. Afonso de Freitas, 45,<br />
conj. 01, Paraíso, São Paulo, SP<br />
Telefone/WhatsApp:<br />
(11) 93009-9689<br />
Lavi Kasongo<br />
Instagram: @lavikasongo<br />
E-mail: kasongolavi@gmail.com<br />
Telefone: (11) 95999-0933<br />
Instituto Adus<br />
www.adus.org.br<br />
Missão Paz<br />
www.missaonspaz.org<br />
<strong>VERÃO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 6 • PÁG. 33<br />
<strong>VERÃO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 6 • PÁG. 32
[GENTE COM BOSSA]<br />
Imagem: Getty Images<br />
Ponto fora<br />
da curva<br />
Convencional é uma palavra quase esquecida no vocabulário<br />
das quatro personalidades retratadas na seção Gente com<br />
Bossa. Ideias inovadoras e soluções inusitadas são parte da<br />
rotina desses profissionais que, como muitas pessoas que não<br />
se deixam intimidar pelo status quo, criam novos conceitos,<br />
elaboram novas conexões e buscam novas referências para<br />
driblar o convencional. As histórias que a Et cetera apresenta<br />
nas próximas páginas comprovam que o pensamento inovador<br />
não requer um ambiente propício para se manifestar. Na<br />
cozinha, na escola, diante de uma plateia, à frente do computador<br />
ou no quintal, sob uma “chuva azul”, há sempre espaço<br />
para as ideias pouco (ou nada) convencionais.<br />
Quando desembarcou no Rio pela primeira vez, em 1979,<br />
Claude Troisgros sentiu um cheiro descrito por ele como “calor<br />
úmido, mar, maresia”. Se os ares cariocas mudaram para<br />
sempre o jovem cozinheiro francês, o mesmo se pode dizer<br />
de sua influência na gastronomia nacional. O chef começou<br />
revolucionando o menu do restaurante que assumiu, com a<br />
decisão de incorporar ingredientes brasileiríssimos à cozinha<br />
francesa. Não demorou para que jabuticabas, maracujás e<br />
outras iguarias tropicais transformassem receitas convencionais<br />
em pratos da alta gastronomia brasileira. O chef foi<br />
parar na TV e conquistou, definitivamente, seus quase compatriotas<br />
com o carisma e o talento que nunca lhe faltaram.<br />
Na vida da filósofa, psicanalista, poeta e atriz Viviane Mosé<br />
não cabem rótulos caretas. A capixaba que dá palestras<br />
transformadoras despista rígidos padrões preestabelecidos<br />
para incorporar sentido poético à filosofia, psicologia à<br />
poesia, filosofia às artes cênicas... Há dois anos, atenta às<br />
reivindicações feministas que buscam a igualdade entre os<br />
gêneros, resolveu mudar o nome de seu livro O Homem Que<br />
Sabe, em que promove uma análise nietzschiana da evolução<br />
da humanidade da maneira que ela melhor sabe fazer, levando<br />
conteúdo filosófico para além do universo acadêmico. A<br />
publicação traz na capa agora o título A Espécie Que Sabe, uma<br />
forma de interromper um poder masculino que se perpetua<br />
na linguagem.<br />
Tiago da Cal Alves, carioca conhecido no showbiz como Papatinho,<br />
ajudou a redefinir o papel do produtor musical. Começou<br />
vendendo CDs com coletâneas de músicas que ele gravava<br />
e vendia aos amigos na escola, mas o empreendimento<br />
logo ganharia novos contornos com a veia inovadora do produtor<br />
nato. Uniu batidas dançantes a samples perfeitos para<br />
produzir as próprias músicas em vez de utilizar composições<br />
de outros artistas. Coautor de inúmeros sucessos, do funk ao<br />
pop, um dos mais requisitados produtores musicais do país<br />
mistura estilos, abusa da versatilidade e deixa sua assinatura<br />
em todos os seus trabalhos.<br />
Poucas crianças absorvem tantos sentimentos e emoções<br />
de meras roupas penduradas no varal como fazia a artista<br />
plástica paulista Sandra Cinto. Do tecido que desbotava do<br />
uniforme molhado do pai pingavam gotas azuis no chão do<br />
quintal de casa, uma chuva azulada que mexia com a imaginação<br />
da menina. As recordações de infância ainda vivem em<br />
suas grandes paisagens de céu e mar produzidas em paredes<br />
de dezenas de metros quadrados com... tinta e pincel? Não. A<br />
artista usa canetas de ponta fina em um trabalho meticuloso<br />
que resulta em belíssimas obras de arte. Seus trabalhos já<br />
foram expostos em diversos espaços culturais do mundo ao<br />
longo de suas três décadas de carreira.<br />
Claude Troisgros, Viviane Mosé, Papatinho e Sandra Cinto<br />
sabem que mexer em time que está ganhando pode dar um<br />
gás extra à equipe. E eles jogam pra vencer de goleada.<br />
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<strong>VERÃO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 6 • PÁG. 34
Nome: Claude Jean Baptiste Troisgros<br />
Idade: 65 anos<br />
Profissão: cozinheiro e apresentador de televisão<br />
Cidade onde nasceu: Roanne/França<br />
Meio<br />
brasileiro,<br />
moitié<br />
français<br />
Por Mariana Amaro<br />
Em 1979, o chef Claude Troisgros<br />
desembarcou no Brasil para viver um “sonho<br />
tropical”. Quatro décadas depois, um dos<br />
mais importantes nomes da gastronomia<br />
nacional fala francês com sotaque brasileiro<br />
Foto: reprodução mídias sociais<br />
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“O<br />
que é que há, pois, num nome?”, questionou William<br />
Shakespeare na tragédia Romeu e Julieta. Para Claude<br />
Troisgros, havia muita pressão. O chef francês cheio<br />
de bossa carrega um sobrenome que, muito antes de se tornar<br />
conhecido entre os brasileiros, já era célebre na Europa,<br />
especialmente em uma pequena cidade chamada Roanne, a<br />
menos de 100 quilômetros de Lyon, a capital gastronômica<br />
francesa. Era ali que o sobrenome estampava a entrada do<br />
restaurante agraciado com três estrelas do Guia Michelin <strong>–</strong> a<br />
mais alta nota do guia turístico publicado desde 1900. E foi<br />
na cozinha daquele prestigiado restaurante que Claude Jean<br />
Baptiste Troisgros cresceu, testou seus primeiros pratos e recebeu,<br />
aos 23 anos, uma proposta que mudaria sua vida: a<br />
chance de comandar uma cozinha no Brasil.<br />
O convite ocorreu em 1979. De lá para cá, o cozinheiro ajudou<br />
a mudar a forma como os ingredientes brasileiros estão<br />
inseridos na alta gastronomia; abriu pelo menos uma dezena<br />
de restaurantes (e fechou alguns); tornou-se dono do grupo<br />
Troisgros, que conta com as casas Chez Claude, CT Brasserie,<br />
CT Boucherie e Le Blond (além de uma sociedade com o Do Batista);<br />
ficou famoso no Brasil por seus programas de televisão;<br />
e transformou seu sotaque frrrrancês em marca registrada.<br />
A história de Claude se confunde com a história da própria<br />
gastronomia. Ele pertence a uma família que revolucionou a<br />
cozinha francesa e, consequentemente, a culinária mundial.<br />
O avô Jean-Baptiste Troisgros era um “homem de salão”,<br />
como eram chamados os grandes conhecedores de vinhos<br />
que dominavam a arte de receber pessoas. Casado com Marie<br />
Badaut, uma cozinheira de mão cheia, Jean-Baptiste decidiu<br />
mudar a forma como a comida era servida no restaurante do<br />
casal. Originalmente, e em todos os restaurantes franceses,<br />
a comida era oferecida em uma bandeja para que o próprio<br />
cliente se servisse. Para valorizar o trabalho de Marie, que<br />
comandava a cozinha, ele sugeriu que ela montasse os pratos<br />
lá mesmo, antes de entregá-los aos clientes. Na época, o<br />
restaurante Troisgros foi bastante criticado pelo novo jeito de<br />
servir, mas ele acabou adotado pela grande maioria dos estabelecimentos<br />
mundo afora.<br />
Jean-Baptiste e Marie tiveram três filhos: Jean, Pierre (pai de<br />
Claude) e a caçula Madeleine. Os dois meninos começaram a<br />
trabalhar cedo na cozinha do restaurante e logo se tornaram<br />
chefs. Pierre se casou com Olympia, uma cozinheira italiana<br />
que tinha sua própria história entre as panelas. Quando<br />
criança, ela fora capturada por oficiais alemães quando a<br />
família tentava escapar da Itália durante a Segunda Guerra.<br />
O pai foi mandado para um campo de concentração, mas a<br />
menina, a mãe e o irmão escaparam do destino trágico porque<br />
um oficial alemão levou a mãe de Olympia para trabalhar<br />
como cozinheira em sua casa. Quando a guerra acabou, o trio<br />
fugiu para a França, onde Olympia virou Olympe <strong>–</strong> o mesmo<br />
nome que batizaria o mais longevo dos empreendimentos<br />
culinários de Claude.<br />
“Meu prato afetivo é o nhoque com molho de<br />
tomate da minha avó italiana. Ela deixava o molho<br />
cozinhando por horas, e esse perfume ficou<br />
guardado pra sempre na memória”<br />
A infância na cozinha<br />
Por causa de suas inúmeras possibilidades de acidente, crianças<br />
não costumam ser bem-vindas à cozinha. Para Claude,<br />
nascido em abril de 1956, a realidade era outra. “Cresci fazendo<br />
as refeições na cozinha do restaurante e vendo meu pai e meu<br />
tio trabalharem”, conta. A família, composta de 12 pessoas,<br />
entre adultos e crianças (e um cachorro), vivia, literalmente,<br />
dentro do restaurante. Em cima do salão, para ser mais exato.<br />
Suas memórias de infância são bem diferentes do funcionamento<br />
atual de um estabelecimento comercial. Naquela<br />
época, os cozinheiros tinham de acender o carvão do fogão<br />
bem cedo e receber fornecedores que vinham entregar alimentos,<br />
como os apanhadores de cogumelos e os caçadores<br />
que traziam lebres e outras caças ainda vivas. Mas, apesar<br />
de conviver desde o ventre materno com a culinária francesa,<br />
Claude atribuiu à cozinha italiana o status de comfort food.<br />
“Meu prato afetivo é o nhoque com molho de tomate da minha<br />
avó italiana. Ela deixava o molho cozinhando por horas, e esse<br />
perfume ficou guardado pra sempre na memória”, lembra.<br />
Como os pais de Claude trabalhavam juntos no restaurante,<br />
o garoto passava muito tempo com a avó materna. “Ela<br />
cuidou da família inteira”, diz. O nhoque da avó acabou incorporado<br />
ao cardápio de um dos restaurantes que Claude<br />
inauguraria muitos anos depois. “Nunca aprendi a dominar<br />
totalmente os segredos da culinária italiana, mas via minha<br />
avó realizar suas preparações. Foi uma grande influência<br />
na minha formação”, diz.<br />
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O clã Troisgros | foto: reprodução redes sociais
Destino entre as panelas<br />
Claude sabia que seu futuro estava na cozinha. Prova disso é<br />
que, aos 6 anos, assinou “contrato” com o renomado chef Paul<br />
Bocuse, amigo da família, se comprometendo a passar por um<br />
estágio no restaurante dele. E a promessa se cumpriu 11 anos<br />
depois. Bocuse era o estereótipo do chef que grita, atira panelas<br />
e aumenta ainda mais a pressão no ambiente quase explosivo<br />
de uma cozinha profissional. A amizade entre o chef e<br />
os Troisgros não garantia nenhuma regalia: Claude começou<br />
descascando batatas, como a maioria dos novatos, e, quando<br />
cometia um deslize, como enviar o prato na temperatura errada<br />
para o salão, era mandado para a confeitaria <strong>–</strong> enrolar<br />
massa folhada era a punição para quem errava.<br />
Nesse período, Claude viu de perto o nascimento do movimento<br />
chamando nouvelle cuisine française, capitaneado por<br />
Bocuse, Jean e Pierre Troisgros e outros cerca de 15 cozinheiros,<br />
que pregava uma espécie de evolução na maneira de<br />
cozinhar, valorizando pequenos produtores locais, alimentos<br />
frescos e adaptando o cardápio às estações. “Todos os movimentos<br />
que vieram depois, como fusion cuisine e cozinha molecular,<br />
foram baseados na nouvelle cuisine française”, explica.<br />
Após a temporada com o “general” das panelas, Claude foi<br />
convocado para o serviço militar obrigatório. O sobrenome<br />
famoso se mostrou uma vantagem na ocasião: Claude foi<br />
destacado como chef da residência do almirante. A experiência<br />
foi seguida por uma viagem a diversos países, trabalhando<br />
enquanto conhecia outras culturas, antes de voltar<br />
para Roanne e o restaurante da família. Alguns meses depois,<br />
enquanto preparava o serviço do dia na cozinha, Claude ouviu<br />
o pai dizer que um famoso restaurante francês abriria uma<br />
filial no Rio de Janeiro. Eles estavam buscando um chef para<br />
tocar a cozinha durante dois anos. “Alguém se habilita?”, perguntou<br />
Troisgros pai. “Eu!”, respondeu o filho.<br />
Ao embarcar para o Brasil, no fim de 1979, o jovem Claude<br />
não sabia nada sobre o país: achava que a Amazônia ficava<br />
no Rio de Janeiro e não sabia que aqui se falava o português,<br />
mas estava certo de que viveria um “sonho tropical”. E, claro,<br />
o salário (em dólar) compensaria. Chegou ao Rio de Janeiro<br />
em um dia particularmente quente. Ao sair do avião, sentiu<br />
o cheiro que permanece gravado em sua memória até hoje,<br />
descrito por ele como “calor úmido, mar, maresia”. Logo no<br />
primeiro dia no Le Pré Catelan, cuja cozinha comandaria, conheceu<br />
Marlene Pereira da Silva, com quem se casaria e teria<br />
seus dois filhos, Thomas e Carolina.<br />
Claude e Batista | foto: Victor Pollak - divulgação Globo<br />
Fincando a bandeira<br />
Da esquerda para a direita: Paul Bocuse, Pierre Troisgros, Jacques Pic, Georges Blanc e<br />
Alain Chapel, em Alpe d’Huez, em 1983 | foto: Edmond Pinaud/AFP<br />
Com a inauguração do Le Pré Catelan,<br />
o Rio de Janeiro ganhava seu primeiro<br />
restaurante verdadeiramente francês,<br />
apesar de toda a dificuldade em conseguir<br />
mão de obra especializada e,<br />
principalmente, adquirir ingredientes.<br />
“Não havia azeite, manteiga, creme de<br />
leite com a qualidade a que estávamos<br />
acostumados na Europa”, conta Claude.<br />
Passou três meses tentando encontrar<br />
os produtos com os quais estava<br />
habituado a trabalhar na França, até<br />
o dia em que ligou para o chef que o<br />
havia contratado (e que assinava o cardápio<br />
do restaurante) e sugerir mudar<br />
o menu, a fim de incorporar os ingredientes<br />
locais, como seu pai o havia ensinado<br />
a fazer.<br />
Não foi um processo simples. Muitos<br />
clientes reclamaram, mas, aos poucos,<br />
Claude desenvolveu sua própria versão<br />
de uma culinária franco-brasileira.<br />
O kir royal, drinque que mistura licor<br />
de cassis com espumante, ganhou licor<br />
de jabuticaba e foi rebatizado para<br />
Jabukir. Pato com laranja virou pato<br />
com maracujá, purê de castanhas portuguesas<br />
foi substituído por purê de<br />
feijão-branco. E assim, com carta branca<br />
do chefe para criar e adaptar o cardápio,<br />
Claude foi firmando seu nome<br />
no Brasil. Lá fora, no entanto, continuava<br />
sendo apenas o filho, sobrinho e<br />
neto de grandes chefs.<br />
Ao final dos dois anos do contrato com<br />
o Le Pré Catelan, Claude abriu um restaurante<br />
em Búzios, que só recebia<br />
clientes aos fins de semana. Decididos<br />
a voltar para o Rio, ele e a esposa<br />
venderam tudo <strong>–</strong> um carro velho e algumas<br />
joias <strong>–</strong>, juntaram 5 mil dólares<br />
e alugaram um espaço de 30 metros<br />
quadrados no Leblon, onde cabiam 18<br />
banquinhos ao redor de seis mesas. O<br />
restaurante levava o nome da cidade de<br />
Claude: Roanne.<br />
No segundo dia após a inauguração,<br />
dois clientes contaram ao chef que<br />
haviam entrado por causa do nome<br />
do restaurante. Afirmaram ser fãs de<br />
um restaurante localizado em Roanne,<br />
chamado Troisgros. Para não envergonhar<br />
a família com seu acanhado estabelecimento,<br />
Claude respondeu apenas<br />
que havia nascido na cidade, sem<br />
revelar que também era um Troisgros.<br />
A dupla elogiou a comida e saiu com a<br />
promessa de indicar o local aos amigos.<br />
Os clientes eram José Bonifácio<br />
de Oliveira Sobrinho, o Boni, executivo<br />
da Rede Globo de Televisão, e Armando<br />
Nogueira, diretor de jornalismo da<br />
emissora. No dia seguinte, havia fila na<br />
porta do Roanne. E, pouco tempo depois,<br />
bateria à porta um rapaz franzino<br />
chamado João Batista Barbosa de Souza,<br />
se oferecendo para ajudar na cozinha.<br />
Foi assim que entrou na vida de<br />
Claude o “Batiiiista”, que acompanha<br />
o chef até hoje nos empreendimentos<br />
gastronômicos e na televisão.<br />
<strong>VERÃO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 6 • PÁG. 41<br />
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Passada de bastão (ou<br />
de panelas)<br />
Com os filhos, Thomas e Carolina | foto: arquivo pessoal<br />
Novos sonhos<br />
Com o sucesso do Roanne, Claude decidiu<br />
apostar em um espaço maior.<br />
Abriu o Claude Troisgros, no Jardim<br />
Botânico, que depois mudaria de nome<br />
para Olympe (em homenagem à mãe),<br />
que conquistou uma estrela no Guia<br />
Michelin. Mas Claude tinha planos mais<br />
ousados: ele queria chegar a Nova<br />
York. Em 1994, deixou o Olympe sob<br />
os cuidados de Batista e foi firmar seu<br />
nome no cenário internacional, que<br />
vivia o começo da fusion cuisine, inaugurando<br />
o CT em Manhattan. “Estava<br />
cheio de restaurante franco-oriental,<br />
franco-tailandês. Cheguei com um<br />
franco-brasileirrro.” E o CT foi um<br />
sucesso imediato, com fila na porta.<br />
“Em um mundo de cozinheiros imitadores,<br />
ele é único”, escreveu o crítico<br />
do jornal The New York Times sobre<br />
o chef recém-chegado.<br />
Claude deixava, assim, de ser apenas<br />
o parente de grandes chefs e passou a<br />
ser reconhecido por sua gastronomia<br />
mundialmente. Dois anos depois, os<br />
investidores venderam o restaurante<br />
nova-iorquino, e Claude decidiu voltar<br />
para o lugar que ele já considerava seu<br />
lar. Foi recebido no Brasil com o carinho<br />
de um filho que retorna à casa e<br />
com uma ideia na cabeça: trabalhar<br />
na televisão. Durante a temporada nos<br />
Estados Unidos, ele percebeu a enorme<br />
quantidade de programas de TV<br />
sobre alta gastronomia. “Participei de<br />
alguns programas lá e vi que gostava<br />
disso”, diz. Muito bem relacionado,<br />
conseguiu o contato de produtores<br />
no GNT, e em 2004 estreou o quadro<br />
Adivinha o Que Tem para o Jantar em um<br />
programa de variedades no canal. Era<br />
o início de uma parceria de sucesso.<br />
Depois viriam o Menu Confiança, com o<br />
jornalista Renato Machado, os programas<br />
da série Que Marravilha! e o reality<br />
show Mestres do Sabor. “E lá se vão 16<br />
anos na televisão. Hoje, me vejo como<br />
um cozinheiro que virou apresentador.<br />
Vou ser sempre um cozinheiro”, diz.<br />
Como preparação para entrar no universo<br />
da TV, fez sessões de fonoaudiologia,<br />
mas a ideia nunca foi acabar<br />
com o sotaque, sua marca registrada.<br />
“Queria apenas trabalhar a voz. Isso<br />
é importante para a televisão”, acalma<br />
Claude. Quando visita a família na<br />
França, leva consigo outro sotaque.<br />
“Minha família diz que falo com sotaque<br />
brasileiro. O incrível é que não sinto<br />
isso”, garante.<br />
Assim como o pai famoso, Thomas e<br />
Carolina cresceram em meio às panelas.<br />
Thomas mostrou, desde cedo, o<br />
interesse em seguir a profissão da família<br />
e foi estudar e trabalhar na área.<br />
Carolina optou pelo lado da administração<br />
e marketing de restaurantes.<br />
Aos poucos, Thomas foi assumindo a<br />
cozinha até se tornar chef do Olympe.<br />
Para dar espaço ao filho, Claude deixou<br />
a casa principal e voltou às origens:<br />
abriu o Chez Claude, um restaurante<br />
intimista, com 80 metros quadrados<br />
e uma cozinha no meio do salão, ao<br />
lado de onde ficava o Roanne. Com a<br />
pandemia, o estrelado Olympe acabou<br />
fechando as portas. “Eu sempre digo<br />
que nos momentos difíceis a gente tem<br />
que tirar a melhor lição, ser criativo e<br />
humilde para aprender com os acontecimentos.<br />
Foi assim na pandemia. O<br />
Olympe estava sob o comando do meu<br />
filho Thomas. Ele optou por fechar e eu<br />
respeitei a decisão dele”, diz.<br />
Quando está fora da cozinha, Claude<br />
gosta de praticar esportes variados: de<br />
trilhas e parapente a mergulho e kitesurf.<br />
E ama viajar, principalmente com<br />
sua moto. “Meu sonho de vida é dar a<br />
volta ao mundo. Quero largar tudo e<br />
me mandar, sem data de volta”, diz. O<br />
chef também tem seu lado músico: estudou<br />
saxofone por dez anos. Embora<br />
tenha aprendido a técnica, não consegue<br />
tocar bem porque lhe falta, como<br />
ele mesmo diz, “ouvido”. Sem a audição<br />
aguçada, Claude diz que tem a “boca<br />
perfeita”, que lhe permite sentir o<br />
Que dica daria ao jovem Claude:<br />
equilíbrio entre os sabores com sensibilidade.<br />
É isso, segundo ele, que separa<br />
um bom cozinheiro daqueles extraordinários.<br />
Para Claude, sensibilidade<br />
e técnica são as duas características<br />
mais importantes para um chef. Ele<br />
acredita que, assim como qualquer outro<br />
profissional, um cozinheiro precisa<br />
estar se aprimorando constantemente,<br />
repetindo as receitas, melhorando a<br />
prática por décadas enquanto lida com<br />
muito calor, pressão, trabalho pesado e<br />
horas em pé.<br />
Após quatro décadas no Brasil, Claude<br />
identifica uma revolução no paladar<br />
dos brasileiros nos últimos anos. Mas<br />
faz um alerta acerca da formação dos<br />
futuros profissionais <strong>–</strong> a gastronomia<br />
estava entre os dez cursos de graduação<br />
tecnológica mais buscados na<br />
rede privada em 2019. Para ele, não<br />
basta ser criativo na cozinha, é preciso<br />
também “saber fazer um bom caldo<br />
de frango”. Ele critica tanto as escolas<br />
quanto os alunos que têm como objetivo<br />
formar ou ser chefs, perdendo de<br />
vista o ofício de cozinheiro. “Chef é um<br />
posto, uma função, como a de general.<br />
Chegar lá depende de muitos fatores”,<br />
afirma. Para ele, ser um chef é uma<br />
conquista que vem com muitos anos de<br />
cozinha, e inclui noções de administração,<br />
relacionamento pessoal, conhecimento<br />
para fazer boas compras, saber<br />
escolher produtos e fornecedores e,<br />
claro, comandar uma equipe. Tudo o<br />
que esse carioca nascido na França faz<br />
marrrravilhosamente bem.<br />
“Ser um chef é uma conquista que vem com<br />
muitos anos de cozinha. Se quer chegar lá, é<br />
preciso começar treinando muito na cozinha”<br />
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<strong>VERÃO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 6 • PÁG. 42
Nome: Viviane de Souza Mosé<br />
Idade: 57 anos<br />
Profissão: filósofa, poeta, psicóloga, psicanalista<br />
Cidade onde nasceu: Vitória/ES<br />
“A vida é<br />
conflito”<br />
Por Daniela Macedo<br />
A filósofa e psicanalista Viviane Mosé<br />
tem arte correndo nas veias desde<br />
a infância: é poeta, atriz e assina a<br />
autoria de canções em parceria com<br />
a sambista Mart’nália<br />
Foto: divulgação<br />
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Lugar de fala<br />
“A felicidade é uma ideia idiota. A vida é luta, é conflito<br />
que nos faz crescer, que nos faz aprender. É um lugar<br />
de aprendizado, de expansão de si. Nós estamos em<br />
expansão, junto com o Universo, e expandir dói”<br />
A<br />
filósofa, poeta e psicóloga Viviane Mosé resume de<br />
maneira brilhante o sentido da vida: para ela, a razão<br />
de viver seria justamente aprender a lidar com a vida.<br />
Aos 57 anos, a pensadora que traz ciência e arte na bagagem<br />
entende que viver não deve ser uma eterna busca pela felicidade.<br />
E ela não recorre a discursos empolados para enterrar<br />
o ideal de vida feliz. Vai direto ao ponto: “A felicidade é uma<br />
ideia idiota. A vida é luta, é conflito que nos faz crescer, que<br />
nos faz aprender. É um lugar de aprendizado, de expansão<br />
de si. Nós estamos em expansão, junto com o Universo, e expandir<br />
dói”.<br />
Ao longo do último ano, Viviane mergulhou fundo na dor. No<br />
início de 2021, seu casamento de quase seis anos com a economista<br />
Eduarda La Rocque terminou abruptamente. “Levei<br />
um fora, fui mandada embora”, resume. Viviane teve de sair<br />
de casa e viu ruir, no auge da pandemia, uma estrutura familiar<br />
que escorava sua saúde mental. “Foi muito inesperado, e<br />
eu sustento a minha vida na minha casa. Tenho um poema<br />
que diz ‘A casa é o corpo que me sustenta quando o meu próprio<br />
me falta’.” A separação na vida pessoal não interrompeu<br />
a convivência, já que ambas são sócias na Usina Pensamento,<br />
uma empresa de produção de conteúdo e editora de livros, o<br />
que deixa a experiência ainda mais dolorosa, como sabe qualquer<br />
pessoa que já levou um fora. Entre os vários projetos desenvolvidos<br />
em parceria <strong>–</strong> antes e depois da separação <strong>–</strong> está<br />
o livro Política: Nós Também Sabemos Fazer, que a dupla produziu<br />
ao lado dos professores Clóvis Barros de Filho e Oswaldo<br />
Giacoia Junior.<br />
O sofrimento da separação é o tema de seu novo livro, ainda<br />
sem título definido. Viviane pretende explorar um sentimento<br />
real por meio de uma obra de ficção. “É preciso demonstrar<br />
respeito e carinho por casais que se separam. A gente trata o<br />
amor como se fosse frescura, diz ‘Ah, tá sofrendo por amor,<br />
não é nada’. Mas é um luto terrível”, diz. Assim como fala<br />
abertamente sobre um assunto tão pessoal, a filósofa pretende<br />
transmitir as lições que tirou de seu próprio luto. “Estou<br />
entrando na terceira idade como uma criança. Com rugas,<br />
sim, mas me sinto uma criança. Eu fui ao fundo do meu poço<br />
e saí com uma energia incrível pra carregar o mundo nas costas,<br />
se for preciso.”<br />
A filósofa teve de aprender a lidar<br />
com intempéries relacionadas à saúde<br />
mental logo na infância. Ainda antes<br />
de completar 10 anos de idade, já<br />
manifestava uma hipersensibilidade<br />
emocional e corporal, característica<br />
percebida pela família e pela própria<br />
Viviane. “Todos temos uma ferida na<br />
alma, esta é a minha. Sinto tudo o tempo<br />
todo, este poema me define bem:<br />
Não tenho pele / Tudo me fere / Sofro<br />
de carne viva / De carne vida eu sofro<br />
/ De vida”, explica. Essa hipersensibilidade<br />
ganhou nome, décadas depois,<br />
nos consultórios de analistas e psicanalistas:<br />
transtorno de personalidade<br />
limítrofe, também conhecido como<br />
borderline. “Quando eu falo de luta psíquica,<br />
eu sei do que estou falando. Sinto<br />
dores imensas até hoje, então falo de<br />
cadeira, não levianamente”, afirma.<br />
Com o tempo, aprendeu a transformar<br />
a dor em ação. “Primeiro: eu não<br />
fujo do sofrimento; eu vou nele, e sofro<br />
mesmo. Naquele momento, parece<br />
que a vida acaba, mas o sofrimento<br />
sempre passa”, ensina. E complementa<br />
com outra lição valiosa: “Não culpe<br />
ninguém. O sofrimento é sempre seu.<br />
Isto é maturidade: aprender a lidar<br />
com a frustração”. Aqui, mais uma<br />
vez, Viviane ilustra a teoria com suas<br />
próprias experiências: “Quando eu fui<br />
abandonada pelo meu amor, que eu<br />
achava que era para sempre, eu não<br />
tive ódio dela. Eu entendi que aquele<br />
era um corte que estava acontecendo<br />
comigo. Era eu quem precisava lidar<br />
com aquilo. E eu me tornei mais forte”.<br />
Diferentemente de muita gente que<br />
atravessa sem apoio os vales solitários<br />
dos transtornos psiquiátricos, Viviane<br />
teve a sorte de sempre contar com<br />
a família e com a psicanálise, combinação<br />
que a afastou de crises graves.<br />
Filha da dona de casa Joêmia e de Anselmo,<br />
um protético (profissional que,<br />
no passado, realizava procedimentos<br />
odontológicos tendo aprendido o ofício<br />
com um mestre), a filósofa cresceu<br />
com a casa cheia, na Vitória das<br />
décadas de 1960 e 1970. O pai, que era<br />
autodidata, criou um cursinho pré-<br />
-vestibular e “discutia mitocôndrias na<br />
mesa de jantar” com os seis filhos, fazia<br />
questão de gastar o que sobrava em<br />
diversão para a família. “Não passava<br />
um final de semana sem que recebêssemos<br />
amigos em casa. Aos sábados,<br />
éramos acordados ao som de Mozart,<br />
Beethoven, logo às 8 horas da manhã,<br />
com meu pai dizendo ‘Tem que acordar<br />
pra ser feliz!’”, lembra.<br />
A união dos irmãos Mosé se estendia<br />
além do portão de casa, principalmente<br />
quando a turma se juntava para defender<br />
a irmã mais velha, Neusa, que fora<br />
adotada por Anselmo e Joêmia antes<br />
mesmo do casamento <strong>–</strong> a menina até<br />
acompanhou o casal na lua de mel.<br />
“Neusa é negra, e nós brigávamos na<br />
rua quando ela era vítima de racismo”,<br />
conta. “Quando saíamos todos juntos,<br />
ela tinha que ir à nossa frente, na entrada<br />
dos lugares, porque era barrada<br />
se tentasse entrar depois da gente. Ela<br />
era tratada pelos outros como se fosse<br />
a empregada da família.” Mais tarde, o<br />
casal adotaria outra criança negra, a<br />
caçula da turma, Alina.<br />
Aos 3 anos no jardim da casa da avó | foto: arquivo pessoal<br />
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Com a amiga e parceira musical Mart’nália | foto: arquivo pessoal<br />
Vida multidisciplinar<br />
Viviane mantinha ocupada a agenda de atividades culturais e esportivas: frequentava aulas de teatro, incrementadas por apresentações<br />
para a vizinhança no quintal de casa, e era atleta mirim de ginástica artística <strong>–</strong> chegou a integrar a equipe capixaba<br />
de ginástica de solo, treinando quatro horas por dia. As atividades não tiravam seu foco na sala de aula: “Adoro estudar, faço<br />
isso por prazer”. Aos 16 anos, passou em segundo lugar no vestibular de psicologia da Universidade Federal do Espírito Santo. O<br />
feito foi noticiado no jornal da cidade, mas não marcou sua estreia na imprensa local, que ela já frequentava por causa das competições<br />
de ginástica e dos desfiles escolares de 7 de setembro <strong>–</strong> Viviane emprestava as habilidades de ginasta para se destacar<br />
como baliza à frente dos colegas.<br />
Filosofia para as<br />
massas<br />
Ironicamente, foram os poemas que<br />
abriram as portas da Rede Globo para<br />
a Viviane filósofa. Uma matéria sobre<br />
a poeta capixaba no jornal O Globo chamou<br />
a atenção de Roberto Irineu Marinho,<br />
presidente do grupo, que convidou<br />
Viviane para declamar seus poemas<br />
em um jantar em sua casa. Além do<br />
executivo, estavam no sarau alguns<br />
diretores da emissora carioca, e logo<br />
ela seria convidada para comandar o<br />
quadro no Fantástico intitulado Ser Ou<br />
Não Ser, que apresentou entre 2005 e<br />
2006. Sua participação no dominical,<br />
em que Viviane levava a filosofia para<br />
as massas, impulsionou sua popularidade.<br />
Em certa ocasião, foi abordada<br />
por um desconhecido “forte, enorme”<br />
que descarregava um caminhão de<br />
mudanças no centro do Rio. “Ouvi uma<br />
voz grave chamar ‘Viviane Mosé! Viviane<br />
Mosé!’ e estranhei. Disse ‘Eu?’, e<br />
ele: ‘Claro, tu não é a filósofa? Não perco<br />
um programa teu e boto meus filhos<br />
pra assistir. Adoro!’”, conta.<br />
O reconhecimento chegava também<br />
pelo correio, a exemplo da carta escrita<br />
à mão enviada por uma telespectadora.<br />
“Ela contava que a filha costumava dizer<br />
que ela era burra, mas ela entendia<br />
tudo o que eu falava, e a filha, não. Era<br />
ela quem explicava pra filha o que eu<br />
dizia. Sabe por quê? Porque eu falava<br />
da vida, e ela entendia da vida”, lembra.<br />
O quadro deixou de ser exibido há 15<br />
anos, mas a relação de Viviane com o<br />
Grupo Globo dura até hoje, com participações<br />
na rádio CBN e no programa<br />
Encontro com Fátima Bernardes. Suas lives<br />
e palestras disponíveis na internet<br />
atraem milhares de fãs. Recentemente,<br />
foi surpreendida por uma camelô, que<br />
chegou a mostrar na tela do celular o<br />
canal de Viviane no YouTube para provar<br />
que é seguidora. “Esse carinho não<br />
tem preço, é uma alegria indescritível.”<br />
Tanta popularidade pode alimentar<br />
críticas de filósofos mais conservadores.<br />
Alguns dizem que Viviane não é<br />
acadêmica por ser pop demais. “Isso<br />
não me agride porque não é verdade. É<br />
preconceito”, resume. E ela tem razão.<br />
Seu livro Nietzsche e a Grande Política da<br />
Linguagem, por exemplo, em que analisa<br />
a obra do filósofo alemão, já foi inúmeras<br />
vezes citado em teses de mestrado<br />
e doutorado. Se a popularidade<br />
gera comentários preconceituosos, o<br />
fato de ser uma mulher bonita ajudou,<br />
sim, como ela própria reconhece. “Tenho<br />
que ser honesta: sempre fui muito<br />
beneficiada por ser mulher. Sempre<br />
fui bonita, e isso abriu portas.” Ela faz<br />
questão de deixar claro que não se trata<br />
de sedução ou de usar a aparência<br />
para obter vantagens. “A beleza abre<br />
portas. Não é um mérito meu”, explica.<br />
Aos 17 anos, a universitária dedicada<br />
começou a dar aulas de introdução à<br />
psicologia em um curso de formação<br />
de professores. Seguiu a carreira atendendo<br />
em consultório por duas décadas<br />
(até o nascimento do filho, Davi, em<br />
2004), mas o interesse pela filosofia<br />
nasceu cedo, nas aulas de introdução<br />
à filosofia da graduação em psicologia.<br />
A paixão virou relacionamento sério<br />
quando se mudou para o Rio de Janeiro,<br />
onde concluiu mestrado e doutorado<br />
estudando Friedrich Nietzsche. Autora<br />
de seis livros sobre filosofia <strong>–</strong> além<br />
das seis obras de poesia <strong>–</strong>, Viviane se<br />
dedica há duas décadas a entender os<br />
desafios contemporâneos, tema dos<br />
estudos do filósofo alemão. Com a arte<br />
no DNA, levou Nietzsche para os palcos:<br />
ela atua ao lado do cultuado diretor<br />
de teatro Amir Haddad no espetáculo<br />
Assim Falava Zaratustra, interpretando o<br />
próprio Nietzsche.<br />
Com a vida estabelecida em terras cariocas,<br />
dividia o tempo entre o consultório<br />
de psicanálise, os estudos filosóficos<br />
e a poesia. Declamava seus poemas<br />
em encontros culturais, cultivava amizade<br />
com músicos e atores, e chegou a<br />
compor sambas com Mart’nália, como<br />
Não Me Balança Mais e Contradição. A<br />
parceria com a filha de Martinho da<br />
Vila foi retomada na pandemia, a distância:<br />
a cantora cria a melodia e ajuda<br />
Viviane a escrever a letra. “É muito<br />
difícil pra mim porque meu texto tem<br />
ritmo próprio, aí eu tento combinar o<br />
ritmo da música com o do texto. Não<br />
sei se vou conseguir fazer músicas<br />
boas, mas o aprendizado tem sido maravilhoso”,<br />
revela a aprendiz de letrista.<br />
<strong>VERÃO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 6 • PÁG. 49<br />
Com Amir Haddad no espetáculo Assim Falava Zaratustra | foto: reprodução Sympla<br />
<strong>VERÃO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 6 • PÁG. 48
Bela, desinibida e livre<br />
Viviane recorda o episódio em que sua<br />
aparência a prejudicou durante um<br />
processo seletivo para integrar o corpo<br />
docente de uma universidade. Após<br />
ser informada da reprovação, encontrou-se<br />
por acaso com o único membro<br />
da comissão (masculina, frisa-se) que<br />
havia discordado da decisão. Segundo<br />
esse integrante, ela foi reprovada logo<br />
na inscrição. “O argumento era de que<br />
uma professora de filosofia pode até<br />
ser bonita, mas não pode ser sensual.<br />
Ela disse que ouviu a frase ‘Até parece<br />
que uma mulher com esse corpo<br />
vai ser professora aqui’”, diz. O caso<br />
isolado de discriminação não reflete a<br />
carreira da psicóloga e filósofa. “Em todos<br />
os lugares onde trabalhei, ganhava<br />
mais do que os homens.”<br />
Se a vida profissional não foi afetada<br />
pelo machismo, o mesmo não se pode<br />
dizer da vida pessoal. Durante os tempos<br />
de solteira <strong>–</strong> antes de se casar, aos<br />
38 anos, com o diretor de audiovisual<br />
Daniel Duarte, com quem viveu por 13<br />
anos <strong>–</strong>, Viviane lidou com o preconceito<br />
comumente dispensado às mulheres<br />
que não abrem mão da liberdade.<br />
“Sempre fiquei com os caras que eu<br />
quis, e isso não é respeitado. Fui livre,<br />
mas sofri muito por causa da minha liberdade<br />
sexual.” Sofreu inclusive com<br />
a insistência de homens que não aceitam<br />
rejeição. “Isso pra mim é a grande<br />
merda do feminino. Se a mulher transa<br />
com quem quer, é vadia. Quando eu era<br />
mais jovem, isso era insuportável.”<br />
Viviane celebra o feminismo que vem<br />
quebrando tabus e permitindo que as<br />
jovens de hoje tenham mais liberdade<br />
que ela teve na juventude. “Ainda temos<br />
muita coisa pra conquistar, mas é<br />
importante falar dessa mudança. Parabéns<br />
pras meninas”, comemora. E leva<br />
para sua obra a influência de alunas<br />
feministas. Em 2019, mudou o nome de<br />
“A palavra Homem não pode<br />
substituir a palavra Humano<br />
seu livro O Homem Que Sabe <strong>–</strong> Do Homo<br />
Sapiens à Crise da Razão, que faz uma<br />
análise nietzschiana da evolução da<br />
humanidade, para A Espécie Que Sabe.<br />
As edições atualizadas do livro trazem<br />
a explicação: “Não queremos mais que<br />
o poder masculino, que guiou os séculos<br />
até essa exclusão contemporânea,<br />
se perpetue na linguagem. A palavra<br />
Homem não pode substituir a palavra<br />
Humano ou Humanidade, sustentando<br />
a exclusão do feminino. Acatando<br />
e afirmando essa questão, este livro<br />
passa a se chamar a partir de agora A<br />
Espécie Que Sabe, e a palavra Homem,<br />
quando usada no sentido de espécie<br />
no decorrer do livro, foi substituída<br />
por Ser Humano ou apenas Humano”.<br />
E a autora vai além: “Estou tentando<br />
mudar o conceito nietzschiano de super-homem<br />
para super-humano. Academicamente,<br />
isso é uma afronta, mas<br />
a mulher tem que estar incluída”, diz.<br />
ou Humanidade, sustentando a<br />
exclusão do feminino. Acatando<br />
e afirmando essa questão, este<br />
Foto: arquivo pessoal<br />
Apesar de tudo, otimista<br />
A filósofa que estuda os desafios do<br />
mundo atual e acumula mais de duas<br />
décadas de experiência como psicanalista<br />
mantém no radar um fenômeno<br />
mundial alarmante: o aumento no índice<br />
de suicídio, principalmente entre<br />
jovens e crianças. Segundo a Organização<br />
Mundial da Saúde (OMS), a cada<br />
quatro segundos, uma pessoa tira a<br />
própria vida. Viviane faz questão de<br />
trazer o tema à tona em lives, entrevistas<br />
e palestras para o setor corporativo<br />
e para a educação pública e privada. “O<br />
suicídio na infância cresce no mundo<br />
todo. Já é a maior causa de morte de<br />
crianças de 8 a 14 anos nos Estados Unidos”,<br />
afirma. Viviane acredita que esse<br />
é um problema de saúde pública que<br />
exige a atenção de toda a sociedade. “O<br />
mundo está desabando em nossa cabeça.<br />
Nós nos tornamos uma civilização<br />
doente. Além de sermos hospedeiros<br />
de vírus, estamos à mercê de destruições<br />
ambientais como um rato roendo<br />
nosso calcanhar que nos impede de<br />
andar. Precisamos parar de olhar para<br />
o nosso próprio umbigo e discutir essa<br />
questão. As pessoas estão pulando da<br />
janela!”, ressalta a pensadora.<br />
No entanto, nem a pandemia, nem a<br />
crise ambiental, nem o “mundo desabando<br />
em nossa cabeça” abalam o<br />
otimismo da filósofa. “Eu me vinculo<br />
ao que tem luz, à vida, às galáxias.<br />
Elas não estão aí à toa, o Universo não<br />
está expandido à toa, e o ser humano<br />
não chegou aqui à toa”, diz. Habituada<br />
a ministrar palestras a professores,<br />
Viviane tenta levar o otimismo a esses<br />
profissionais que viram seu trabalho<br />
virar de cabeça para baixo na pandemia.<br />
“Eu digo para os professores que<br />
estão sofrendo: ‘Vocês precisam sobreviver<br />
pra plantar a semente de um<br />
novo mundo’.” Ela acredita nas novas<br />
gerações, que novos valores possam<br />
vencer as “ideias paquidérmicas dos<br />
velhos”. Mas, nesse momento, ela faz<br />
uma pausa, e explica: “Quando eu falo<br />
de velhos e novos, não me refiro à idade<br />
nem à aparência. Eu tenho 57 anos,<br />
mas sou jovem. Ser jovem é se dar<br />
mais, saber que pode amar e namorar<br />
aos 60 anos. Sem preconceito!”, esclarece.<br />
“E eu quero viver até os 100 anos.<br />
E eu vou viver, porque eu amo a vida.”<br />
Capa do livro cujo título original era O Homem<br />
Que Sabe <strong>–</strong> Do Homo Sapiens à Crise da Razão<br />
livro passa a se chamar a partir<br />
de agora A Espécie Que Sabe”<br />
Que dica daria à jovem Viviane?<br />
“Calma, esse peso que você carrega na<br />
alma é amor em excesso, contido, sem<br />
vazão. Aprenda a soltá-lo aos poucos.<br />
Exponha-se, expanda”<br />
<strong>VERÃO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 6 • PÁG. 51<br />
<strong>VERÃO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 6 • PÁG. 50
Nome: Tiago da Cal Alves (Papatinho)<br />
Idade: 35 anos<br />
Profissão: produtor musical<br />
Cidade onde nasceu: Rio de Janeiro/RJ<br />
Entre beats<br />
e samples<br />
Por Sérgio Martins<br />
Aos 35 anos, Papatinho é um dos<br />
produtores musicais mais requisitados do<br />
mercado. Do funk ao pop, suas batidas e<br />
timbres guardam a receita do sucesso<br />
Foto: Lana Pinho<br />
<strong>VERÃO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 6 • PÁG. 53<br />
<strong>VERÃO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 6 • PÁG. 52
Black Alien, Papatinho e Seu Jorge | foto: Lana Pinho<br />
C<br />
erta manhã de 2021, o carioca Tiago da Cal Alves foi acordado pelo porteiro<br />
do condomínio onde mora no Recreio dos Bandeirantes, na zona oeste do Rio<br />
de Janeiro, porque havia um estranho insistindo em falar com o morador.<br />
“Está há mais de três horas gritando pelo senhor”, avisou. Tiago desceu à portaria<br />
do edifício e se deparou com um jovem que desejava conhecê-lo para mostrar<br />
suas músicas. Só estranha o fato de alguém passar horas à espera de Tiago quem<br />
não sabe seu nome artístico nem faz ideia do currículo que ele ostenta no showbiz<br />
nacional. Conhecido como Papatinho (“Nem meus pais me chamam de Tiago,<br />
no máximo usam filho”, diz), ele é um dos produtores musicais mais requisitados<br />
do mercado. Trabalhou com as popstars Anitta e Ludmilla, o rapper Gustavo Black<br />
Alien, o funkeiro Mr. Catra e o sambista Péricles; tem parcerias com o rapper Snoop<br />
Dogg e com o produtor Will.i.am (Black Eyed Peas); é dono do Papatunes, selo que<br />
descobre e produz talentos da soul music moderna, como Califfa e L7nnon; possui<br />
o Baile do Papato, no qual assume o posto de mestre de cerimônias e apresenta seus<br />
contratados; e já fechou parcerias comerciais com uma plataforma de redes sociais<br />
e uma loja de departamentos. Mas, afinal, qual o segredo desse carioca de 35 anos<br />
para ser requisitado por artistas de tantos estilos?<br />
Antes de mergulhar na biografia de<br />
Papatinho, é preciso explicar a função<br />
do produtor musical e sua importância<br />
dentro do showbiz. Nos anos 1960,<br />
esse tipo de profissional atuava como<br />
uma espécie de “facilitador”: o artista<br />
tinha a ideia, e cabia ao produtor <strong>–</strong> então<br />
funcionário da gravadora <strong>–</strong> transformar<br />
o rascunho numa composição<br />
de sucesso, reunindo os melhores músicos,<br />
arranjadores e até engenheiros<br />
de som. Um dos casos mais exemplares<br />
de produtor que deixou sua marca<br />
foi George Martin, parceiro de criação<br />
dos Beatles, que chegou a acelerar a<br />
velocidade de um piano para que ele<br />
soasse como um cravo (em In My Life) e<br />
deu as condições técnicas necessárias<br />
para que o quarteto inglês gravasse o<br />
histórico Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club<br />
Band. Martin era funcionário do Parlophone,<br />
selo pelo qual gravou até discos<br />
de piadas, e sua dobradinha com o<br />
quarteto mais importante do Universo<br />
lhe deu forças para sair em projetos<br />
solo. Mas são poucos os nomes daquele<br />
período que sobressaíam fora<br />
do meio das empresas fonográficas.<br />
Phil Spector, na música pop, e Quincy<br />
Jones, no mundo do jazz, são algumas<br />
das honrosas exceções.<br />
O papel do produtor foi sendo reconhecido<br />
com mais propriedade nos<br />
anos 1970 e 1980, quando ele passou a<br />
se tornar uma grife às vezes maior do<br />
que os artistas com quem trabalhava <strong>–</strong><br />
caso do próprio Quincy no período em<br />
que trabalhou com Michael Jackson.<br />
O showbiz brasileiro possui personagens<br />
emblemáticos desse período, a<br />
exemplo de Guto Graça Mello, mentor<br />
de trilhas sonoras das novelas da Rede<br />
Globo na década de 1970 e articulador<br />
da virada de Rita Lee rumo ao estrelato;<br />
Marco Mazzola, que assinou as obras<br />
mais emblemáticas de Raul Seixas naquele<br />
período; e Liminha, que moldou<br />
o rock nacional na década seguinte.<br />
Mazzola pontua que muitas vezes sua<br />
função ia além de burilar o trabalho<br />
de um contratado da gravadora. “Um<br />
produtor de sucesso na década de 1970<br />
tinha de entender de tudo: do contrato<br />
da gravadora, da seleção de músicos e<br />
arranjadores, dar pitaco na capa e no<br />
marketing, masterizar e mixar, e tinha<br />
uma remuneração muito baixa”, diz<br />
ele, que trabalhou com Ney Matogrosso,<br />
Milton Nascimento, Simone, Fafá de<br />
Belém e até Paul Simon.<br />
No estúdio da Papatunes | foto: Fernando Schlaepfer<br />
Nova visão<br />
Atualmente, a atuação do produtor<br />
é mais ampla: pega o artista do zero,<br />
cria uma identidade musical para seu<br />
contratado e colabora nas parcerias.<br />
O futuro popstar chega praticamente<br />
pronto às companhias de disco, que se<br />
tornaram uma espécie de distribuidora<br />
<strong>–</strong> tempos atrás, cabia a ela trabalhar<br />
exaustivamente na formatação e produção<br />
de sua aposta. Papatinho segue<br />
essa cartilha: descobre, aprimora, produz<br />
e se torna parceiro na autoria das<br />
músicas. “Se tem um beat meu, exijo<br />
parceria”, diz. “Meu envolvimento com<br />
esses artistas é total.” Muitos veteranos<br />
apoiam essa nova visão de produção.<br />
“Nada mais justo que eles sejam coautores.<br />
Uma boa produção e arranjo<br />
transformam a música num hit”, reconhece<br />
Liminha, que recentemente<br />
trabalhou com Papatinho num remix<br />
do grupo Capital Inicial. “Ele é o cara.”<br />
Tiago da Cal Alves já era conhecido<br />
como Papatinho quando estudava na<br />
Tijuca, bairro da zona norte do Rio. A<br />
alcunha nasceu de uma variação de<br />
“sapatinho”, seu apelido de infância. As<br />
primeiras incursões musicais se deram<br />
por meio de coletâneas em CDs que ele<br />
mesmo fazia e vendia aos amigos da<br />
escola. A destreza com que organizava<br />
a passagem de uma música para outra<br />
era sempre elogiada pelos, digamos,<br />
clientes. O sucesso no grupo incentivou<br />
Papatinho a se envolver cada vez<br />
mais com o universo musical. Decidiu<br />
que faria as próprias músicas em vez<br />
de utilizar composições de outros artistas.<br />
As primeiras produções saíram<br />
de um computador. Ele tomou gosto<br />
em criar batidas dançantes, depois se<br />
preocupou em achar o sample (trecho<br />
de músicas que vai entre uma batida e<br />
outra) perfeito para cada composição<br />
e, posteriormente, passou a se preocupar<br />
com o feat, aquela participação<br />
especial que um DJ, um cantor ou um<br />
rapper fazem na música de um artista<br />
amigo. O passo seguinte era adquirir<br />
uma MPC (bateria eletrônica usada<br />
para criar aqueles pancadões do funk<br />
carioca), que ele comprou de segunda<br />
mão de um certo MC Goiaba.<br />
<strong>VERÃO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 6 • PÁG. 55<br />
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Criativo e versátil<br />
O talento de Papatinho fez com que ele<br />
sobrevivesse ao tsunami causado pela<br />
ConeCrewDiretoria. Produtor cuidadoso,<br />
tinha bom gosto ao escolher os<br />
samples do conjunto. O álbum Com os<br />
Neurônios Evoluindo, lançado em 2011,<br />
tinha samba, blues, rock, soul music<br />
e até I Put a Spell on You, cantada pela<br />
jazzista Nina Simone (na já citada Chama<br />
os Mulekes). O esmero dessas produções<br />
chamou a atenção de artistas<br />
do chamado mainstream. Um deles foi<br />
o rapper carioca Gabriel O Pensador.<br />
“Conheci o Papatinho e o pessoal da<br />
ConeCrew numa competição de skate<br />
e os convidei para participar do meu<br />
último álbum, Sem Crise. A gente acabou<br />
ficando amigo e fiz outros singles<br />
com ele”, conta o rapper. “Uma música<br />
muito importante para mim foi<br />
Muito Orgulho, Meu Pai. Fizemos ainda<br />
Fé na Luta [que tem o sample de Dias de<br />
Glória, do Charlie Brown Jr.] e Tô Feliz<br />
(Matei o Presidente) 2. Ele é um cara<br />
que trabalha muito, é muito focado e<br />
criativo. Admiro essa versatilidade”,<br />
derrete-se Gabriel.<br />
Torcedor fanático do Flamengo, Papatinho<br />
estende essa versatilidade para<br />
além do universo dos cantores. Em<br />
agosto deste ano, ele lançou Sei Lá, canção<br />
que tem participação de Gabigol,<br />
atacante do Flamengo. A música, que<br />
eternizou o refrão “Quando eu tô louro,<br />
esquece”, foi lançada no dia em que o<br />
jogador fez três gols na partida contra<br />
o Santos. “Eu sabia que ele iria pedir a<br />
música do Fantástico, o que acontece<br />
quando um jogador marca três gols no<br />
mesmo jogo. Saí feito louco procurando<br />
gente da equipe dele para que o Gabigol<br />
pedisse a música e ainda corri para<br />
mandar a canção para a Rede Globo<br />
passar na hora dos gols da rodada.”<br />
Em 2015, Papatinho sentiu necessidade<br />
de expandir suas batidas para o mercado<br />
internacional. Viajou até Los Angeles<br />
e se encontrou com Scoop DeVille,<br />
produtor que trabalha com rappers<br />
celebrados como Kendrick Lamar. O<br />
encontro se assemelhou aos duelos do<br />
western spaghetti, em que dois pistoleiros<br />
medem forças na rua principal<br />
da cidade. Papato e DeVille exibiram<br />
seus beats um ao outro a fim de provar<br />
sua criatividade. Deu certo: o brasileiro<br />
passou a contar com a admiração<br />
do produtor americano, que o colocou<br />
em contato com Snoop Dogg e Travis<br />
Barker, ex-baterista do grupo de punk<br />
pop Blink 182, que se aventurou pelo<br />
hip hop, e a mandar beats para DeVille.<br />
Outro agregado foi Will.i.am, dos Black<br />
Eyed Peas, que aproveitou um rasante<br />
pelo Brasil em 2019, quando o grupo se<br />
apresentou no Rock in Rio, para conhecer<br />
o carioca. “Ele quis meus beats de<br />
funk porque acha que é o gênero do futuro”,<br />
conta. O resultado foi 5 Estrelas,<br />
single que traz ainda a participação de<br />
Kevin o Chris, atual fenômeno do novo<br />
funk carioca <strong>–</strong> que hoje tem uma batida<br />
mais acelerada. A retomada dessa<br />
trajetória no exterior está entre seus<br />
próximos projetos. “Quero voltar e reconstruir<br />
minha carreira internacional.<br />
Passei quatro, cinco anos indo para lá<br />
em busca do sonho.”<br />
ConeCrew | foto: Sergio Blazer<br />
Senhor Nunes e a ConeCrew<br />
Em 2005, Papatinho uniu-se aos rappers e amigos de infância Cert, Bartoré, Maomé, Rany Money e Ari para prosseguir com seu<br />
sonho de ter uma carreira musical. Nascia a ConeCrewDiretoria, primeiro fenômeno do hip hop na era da internet, que marcou<br />
presença nos grandes festivais de música do país com seus versos que iam da ostentação ao libidinoso. O desejo de se levar a<br />
sério num meio marcado pela informalidade fez com que Papatinho criasse um personagem: ele era o Senhor Nunes, empresário<br />
do grupo, que entrava em contato com as casas de show para negociar as apresentações da ConeCrew. Muitos contratantes<br />
jamais desconfiaram da identidade secreta do produtor. O furor causado pelo grupo fez com que Papatinho deixasse de lado o<br />
sonho do emprego formal <strong>–</strong> chegou a estudar contabilidade <strong>–</strong> para se dedicar inteiramente à música. Baseou-se nos rappers e<br />
empresários americanos Kanye West e Dr. Dre, que tinham uma visão mais avançada de como gerir seus negócios, para direcionar<br />
sua carreira.<br />
“O Dre, por exemplo, me inspiraria tempos depois para criar<br />
minha própria gravadora”, diz ele. Outra lição importante que<br />
aprendeu com o tempo foi a necessidade de se destacar em<br />
meio a um combinado de rappers talentosos. “Antigamente,<br />
eu levava os CDs com os beats para eles fazerem versos<br />
em cima. Aí gravava partes do show, ia para a banquinha<br />
de merchandising... Quando adquiri minha bateria eletrônica,<br />
passei a fazer parte do show. Ia criando as batidas na hora<br />
para o pessoal do grupo.”<br />
A ConeCrewDiretoria fez história no universo do hip hop<br />
pelas performances catárticas e hits como Chama os Mulekes<br />
com seus versos “Bacana chama grana, e grana chama fama<br />
/ Fama chama apart no Hotel Copacabana / Mente insana,<br />
luzes, flash, flechada na sua cara / Foram te chamar pra te<br />
botar numa furada / Que mancada, mas não faça enxame,<br />
talvez me chame / Se os cara tira onda, nós tiramo tsunami”.<br />
Outra reputação da ConeCrew trouxe dissabores para Papatinho<br />
e seu grupo. Eles eram conhecidos como criadores de<br />
encrenca, pessoas de comportamento instável, que transformavam<br />
quartos de hotéis e aviões em campos de batalha. As<br />
traquinagens iam de guerras de amendoim e água dentro da<br />
aeronave a festas para lá de animadas em quarto de hotel.<br />
“A gente chegava ao hotel e já escutava do gerente que estávamos<br />
proibidos de passar a noite ali. Ou então via caras de<br />
terno preto entrar no avião, se aproximar de nós, se anunciar<br />
como policiais federais e nos tirar dali”, enumera. “Os moleques<br />
eram malucos, era muita energia para gastar”, comenta.<br />
A má fama aumentou quando o combo de hip hop ganhou um<br />
programa na MTV, onde exibia seus dotes de causadores de<br />
encrenca. “Um dia, um engravatado veio na minha direção e<br />
disse: ‘Vocês não são aqueles caras da MTV que não podem<br />
entrar no avião?’”, lembra o produtor.<br />
Com Apl.de.ap e Will.i.am, dos Black Eyed Peas, e Pedro Pool, diretor da Papatunes (ao fundo) | foto: arquivo pessoal<br />
<strong>VERÃO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 6 • PÁG. 57<br />
<strong>VERÃO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 6 • PÁG. 56
Caça-talentos<br />
Como todo bom produtor, Papatinho<br />
tem ouvidos atentos. Muitos anos atrás,<br />
convocou uma cantora que chamava<br />
sua atenção na equipe de baile Furacão<br />
2000 para um dueto com um rapper<br />
chamado Gil Metralha. A menina agradeceu<br />
o convite, mas seu contrato com<br />
a Furacão a impedia de participar de<br />
projetos paralelos. Tempos depois, a<br />
garota, que atende pelo nome de Anitta,<br />
voltou a procurar Papato, avisou que<br />
tinha se desligado da companhia e podia<br />
participar de futuros projetos que<br />
ele tivesse em mente. A parceria com<br />
a popstar rendeu singles significativos,<br />
como Onda Diferente <strong>–</strong> que traz Snoop<br />
Dogg e Ludmilla <strong>–</strong> e Tá com o Papato,<br />
ao lado dos rappers Dfideliz (do grupo<br />
Recayd Mob) e BIN. Em um Réveillon<br />
em Búzios, no Rio de Janeiro, se encantou<br />
com o rap feito por um menino que<br />
vendia trufas de chocolate. Ele chamou<br />
o sujeito para se encontrar com<br />
ele mais tarde, pois queria ouvir suas<br />
rimas. Graças a esse empurrãozinho, o<br />
vendedor engatou uma carreira ascendente<br />
no funk com o nome de Kaemi.<br />
Papatinho não é um músico formal. Ele<br />
é mestre das batidas e tem gosto na<br />
hora de escolher seus timbres e parcerias.<br />
Uma postura muito diferente da<br />
dos produtores de outrora, em que era<br />
necessário ter um conhecimento mais<br />
formal do instrumento. Os principais<br />
nomes da história da produção, contudo,<br />
não veem problema nessa nova<br />
linha de pensamento. “Não é compulsório<br />
saber tocar. Existe uma estética<br />
criada em cima da tecnologia que<br />
funciona muito bem. Conheci DJs que<br />
nem sequer conseguiam batucar numa<br />
mesa e faziam música. Coisas incríveis<br />
podem acontecer quando a tecnologia<br />
encontra um bom músico”, diz Liminha.<br />
“Papatinho é um fenômeno da geração<br />
dos beats, em que uma boa ideia<br />
rítmica vale ouro e ajuda a criar um<br />
novo universo. Ele tem boas ideias”,<br />
completa Mazzola.<br />
Ecletismo popular<br />
Outra qualidade dele está na sua vontade<br />
de buscar outros estilos. Recentemente,<br />
se uniu ao sambista Péricles,<br />
ao MC Hariel e ao onipresente Dfideliz<br />
para criar Traje de Verão, uma canção<br />
próxima ao trap, uma espécie de<br />
versão mais “suja” do rap. “Foi minha<br />
chance de cantar algo nesse estilo. Papatinho<br />
é um excelente produtor e logo<br />
o mundo irá conhecer o talento dele”,<br />
exalta o sambista. Papato diz que seu<br />
estilo é baseado na união do trap com<br />
a linguagem do funk. Mas sempre se<br />
permitiu se aventurar por outros caminhos.<br />
Uma de suas mais recentes<br />
produções, feitas para uma empresa<br />
de streaming, juntou batidas eletrônicas<br />
com a Marcha Turca, do compositor<br />
clássico Wolfgang Amadeus Mozart.<br />
Para um comercial do campeonato<br />
de basquete, ele colocou um efeito de<br />
bumbo na bola e fez um loop (aquela<br />
repetição da música) com as derrapadas<br />
de tênis na quadra. “Não gosto de<br />
recusar trabalho.”<br />
MC Hariel, Papatinho, Péricles e Dfideliz | foto: Waldir Evora<br />
porque faz a música com muito prazer.<br />
Saí com três músicas prontas logo na<br />
primeira vez que fui ao estúdio”, diz o<br />
cantor Califfa. O aumento da popularidade<br />
impulsionou o assédio. Recentemente,<br />
participou do popular Jogo<br />
do Banquinho, quadro do programa do<br />
apresentador Raul Gil. “Na época da<br />
ConeCrew, quem me conhecia parecia<br />
pertencer a uma sociedade secreta.<br />
Hoje ando na rua e vem gente gritar<br />
Papatinho”, orgulha-se. Não faltam<br />
pessoas que buscam mostrar suas músicas<br />
ao produtor. “Um dia, um cara<br />
bateu no estúdio e eu disse para ele<br />
me procurar às 10h30, horário em que<br />
tomo meu açaí. “O moleque mostrou as<br />
músicas e dei uns toques porque o senti<br />
meio desanimado.” Com tanta gente<br />
procurando Papatinho e até atormentando<br />
seu sono, será que ele encontra<br />
tempo para dormir? “Sim. No aeroporto,<br />
quando dá problema com o voo.”<br />
Com Anitta | foto: arquivo pessoal<br />
A Papatunes Records foi criada em<br />
2018, da necessidade de trabalhar<br />
com novos artistas e estender seus<br />
horizontes como empresário. O site da<br />
companhia divulga seus artistas, mas<br />
também tem um potente merchandising<br />
<strong>–</strong> há grifes de roupas, bonés e outros<br />
acessórios. Papatinho é um produtor<br />
rigoroso, mas que deixa seus pupilos<br />
à vontade. “A gente se sente de férias<br />
Que dica daria ao<br />
jovem Tiago?<br />
“Vai nessa porque o<br />
futuro será lindo”<br />
<strong>VERÃO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 6 • PÁG. 59<br />
<strong>VERÃO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 6 • PÁG. 58
O azul das<br />
recordações<br />
Por Simone Costa<br />
Uma das principais representantes da arte brasileira<br />
contemporânea, a artista plástica Sandra Cinto usa<br />
caneta de ponta fina para produzir céus e mares<br />
carregados de referências de sua infância<br />
Nome: Sandra Regina Cinto<br />
Idade: 53 anos<br />
Profissão: artista plástica<br />
Cidade onde nasceu: Santo André/SP<br />
Foto: arquivo pessoal<br />
<strong>VERÃO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 6 • PÁG. 61<br />
<strong>VERÃO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 6 • PÁG. 60
.<br />
E<br />
nquanto brincava no quintal de casa, a pequena Sandra Regina Cinto gostava<br />
de passar sob o varal onde sua mãe, Maria Teresa, pendurava os uniformes<br />
do marido para secar. Albertino, pai de Sandra, era operário de uma fábrica<br />
de pneus em Santo André, na região metropolitana de São Paulo, e usava um uniforme<br />
de brim azul para trabalhar. Da roupa molhada estendida no varal pingavam<br />
gotas azuis, e Sandra se divertia com a cena. Três décadas depois, ao falar sobre a<br />
inspiração para desenhar a imensidão dos mares ou dos céus presentes em suas<br />
obras, a renomada artista plástica recorre às lembranças da “chuva azul” no quintal<br />
de casa, provocada pelo tecido molhado que desbotava. “Essa lembrança me emociona.<br />
Eu passava embaixo do varal e caía aquela aguinha, aquele pinguinho azul<br />
de tinta”, diz.<br />
Tornar-se artista plástica foi uma construção em sua vida, “tijolinho por tijolinho”,<br />
como a paulista de 53 anos gosta de dizer. Sandra Cinto conta que, durante anos, ao<br />
preencher uma ficha na recepção do hotel, por exemplo, escrevia a palavra “professora”<br />
no espaço reservado à profissão. “Não estava no meu radar me tornar artista.<br />
Eu nem sabia o que era isso, queria dar aula de arte”, diz. “Foi difícil assumir que<br />
a minha prática de artista tinha ganhado dimensão. Acho que isso tem a ver com<br />
a dificuldade de ser artista e até com uma questão de entendimento, que leva um<br />
tempo para acontecer.”<br />
Sandra se formou em educação artística nas Faculdades Integradas Teresa D’Ávila<br />
(Fatea, hoje Unifatea) em 1990. Quando ingressou no curso, já lecionava artes a alunos<br />
da educação infantil. Começou aos 16 anos, como parte dos estágios do curso<br />
de magistério que fez no segundo grau (atual ensino médio).<br />
Carreira internacional<br />
Encontro das Águas, 2012 <strong>–</strong> Seattle Art Museum | foto: Robert Wade<br />
A construção da<br />
artista<br />
Por uma dessas escolhas que parecem<br />
ter a mão do destino, Sandra viu<br />
naquela faculdade a praticidade de<br />
poder estudar perto de casa, além de<br />
permitir que ela trabalhasse durante<br />
o dia para pagar o curso noturno. Ali,<br />
ela teve aulas com importantes artistas<br />
plásticas, como Mônica Nador e<br />
Ana Tavares, de quem Sandra se tornaria<br />
assistente logo depois de receber<br />
o diploma. Enquanto via seu interesse<br />
pelas atividades se intensificar, percebeu<br />
que poderia desenvolver algo autoral<br />
para apresentar ao público. Ainda<br />
como estudante, Sandra participou do<br />
Salão Universitário de Artes Plásticas,<br />
em 1988. Nele, ganhou uma menção<br />
honrosa e uma caixa de tintas. “Guardo<br />
até hoje a caixa de madeira que veio<br />
com as tintas. Foi tão bom porque havia<br />
muita dificuldade para comprar os<br />
materiais. E foi, de fato, um estímulo”,<br />
afirma a artista.<br />
Quatro anos mais tarde, ela foi selecionada<br />
para dois programas importantes,<br />
considerados ritos de passagem<br />
para os artistas daquela época: o do<br />
Centro Cultural São Paulo (CCSP) e o<br />
do Projeto Macunaíma, da Fundação<br />
Nacional de Artes (Funarte), no Rio de<br />
Janeiro <strong>–</strong> o primeiro existe até hoje; já o<br />
segundo foi extinto. No CCSP, Sandra<br />
fez sua primeira exposição individual,<br />
apresentando três obras. Nesses trabalhos<br />
já estavam presentes as imagens<br />
de céu com sua assinatura, mas ainda<br />
pintadas a óleo. Mais tarde, elas ganhariam<br />
grandes dimensões e seriam<br />
produzidas com canetas de ponta fina,<br />
algo que se tornou marca registrada<br />
da artista. “A cosmologia, essa ideia de<br />
infinito cósmico, está presente no meu<br />
trabalho até hoje”, diz.<br />
A exposição no CCSP foi a primeira a<br />
dar visibilidade ao trabalho de Sandra.<br />
Naquele mesmo ano, ela foi convidada<br />
a trabalhar com a Casa Triângulo,<br />
que até hoje a representa no Brasil.<br />
Em 1996, esteve entre os artistas que<br />
participaram de um importante projeto<br />
realizado pelo jornal Folha de S.Paulo, o<br />
Antarctica Artes com a Folha. Ao todo,<br />
foram selecionados 62 artistas emergentes<br />
com menos de 32 anos. Eles foram<br />
escolhidos por cinco curadores e<br />
seus assistentes, que rodaram o Brasil<br />
em busca de novos talentos.<br />
No ano seguinte, Sandra saiu do país<br />
pela primeira vez para apresentar seu<br />
trabalho na famosa Arco, a Feira Internacional<br />
de Arte Contemporânea<br />
de Madri, na Espanha. Além da estreia<br />
em uma viagem ao exterior, a artista se<br />
recorda da experiência como um momento<br />
marcante em sua vida pessoal<br />
e profissional. Na capital espanhola, a<br />
brasileira pôde visitar museus como o<br />
do Prado e o Reina Sofia, onde teve a<br />
oportunidade de estar frente a frente<br />
com obras de pintores como Francisco<br />
de Goya e Diego Velázquez. “Isso foi incrível!<br />
E ainda conheci vários artistas<br />
de outros países e pude mostrar meu<br />
trabalho internacionalmente”, lembra.<br />
A carreira de Sandra foi marcada por<br />
outra importante estreia em 1998,<br />
quando participou da 24ª Bienal Internacional<br />
de São Paulo, organizada<br />
pelo renomado curador Paulo Herkenhoff.<br />
Precisou de 30 dias para pintar<br />
uma parede de 64 metros quadrados<br />
para apresentar naquela mostra.<br />
A obra lhe rendeu bons frutos. Foi<br />
por causa dela que a galerista Tanya<br />
Bonakdar, de Nova York, quis representá-la<br />
nos Estados Unidos. “Graças<br />
a isso, já fiz exposições em vários<br />
lugares, como Washington, São<br />
Francisco, Seattle, muitas instalações<br />
monumentais e individuais, além de<br />
obras públicas”, conta.<br />
Ao completar 30 anos de carreira, em<br />
2020, a artista teve a chance de rever<br />
seus trabalhos e refletir sobre eles para<br />
uma panorâmica exibida no Itaú Cultural,<br />
em São Paulo. Sob curadoria de<br />
Herkenhoff, a exposição Sandra Cinto:<br />
Das Ideias na Cabeça aos Olhos no Céu<br />
ocupou três pisos do espaço, na Avenida<br />
Paulista. Por causa da pandemia<br />
de Covid-19, a mostra, prevista para<br />
ocorrer entre março e novembro de<br />
2020, permaneceu fechada para visitas<br />
presenciais por sete meses. “Havia<br />
80 escolas agendadas para visitar<br />
a exposição. Foi difícil ver um projeto<br />
construído com tanto amor ficar<br />
fechado”, desabafa.<br />
Os inúmeros encontros entre a artista e<br />
o curador ao longo de 2019 renderam,<br />
além da panorâmica de três décadas,<br />
um livro homônimo sobre a carreira de<br />
Sandra. Nesse período, enquanto olhava<br />
para sua trajetória, ela recordou histórias<br />
como a “chuva azul” que caía no<br />
quintal de casa e outros fatos da infância<br />
que influenciaram seus desenhos.<br />
<strong>VERÃO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 6 • PÁG. 63<br />
<strong>VERÃO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 6 • PÁG. 62
Mar Aberto, 2014 <strong>–</strong> Centro Atlántico de Arte Moderno <strong>–</strong> CAAM | foto: Tereza Arozena<br />
“Nos anos 1980, houve um<br />
boom da pintura colorida,<br />
festiva. Na virada da<br />
década, veio uma espécie<br />
de ressaca, resultado do<br />
advento da aids, do sonho<br />
perdido das Diretas Já e da<br />
crise econômica”<br />
Recordações de infância<br />
Sandra guarda na memória os quatro volumes de uma Bíblia<br />
com ilustrações de Gustave Doré que sua mãe possuía. Os<br />
céus e as nuvens dos desenhos do artista francês são suas<br />
referências ainda hoje. Essa mesma temática também está<br />
associada às viagens da família à casa dos avós maternos, na<br />
cidade de Tietê, a 140 quilômetros da capital paulista. Ao passar<br />
alguns dias ali, a garota costumava brincar no quintal de<br />
um seminário, cuja igreja era ornamentada com pinturas celestiais.<br />
“Creio que veio dali o meu repertório de céus”, afirma.<br />
Outra forte memória afetiva que influencia a obra da artista<br />
vem dos períodos em que a família se hospedava em uma colônia<br />
de férias em Praia Grande ou em uma pousada simples<br />
em Santos. No dia a dia, como o pai trabalhava à noite e dormia<br />
durante o dia, ela e o irmão, Mauricio, tinham de fazer silêncio<br />
enquanto Albertino descansava. E, por causa desse fuso<br />
horário invertido, os filhos também não conseguiam passar<br />
muito tempo com o pai. Portanto, era durante essas viagens<br />
para o litoral paulista que a família finalmente conseguia<br />
aproveitar o tempo juntos. Daí a relevância do mar em seus<br />
desenhos. “Essas viagens tinham o sabor de quando podíamos<br />
estar com nossos pais. Eu fiz até uma série de trabalhos<br />
que intitulei Dias Felizes, Noites de Esperança, que é uma homenagem<br />
a esses dias alegres na praia com a família reunida.”<br />
Além dos desenhos bíblicos e das férias na casa dos avós ou<br />
à beira-mar, Sandra também guarda como boas recordações<br />
as brincadeiras na tranquila rua onde morava, na periferia de<br />
Santo André. “Não tínhamos muitos brinquedos, mas havia<br />
farta imaginação. O lúdico e o brincar estão presentes na minha<br />
obra também”, diz.<br />
Sandra conta que sua produção artística guarda ainda reflexos<br />
de uma atividade que ela praticou na juventude. Quando<br />
era criança, ela queria fazer balé. Embora a mãe quisesse<br />
realizar o desejo da filha, a família não podia arcar com as<br />
despesas das aulas. Um dia, durante uma visita a uma unidade<br />
do Sesi na cidade, Maria Teresa viu um grupo de garotas<br />
dançando com alguns acessórios ao som de uma mulher ao<br />
piano. Como aquilo parecia balé, ela desconfiou que a filha poderia<br />
se interessar. E o melhor: era um curso gratuito. A mãe,<br />
então, matriculou Sandra nas aulas de ginástica rítmica, das<br />
quais a menina não só gostou como frequentou por 12 anos,<br />
até os 18 anos de idade.<br />
Os trabalhos de Sandra ocupam grandes espaços, paredes de<br />
dezenas de metros quadrados. Olhando em retrospectiva, ela<br />
acredita que a experiência na ginástica rítmica, que mescla<br />
elementos do balé e da dança teatral, unindo arte, criatividade<br />
e capacidade física, deu-lhe a noção de espacialidade que<br />
orienta suas criações. “Sempre penso que os meus desenhos<br />
são coreografias no espaço”, diz Sandra.<br />
<strong>VERÃO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 6 • PÁG. 65<br />
<strong>VERÃO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 6 • PÁG. 64
O desenho como fio condutor<br />
Suas obras incluem diferentes formas de produção artística,<br />
como instalações e esculturas, mas o fio condutor está no desenho.<br />
Para explicar sua trajetória nessa modalidade de produção<br />
artística, Sandra observa que desenho não era uma<br />
linguagem recorrente no fim dos anos 1980 e início da década<br />
seguinte. Seu interesse pelo formato despertou quando<br />
viu as criações do artista cearense Leonilson (1957-1993).<br />
“Nos anos 1980, houve um boom da pintura colorida, festiva.<br />
Na virada da década, veio uma espécie de ressaca, resultado<br />
do advento da aids, do sonho perdido das Diretas Já e da<br />
crise econômica. Várias questões fizeram com que a minha<br />
geração olhasse para o mundo e buscasse um trabalho mais<br />
intimista”, explica. “Para desenhar, não precisa de mais nada<br />
além de um pedaço de papel e um lápis.”<br />
Inicialmente, a artista criava desenhos na própria pele, que<br />
renderam uma série de fotografias. Em seguida, as produções<br />
passaram a ocupar as paredes. Para conseguir realizar<br />
trabalhos em tamanhos monumentais com poucos recursos,<br />
veio a ideia de utilizar canetas de ponta fina. Esse material,<br />
de acordo com Sandra, ainda lhe permite fazer traçados milimétricos,<br />
que, em grandes quantidades, mostram a força da<br />
imagem. “É uma atividade de persistência, de obsessão. Há<br />
nisso uma similaridade com a vida, em que a gente vai devagarzinho,<br />
um pouquinho por dia para construir uma obra,<br />
uma carreira ou a educação de uma criança”, compara.<br />
No início, Sandra desenhava sozinha. Quando começou a<br />
produzir grandes montagens para museus importantes, em<br />
que o prazo para finalizar a obra é curto, a artista começou a<br />
recrutar assistentes. Os primeiros ajudantes saíram da equipe<br />
que já trabalhava com ela em seu ateliê. Depois, ela passou<br />
a convidar estudantes de arte. Mais recentemente, impôs<br />
apenas dois pré-requisitos aos candidatos: pessoas que gostem<br />
de desenhar e que sejam calmas para realizar um trabalho<br />
que chega a ser meditativo. “Descobri que dividir a prática<br />
do desenho era algo didático e até terapêutico”, afirma.<br />
Antes de começar um novo desenho, Sandra monta o grupo<br />
de assistentes voluntários com a participação de pessoas que<br />
estejam inseridas na comunidade onde vai atuar. Quando esclarece<br />
que eles não vão reproduzir seu desenho, mas sim trabalhar<br />
a mão livre, muitos recém-chegados dizem que, dessa<br />
forma, não são capazes de ajudar. “Eu traço, então, as linhas<br />
principais e realizo um treinamento no primeiro dia. Nessa<br />
hora, eu digo: ‘Calma, eu vou segurar na sua mão e vamos fazer<br />
um pedaço juntos’. É um trabalho de confiança”, explica.<br />
A artista observa cada assistente para descobrir como tirar<br />
o melhor de cada um. E, ao final de dias de trabalho, os voluntários<br />
comparecem à inauguração da exposição levando<br />
a família para mostrar, cheios de orgulho, a parte do trabalho<br />
que ajudaram a criar. “Muita gente que participou já me escreveu<br />
dizendo que começou a pintar depois que me auxiliou.<br />
É um verdadeiro processo de empoderamento por meio<br />
do desenho”, diz.<br />
A artista acredita que todos podem desenhar e que a atividade<br />
é uma expressão importante de comunicação, principalmente<br />
para as crianças. Não raro, no entanto, os adultos<br />
podam a criatividade dos pequenos dizendo, por exemplo,<br />
que não é de tal forma que se desenha uma casa, ou que as<br />
folhas de uma árvore não podem ser azuis. “Por volta dos 10<br />
anos, as crianças começam a fazer os desenhos todos iguais<br />
ou deixam de desenhar”, afirma. “Os pais compram aqueles<br />
livros com desenhos prontos para colorir. Eu nunca daria um<br />
livro desses a uma criança.”<br />
A arte de lecionar<br />
Assistentes trabalhando em Dallas | foto: Albano Afonso<br />
O processo que desenvolve com os assistentes<br />
voluntários não deixa de ser<br />
um viés de Sandra como professora.<br />
Concomitantemente ao trabalho artístico,<br />
ela nunca deixou de lecionar. Por<br />
uma década, foi professora na rede<br />
pública municipal de ensino de Santo<br />
André. Também já deu aula em importantes<br />
cursos de artes, como o da<br />
Fundação Armando Alvares Penteado<br />
(FAAP), em São Paulo.<br />
Com o marido, o também artista plástico<br />
Albano Afonso, ela mantém o Ateliê<br />
Fidalga, na Vila Madalena, na zona<br />
oeste da capital paulista. O ambiente de<br />
trabalho é também de troca e de ensino.<br />
O casal oferece a artistas de todas<br />
as partes do mundo estada, alimentação,<br />
espaço para trabalhar, além da<br />
possibilidade de realizar uma exposição<br />
e até uma publicação. O casal promove<br />
ainda um grupo de estudos sobre<br />
arte. Paralisado desde o ano passado<br />
em função da pandemia, o grupo deve<br />
voltar à ativa em <strong>2022</strong>. “Quero ainda<br />
retomar os projetos de educação para<br />
promover cursos para professores<br />
da rede pública. Eles são importantes<br />
agentes multiplicadores”, afirma.<br />
Ainda que isolada em seu ateliê por<br />
causa da Covid-19 <strong>–</strong> ela conviveu por<br />
meses apenas com o marido, a mãe e a<br />
sogra <strong>–</strong>, Sandra produziu bastante. Por<br />
videoconferência, por exemplo, está<br />
atuando na criação de um boulevard<br />
de 700 metros quadrados para uma<br />
praça na cidade de Korat, onde ocorre<br />
a Bienal da Tailândia, um trabalho em<br />
azulejo que contou com a participação<br />
de mais de 100 crianças da cidade.<br />
Ela também ganhou um concurso<br />
para construir uma parede de azulejos<br />
no campus da Universidade Johns<br />
Hopkins, em Washington, nos Estados<br />
Unidos. Lançou ainda um livro infantil<br />
sobre a pandemia. Ao todo, mil cópias<br />
foram vendidas, o que rendeu outros<br />
mil exemplares para doação a crianças<br />
em situação de vulnerabilidade.<br />
“Eu quero ser ponte com meu trabalho,<br />
conectando saberes e também pessoas<br />
com poder aquisitivo maior que possam<br />
ajudar quem tem pouco. Em <strong>2022</strong>,<br />
essa ponte vai funcionar mais do que<br />
nunca.” A sociedade agradece.<br />
Que dica daria à<br />
jovem Sandra?<br />
“Não desista, siga<br />
o seu sonho. Não é<br />
fácil, nunca é, mas<br />
vale a pena”<br />
<strong>VERÃO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 6 • PÁG. 67<br />
<strong>VERÃO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 6 • PÁG. 66
Um sabor<br />
Na temporada mais quente do ano, que tal exaltar uma das frutas mais tropicais do planeta? Com seu inconfundível<br />
sabor adocicado adstringente, o caju é a estrela do ceviche criado pela chef Helena Rizzo, que<br />
comanda os restaurantes Maní e Manioca. Leve, original e brasileiríssimo, o ceviche de caju é uma boa pedida<br />
como entrada ou prato principal.<br />
CEVICHE DE CAJU<br />
Chef Helena Rizzo<br />
INGREDIENTES<br />
MODO DE PREPARO<br />
Uma palavra<br />
Sim, eu sou realmente um piolho <strong>–</strong> continuou ele,<br />
agarrando-se com maldade a esse pensamento,<br />
escarafunchando nele, brincando e distraindo-se<br />
com ele <strong>–</strong> e já unicamente porque, em primeiro lugar,<br />
neste momento raciocino sobre o fato de que<br />
sou um piolho; porque, em segundo lugar, passei<br />
um mês inteiro incomodando a Providência em sua<br />
excelsa bondade, apelando para que testemunhasse<br />
que eu não estaria fazendo aquilo com vista a<br />
vantagens materiais mas a um objetivo magnífico e<br />
agradável <strong>–</strong> eh-eh! Porque, em terceiro lugar, decidi<br />
observar a justiça possível na execução, o peso e a<br />
medida, e a aritmética; de todos os piolhos eu escolhi<br />
o mais inútil e, depois de matá-lo, decidi tomar<br />
dele exatamente tanto quanto me era necessário<br />
para o primeiro passo, não mais nem menos (e o<br />
restante, portanto, que fosse para os mosteiros, por<br />
testamento espiritual <strong>–</strong> he-he!)... Porque, porque<br />
eu sou definitivamente um piolho <strong>–</strong> acrescentou<br />
rangendo os dentes <strong>–</strong>, porque eu mesmo, é possível,<br />
sou ainda pior e mais torpe que o piolho morto,<br />
e pressenti de antemão que viria a dizer isso a mim<br />
mesmo depois que o matasse! É, será que alguma<br />
coisa pode comparar-se a tamanho horror? Ó, torpeza!<br />
Ó, torpeza!... Ó, como eu compreendo o “profeta”<br />
de sabre em punho, a cavalo. Alá manda, então<br />
obedece, “trêmula” criatura! Está certo, está certo o<br />
“profeta” quando coloca no cruzamento de alguma<br />
rua uma bo-o-o-o-a bateria e a aciona contra o justo<br />
e o culpado, sem se dignar sequer a dar explicações!<br />
Obedece, trêmula criatura, e evita querer, porque<br />
isto não é problema teu!... Ó, não perdoo, não perdoo<br />
por nada a velhusca!<br />
Raspadinha de cajuína:<br />
• 1,5 kg de cajus maduros<br />
• 50 ml de cachaça<br />
Leite de castanha de caju:<br />
• 1 kg de castanhas de caju<br />
• 1 litro de água mineral<br />
Ceviche:<br />
• 8 cajus maduros<br />
• Sal<br />
• 2 pimentas dedo-de-moça<br />
picadas, sem as sementes<br />
• 1 cebola roxa pequena, cortada<br />
em juliana<br />
• Suco de 2 limões-taiti<br />
• 50 ml de leite de castanha de caju<br />
• 10 g de coentro picado<br />
• Brotos de coentro<br />
Raspadinha de cajuína: lave bem os cajus e remova as castanhas. Corte os cajus em<br />
pedaços e coloque-os numa centrífuga para extrair o suco. Coloque o suco de caju na<br />
geladeira em recipiente fechado e deixe decantar durante 12 horas. Uma vez decantado,<br />
retire a espuma e a parte sólida do caju, que terá flutuado para a superfície. Passe o<br />
líquido por um coador fino. Despeje 150 ml de suco em uma panela e deixe ferver em<br />
fogo baixo. Despeje o restante do suco, adicione a cachaça e coloque no congelador.<br />
Leite de castanha de caju: triture as castanhas com a água e centrifugue<br />
o purê para obter o leite. Passe o leite por um coador fino e reserve.<br />
Ceviche: descasque os cajus e corte-os em cubos. Misture o sal, a pimenta, a cebola, o suco<br />
de limão e o leite de castanha de caju numa tigela e adicione o coentro picado. Reserve.<br />
Sirva o ceviche numa tigela com uma colherada de raspadinha<br />
de cajuína, decorado com os brotos de coentro.<br />
Rendimento: 4 porções<br />
Fiódor Dostoiévski<br />
Trecho do livro Crime e Castigo<br />
Tradução de Paulo Bezerra / Editora 34<br />
Foto: Lufe Gomes/divulgação<br />
<strong>VERÃO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 6 • PÁG. 69<br />
<strong>VERÃO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 6 • PÁG. 68
Uma imagem<br />
Foto: Coleção Gilberto Chateaubriand <strong>–</strong> MAM Rio/divulgação<br />
Curiosamente, um dos nomes mais associados à Semana de<br />
Arte Moderna de 1922 é Tarsila do Amaral, mas a pintora morava<br />
em Paris e nem participou da festa que comemora seu<br />
centenário em fevereiro. O fato é que a artista que mais cedeu<br />
quadros para expor no saguão do Theatro Municipal de São<br />
Paulo durante o evento foi Anita Malfatti: ao todo, 20 obras<br />
levavam sua assinatura, entre elas estava O Farol. Com seu<br />
trabalho à sombra de Tarsila, engana-se quem cogite alguma<br />
rivalidade entre as duas artistas. Elas se tornaram grandes<br />
amigas e, junto com Mário de Andrade, Menotti del Picchia<br />
e Oswald de Andrade, formariam o inseparável Grupo dos<br />
Cinco, que impulsionou o movimento modernista brasileiro.<br />
Para muitos críticos e historiadores de arte, Anita é uma pintora<br />
tão importante quanto Tarsila. Pioneira, ela partiu para<br />
estudar artes em Berlim, em 1910. De volta ao Brasil, fez sua<br />
primeira exposição em 1914. No ano seguinte, viajou para a<br />
ilha de Monhegan, na costa leste dos Estados Unidos, para ter<br />
aulas com o mestre Homer Boss, que teve como pupilos nomes<br />
como Rockwell Kent, George Bellows e Edward Hopper.<br />
Foi a paisagem de Monhegan que a inspirou a pintar O Farol,<br />
em 1915. Com um céu magnífico, a tela retrata o cenário de<br />
forma colorida e luminosa, com ecos do impressionismo e generosas<br />
pinceladas à la Van Gogh. Anita já era moderna antes<br />
do pontapé inicial do modernismo.<br />
<strong>VERÃO</strong> <strong>2022</strong> | <strong>EDIÇÃO</strong> 6 • PÁG. 70