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Homenagens póstumas e usos políticos: uma análise de “grandes ...

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<strong>Homenagens</strong> <strong>póst<strong>uma</strong>s</strong> e <strong>usos</strong> <strong>políticos</strong>:<br />

<strong>uma</strong> <strong>análise</strong> <strong>de</strong> “gran<strong>de</strong>s expedientes”<br />

como espaços <strong>de</strong> (auto) consagração<br />

Eliana Reis<br />

O presente artigo se concentra na <strong>análise</strong> <strong>de</strong> um material específico: os<br />

pronunciamentos proferidos em Gran<strong>de</strong>s Expedientes da Assembléia Legislativa<br />

do Estado do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul (RS), propostos por parlamentares com vistas a<br />

homenagear diferentes militantes, protagonistas <strong>de</strong> eventos e gerações, que<br />

atuaram em distintos momentos do regime militar brasileiro. Três <strong>de</strong>sses rituais<br />

<strong>de</strong> consagração foram examinados. O primeiro foi a homenagem proposta por<br />

<strong>uma</strong> li<strong>de</strong>rança do Partido Comunista do Brasil (PC do B) aos “Guerrilheiros do<br />

Araguaia” – tratam-se particularmente <strong>de</strong> quatro militantes gaúchos, vinculados<br />

ao mesmo partido, que morreram durante o confronto com militares ocorrido no<br />

início dos anos setenta. O segundo foi articulado por um parlamentar do Partido<br />

dos Trabalhadores (PT) e <strong>de</strong>dicada ao militante Marcos Klassmann – geralmente<br />

lembrado por ter protagonizado <strong>uma</strong> das principais campanhas eleitorais <strong>de</strong><br />

estréia da “juventu<strong>de</strong> <strong>de</strong> esquerda” do MDB gaúcho em 1976 e por ter sido o<br />

último político cassado no chamado período da ditadura militar. E o terceiro,<br />

iniciativa <strong>de</strong> um parlamentar do Partido do Movimento Democrático Brasileiro<br />

(PMDB), foi direcionada a André Cecil Forster, então dirigente daquele partido –<br />

cujo reconhecimento sempre esteve fundado nos vínculos que tinha com<br />

personalida<strong>de</strong>s dos meios intelectuais e <strong>políticos</strong> (sendo ele mesmo um <strong>de</strong>les no<br />

Rio Gran<strong>de</strong> do Sul), singularmente expressada na condução do Instituto <strong>de</strong><br />

Estudos Econômicos, Políticos e Sociais (IEPES) do MDB gaúcho na segunda<br />

meta<strong>de</strong> dos anos setenta.<br />

Os casos possuem <strong>uma</strong> série <strong>de</strong> aspectos comuns e distintivos. Para o<br />

momento, três elementos <strong>de</strong>vem ser <strong>de</strong>stacados para justificar a atenção às<br />

celebrações ora privilegiadas. Em primeiro lugar, o fato <strong>de</strong> tratar-se em todos<br />

eles <strong>de</strong> homenagens <strong>póst<strong>uma</strong>s</strong>, o que permite observar a dimensão do<br />

reconhecimento <strong>de</strong> <strong>uma</strong> idéia <strong>de</strong> dívida impagável dos vivos em relação aos<br />

“mortos”; em segundo lugar, porque possibilita evi<strong>de</strong>nciar as estratégias (não<br />

necessariamente racionalizadas ou cínicas) <strong>de</strong> afirmação retrospectiva <strong>de</strong><br />

pertencimentos geracionais ou <strong>de</strong> ban<strong>de</strong>iras <strong>de</strong> luta a partir <strong>de</strong> <strong>uma</strong> idéia <strong>de</strong><br />

excepcionalida<strong>de</strong> atribuída aos eventos e personagens; e finalmente porque<br />

viabiliza observar o trabalho <strong>de</strong> reivindicação, a um só tempo, dos personagens<br />

como li<strong>de</strong>ranças incontestes <strong>de</strong> processos <strong>de</strong> transformação valorizados e dos<br />

seus “her<strong>de</strong>iros” ou “contemporâneos” como <strong>de</strong>tentores do mesmo (geralmente<br />

acrescido) “patrimônio”.<br />

Sendo assim, <strong>uma</strong> das principais pertinências da <strong>análise</strong> <strong>de</strong> rituais <strong>de</strong><br />

consagração póst<strong>uma</strong> <strong>de</strong> personagens <strong>políticos</strong> consiste no aspecto consensual<br />

que pautam essas circunstâncias singulares <strong>de</strong> disputas políticas. Os discursos <strong>de</strong><br />

circunstância ativados nos elogios fúnebres pelos agentes que se pronunciam dão<br />

pistas fundamentais <strong>de</strong> leis e invariâncias que regem o universo político e<br />

dificilmente são apreendidas nas situações rotineiras (DULONG, 1994).<br />

Ciências H<strong>uma</strong>nas em Revista, v.6, n.1, São Luis/MA, 2008 - ISSN 1678-8192


O julgamento valorizante das qualida<strong>de</strong>s ou ações do indivíduo legitima a<br />

realização <strong>de</strong> “homenagens” que acaba assumindo o caráter <strong>de</strong> retribuição<br />

suscitada pelo reconhecimento por parte daqueles que permanecem vivos. Deste<br />

modo, é preciso consi<strong>de</strong>rar a crença na função gratificante <strong>de</strong>sempenhada pelo<br />

indivíduo em vida como constituindo <strong>uma</strong> estrutura <strong>de</strong> trocas simbólicas que<br />

impulsiona a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> consagração dos mortos (HÉLIAS, 1979).<br />

Esse sentimento <strong>de</strong> dívida simbólica com o indivíduo privado <strong>de</strong> vida não<br />

se funda apenas na celebração <strong>de</strong> sua obra (num sentido bem amplo), mas<br />

simultaneamente na consagração <strong>de</strong> um universo <strong>de</strong> significados – no caso <strong>de</strong> um<br />

período <strong>de</strong> lutas, eventos, feitos, marcas – que, em última instância, colaboram<br />

na exaltação dos próprios agentes que oferecem a homenagem. Esses, além <strong>de</strong><br />

amortizar <strong>uma</strong> dívida histórica com o homenageado, retiram do ritual – através<br />

dos vínculos atualizados nas falas – trunfos <strong>políticos</strong> para si mesmos. Portanto, os<br />

elementos articulados à figura do(s) reverenciado(s) permitem a compreensão <strong>de</strong><br />

“todo um jogo <strong>de</strong> papéis cujo funcionamento é particularmente esclarecedor”,<br />

além das lógicas que tornam aquele que recebe o elogio fúnebre como credor<br />

daqueles que persistem. (HÉLIAS, 1979, p. 747, tradução nossa,).<br />

Para os casos em que a morte ocorre em combate e em nome <strong>de</strong> <strong>uma</strong><br />

“causa” lida como justa (como os “guerrilheiros do Araguaia”), maior é a<br />

proporção da dívida e a gama <strong>de</strong> atributos que são acionados para adjetivá-los.<br />

Nesse caso, a heroicização po<strong>de</strong> assumir <strong>uma</strong> feição <strong>de</strong> gratificação máxima, <strong>de</strong><br />

eternização e sacralização dos agentes e <strong>de</strong> seus feitos.<br />

Há <strong>uma</strong> série <strong>de</strong> lógicas <strong>de</strong> consagração social que “[...] substancializam e<br />

personificam instituições ou processos coletivos, que não são apenas ‘figuras’<br />

individuais. Quer dizer, também instituições ou categorias po<strong>de</strong>m ser<br />

heroicizados, através da reificação <strong>de</strong> abstrações e personificação <strong>de</strong> coletivos”<br />

(CORADINI, 1998, p. 212-213). Essas lógicas são operadas por aqueles que ao<br />

heroicizar (indivíduos, instituições ou categorias) estabelecem a sua própria<br />

proximida<strong>de</strong> com o objeto sagrado, revelam os recursos valorizados, consagram<br />

eventos e apresentam-se como <strong>de</strong>tentores do patrimônio coletivo.<br />

Evi<strong>de</strong>ncia-se <strong>uma</strong> multiplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> formas, agentes, motivos, alvos,<br />

espaços condizentes com as estratégias <strong>de</strong> celebração, não necessariamente<br />

racionalizadas como tais. Contudo, a promoção <strong>de</strong> cerimônias <strong>de</strong> homenagem<br />

adquire um valor <strong>de</strong> evento porque mobilizam agentes autorizados a tomarem a<br />

palavra para celebrar os “heróis”, <strong>de</strong>fini-los como tal e, assim, <strong>de</strong>finir a lógica<br />

<strong>de</strong> hierarquização dos agentes segundo aqueles critérios e apresentarem-se, <strong>de</strong><br />

alg<strong>uma</strong> forma, como <strong>de</strong>tentores dos mesmos. Esses princípios, então, emergem<br />

em situações ritualísticas que ganham <strong>uma</strong> conotação contun<strong>de</strong>nte quando<br />

dizem respeito a espaços vinculados ao mundo político, consagrados como<br />

espaços <strong>de</strong> consagração.<br />

Esses momentos funcionam como ritos <strong>de</strong> instituição que “[...] consistem<br />

em sancionar e santificar um estado <strong>de</strong> coisas [...] fazendo-a conhecer e<br />

reconhecer, fazendo-a existir enquanto diferença social” (BOURDIEU, 1996, p.<br />

99). Trata-se da consagração oficial (reconhecida pelo estado e por meio da<br />

instituição em que ocorre) dos “heróis” e o “direito à eternização”. É preciso,<br />

pois, sublinhar a relevância da <strong>análise</strong> das exaltações <strong>de</strong> li<strong>de</strong>ranças políticas<br />

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como oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>svendar o caráter não substancial <strong>de</strong> posições e<br />

instituições estabelecidas. Principalmente, são momentos privilegiados para a<br />

apreensão dos investimentos mobilizados para a re<strong>de</strong>finição <strong>de</strong> papéis e da<br />

ilusão <strong>de</strong> permanência na continuida<strong>de</strong> das instituições.<br />

Não se po<strong>de</strong> ignorar, com efeito, que a legitimida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>uma</strong> instituição ou <strong>de</strong> <strong>uma</strong><br />

posição <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r é fortemente ligada a <strong>uma</strong> atestação <strong>de</strong> continuida<strong>de</strong> pela qual os<br />

dirigentes estabelecem sua pretensão ao monopólio <strong>de</strong> <strong>uma</strong> herança e se erigem em<br />

guardiões <strong>de</strong> valores e crenças estimadamente compartilhadas. É essa ilusão <strong>de</strong><br />

permanência na continuida<strong>de</strong> que confere às posições políticas instituídas <strong>uma</strong><br />

i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> substancial que as tentativas <strong>de</strong> re<strong>de</strong>finição no momento da morte arriscam<br />

<strong>de</strong> alg<strong>uma</strong> forma <strong>de</strong> <strong>de</strong>sfazer, <strong>de</strong>svendando por isso mesmo o arbitrário da distribuição<br />

sociais dos papéis (DULONG, 1994, p. 633, tradução nossa).<br />

São diferentes os perfis e as filiações, as inserções e os anseios, as<br />

biografias e os <strong>de</strong>stinos sociais, profissionais e <strong>políticos</strong>, dos protagonistas<br />

homenageados nos Gran<strong>de</strong>s Expedientes ora apresentados e dos agentes que<br />

testemunharam a partir <strong>de</strong>les ou sobre eles nessas ocasiões. Porém, é necessário<br />

reforçar que um dos fatores que mais freqüentemente é fixado para a<br />

constituição <strong>de</strong> ca<strong>de</strong>ias <strong>de</strong> equivalências nessa diversida<strong>de</strong> e, às vezes, na<br />

divergência, é o pertencimento geracional acionado para garantir o valor do<br />

homenageado (não somente visto como membro, mas como tendo sido capazes<br />

<strong>de</strong> aglutinar gerações ou transitar entre elas) e o valor daquele que a<br />

consagrando consagra-se a si mesmo. Ou seja, pedir um “aparte”, formalida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>ssa situação institucional examinada, significa confirmar um posicionamento,<br />

reconhecer-se com autorida<strong>de</strong> para posicionar-se, é partilhar <strong>de</strong> <strong>uma</strong> doxa, é<br />

reconhecer no homenageado <strong>uma</strong> pessoa à altura para homenagear-se e<br />

inclusive sentir-se incumbido <strong>de</strong> saldar <strong>uma</strong> dívida com o elogiado e com a sua<br />

obra.<br />

O trabalho <strong>de</strong> valorização é indiscernível dos empreendimentos<br />

incessantes <strong>de</strong> ativação das singularida<strong>de</strong>s que marcaram as condições históricas<br />

<strong>de</strong> entrada na política dos agentes que, posteriormente, conquistaram posições<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>staque em diferentes domínios sociais. Adiciona-se a gama <strong>de</strong> registros e<br />

objetos compartilhados e disputados que foram forjados nas inserções inaugurais<br />

– mesmo que tenham ingressado em fases diferentes do regime militar, extraído<br />

recursos diferenciados e com <strong>de</strong>stinos variados – e que permitiram aos agentes<br />

constituírem um quadro <strong>de</strong> referências comuns constantemente atualizadas ao<br />

longo dos itinerários individuais e coletivos. Constata-se a configuração <strong>de</strong> um<br />

sentimento <strong>de</strong> contemporaneida<strong>de</strong> entre os protagonistas que atuaram nas<br />

mesmas condições e que – com a colaboração <strong>de</strong> analistas, simpatizantes, e dos<br />

mais diversos agentes – fornecem avaliações e versões retrospectivas sobre o<br />

período e sobre os personagens e assim produzem tal excepcionalida<strong>de</strong> histórica<br />

e militante (REIS, 2007).<br />

Portanto, a reivindicação da idéia <strong>de</strong> geração atualiza o círculo <strong>de</strong><br />

reconhecimento que confere status àqueles que conseguem se situar nas suas<br />

fronteiras e <strong>de</strong>la retiram atributos e trunfos <strong>políticos</strong> nas suas “lutas<br />

contemporâneas”. É preciso frisar que não se está tomando <strong>uma</strong> idéia <strong>de</strong><br />

geração como grupo homogêneo <strong>de</strong> pessoas com as mesmas concepções,<br />

crenças, <strong>de</strong>sejos, frustrações, tampouco a <strong>de</strong>limitando por classes <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>s,<br />

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estilos <strong>de</strong> vida, nem mesmo por um “patrimônio” comum político, intelectual,<br />

moral ou outro (FAVRE, 1989). Enten<strong>de</strong>-se que essa categoria comporta lógicas<br />

específicas <strong>de</strong> construção <strong>de</strong> referências comuns que se <strong>de</strong>fine por estratégias<br />

<strong>de</strong> pertencimento e <strong>de</strong> consagração diferentes para aqueles que a utilizam. É na<br />

idéia <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificação ou reconhecimento distintivo pela inserção em<br />

<strong>de</strong>terminados eventos que se situa a chave dos vínculos geracionais, isto é, os<br />

agentes se i<strong>de</strong>ntificam e i<strong>de</strong>ntificam os outros como pertencentes à mesma<br />

geração e operam a mesma atribuição tanto para os mais próximos como para<br />

seus concorrentes (GIRARDET, 1983).<br />

A idéia <strong>de</strong> evento aparece, então, como critério <strong>de</strong> constituição<br />

geracional, pois se refere ao compartilhamento <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminadas situações que<br />

leva os agentes a “experimentar sua contemporaneida<strong>de</strong>, se apropriar <strong>de</strong> seu<br />

tempo, fundar sua memória coletiva” (FAVRE, 1989, p. 309, tradução nossa).<br />

Isso não significa dizer que o evento fabrica <strong>uma</strong> geração – nos termos propostos<br />

por Sirinelli (1996) para o qual é a partir <strong>de</strong> um evento fundador marcante que<br />

se constitui a geração – “como se o evento gerador fosse exterior aos homens<br />

que <strong>de</strong>le participam”, ao contrário, “são os homens que fundam o evento e que<br />

lhe conferem seu valor <strong>de</strong> evento” (FAVRE, 1989, p.312, tradução nossa).<br />

No material investigado, salienta-se a recorrência <strong>de</strong> dois elementos como<br />

primordiais para a caracterização <strong>de</strong> eventos singulares: a mobilização <strong>de</strong><br />

agentes com posicionamentos variados em <strong>de</strong>terminadas situações, nesse caso a<br />

valorização <strong>de</strong> manifestações, campanhas, espaços <strong>de</strong> discussão, enfim, tidas<br />

como excepcionais; e as circunstâncias <strong>de</strong> violência, principalmente com mortes<br />

concebidas como exemplares. Esse último ponto remete a importância <strong>de</strong><br />

examinar as homenagens aos mortos n<strong>uma</strong> lógica da retribuição e <strong>de</strong><br />

consagração.<br />

Assim, a <strong>análise</strong> dos referidos elementos persistentes nos três casos<br />

possibilita atentar para o trabalho <strong>de</strong> reconstituição (dos eventos), <strong>de</strong> projeção<br />

(<strong>de</strong> expectativas), <strong>de</strong> justificação (<strong>de</strong> posicionamentos) e <strong>de</strong> celebração (<strong>de</strong><br />

personagens), operado pelas li<strong>de</strong>ranças que promoveram as homenagens e<br />

pediram “apartes” nas sessões <strong>de</strong> Gran<strong>de</strong> Expediente. Logo, viabiliza observar o<br />

trabalho da memória ou dos mecanismos <strong>de</strong> seleção operados pelos <strong>de</strong>poentes a<br />

partir não só da posição política por eles ocupada, como também das disputas<br />

nas quais estão inscritos e nos reconhecimentos que <strong>de</strong>sejam manter ou<br />

conquistar (POLLAK, 1989; PIZZORNO, 1989).<br />

Po<strong>de</strong>-se observar que a mera <strong>de</strong>claração <strong>de</strong> algum tipo <strong>de</strong> atuação<br />

durante os anos sessenta e setenta no Brasil acabou se afirmando como trunfo<br />

básico <strong>de</strong> exaltação biográfica e tal inscrição conta com a elasticida<strong>de</strong> da<br />

<strong>de</strong>marcação cronológica (1964 a 1985). A multiplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> domínios politizados<br />

(universida<strong>de</strong>s, escolas, sindicatos, igrejas...) e <strong>de</strong> modalida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> intervenção<br />

legítimas naquela conjuntura (<strong>de</strong>s<strong>de</strong> ser simplesmente simpatizante até “pegar<br />

em armas” e ir militar no exterior como exilado), assim como as generalida<strong>de</strong>s<br />

<strong>de</strong> cunho processual como “atuar na resistência ao regime militar”, na “luta<br />

contra a ditadura”, “pela re<strong>de</strong>mocratização do país”, favorecem a fixação <strong>de</strong><br />

um elenco <strong>de</strong> critérios <strong>de</strong> celebração.<br />

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São justamente esses os mecanismos que garantem não apenas a<br />

existência <strong>de</strong> eventos e gerações, como das “interrogações sociológicas,<br />

econômicas, <strong>de</strong>mográficas e históricas” sobre eles (NORA, 1997, p. 2975,<br />

tradução nossa). Assim, as relevâncias nem sempre são <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>adas<br />

simplesmente pelos acontecimentos, mas são igualmente tributárias <strong>de</strong> <strong>uma</strong><br />

espécie <strong>de</strong> “fabricação do sacrossanto” que é operada “ao ritmo dos aniversários<br />

[...] e em contextos históricos profundamente diferentes” (I<strong>de</strong>m).<br />

Para o caso em pauta, esses mecanismos da memória, <strong>de</strong> certa maneira,<br />

também produzem um efeito sobre-regenerador, quer dizer, criam ou re<strong>de</strong>finem<br />

formas <strong>de</strong> gratificações (não materiais), baseadas na afirmação <strong>de</strong> valores como<br />

integração social, sentimento <strong>de</strong> participar <strong>de</strong> <strong>uma</strong> “causa justa” e engajamento<br />

em <strong>uma</strong> “aventura rica <strong>de</strong> sentido” e <strong>de</strong> “<strong>de</strong>votamento”, característicos das<br />

estruturas militantes (GAXIE, 1977).<br />

I – “Causas”, “heroísmos” e “patrimônio partidário” na “homenagem<br />

aos “Guerrilheiros do Araguaia”<br />

A “Guerrilha do Araguaia” teria resultado dos investimentos <strong>de</strong> militantes<br />

do PC do B em <strong>de</strong>fesa da luta armada, <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> <strong>uma</strong> “perspectiva maoísta”,<br />

seguindo a “linha” da revolução chinesa que se pautava pela <strong>de</strong>fesa da chamada<br />

“Guerra Popular Prolongada”, fundamentada num “exército camponês”<br />

mobilizado por “li<strong>de</strong>ranças comunistas”. Formados em cursos na Aca<strong>de</strong>mia<br />

Militar <strong>de</strong> Pequim em 1964, os ativistas constituíram <strong>uma</strong> “base <strong>de</strong> treinamento<br />

militar” nas margens do rio Araguaia localizado no atual estado <strong>de</strong> Tocantins<br />

visando a “organização” da “guerrilha rural” no Brasil. Os primeiros militantes<br />

teriam começado a se <strong>de</strong>slocar para aquela “área” a partir <strong>de</strong> 1966 e se<br />

integrando à dinâmica local como comerciantes, camponeses, médicos, etc., e,<br />

fazendo proselitismo político, objetivavam conquistar a<strong>de</strong>rentes para a<br />

composição do “exército revolucionário”. Paralelamente, <strong>de</strong>senvolviam<br />

ativida<strong>de</strong>s relacionadas ao “treinamento militar” propriamente dito, como<br />

possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> sobrevivência na mata, estratégias <strong>de</strong> ataque, exercícios com<br />

armas, enfim, todas as táticas <strong>de</strong> combate que po<strong>de</strong>riam e <strong>de</strong>veriam ser ativadas<br />

na “guerra popular”.<br />

A maior ofensiva contra os “guerrilheiros” teria ocorrido a partir <strong>de</strong> 1973.<br />

A luta durou até janeiro <strong>de</strong> 1975, mas poucos resistiram e sobreviveram. Assim,<br />

a efetivação <strong>de</strong> um “levante revolucionário” em nome da “liberda<strong>de</strong>” e “dos<br />

direitos do povo” que redundou na morte <strong>de</strong> militantes que “heroicamente<br />

resistiram”, são elementos constantemente acionados para a apresentação da<br />

história do PC do B.<br />

A “Guerrilha do Araguaia”, ao mesmo tempo em que <strong>de</strong>sfalcou o partido<br />

<strong>de</strong> li<strong>de</strong>ranças <strong>de</strong> <strong>de</strong>staque à época, retrospectivamente se constitui num dos<br />

“eventos marcantes” da sua biografia coletiva e, tendo em vista as condições <strong>de</strong><br />

existência do PC do B, tal recurso é significativo. Ou seja, trata-se <strong>de</strong> um partido<br />

cujos militantes mantém <strong>uma</strong> fundamentação “i<strong>de</strong>ológica” calcada em<br />

pressupostos marxistas mais “tradicionais”, com número <strong>de</strong> militantes e<br />

<strong>de</strong>sempenhos eleitorais pouco expressivos em termos comparativos.<br />

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Não raro, nas reconstituições do itinerário partidário, observa-se a<br />

ativação <strong>de</strong> <strong>uma</strong> idéia <strong>de</strong> “memória” que comporta sempre, no mínimo, <strong>uma</strong><br />

tripla lógica <strong>de</strong> retribuição que implica em “beneficiados” e “benefícios” a<br />

partir da exaltação das “causas”, dos “heróis” e dos “porta-vozes”. No que<br />

tange às “causas” em nome das quais os “guerrilheiros tombaram”, os<br />

beneficiados pela luta por eles travada seriam as categorias em nome das quais<br />

lutaram: os “trabalhadores”, o “povo”, o “Brasil”, que teriam sido favorecidos<br />

pelo conjunto <strong>de</strong> “conquistas” posteriores (liberda<strong>de</strong>, <strong>de</strong>mocracia...), possíveis<br />

graças às contribuições daqueles militantes que <strong>de</strong>ram suas “vidas” em nome das<br />

mesmas. No que se refere aos “heróis” que morreram em combate, por conta da<br />

“grandiosida<strong>de</strong> da ação”, são constantemente exaltados mediante a prestação<br />

<strong>de</strong> homenagens e formas variadas <strong>de</strong> consagração que visam retribuir-lhe com o<br />

reconhecimento da sua “bravura” e “luta”. E no tocante aos “porta-vozes”,<br />

esses procuram beneficiar-se (não necessariamente <strong>de</strong> forma racional ou<br />

racionalizada) pela <strong>de</strong>tenção da autorida<strong>de</strong> legítima <strong>de</strong> acionar e <strong>de</strong>finir a<br />

própria “memória” (das “causas” e dos “heróis”). Para o caso em pauta, os<br />

dirigentes do PC do B tratam <strong>de</strong> garantir a <strong>de</strong>vida distribuição daqueles<br />

benefícios aos seus respectivos beneficiados, abonando, pois, a sua própria<br />

condição <strong>de</strong> <strong>de</strong>positário ou “guardião da memória” que ajudam a construir e<br />

transmitir.<br />

As homenagens prestadas aos “guerrilheiros do Araguaia” são dos mais<br />

variados tipos, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a sua eternização em nomes <strong>de</strong> ruas, praças, hospitais,<br />

centros <strong>políticos</strong>, entre outros, passando pela divulgação, comumente utilizando<br />

sites <strong>de</strong> internet, <strong>de</strong> “fatos” e protagonistas <strong>de</strong> cunho mais reivindicatório e/ou<br />

<strong>de</strong>nunciativo, e ainda há os acontecimentos ocasionais (e freqüentes)<br />

geralmente realizados em datas comemorativas ou com outros pretextos que o<br />

justificam. A sessão <strong>de</strong> Gran<strong>de</strong> Expediente realizada em 22 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 1996 na<br />

Assembléia Legislativa do estado do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul, proposta pela <strong>de</strong>putada<br />

do PC do B, Jussara Cony, foi um <strong>de</strong>sses ritos/recursos <strong>de</strong> imortalização.<br />

A <strong>de</strong>putada Jussara Cony é proveniente <strong>de</strong> <strong>uma</strong> família <strong>de</strong> comunistas e<br />

tem significativa “inserção sindical e política no serviço público” (CORADINI,<br />

2001, p. 87). Foi funcionária pública, cursou a Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Farmácia e atuou no<br />

movimento estudantil, todos na Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul.<br />

Dedicou-se à “militância sindical” tendo sido eleita presi<strong>de</strong>nte da Associação<br />

Estadual dos Farmacêuticos. A partir disso, investiu em múltiplas “esferas <strong>de</strong><br />

militância, visando sua ‘politização’” (CORADINI, 2001, p. 88). Constituiu, então,<br />

suas bases eleitorais relacionando tais inserções à “enfrentamentos” mais<br />

“universais” que, conjugados às referidas i<strong>de</strong>ntificações, justificam o<br />

pertencimento partidário.<br />

Tal pertencimento implica a posse e administração <strong>de</strong> um conjunto <strong>de</strong><br />

trunfos que constituem o “patrimônio” do partido e que são parcialmente e<br />

temporariamente transmitidos aos seus membros (ainda que passível <strong>de</strong> ser<br />

ilimitadamente prorrogado e restabelecido). A <strong>de</strong>tenção <strong>de</strong>sse capital <strong>de</strong>legado<br />

é resultante também das contribuições oferecidas pelos agentes que investem<br />

das mais variadas formas na instituição e, por isso, são proporcionalmente<br />

investidos por ela. Nos termos propostos por Bourdieu:<br />

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[...] a investidura – acto propriamente mágico <strong>de</strong> instituição pelo qual o partido<br />

consagra oficialmente o candidato oficial a <strong>uma</strong> eleição e que marca a transmissão <strong>de</strong><br />

um capital político, tal como a investidura medieval solenizava a ‘tradição’ <strong>de</strong> um feudo<br />

ou <strong>de</strong> bens <strong>de</strong> raiz – não po<strong>de</strong> ser senão a contrapartida <strong>de</strong> um longo investimento <strong>de</strong><br />

tempo, <strong>de</strong> trabalho, <strong>de</strong> <strong>de</strong>dicação, <strong>de</strong> <strong>de</strong>voção à instituição (BOURDIEU, 1989, p. 192).<br />

Assim concebem-se, pois, as lógicas que autorizam que a <strong>de</strong>putada<br />

Jussara Cony proponha um Gran<strong>de</strong> Expediente em homenagem aos militantes<br />

guerrilheiros e que, por esse intermédio, (re) institua o reconhecimento e a<br />

retribuição à <strong>de</strong>dicação dos mesmos às “causas”, reforce o “patrimônio<br />

coletivo”, aproprie-se <strong>de</strong> um “legado comum” e, <strong>de</strong>ssa forma, reafirme, em<br />

nome do partido, a <strong>de</strong>fesa dos mesmos “i<strong>de</strong>ais”.<br />

bravos lutadores pela <strong>de</strong>mocracia [...] tombaram na <strong>de</strong>fesa <strong>de</strong> um país com justiça e<br />

com liberda<strong>de</strong>.[...] O Partido Comunista do Brasil atuava na região do Araguaia <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />

1966, organizando a luta dos camponeses. Na luta <strong>de</strong>sigual - cem guerrilheiros versus<br />

vinte mil soldados - quase mil moradores da região foram presos e torturados, na<br />

tentativa <strong>de</strong> isolarem-se os guerrilheiros do povo. Poucos, entretanto, morreram no<br />

combate [...]. Os homens e mulheres que lutaram no Araguaia, a resistência armada são<br />

parte do patrimônio <strong>de</strong> lutas do nosso partido, dos brasileiros e da h<strong>uma</strong>nida<strong>de</strong>, sendo,<br />

fundamentalmente, um exemplo a seguir, hoje mais do que nunca, por todos os que<br />

dispõem <strong>de</strong> sua vida para a construção <strong>de</strong> <strong>uma</strong> pátria com dignida<strong>de</strong> para com o seu<br />

povo, com soberania, com <strong>de</strong>mocracia e com justiça social. [...] Homenagear a luta<br />

araguaia é resgatar a história <strong>de</strong> homens e mulheres - pais, mães, irmãs, irmãos, esposo,<br />

esposa -, companheiros que buscam os seus <strong>de</strong>saparecidos, os seus mortos, para, num<br />

gesto <strong>de</strong> amor e <strong>de</strong> carinho, colocá-los no solo pátrio, com dignida<strong>de</strong> à altura da vida que<br />

viveram, do sonho que sonharam, da história que ajudaram a fazer. (Pronunciamento <strong>de</strong><br />

Jussara Cony no Gran<strong>de</strong> Expediente da Assembléia Legislativa/RS, 22/05/1996).<br />

Nos sucessivos pedidos <strong>de</strong> “apartes” as adjetivações mais enfatizadas<br />

foram “princípios” ou <strong>de</strong>rivações das idéias <strong>de</strong> “justiça”, “liberda<strong>de</strong>”,<br />

“<strong>de</strong>mocracia” e, especialmente, <strong>de</strong> “i<strong>de</strong>ais”. Essas apresentadas como<br />

encerrando os valores que, por um lado, fundamentariam os sentidos daquela<br />

militância pelas quais “<strong>de</strong>ram a vida” e, por outro lado, legitimariam a “justa<br />

homenagem” oferecida aos “guerrilheiros” (ainda que, eventualmente,<br />

discordando dos “meios <strong>de</strong> luta” por eles utilizados). Principalmente, os elogios<br />

feitos revelam os valores com os quais os agentes buscam, <strong>de</strong> diferentes formas,<br />

associar-se, <strong>de</strong>marcando os seus próprios sentidos <strong>de</strong> atuação e consagrando as<br />

suas próprias biografias militantes.<br />

A seguir são apresentados e comentados dois <strong>de</strong>poimentos.<br />

O pronunciamento abaixo foi feito por um então <strong>de</strong>putado estadual pelo<br />

Partido Democrático Brasileiro (PDT), oriundo <strong>de</strong> <strong>uma</strong> família <strong>de</strong> “tradição<br />

trabalhista” e “intelectual” no estado que fora lí<strong>de</strong>r estudantil nos anos oitenta<br />

e que seguiu a carreira política (sendo duas vezes vereador, presi<strong>de</strong>nte da Cia<br />

Energética do Estado – CEEE –, três vezes <strong>de</strong>putado estadual, duas vezes<br />

candidato à prefeitura da capital e atualmente é <strong>de</strong>putado fe<strong>de</strong>ral) sempre no<br />

mesmo partido.<br />

Deputada Jussara Cony, queremos, em nome da Bancada do Partido Democrático<br />

Trabalhista, cumprimentar V. Exa. pelo seu pronunciamento e essa justíssima<br />

homenagem que faz aos lutadores que tombaram no Araguaia. Permita que nos somemos<br />

à homenagem aos seus familiares dizendo que o exemplo <strong>de</strong> fibra, <strong>de</strong> coragem, <strong>de</strong><br />

tenacida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> firmeza <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ais, <strong>de</strong> combativida<strong>de</strong> daqueles militantes, é exatamente o<br />

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que precisa o nosso povo, tão sofrido em meio a tanta <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> vivendo num País<br />

que marginaliza do processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento econômico legiões e legiões <strong>de</strong><br />

brasileiros. [...] Temos certeza <strong>de</strong> que exemplos históricos como o dos militantes do<br />

Partido Comunista do Brasil, que tombaram por seus i<strong>de</strong>ais no Araguaia, contribuem para<br />

que um dia tenhamos <strong>uma</strong> nação muito diferente <strong>de</strong>sta - um Brasil soberano, livre, justo<br />

e socialista - para que possamos conviver com igualda<strong>de</strong> <strong>de</strong> oportunida<strong>de</strong>s.<br />

(Pronunciamento <strong>de</strong> Vieira da Cunha/PDT no Gran<strong>de</strong> Expediente da Assembléia<br />

Legislativa/RS, 22/05/1996).<br />

No testemunho que oferece há a ênfase na categoria “povo” que é<br />

compatível com o uso priorizado pela “tradição trabalhista” à qual se inscreve.<br />

Assim, busca a associação daquela categoria com os “lutadores do Araguaia”<br />

mediante a <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> <strong>uma</strong> série <strong>de</strong> qualificações que os singularizariam, tais<br />

como a “tenacida<strong>de</strong>”, a “firmeza <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ais” e a “combativida<strong>de</strong>”. Há igualmente<br />

a utilização <strong>de</strong> termos que remetem a um repertório usualmente utilizado para a<br />

<strong>de</strong>finição <strong>de</strong> “ícones” que personalizam qualida<strong>de</strong>s “guerreiras” e que fun<strong>de</strong>m<br />

“funções militares” e “políticas”, igualmente inspirada nos marcos daquela<br />

“tradição política”. Além disso, ele assume orientações próprias <strong>de</strong> um “discurso<br />

<strong>de</strong> esquerda” e estabelece a aproximação com aqueles “exemplos históricos”<br />

mediante a ênfase na crítica social que “marginaliza legiões <strong>de</strong> brasileiros”.<br />

O <strong>de</strong>putado que se pronunciou pelo PMDB atuou no movimento estudantil<br />

nos anos sessenta e, tendo vinculação com a Ação Popular, chegou a ser vicepresi<strong>de</strong>nte<br />

da União Gaúcha dos Estudantes (UGES) e, <strong>de</strong>pois, priorizou a<br />

atuação no MDB permanecendo no PMDB com a reorganização partidária<br />

(CORADINI, 2001, p. 175).<br />

Deputada Jussara Cony, V Exa. tem sido nesta Casa, a mensageira <strong>de</strong> <strong>uma</strong> história, <strong>uma</strong><br />

guerrilheira da <strong>de</strong>mocracia, <strong>uma</strong> guerrilheira dos seus sonhos socialistas. (...) A<br />

coerência do seu discurso trouxe respeito aos seus i<strong>de</strong>ais, mas naturalmente traz a<br />

obvieda<strong>de</strong> do reconhecimento <strong>de</strong> todos nós por esse sonho. E essa homenagem realizada<br />

hoje é a pura reverência dos seus sonhos, no dia-a-dia <strong>de</strong>sta Casa. A Deputada Jussara<br />

Cony tem esse reconhecimento <strong>de</strong> todos que <strong>de</strong>la convergem ou divergem. (...) Todos<br />

procuramos nossos úteros na universida<strong>de</strong>, na imprensa, proximamente à vida pública,<br />

mas alguns fizeram sua escolha pelo confronto armado. Po<strong>de</strong>-se divergir da opção feita<br />

por eles; po<strong>de</strong>-se dizer que tiveram um equívoco <strong>de</strong> avaliação ou não. Entretanto, não se<br />

po<strong>de</strong> negar que eles foram coerentes, transparentes, verticais na postura e na solução <strong>de</strong><br />

seus i<strong>de</strong>ais. Em boa parte também <strong>de</strong>les <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>u a evolução do processo <strong>de</strong> abertura<br />

<strong>de</strong>mocrática. (...) Pena que a nossa batalha não teve condições <strong>de</strong> progredir<br />

simplesmente pelo verbo na luta <strong>de</strong>mocrática. Pela nossa geração inteira, não<br />

po<strong>de</strong>ríamos <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> nos associar a essa bela, tocante, justa e emocional homenagem.<br />

Talvez essa fosse <strong>uma</strong> dívida que tivéssemos com todos os nossos queridos.<br />

(Pronunciamento <strong>de</strong> Paulo Odone/PMDB no Gran<strong>de</strong> Expediente da Assembléia<br />

Legislativa/RS, 22/05/1996).<br />

Na sua fala, “elogiou” a <strong>de</strong>putada responsável pelo Gran<strong>de</strong> Expediente e<br />

criticou a “opção <strong>de</strong> luta” privilegiada pelos militantes que fizeram a<br />

“guerrilha”. Tais posicionamentos po<strong>de</strong>m ser lidos à luz do itinerário militante<br />

do <strong>de</strong>putado, ou seja, como convergente com a valorização dos papéis<br />

institucionais e, conseqüentemente, divergente <strong>de</strong> meios clan<strong>de</strong>stinos ou <strong>de</strong><br />

confronto armado. De qualquer modo, não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> também acionar um sentido<br />

<strong>de</strong> geração e nela se inscrever. É preciso ressaltar que para esse observa-se <strong>uma</strong><br />

idéia <strong>de</strong> dívida que está sendo saldada com a homenagem, estabelecendo o<br />

distanciamento das posições; contrastantes como outros casos em que, <strong>de</strong>vido à<br />

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existência <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificações contun<strong>de</strong>ntes, o ajuste entre “débito” e “crédito” é<br />

infinitamente mais exigente.<br />

II – “Protagonismo militante” e “eventos” <strong>de</strong> afirmação geracional:<br />

homenagem a Marcos Klassmann<br />

Como já foi dito, as homenagens analisadas nesse artigo constituem<br />

instrumentos <strong>de</strong> consagração <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminados personagens, daqueles que se<br />

associam aos mesmos por intermédio dos seus pronunciamentos e <strong>de</strong> certos<br />

atributos tidos como relevantes para a intervenção política. O foco agora recai<br />

no Gran<strong>de</strong> Expediente realizado em 9 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2006, <strong>de</strong>dicado à<br />

celebração “da memória” <strong>de</strong> Marcos Klassmann, proposto pelo <strong>de</strong>putado do PT<br />

Adão Villaver<strong>de</strong>.<br />

Marcos Klassmann é lembrado pela ocupação <strong>de</strong> um mandato na Câmara<br />

<strong>de</strong> Vereadores <strong>de</strong> Porto Alegre fruto <strong>de</strong> <strong>uma</strong> campanha “ímpar” e que ocasionou<br />

a sua cassação. Ele é apresentado primordialmente pela <strong>de</strong>tenção <strong>de</strong> atributos<br />

<strong>de</strong> militância, como são <strong>de</strong>monstrados adiante, os adjetivos comumente<br />

utilizados para <strong>de</strong>fini-lo são: “abnegado”, “corajoso”, “<strong>de</strong>stemido”,<br />

“combatente”, “aguerrido”, “solidário”, entre outros. Os mesmos acompanham<br />

a <strong>de</strong>scrição do itinerário <strong>de</strong> um jovem militante, filho <strong>de</strong> operário, que iniciou<br />

sua atuação em um bairro popular <strong>de</strong> Porto Alegre, o IAPI, se <strong>de</strong>stacando no<br />

movimento estudantil e na presidência do Setor Jovem do MDB metropolitano.<br />

A combinação <strong>de</strong> origem social baixa, intensida<strong>de</strong> da militância,<br />

importância do uso da biografia e dos vínculos para a ocupação <strong>de</strong> cargos<br />

públicos, acompanhados <strong>de</strong> menor escolarização, compõem um perfil <strong>de</strong><br />

“especialização militante”: padrão <strong>de</strong> carreira comum a vários militantes da<br />

“luta contra a ditadura” e distinto <strong>de</strong> outros marcados pela “especialização<br />

eleitoral”, pela “especialização acadêmica” e pela especialização “técnico<br />

administrativa” (REIS, 2007).<br />

Po<strong>de</strong>m ser mencionados alguns dos principais elementos utilizados para a<br />

sua caracterização como referência <strong>de</strong> <strong>uma</strong> geração pelo proponente da<br />

homenagem: a campanha para vereador <strong>de</strong> 1976, em que as principais “forças<br />

da esquerda jovem” do estado se reuniram; o panfleto <strong>de</strong> divulgação da<br />

candidatura intitulado “Vote contra o governo”; as prisões e perseguições<br />

sofridas; a cassação do mandato; o engajamento nas causas da anistia e dos<br />

direitos h<strong>uma</strong>nos; entre outros. Esses são frisados em <strong>de</strong>trimento <strong>de</strong> dados<br />

biográficos tais como: a opção inicial pelo Partido Democrático Trabalhista, a<br />

ocupação <strong>de</strong> cargos <strong>de</strong> confiança ligados à sigla, a <strong>de</strong>rrota na eleição <strong>de</strong> 1982<br />

(quando concorreu a <strong>de</strong>putado estadual) e as disputas internas da legenda. Ao<br />

passo que a participação <strong>de</strong> Klassmann na dissidência do PDT que a<strong>de</strong>riu à<br />

candidatura <strong>de</strong> Tarso Genro (PT) à prefeitura <strong>de</strong> Porto Alegre, em 2000, a<br />

filiação ao PT, no ano seguinte e a atuação como assessor do <strong>de</strong>putado fe<strong>de</strong>ral<br />

Henrique Fontana são aspectos suscitados somente por parte dos agentes que<br />

visavam apontá-los como movimentos promotores <strong>de</strong> um “reencontro”.<br />

Cabe ressaltar ainda que a iniciativa da homenagem partiu <strong>de</strong> um<br />

parlamentar, filho <strong>de</strong> funcionário público ligado ao PCB, que pertenceu à<br />

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“última geração” <strong>de</strong> militantes que ingressaram na atuação política ainda na<br />

vigência da regime militar. Influenciado diretamente pelos protagonistas que o<br />

antece<strong>de</strong>ram e que participaram <strong>de</strong> “eventos” cultivados na “memória” pelo<br />

“heroísmo” dos personagens, Adão Villaver<strong>de</strong> ativa <strong>uma</strong> idéia <strong>de</strong> “legado” <strong>de</strong><br />

Klassmann, afirmando o reconhecimento <strong>de</strong> sua “importância histórica” e<br />

registrando os “feitos”, as “lutas” e os “enfrentamentos” dos quais participou.<br />

Além da atuação no movimento estudantil na década <strong>de</strong> setenta, Adão<br />

Villaver<strong>de</strong> atuou também no Setor Jovem do MDB e na Tendência Socialista do<br />

mesmo partido. Posteriormente se filiou ao PT, foi professor universitário na<br />

PUC <strong>de</strong> Porto Alegre, militou no sindicalismo, nas tendências internas do PT<br />

(inicialmente vinculado à Democracia Socialista li<strong>de</strong>rada por Raul Pont e<br />

posteriormente às “correntes mais mo<strong>de</strong>radas” reunidas em torno <strong>de</strong> Tarso<br />

Genro). Logo, sua i<strong>de</strong>ntificação com o homenageado alicerça-se nos<br />

alinhamentos comuns no momento inaugural e nos últimos anos (quando<br />

Klassmann migrou para o PT).<br />

O pronunciamento <strong>de</strong> abertura do Gran<strong>de</strong> Expediente <strong>de</strong> Villaver<strong>de</strong> se<br />

estruturou em dois momentos distintos: no primeiro, foi <strong>de</strong>stacado o significado<br />

da homenagem e, subseqüentemente, os diferentes aspectos biográficos do<br />

homenageado.<br />

Na primeira parte, são apresentados dois objetivos complementares<br />

presentes na “cerimônia”: “reverenciar essa personalida<strong>de</strong>” e “simbolizar o<br />

justo apreço a toda <strong>uma</strong> geração que lutou pela re<strong>de</strong>mocratização”. Na sua<br />

avaliação, a “personalida<strong>de</strong>” seria representante das “idéias da esquerda no<br />

nosso país que marcaram os últimos anos do século XX e início <strong>de</strong>ste”. A<br />

homenagem, assim, faria a “justiça merecida à figura h<strong>uma</strong>na que <strong>de</strong>ixou um<br />

legado <strong>de</strong> coragem e <strong>de</strong>terminação política como poucos” e resistir à “tendência<br />

<strong>de</strong> dar um caráter volátil às idéias <strong>de</strong> esquerda”.<br />

A exposição do “legado” <strong>de</strong> Marcos Klassmann é indissociável da ativação<br />

<strong>de</strong> <strong>uma</strong> série <strong>de</strong> episódios e posicionamentos dos quais foi protagonista, mas que<br />

fixam o “valor” <strong>de</strong> <strong>uma</strong> “geração” e buscam a “perenida<strong>de</strong>’ <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminadas<br />

“idéias <strong>de</strong> esquerda”. Com efeito, combina-se a preocupação <strong>de</strong> <strong>de</strong>stacá-lo e<br />

situá-lo como “um dos artesãos <strong>de</strong> um protagonismo militante que <strong>de</strong>terminou a<br />

re<strong>de</strong>mocratização <strong>de</strong>ste país”.<br />

Na seqüência, os traços biográficos são grifados respeitando a dupla<br />

preocupação: apresentar a “personalida<strong>de</strong> singular” a partir das características<br />

pessoais (“<strong>de</strong>spretensioso”, “crítico”, “instigante”, “corajoso”, “abnegado”...)<br />

e associá-lo a valores, idéias, “eventos”, épocas e “geração” que se <strong>de</strong>seja<br />

eternizar.<br />

Em meados da década <strong>de</strong> 70, o Brasil vivia <strong>uma</strong> época muito dura, tempos <strong>de</strong><br />

obscurantismo, um período <strong>de</strong> triste memória para todos nós. Isso sem falar da<br />

fragmentação que vivia a esquerda à época, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> duros golpes a ela aplicados pela<br />

Ditadura Militar. Mas começava um tempo <strong>de</strong> rearticulação e recomposição política em<br />

torno <strong>de</strong> <strong>uma</strong> frente <strong>de</strong> oposições, e o velho MDB foi o esteio <strong>de</strong>ssa possibilida<strong>de</strong>. É nessa<br />

época que emerge a li<strong>de</strong>rança do então estudante Marcão, com muita força, pois, <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />

o ensino secundário, já estava engajado na luta contra o Regime Militar, <strong>de</strong>stacando-se<br />

não só por ser um abnegado lutador pelas causas sociais, como pela <strong>de</strong>fesa <strong>de</strong> <strong>uma</strong><br />

socieda<strong>de</strong> mais justa e solidária. Sempre foi um militante corajoso na <strong>de</strong>núncia do<br />

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<strong>de</strong>srespeito aos direitos h<strong>uma</strong>nos, sabendo utilizar, como poucos, sua inteligência, seu<br />

conhecimento e, sobretudo, a contundência da sua força argumentativa.<br />

(Pronunciamento <strong>de</strong> Adão Vilaver<strong>de</strong>/PT no Gran<strong>de</strong> Expediente da Assembléia<br />

Legislativa/RS, 9/11/2006).<br />

Dois elementos do perfil <strong>de</strong> Marcos Klassmann foram <strong>de</strong>stacados pelo<br />

<strong>de</strong>putado Adão Villaver<strong>de</strong> e <strong>de</strong>vem ser retomados: 1) sua origem social; 2) a<br />

disposição para as ações mais “arriscadas” e “combativas” que marcaram seu<br />

trajeto nos anos setenta.<br />

Sobre o primeiro elemento é importante reter a rarida<strong>de</strong> da origem<br />

“popular” ou “operária” entre os agentes que participaram da contestação ao<br />

“regime militar” no Rio Gran<strong>de</strong> do Sul (REIS, 2007). A <strong>de</strong>speito da centralida<strong>de</strong><br />

que o componente “classista” assumia nos discursos dos militantes, o<br />

pertencimento ou a vinculação concreta ao “operariado” estavam presentes em<br />

casos excepcionais e que não tiveram gran<strong>de</strong> êxito nas suas carreiras políticas,<br />

profissionais. A importância <strong>de</strong> Marcos Klassmann como um dos principais<br />

protagonistas dos anos setenta serve como <strong>uma</strong> renovação <strong>de</strong>sse elo entre<br />

“intelectualida<strong>de</strong>” e “classe trabalhadora”, mesmo que o militante político não<br />

tenha conseguido manter-se na arena dos profissionais da ocupação <strong>de</strong> cargos<br />

eletivos.<br />

Quanto ao segundo elemento, a disposição para as ações arriscadas e<br />

“combativas”, é possível evi<strong>de</strong>nciar nessa valorização <strong>uma</strong> i<strong>de</strong>ntificação com as<br />

gerações anteriores que participaram da clan<strong>de</strong>stinida<strong>de</strong>, da luta armada, do<br />

enfrentamento direto com o “regime militar”. Apesar da autocrítica e da opção<br />

pelos canais institucionais feita durante a década <strong>de</strong> setenta, percebe-se nesse<br />

universo <strong>de</strong> militantes a reverência e a dívida em relação aos lí<strong>de</strong>res, aos<br />

eventos, às idéias e as iniciativas que marcaram o final da década <strong>de</strong> sessenta.<br />

Permanecem celebrando os ícones e resgatando o romantismo dos agentes que<br />

os antece<strong>de</strong>ram na contestação ao regime militar. As posições <strong>de</strong> Klassmann,<br />

apesar <strong>de</strong> ser um protagonista dos anos setenta, permitem estabelecer a ligação<br />

com práticas, com valores e com <strong>uma</strong> espécie <strong>de</strong> “espírito revolucionário e<br />

subversivo” que não cessou <strong>de</strong> ser valorizado.<br />

São episódios classificados como marcantes por Adão Villaver<strong>de</strong>: A “fuga”<br />

no porta-malas <strong>de</strong> um opala “da repressão da polícia” que queria prendê-lo<br />

quando ocorria um encontro <strong>de</strong> estudantes, em 1975; o programa da candidatura<br />

a vereador “cujo símbolo era um jornal tamanho standard, o chamado<br />

panfletão, que tinha como slogan: Vote contra o governo”, sua elaboração<br />

coletiva por militantes <strong>de</strong> várias “forças” como A<strong>de</strong>lmo Genro Filho, Raul Pont,<br />

Sérgio Weigert, Carlos De Ré, Calino Pacheco, sua distribuição clan<strong>de</strong>stina em<br />

fábricas, na universida<strong>de</strong> e na periferia, bem como as cinco prisões <strong>de</strong><br />

Klassmann e companheiros durante a campanha; e a cassação do mandato<br />

mediante a realização do primeiro discurso, então como lí<strong>de</strong>r da oposição, etc.<br />

As passagens abaixo buscam sintetizar como tais ações <strong>de</strong>linearam um “legado”<br />

para a geração.<br />

Do legado <strong>de</strong>ixado pelo Marcão para a nossa geração, mesmo que isso possa ser<br />

reducionista, <strong>de</strong>staco um aspecto que reputo marcar a sua personalida<strong>de</strong>: a capacida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> crítica, a rebeldia e o inconformismo do saber, da inteligência e da coragem diante <strong>de</strong><br />

<strong>uma</strong> realida<strong>de</strong> que se pretendia sempre indiscutível e portadora da última e também da<br />

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penúltima palavra [...]. Marcão nunca se dobrou; sempre teve coragem para enfrentar<br />

tal realida<strong>de</strong>. [...] Marcão foi um daqueles imprescindíveis, que marcaram <strong>uma</strong> época<br />

enquanto alguns se sujeitavam à realida<strong>de</strong>, esterilizando sua capacida<strong>de</strong> crítica, dando<br />

naturalida<strong>de</strong> à vivência sem conflitos com ela, parecendo ser esse o espírito do nosso<br />

tempo. Seu inconformismo, sua inteligência, sua visão <strong>de</strong>stemida e seu estilo instigante<br />

sempre foram as fontes que alimentavam a sua capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> formulação e, sobretudo,<br />

a sua capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ação política. [...]. A rebeldia, a conduta <strong>de</strong>stemida, os valores<br />

éticos e a visão <strong>de</strong> mundo crítica, fraterna, h<strong>uma</strong>nista e coletiva, enfim, aquela visão<br />

que todos sabemos que o Marcão sempre teve, serão reafirmados cada vez mais por nós e<br />

sobretudo pela socieda<strong>de</strong> que todos queremos. (Pronunciamento <strong>de</strong> Adão Vilaver<strong>de</strong>/PT<br />

no Gran<strong>de</strong> Expediente da Assembléia Legislativa/RS, 9/11/2006).<br />

A vinculação <strong>de</strong> Klassmann aos eventos e aos atributos do “protagonismo<br />

militante” que marcaram os anos setenta é grifada em outros <strong>de</strong>poimentos. O<br />

fragmento apresentado abaixo é <strong>de</strong> <strong>uma</strong> li<strong>de</strong>rança que pertenceu à <strong>uma</strong><br />

dissidência do PCB nos anos sessenta e atuou em vários espaços <strong>de</strong> intervenção<br />

nas décadas <strong>de</strong> 60 e 70 (movimento estudantil, grupo <strong>de</strong> estudos do marxismo,<br />

Setor Jovem e IEPES do MDB, jornal Em Tempo, fundador da Tendência<br />

Socialista, sindicato dos professores...) e foi um dos principais “fundadores do<br />

PT” no estado. Em 1982 foi candidato ao senado, foi secretário-geral do<br />

Diretório Regional do PT no RS, membro da direção estadual, em 1986 se elegeu<br />

<strong>de</strong>putado estadual, <strong>de</strong>pois se elegeu <strong>de</strong>putado fe<strong>de</strong>ral, vice-prefeito em 1992 e<br />

prefeito em 1996 <strong>de</strong> Porto Alegre, candidato em 2001 à presidência nacional do<br />

PT. Atualmente é <strong>de</strong>putado estadual (reeleito em 2006) e Secretário Geral do PT<br />

nacional.<br />

Sinto-me comprometido a usar este microfone por ter partilhado, por ter vivido vários<br />

<strong>de</strong>sses momentos com o Marcos Klassmann, principalmente na meta<strong>de</strong> dos anos 70,<br />

quando o setor jovem do MDB e o IEPES, antigo Instituto <strong>de</strong> Estudos <strong>de</strong> Políticas<br />

Econômicas e Sociais, iniciaram, nesta cida<strong>de</strong>, um movimento além da mera resistência,<br />

um movimento que buscava recuperar espaços e o direito ao <strong>de</strong>bate, ao diálogo, à<br />

reunião pública. [...]. A campanha do Marcos Klassmann foi realmente singular. E vejam<br />

que se passaram apenas 30 anos. Às vezes, é bom termos a dimensão da história. Trinta<br />

anos atrás, era proibido distribuir um manifesto ou um panfleto que pedia para votar<br />

contra o governo! Isso dá a dimensão da pouca história <strong>de</strong>mocrática e da socieda<strong>de</strong><br />

extremamente autoritária e oligárquica que sempre tivemos. [...]. Partilhei daqueles<br />

momentos. Naqueles anos, apesar <strong>de</strong> estar fazendo pós-graduação em Campinas, sempre<br />

que podia vinha a Porto Alegre para me engajar na campanha. Tive a honra <strong>de</strong> participar<br />

da redação daquele panfleto que se transformou no principal manifesto da campanha do<br />

Marcão. O título era inocente e hoje po<strong>de</strong>ria ser consi<strong>de</strong>rado pueril: Vote contra o<br />

governo. Esta homenagem nos faz repensar a nossa história e mostra que a nossa ação<br />

parlamentar, a nossa ação <strong>de</strong> luta política <strong>de</strong>ve estar sempre embasada e beber nessas<br />

fontes <strong>de</strong> enfrentamento, ousadia e capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> mudança e transformação.<br />

(Pronunciamento <strong>de</strong> Raul Pont/PT no Gran<strong>de</strong> Expediente da Assembléia Legislativa/RS,<br />

9/11/2006).<br />

Observa-se que o <strong>de</strong>putado associa-se (por “comprometimento”) aos<br />

mesmos eventos e espaços inaugurais <strong>de</strong> atuação, situando-os historicamente<br />

com vistas a enfatizar os “avanços” e “conquistas <strong>de</strong>mocráticas” <strong>de</strong>correntes.<br />

Além disso, sublinha atributos que são conferidos ao homenageado, tais como<br />

“enfrentamento”, “ousadia”, “capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> mudança e transformação”, para<br />

reivindicar <strong>uma</strong> <strong>de</strong>terminada “ação parlamentar” e “ação <strong>de</strong> luta política”<br />

compatíveis com as suas próprias tomadas <strong>de</strong> posição, sempre vinculadas à<br />

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posição <strong>de</strong> dirigente <strong>de</strong> <strong>uma</strong> “corrente <strong>de</strong> esquerda” <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um partido “<strong>de</strong><br />

esquerda”.<br />

No fragmento do pronunciamento <strong>de</strong> Aloísio Classmann (PTB) reproduzido<br />

abaixo, a homenagem se inicia com <strong>uma</strong> discussão sobre a grafia com “c” ou “k”<br />

dos sobrenomes. Enfatiza que, apesar da diferente forma <strong>de</strong> escrita o<br />

homenageado (morto) e aquele que homenageia (<strong>de</strong>putado) teriam a mesma<br />

“origem” (atestando o parentesco entre eles). O autor do “aparte” foi vereador<br />

(por três mandatos) e prefeito <strong>de</strong> São Martinho, cida<strong>de</strong> natal localizada no<br />

interior do estado, on<strong>de</strong> é comerciante e pequeno agricultor. Atualmente está<br />

no terceiro mandato como <strong>de</strong>putado estadual e é presi<strong>de</strong>nte do PTB em Santa<br />

Rosa, localizada na região noroeste do estado.<br />

Quero aproveitar este momento para me solidarizar com as lutas do Marcos, que foram<br />

em favor do povo mais humil<strong>de</strong>, da classe mais sofrida. Essa também é a nossa luta aqui.<br />

Sei como é duro – já passei por isso, assim como vários <strong>de</strong>putados – ver a família não ter<br />

dinheiro sequer para pagar a conta <strong>de</strong> luz e <strong>de</strong> água, para comprar um rancho digno, não<br />

ter emprego. Essas eram as lutas <strong>de</strong> Marcos. Marcos lutava pela liberda<strong>de</strong> e contra o que<br />

havia <strong>de</strong> ruim na Ditadura. Mas temos que registrar também as coisas boas que houve na<br />

Ditadura, sim, como é o caso do projeto agrícola <strong>de</strong>ste País. [...]. Sou obrigado a fazer<br />

este registro, porque sou filho <strong>de</strong> agricultor. Quero registrar a luta do Marcos, o seu<br />

trabalho. Po<strong>de</strong>mos concordar com ele ou contestá-lo, mas não po<strong>de</strong>mos negar que hoje<br />

muitos humil<strong>de</strong>s sofrem injustiças e passam fome. Estou aqui para me somar e<br />

referenciar as lutas daquele homem em favor da liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> expressão, da liberda<strong>de</strong><br />

para contestar e criticar, o que significa <strong>de</strong>nunciar as coisas ruins, mas também elogiar<br />

as coisas certas. Muito obrigado. (Pronunciamento <strong>de</strong> Aloísio Classmann/PTB no Gran<strong>de</strong><br />

Expediente da Assembléia Legislativa/RS, 9/11/2006).<br />

Observa-se a i<strong>de</strong>ntificação que estabelece com as origens baixas do<br />

homenageado e, principalmente, enfatiza sua ligação rural ativada não somente<br />

para positivar o período militar, mas para sublinhar “ban<strong>de</strong>iras <strong>de</strong> luta” que<br />

sustentam a sua própria posição como “representante” <strong>de</strong> <strong>uma</strong> categoria, cujas<br />

“bases” estão no “interior”.<br />

III – “Geração”, “intelectualida<strong>de</strong>” e “<strong>de</strong>mocracia”: a ativação <strong>de</strong> um<br />

“legado” e a valorização <strong>de</strong> um “período”<br />

Nem todos os militantes possuem as mesmas condições <strong>de</strong> vinculação ao<br />

“i<strong>de</strong>al <strong>de</strong>mocrático” que prevalece no período mais recente. Nesse caso, a<br />

atuação no MDB (via IEPES e Setor Jovem) e o <strong>de</strong>staque que os estreantes<br />

adquiriram na segunda meta<strong>de</strong> dos anos setenta potencializaram o<br />

fortalecimento e maximização da vinculação entre contestação ao “regime<br />

militar” e “<strong>de</strong>fesa da <strong>de</strong>mocracia”. Constituindo-se, então, em formas<br />

privilegiadas <strong>de</strong> uso do passado aceitas e valorizadas especialmente por agentes<br />

externos aos círculos <strong>de</strong> militantes que “lutaram contra a ditadura”.<br />

Mediante a <strong>análise</strong> dos <strong>de</strong>poimentos <strong>de</strong> celebração <strong>de</strong> li<strong>de</strong>ranças após seu<br />

falecimento po<strong>de</strong>-se apreen<strong>de</strong>r <strong>uma</strong> gama <strong>de</strong> sentidos compartilhados e<br />

disputados e como esses se constituem na consagração não apenas do morto,<br />

mas <strong>de</strong> categorias como “geração”, “eventos” (momentos ou períodos) e<br />

“<strong>de</strong>mocracia”, bem como dos próprios agentes que se autorizam a <strong>de</strong>por sobre o<br />

homenageado. Isso sem se <strong>de</strong>scolar do trabalho <strong>de</strong> memória que confere ao<br />

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personagem trunfos por intermédio <strong>de</strong> processos <strong>de</strong> seleção, triagem, escolha e<br />

amálgamas. O mesmo obe<strong>de</strong>ce às proprieda<strong>de</strong>s do homenageado, seu itinerário e<br />

como foi reconstituindo sua biografia e suas i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s, mas igualmente aos<br />

elementos que permitem a associação e a auto-consagração por partes daqueles<br />

que fazem a homenagem.<br />

Busca-se aqui localizar alguns dos elementos discutidos até então a partir<br />

do Gran<strong>de</strong> Expediente da Assembléia Legislativa do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul, realizado<br />

no dia 11 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1997, em homenagem ao primeiro ano da morte <strong>de</strong><br />

André Cecil Forster, que fora presi<strong>de</strong>nte do Diretório Central dos Estudantes da<br />

Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul no final dos anos sessenta, do<br />

Instituto <strong>de</strong> Estudos Políticos Econômicos e Sociais (IEPES), do Sindicato <strong>de</strong><br />

Sociólogos do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul, além <strong>de</strong> vereador por Porto Alegre, presi<strong>de</strong>nte<br />

estadual do PMDB e Secretário Estadual <strong>de</strong> Ciência e Tecnologia.<br />

A proposta foi <strong>de</strong> Giovani Feltes, <strong>de</strong>putado estadual que chegou a ser lí<strong>de</strong>r<br />

estudantil e membro do Setor Jovem do MDB <strong>de</strong> Sapiranga/RS. Iniciou sua<br />

carreira política e eleitoral em 1976, elegendo vereador pelo MDB em Campo<br />

Bom/RS (com 19 anos) e reelegendo-se em 1982 no mesmo município, já pelo<br />

PMDB. Por esse mesmo partido foi <strong>de</strong>putado estadual, lí<strong>de</strong>r da bancada na<br />

Assembléia Legislativa, 1° vice-presi<strong>de</strong>nte do PMDB, membro titular da Comissão<br />

<strong>de</strong> Educação e Cultura e da Comissão <strong>de</strong> Cidadania e Direitos H<strong>uma</strong>nos do<br />

legislativo gaúcho, entre outros cargos ocupados.<br />

No seu discurso <strong>de</strong> abertura, Feltes articulou a valorização <strong>de</strong> traços do<br />

“caráter” <strong>de</strong> Forster com suas ações e convicções políticas e “capacida<strong>de</strong><br />

intelectual”. A reunião dos adjetivos qualificadores da personalida<strong>de</strong> do político<br />

(competência, profissionalismo, dignida<strong>de</strong>, ativismo...), posteriormente<br />

reafirmados nos “apartes”, comporia o “legado” <strong>de</strong>ixado, ou seja, nas suas<br />

palavras “um gran<strong>de</strong> patrimônio ético e político”. Adiciona-se a isso, o esforço<br />

em <strong>de</strong>marcar que a acumulação inicial <strong>de</strong>sse “patrimônio” residiria no período<br />

ditatorial, marcando a singularida<strong>de</strong> das ações não <strong>de</strong> um “jovem”, mas <strong>de</strong> <strong>uma</strong><br />

“juventu<strong>de</strong>”, que localizaria nele, agora, com um olhar retrospectivo sobre a<br />

história, um parâmetro <strong>de</strong> conduta, mas igualmente <strong>de</strong> distinção e<br />

singularida<strong>de</strong>.<br />

Trata-se <strong>de</strong> relembrar um homem bom e honrado, que <strong>de</strong>ixou um gran<strong>de</strong> patrimônio<br />

ético e político. E esse, para nós, será sempre <strong>uma</strong> referência necessária. [...] André é a<br />

própria síntese, em sua realização perfeita, do homem <strong>de</strong> pensamento e do homem <strong>de</strong><br />

ação. Nele, <strong>de</strong>u-se, para o privilégio <strong>de</strong> todos os que com ele conviveram, a feliz<br />

conjunção da capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> reflexão e <strong>de</strong> <strong>análise</strong>, com <strong>de</strong>terminada <strong>de</strong>cisão <strong>de</strong><br />

intervenção na realida<strong>de</strong> política e social. Homem público <strong>de</strong> múltiplos talentos soube<br />

ser competente e criativo, tanto como sociólogo, como professor, como assessor, como<br />

vereador, como administrador público, como secretário <strong>de</strong> Estado, como organizador e<br />

como dirigente partidário. Em todos os cargos e funções que <strong>de</strong>sempenhou, foi sempre o<br />

mesmo: lúcido, austero, comprometido com o interesse coletivo. [...] André Forster é o<br />

resultado político e ético <strong>de</strong> <strong>uma</strong> parcela da nossa juventu<strong>de</strong> que ingressou na<br />

universida<strong>de</strong> em 1964, <strong>de</strong>frontando-se direta e imediatamente com o regime militar que<br />

então se instaurava. [...] Deixaste para nós a herança <strong>de</strong> um partido forte, lutador,<br />

consciente dos seus <strong>de</strong>veres. Jamais esqueceremos teu ensinamento. [...] Apren<strong>de</strong>mos<br />

contigo os mais altos exemplos <strong>de</strong> dignida<strong>de</strong> h<strong>uma</strong>na. A dignida<strong>de</strong> política <strong>de</strong> pensar e<br />

agir sempre no sentido do coletivo sem vaida<strong>de</strong>s, sem egoísmo. A dignida<strong>de</strong> pessoal <strong>de</strong><br />

enfrentar e <strong>de</strong> lutar contra a doença e a dor, sem queixas, sem esmorecimento, com<br />

altivez, com a coragem cotidiana do ser h<strong>uma</strong>no lúcido e sereno com o seu <strong>de</strong>stino.<br />

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(Pronunciamento <strong>de</strong> Giovani Feltes/PMDB, no Gran<strong>de</strong> Expediente da Assembléia<br />

Legislativa/RS, 11/12/1997).<br />

Dentre os recursos mais exaltados nos testemunhos, observa-se a ênfase<br />

nos “troféus” acumulados a partir da vinculação com Pedro Simon (principal<br />

li<strong>de</strong>rança estadual do MDB e do PMDB) e com “personalida<strong>de</strong>s intelectuais”,<br />

simbolizados por sua atuação no Instituto <strong>de</strong> Estudos Políticos, Econômicos e<br />

Sociais (IEPES). Em contrapartida, é menos evi<strong>de</strong>nciado o trajeto <strong>de</strong> cargos<br />

ocupados nos anos oitenta e menos ainda as a<strong>de</strong>sões anteriores nos anos<br />

sessenta – mais freqüentemente associadas àqueles que tiveram <strong>de</strong>stinos<br />

partidários consi<strong>de</strong>rados como mais “à esquerda”.<br />

O <strong>de</strong>poimento abaixo é <strong>de</strong> um <strong>de</strong>putado estadual do Partido dos<br />

Trabalhadores, que fora dirigente estudantil <strong>de</strong> organizações como Partido<br />

Comunista Brasileiro (PCB) e Partido Operário Comunista (POC) durante os anos<br />

sessenta e setenta. Nesse evi<strong>de</strong>nciou-se a mesma estratégia <strong>de</strong> consagração<br />

geracional comumente por ele acionada nas suas construções retrospectivas<br />

sobre o “passado” (atualmente “aposentado da política”, não raro nas suas<br />

campanhas eleitorais e em outras situações sublinhou em sua biografia a atuação<br />

militante durante o regime militar, exílios, prisões, etc.).<br />

Não só como representante <strong>de</strong> minha bancada, mas muito <strong>de</strong>cididamente por meu<br />

sentimento pessoal, não po<strong>de</strong>ria <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> falar hoje... para a geração que compartilhou<br />

das etapas das lutas <strong>de</strong> André Forster, há esta oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> homenageá-lo. E são<br />

várias as gerações. [...] Quando se po<strong>de</strong> falar <strong>de</strong> <strong>uma</strong> pessoa, que, em várias etapas da<br />

sua vida, foi capaz <strong>de</strong> lutar, foi capaz <strong>de</strong> discernir e, muitas vezes, escolheu o lado mais<br />

difícil e, quando aqui se diz que foi um lutador pela re<strong>de</strong>mocratização do País, teve um<br />

papel fundamental na organização e na articulação da intelectualida<strong>de</strong> neste Estado,<br />

teve um papel fundamental na articulação do próprio MDB [...] o centro <strong>de</strong> aglutinação e<br />

<strong>de</strong> ação política da proposta que tentava trazer o partido à normalida<strong>de</strong> institucional e<br />

<strong>de</strong>mocrática [...]. (Pronunciamento <strong>de</strong> Flávio Koutzii/PT no Gran<strong>de</strong> Expediente da<br />

Assembléia Legislativa/RS, 11/12/1997).<br />

É preciso ressaltar aqui que, diferentemente do caso anterior, a<br />

reivindicação <strong>de</strong> <strong>uma</strong> gama <strong>de</strong> qualificações – como “mérito”, “<strong>de</strong>dicação”,<br />

“resgate dos valores éticos e dos valores <strong>de</strong> i<strong>de</strong>al”, “solidarieda<strong>de</strong>” e<br />

“capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sacrifícios” – é direcionada à categoria geração, a qual se<br />

inscreve ao <strong>de</strong>marcar a sua “emoção pessoal” e para qual solicita<br />

reconhecimento “até dos adversários”. A idéia <strong>de</strong> geração é, então, concebida<br />

como <strong>uma</strong> síntese <strong>de</strong> equivalências na infinita diversida<strong>de</strong> <strong>de</strong> militantes, eventos<br />

e modalida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> intervenção que marcaram os anos sessenta e setenta.<br />

Fica patente, igualmente, nos vários relatos proferidos na ocasião a<br />

importância conferida à interface com os intelectuais expressada nas referências<br />

à organização da intelectualida<strong>de</strong>, à presença <strong>de</strong>ssas “personalida<strong>de</strong>s” com<br />

notorieda<strong>de</strong> acadêmica nacional no Rio Gran<strong>de</strong> do Sul e, principalmente, ao<br />

papel <strong>de</strong> André Forster na estruturação do IEPES no MDB. É preciso sublinhar que<br />

o período <strong>de</strong> maior intensida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s promovidas pelo IEPES converge<br />

com a <strong>de</strong>marcação dos empreendimentos mais sistemáticos dos intelectuais no<br />

espaço político. Ou seja, no início da década <strong>de</strong> 70, os intelectuais se<br />

apresentavam como ator coletivo relevante, encabeçado por li<strong>de</strong>ranças<br />

formadas no seu meio, comungando <strong>de</strong> crenças e fixando estratégias <strong>de</strong><br />

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intervenção. A necessida<strong>de</strong> urgente do processo <strong>de</strong> abertura política<br />

manifestava-se já contando com a integração efetiva <strong>de</strong>ssas li<strong>de</strong>ranças no<br />

<strong>de</strong>bate político propriamente dito, através do qual a oposição se fortalecia. Esse<br />

mergulho na política se cristalizou, inclusive, na revisão do programa do MDB em<br />

1974 (PÉCAUT, 1990).<br />

Devido à importância social e política conquistada a partir da sua inserção<br />

em eventos históricos “marcantes”, somado ao acúmulo e administração <strong>de</strong> um<br />

conjunto <strong>de</strong> recursos que conseguira mobilizar, Forster po<strong>de</strong> traduzir tais trunfos<br />

na conquista <strong>de</strong> posições <strong>de</strong> li<strong>de</strong>rança. O personagem celebrado incorpora o<br />

capital simbólico acumulado nas e pelas lutas travadas em conjunturas<br />

vivenciadas e concebidas como traumáticas. Ele seria o referencial <strong>de</strong> um<br />

engajamento e <strong>uma</strong> fonte <strong>de</strong> valorização da fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> às atitu<strong>de</strong>s, <strong>de</strong> “sucesso”<br />

e “habilida<strong>de</strong> política” que <strong>de</strong>vem servir <strong>de</strong> exemplo. E assim, o morto obtém<br />

tanto o reconhecimento daqueles que reivindicam situar-se (e são reconhecidos)<br />

mais “à esquerda” como aos que estariam mais “à direita” dos posicionamentos<br />

do homenageado, como é possível observar nos relatos abaixo <strong>de</strong> <strong>de</strong>putados do<br />

PPB (consi<strong>de</strong>rado o “sucedâneo” da Arena, partido que “dava sustentação ao<br />

regime militar).<br />

Lí<strong>de</strong>res e <strong>políticos</strong> que realmente praticam política na sua essência, na sua pureza,<br />

<strong>de</strong>stacam-se em todos os tempos, e André Forster <strong>de</strong>stacou-se num momento importante<br />

da vida política brasileira, li<strong>de</strong>rando muitos jovens, mantendo-se ao lado <strong>de</strong> muitos<br />

jovens <strong>de</strong> todos os partidos <strong>de</strong> esquerda... Espero que os jovens que nos acompanham,<br />

que militam na política tenham o sucesso e a habilida<strong>de</strong> política <strong>de</strong> André Forster.<br />

(Pronunciamento <strong>de</strong> João Fischer/PPB no Gran<strong>de</strong> Expediente da Assembléia<br />

Legislativa/RS, 11/12/1997).<br />

V. Exa. tenha a absoluta certeza <strong>de</strong> que não há nenh<strong>uma</strong> contradição em ver um filho da<br />

Arena se manifestar, respeitosamente, para reconhecer o trabalho <strong>de</strong> um antigo<br />

adversário político, André Forster, num escalão bem mais superior ao meu, <strong>de</strong>u exemplos<br />

consolidado, idéias <strong>de</strong> ações no Rio Gran<strong>de</strong> do Sul que todos nós reconhecemos.<br />

(Pronunciamento <strong>de</strong> Francisco Appio/PPB no Gran<strong>de</strong> Expediente da Assembléia<br />

Legislativa/RS, 11/12/1997).<br />

A condição <strong>de</strong> “jovem” exaltada, que é afirmada e reafirmada em quase<br />

todos os pronunciamentos, é utilizada para informar <strong>uma</strong> especificida<strong>de</strong> etária<br />

correlacionada a atributos como disposições, voluntarismos, <strong>de</strong>sprendimentos,<br />

entre outros. Cumpre lembrar que a categoria “juventu<strong>de</strong>” adquire diferentes<br />

<strong>usos</strong> e sentidos conforme o espaço <strong>de</strong> lutas em que ela está inserida. A<br />

caracterização feita é indissociável do universo <strong>de</strong> protestos em que ela foi<br />

produzida e da forte ligação do personagem em pauta com esse universo.<br />

A localização e a centralida<strong>de</strong> facultadas ao papel do “homem político”<br />

para a “abertura” e “consolidação <strong>de</strong>mocrática”, sendo enfatizadas por<br />

li<strong>de</strong>ranças que ingressaram na ativida<strong>de</strong> política posteriormente (final da década<br />

<strong>de</strong> 70 e início da década <strong>de</strong> oitenta), <strong>de</strong>monstram os resultados dos<br />

investimentos empregados pela “geração <strong>de</strong> André Forster”, no sentido <strong>de</strong><br />

promover e fixar símbolos <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificações políticas. N<strong>uma</strong> arena <strong>de</strong><br />

diversificação das opções <strong>de</strong> partidos (reorganização do sistema partidário), há a<br />

persistência do “legado” e dos valores anteriormente construídos e<br />

constantemente reatualizados graças, inclusive, às transmissões e readaptações<br />

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das e nas sucessivas “gerações”. Esse é o caso do significado do <strong>de</strong>poimento do<br />

<strong>de</strong>putado estadual pelo PSB, Beto Albuquerque, que já fora lí<strong>de</strong>r estudantil no<br />

início da década <strong>de</strong> oitenta, vereador por Passo Fundo e atualmente é <strong>de</strong>putado<br />

fe<strong>de</strong>ral.<br />

André Forster, sem dúvida, é merecedor <strong>de</strong>ste registro histórico. Queremo-nos associar à<br />

sua conduta pessoal, à sua disposição <strong>de</strong> não se afastar <strong>de</strong> suas convicções políticas,<br />

como forma <strong>de</strong> prestar, hoje, aqui, <strong>uma</strong> homenagem à sua luta política, contribuiu<br />

<strong>de</strong>cisivamente, às vezes a duras penas, para que este País fosse re<strong>de</strong>mocratizado, para<br />

que houvesse abertura, para que efetivamente nos livrássemos do processo ditatorial,<br />

concentrador e até opressor, que vivemos ao longo <strong>de</strong> trinta anos. (Pronunciamento <strong>de</strong><br />

Beto Albuquerque/PSB no Gran<strong>de</strong> Expediente da Assembléia Legislativa/RS, 11/12/1997).<br />

Dessa forma, “associar-se a sua conduta” e “incluir-se entre aqueles<br />

influenciados” <strong>de</strong> <strong>uma</strong> forma ou <strong>de</strong> outra por Forster, assim como “homenagear<br />

a luta política” e estabelecer a equivalência do “objetivo comum” (socieda<strong>de</strong><br />

diferente), significa partilhar das prerrogativas inerentes àqueles que comungam<br />

<strong>uma</strong> causa vivida como transcen<strong>de</strong>ntal. Muitas vezes esses her<strong>de</strong>iros são<br />

responsáveis pela atualização da “causa” e pela construção da sua memória,<br />

constituindo sentidos para os seus atos e suas posições na esfera política<br />

mediante a organização <strong>de</strong> <strong>uma</strong> narrativa e da sua localização nessa narrativa.<br />

Consi<strong>de</strong>rações finais<br />

Tratou-se ao longo <strong>de</strong>sse artigo do que po<strong>de</strong>m ser consi<strong>de</strong>radas três<br />

gerações <strong>de</strong> agentes que atuaram em diferentes movimentos <strong>de</strong> contestação ao<br />

regime militar, em diferentes momentos conjunturais, com perfis heterogêneos,<br />

<strong>de</strong>stinos sociais e <strong>políticos</strong> igualmente distintos. Tamanha diversida<strong>de</strong> não<br />

interfere no alvo <strong>de</strong> <strong>análise</strong> proposto, haja vista que esses personagens, suas<br />

inserções e papéis “excepcionais” são aqui consi<strong>de</strong>rados como sínteses <strong>de</strong><br />

consagração, após sua morte, em ocasião específica <strong>de</strong> homenagem: os Gran<strong>de</strong>s<br />

Expedientes da Assembléia Legislativa do Estado do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul.<br />

Alg<strong>uma</strong>s pontuações mais gerais sobre o material explorado parecem<br />

pertinentes, principalmente para observar que há <strong>uma</strong> <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> nas<br />

iniciativas <strong>de</strong> tomar a palavra nas diferentes homenagens e que isso está<br />

relacionado à <strong>de</strong>sigual distribuição dos homenageados na hierarquia das posições<br />

sociais, políticas e militantes. Excetuando as falas do proponente da homenagem<br />

e do presi<strong>de</strong>nte da Assembléia Legislativa nas respectivas ocasiões, para os<br />

“guerrilheiros do Araguaia” seis <strong>de</strong>putados se pronunciaram, para Marcos<br />

Klassmann apenas quatro e, para André Forster, foram quatorze manifestações.<br />

Tais freqüências, evi<strong>de</strong>ntemente, se refletem na menor ou maior diversida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

siglas as quais pertencem os <strong>de</strong>putados que fizeram os “apartes”. Num extremo<br />

apenas três: PT, PDT e PTB, observando a convergência com a trajetória do<br />

agente (inicialmente vinculado ao “trabalhismo” e <strong>de</strong>pois indo integrar o PT); no<br />

outro extremo oito, e com as mais variadas localizações no espectro das forças<br />

partidárias e i<strong>de</strong>ológicas: PMDB, PTB, PCdoB, PPB, PSB, PFL, PDT e PT. Na<br />

posição intermediária (dos “guerrilheiros”) têm-se cinco partidos sendo<br />

“representados” por suas li<strong>de</strong>ranças: PDT, PSB, PT, PMDB, PTB, atentando para o<br />

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fato <strong>de</strong> que não há siglas situadas n<strong>uma</strong> posição tida como “mais à direita” no<br />

continuum das classificações do próprio meio (como o PFL e PPB).<br />

Sendo assim, po<strong>de</strong>-se atribuir a essas distribuições à “importância”<br />

política e social dos militantes e suas “causas”. No alvo <strong>de</strong> menor <strong>de</strong>staque está<br />

Klassmann, que teve seu momento <strong>de</strong> maior evidência na segunda meta<strong>de</strong> dos<br />

anos setenta, vinculado à “juventu<strong>de</strong>” (por meio do Setor Jovem) que buscava<br />

afirmar-se no âmbito institucional. A vitória na eleição para vereador e a<br />

cassação do mandato são trunfos <strong>de</strong>terminantes <strong>de</strong> <strong>uma</strong> carreira <strong>de</strong> cargos <strong>de</strong><br />

assessorias políticas e sem investimentos em título superior.<br />

A maior proeminência é <strong>de</strong> André Forster que conquistou notorieda<strong>de</strong> nas<br />

suas atuações principalmente no movimento estudantil (sessenta), sindicato dos<br />

sociólogos e MDB mediante a organização do IEPES (setenta) e direção partidária<br />

(oitenta). A condição <strong>de</strong> “intelectual” e a carreira <strong>de</strong> “dirigente político”,<br />

relacionados à fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> ao PMDB (partido sucedâneo do MDB que no início do<br />

pluripartidarismo foi a opção inicial para muitos dos “jovens militantes”), foram<br />

possíveis graças ao acúmulo e administração <strong>de</strong> um conjunto diversificado <strong>de</strong><br />

recursos.<br />

Entre eles, os “guerrilheiros do Araguaia”, que na origem tinham<br />

características sociais muito diversificadas, mas não tiveram oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>sdobramentos em itinerários <strong>políticos</strong> e profissionais. Assim sendo, no ritual<br />

<strong>de</strong> consagração foram reunidos no mesmo estatuto simbólico: “mortos em<br />

combate”. A<strong>de</strong>mais pertenciam ao mesmo partido (PCdoB) que, pelo trabalho <strong>de</strong><br />

seus porta-vozes, administra o “patrimônio” daquela “luta” como recurso<br />

contun<strong>de</strong>nte para seu reconhecimento.<br />

A condição <strong>de</strong> “mortos em combate” em condições adversas eleva a<br />

posição dos homenageados na hierarquia militante e isso se reflete na maior<br />

freqüência <strong>de</strong> elogios comparativamente àqueles <strong>de</strong>spendidos a Klassmann que,<br />

por sua vez, teve <strong>uma</strong> atuação mais <strong>de</strong>limitada no tempo, menos arriscada nas<br />

ações e com <strong>uma</strong> carreira <strong>de</strong> cargos administrativos <strong>de</strong> menor visibilida<strong>de</strong>. As<br />

re<strong>de</strong>finições dos sentidos e valores atribuídos a modalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> intervenção<br />

(“luta armada”) privilegiada pelos comunistas, localizada num momento<br />

específico (anos sessenta) e relacionada a um partido relativamente periférico<br />

no espaço político partidário sul-rio-gran<strong>de</strong>nse (PC do B), apontam para a menor<br />

valorização dos “guerrilheiros do Araguaia” em relação à exaltação <strong>de</strong> Forster.<br />

Adiciona-se a posição do PMDB (geralmente tido no Rio Gran<strong>de</strong> do Sul como um<br />

“partido <strong>de</strong> centro”), a notorieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Forster, o “papel” atribuído ao IEPES no<br />

processo <strong>de</strong> “re<strong>de</strong>mocratização”, entre outros, como aspectos que se traduzem<br />

na maior freqüência <strong>de</strong> falas para enaltecê-lo no Gran<strong>de</strong> Expediente.<br />

As homenagens se fundaram na lógica do reconhecimento da dívida<br />

impagável dos “vivos” em relação àqueles que “<strong>de</strong>ram suas vidas”<br />

(“guerrilheiros do Araguaia”), que pautaram sua atuação por um sentido <strong>de</strong><br />

“militância” (Marcos Klassmann); e que <strong>de</strong>vem ser aclamado por sua “dignida<strong>de</strong><br />

pessoal” e “competência profissional e intelectual” (André Forster). Nos três<br />

casos são enfatizadas as “contribuições” dos agentes para a “<strong>de</strong>mocratização do<br />

país”, bem como o papel que assumem como “ícones <strong>de</strong> gerações”. Para os<br />

primeiros, tais idéias são associadas à “luta por i<strong>de</strong>ais <strong>de</strong> justiça e liberda<strong>de</strong>”,<br />

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para o segundo elas estão relacionadas aos sentidos <strong>de</strong> “abnegação” e<br />

“combativida<strong>de</strong>” e, para o último, vinculam-se à capacida<strong>de</strong> indissociável <strong>de</strong><br />

“reflexão” e “prática”.<br />

Uma série <strong>de</strong> elementos gerais po<strong>de</strong> ser ressaltada. Atenta-se que os<br />

rituais <strong>de</strong> consagração do tipo aqui investigado se <strong>de</strong>sdobram a partir do<br />

trabalho <strong>de</strong> rememoração e <strong>de</strong> renovar a motivação (justificação) <strong>de</strong><br />

continuida<strong>de</strong>. É nesse duplo contexto que se opera a re<strong>de</strong>finição e corroboração<br />

dos pertencimentos, dos sentidos <strong>de</strong> missão compartilhados e dos critérios <strong>de</strong><br />

excelência da atuação política.<br />

Em primeiro lugar, a referência comum constituída pelos agentes é<br />

viabilizada por um enquadramento <strong>de</strong> memória (POLLAK, 1989) que retira do<br />

momento histórico e da experiência vivida elementos que or<strong>de</strong>nam posições e<br />

sentidos retrospectivamente. Termos como “sentimento pessoal”, “laços <strong>de</strong><br />

amiza<strong>de</strong>”, “i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>”, enfim, unem indivíduos sob a noção <strong>de</strong> “geração” (ela<br />

mesma reivindicada nos pronunciamentos). Adiciona-se a isso que os referidos<br />

valores adquirem um sentido político quando articulados a idéia <strong>de</strong> “missão<br />

histórica” que sintetiza a mobilização dos agentes pela “luta <strong>de</strong>mocrática”.<br />

Em segundo lugar, e não dissociado das consi<strong>de</strong>rações anteriores nem das<br />

subseqüentes, há um processo <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificação construída a partir da valorização<br />

comum dos engajamentos <strong>políticos</strong> como algo que transcen<strong>de</strong>nte à biografia<br />

pessoal dos agentes. Nesse caso, a “missão” proclamada pelo pertencimento <strong>de</strong><br />

“geração” e seus objetivos práticos (como a “<strong>de</strong>mocratização”, por exemplo) se<br />

sobrepõem às individualida<strong>de</strong>s. Desse modo, os personagens, mortos e vivos, que<br />

atuaram <strong>de</strong> <strong>uma</strong> forma ou <strong>de</strong> outra e em diferentes momentos nos marcos da<br />

“ditadura”, retiram trunfos para a sua atuação posterior. Dentre eles, inclusive,<br />

a capacida<strong>de</strong> (<strong>de</strong>sigual) em razão dos maiores ou menores protagonismos <strong>de</strong><br />

ligar-se a <strong>uma</strong> idéia <strong>de</strong> “geração” e, sobretudo, à <strong>de</strong>fesa <strong>de</strong> um dos principais<br />

valores compartilhados: o da “<strong>de</strong>mocracia”, seus procedimentos e espaços<br />

legítimos (eleições, discussões, partidos <strong>políticos</strong>, socieda<strong>de</strong> civil, entre outros).<br />

Finalmente, o “tributo aos mortos” não significa apenas, como os próprios<br />

personagens às vezes <strong>de</strong>claram, “homenagear a memória” <strong>de</strong> alguém que é<br />

digno <strong>de</strong> tal iniciativa, mas trata-se <strong>de</strong> fixar as “qualida<strong>de</strong>s” que <strong>de</strong>vem ser<br />

valorizadas e, assim, requeridas para a ocupação <strong>de</strong> posições políticas. Por conta<br />

disso, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente do lugar ocupado antes da morte, no julgamento<br />

social do morto, aquele que é merecedor da homenagem póst<strong>uma</strong> é alçado ao<br />

cume na hierarquia das posições em jogo. E isso, por sua vez, ocorre pela<br />

combinação <strong>de</strong> marcas <strong>de</strong> exemplarida<strong>de</strong>, gran<strong>de</strong>za, perfeição com<br />

características sociais ordinárias. Sendo assim, o “morto homenageado” se<br />

afirma como “herói” pela mediação que faz - com o auxílio <strong>de</strong>cisivo das<br />

projeções dos vivos - entre “gerações”, entre “eventos singulares”, entre as<br />

“memórias”, entre as hierarquias políticas e sociais, entre o “sagrado” e o<br />

“profano”.<br />

Bibliografia<br />

Ciências H<strong>uma</strong>nas em Revista, v.6, n.1, São Luis/MA, 2008 - ISSN 1678-8192


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Pronunciamentos citados<br />

Adão Vilaver<strong>de</strong>/PT. Pronunciamento no Gran<strong>de</strong> Expediente da Assembléia<br />

Legislativa/RS, 9 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2006. (Homenagem a Marcos Klassmann)<br />

Ciências H<strong>uma</strong>nas em Revista, v.6, n.1, São Luis/MA, 2008 - ISSN 1678-8192


Aloísio Classmann/PTB. Pronunciamento no Gran<strong>de</strong> Expediente da<br />

Assembléia Legislativa/RS, 9 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2006. (Homenagem a Marcos<br />

Klassmann)<br />

Beto Albuquerque/PSB. Pronunciamento no Gran<strong>de</strong> Expediente da<br />

Assembléia Legislativa/RS, 11 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1997. (Homenagem a André<br />

Forster)<br />

Flávio Koutzii/PT. Pronunciamento no Gran<strong>de</strong> Expediente da Assembléia<br />

Legislativa/RS, 11 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1997. (Homenagem a André Forster)<br />

Francisco Appio/PPB. Pronunciamento <strong>de</strong> no Gran<strong>de</strong> Expediente da<br />

Assembléia Legislativa/RS, 11 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1997. (Homenagem a André<br />

Forster)<br />

Giovani Feltes/PMDB. Pronunciamento no Gran<strong>de</strong> Expediente da<br />

Assembléia Legislativa/RS, 11 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1997. (Homenagem a André<br />

Forster)<br />

João Fischer/PPB. Pronunciamento no Gran<strong>de</strong> Expediente da Assembléia<br />

Legislativa/RS, 11 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1997. (Homenagem a André Forster)<br />

Jussara Cony/PC do B. Pronunciamento no Gran<strong>de</strong> Expediente da<br />

Assembléia Legislativa/RS, 22 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 1996. (Homenagem aos<br />

“guerrilheiros do Araguaia”)<br />

Paulo Odone/PMDB. Pronunciamento no Gran<strong>de</strong> Expediente da Assembléia<br />

Legislativa/RS, 22 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 1996. (Homenagem aos “guerrilheiros do<br />

Araguaia”)<br />

Raul Pont/PT. Pronunciamento no Gran<strong>de</strong> Expediente da Assembléia<br />

Legislativa/RS, 9 <strong>de</strong> novembro 2006. (Homenagem a Marcos Klassmann)<br />

Vieira da Cunha/PDT. Pronunciamento no Gran<strong>de</strong> Expediente da<br />

Assembléia Legislativa/RS, 22 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 1996. (Homenagem aos<br />

“guerrilheiros do Araguaia”)<br />

Resumo: No artigo ora proposto são examinados três Gran<strong>de</strong>s Expedientes<br />

da Assembléia Legislativa do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul em homenagem póst<strong>uma</strong> a<br />

militantes que atuaram nos movimentos <strong>de</strong> contestação ao regime militar no<br />

estado em diferentes momentos. A partir da <strong>análise</strong> dos <strong>de</strong>poimentos proferidos<br />

pelos parlamentares nessas ocasiões buscou-se apreen<strong>de</strong>r as estratégias <strong>de</strong><br />

consagração <strong>de</strong> “personagens”, “eventos”, “causas” e dos próprios produtores<br />

dos discursos <strong>de</strong> celebração. Nesse caso, foi evi<strong>de</strong>nciada a importância <strong>de</strong><br />

categorias como “geração” e “memória”, bem como dos significados construídos<br />

em torno dos “mortos” e seus <strong>usos</strong> pelos “vivos”.<br />

Palavras-chave: geração, memória, mortos, militância, contestação<br />

Homage posthumously paid and political uses: an analysis of the “Great<br />

Sessions” as spaces for (self) consecration.<br />

Ciências H<strong>uma</strong>nas em Revista, v.6, n.1, São Luis/MA, 2008 - ISSN 1678-8192


Abstract: In the present article we examine three Great Sessions of the<br />

Legislative Assembly of Rio Gran<strong>de</strong> do Sul in posthumous homage to militants<br />

who acted in social movements against the military regime in the state at<br />

different times. From an analysis of the <strong>de</strong>positions proffered by members of<br />

parliament on these occasions we seek to learn the strategies of consecration of<br />

“personalities”, “events”, “causes” and about the selfsame producers of the<br />

celebratory speeches. In this case categories like “generation” and “memory”<br />

are in evi<strong>de</strong>nce as are the meanings constructed around the “<strong>de</strong>ad” and how<br />

they are used by the “living”.<br />

Keywords: generation, memory, <strong>de</strong>ad, militancy, contestation<br />

Homenajes póstumos y <strong>usos</strong> <strong>políticos</strong>: Un análisis <strong>de</strong> "Gran<strong>de</strong>s<br />

Expedientes" como espacios <strong>de</strong> (auto) consagración.<br />

Sumário: En el artículo ahora propuesto son examinadas tres Gran<strong>de</strong>s<br />

Expedientes <strong>de</strong> la asamblea Legislativa <strong>de</strong> Rio Gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>l Sur en homenaje<br />

póstumo a militares que actuaron en los movimientos contrarios al régimen<br />

militar en el estado en diferentes momentos. A partir <strong>de</strong>l análisis <strong>de</strong> las<br />

<strong>de</strong>claraciones pronunciados por los parlamentares en esas ocasiones se buscó<br />

apren<strong>de</strong>r las estrategias <strong>de</strong> consagración <strong>de</strong> "personajes", "eventos", "causas" y<br />

<strong>de</strong> los propios productores <strong>de</strong> los discursos <strong>de</strong> celebración. En ese caso, fue<br />

evi<strong>de</strong>nciado la importancia <strong>de</strong> categorías como "generación" y "memoria", bien<br />

como <strong>de</strong> los significados construidos en torno <strong>de</strong> los "muertos" y sus <strong>usos</strong> por los<br />

"vivos".<br />

Palabras claves: generación, memoria, muertos, militancia, refutación<br />

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