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Sem título-5 - Nucleo de Humanidades

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O INCESTO, DE MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO:<br />

uma obra - embrião<br />

Márcia Manir Miguel Feitosa * *<br />

Resumo: Aborda-se, neste estudo, a obra <strong>de</strong> Mário <strong>de</strong> Sá-Carneiro, mais especificamente,<br />

a novela “O incesto” que compõe o volume Princípio, datado <strong>de</strong> 1912. Defen<strong>de</strong>-se a<br />

idéia do caráter embrionário da novela, dadas as características peculiares à produção<br />

do poeta que se revelariam mais maduras nas obras subseqüentes, vi<strong>de</strong> sua obra-prima A<br />

confissão <strong>de</strong> Lúcio.<br />

Palavras-chave: Características. Mistério. Arte. Incesto.<br />

Abstract: In this study, Mário <strong>de</strong> Sá-Carneiro’s literary work is approached, more<br />

specifically the novel “O incesto” which composes the volume Princípio, from 1912.<br />

The i<strong>de</strong>a of the embryonic character of the novel is supported, due to the peculiar<br />

characteristics of the poet’s production, which would be revealed maturer in his<br />

subsequent works, as in his masterpiece A confissão <strong>de</strong> Lúcio.<br />

Keywords: Features. Mystery. Art. Incest.<br />

* Dra. em Literatura Portuguesa pela USP. Profa do Departamento <strong>de</strong> Letras da<br />

Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Maranhão. E-mail: feitos@terra.com.br<br />

Ciências Humanas em Revista - São Luís, V. 3, n.2, <strong>de</strong>zembro 2005 179


1. Introdução<br />

O ingresso <strong>de</strong> Mário <strong>de</strong> Sá-Carneiro nas letras portuguesas remonta ao<br />

livro Princípio, volume <strong>de</strong> “novelas” escrito entre os 18 e 22 anos, com publicação<br />

em novembro <strong>de</strong> 1912. As narrativas que o compõem (“Loucura”, “Sexto<br />

sentido”, “O incesto”, “Página <strong>de</strong> um suicida” ou “Felicida<strong>de</strong> perdida”) revelam<br />

alguns dos leitmotiven do futuro escritor <strong>de</strong> A confissão <strong>de</strong> Lúcio.<br />

Apesar da obtenção <strong>de</strong> certo êxito ao publicá-lo, Mário <strong>de</strong> Sá-Carneiro<br />

pairou sobre a crítica literária portuguesa da época como um escritor insólito,<br />

bizarro, diferente do “ramerrão das estréias literárias”, como atestou o jornal “O<br />

Século”, edição <strong>de</strong> 30 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 1912. Segundo este, “Princípio é o livro<br />

d’um homem do seu tempo, espírito formado no ambiente cético d’uma época<br />

positivista em que a análise é tudo. Em todas essas páginas palpita a alma d’um<br />

artista. Se foi esse o fim <strong>de</strong>sejado pelo sr. Sá-Carneiro, creia que o atingiu.” ( “O<br />

Século” apud GALHOZ, 1963)<br />

Por não se dirigir ao leitor que busca uma diversão fácil, Princípio se<br />

diferencia justamente por <strong>de</strong>ter em suas páginas almas angustiantes, ávidas por<br />

mundos fantásticos ou quiméricos, incapazes <strong>de</strong> sujeitarem-se ao real entediante<br />

e banal, massacrador do espírito raro e invulgar. A morte e o suicídio aparecem,<br />

pois, como válvulas <strong>de</strong> escape diante <strong>de</strong> tamanha insatisfação e <strong>de</strong>sajustamento.<br />

É, portanto, Princípio o princípio da carreira <strong>de</strong> um escritor que “não <strong>de</strong>ixará<br />

mais <strong>de</strong> escrever, <strong>de</strong> sonhar, <strong>de</strong> polir e <strong>de</strong> aperfeiçoar” (QUADROS apud SÁ-CAR-<br />

NEIRO, s/d, p. 16) tanto as narrativas, quanto a obra poética, procurando sempre<br />

atingir o auge, a “quimera <strong>de</strong> ouro”, numa consagração máxima da arte e do artista.<br />

Dentre as narrativas <strong>de</strong>ste livro, <strong>de</strong>stacamos a última, “O incesto”, escrita<br />

entre abril e julho <strong>de</strong> 1912, em Lisboa, por constituir-se numa das mais insólitas<br />

e misteriosas produções do autor, comparável, até certo ponto, com a sua<br />

principal e mais importante narrativa: A confissão <strong>de</strong> Lúcio.<br />

2 . O mistério esfíngico<br />

Com “O incesto” vemos, pela primeira vez em Mário <strong>de</strong> Sá-Carneiro,<br />

o afloramento do subconsciente e o <strong>de</strong>scerramento <strong>de</strong> uma personalida<strong>de</strong> às<br />

voltas com o seu <strong>de</strong>sconhecido mundo interior. Paira sobre a narrativa certo<br />

culto do inexplicável já no primeiro capítulo, em que algo nebuloso circunda<br />

o <strong>de</strong>saparecimento <strong>de</strong> Júlia – esposa <strong>de</strong> Luís <strong>de</strong> Monforte, autor dramático<br />

e criador da peça “Doida”, interpretada por Júlia que, mais tar<strong>de</strong>, o troca<br />

por uma ligação medíocre, <strong>de</strong>ixando-lhe a filha Leonor. Sá-Carneiro,<br />

estranhamente, a qualifica <strong>de</strong> “perversa e linda”: “...<strong>de</strong>saparecera no turbilhão<br />

esfacelante duma vida arrebatadamente louca, tragicamente agitada”<br />

(SÁ-CARNEIRO, 1984, p. 07)<br />

180<br />

O incesto, <strong>de</strong> Mário <strong>de</strong> Sá-Carneiro


Mais adiante, o mistério e a inexplicabilida<strong>de</strong> dos acontecimentos ocorrem,<br />

simultaneamente, quando da encenação da peça “Doida”. Tanto sua caracterização<br />

física, quanto o seu surgimento como atriz são enigmáticos e obscuros,<br />

envolvendo o leitor numa teia <strong>de</strong> fios inextrincáveis:<br />

Duma beleza misteriosa – cabeleira <strong>de</strong> fogo, olhos <strong>de</strong> infinito – esboçava-selhe<br />

nos lábios sempre húmidos o sorriso enigmático <strong>de</strong> Jocunda. Do seu corpo<br />

flexível <strong>de</strong> estátua grega admiravelmente musculada, <strong>de</strong>sprendia-se um aroma<br />

estranho que lhe poetizava a carne <strong>de</strong> pedra, audaciosa e mal escondida. Atraía<br />

e afugentava ao mesmo tempo essa mistura singular <strong>de</strong> inferno e céu, pressentiase<br />

sem se saber porque nessa mulher frágil, todo um poema brutal <strong>de</strong> amor<br />

ar<strong>de</strong>nte, <strong>de</strong> voluptuosida<strong>de</strong> e <strong>de</strong> sangue. (SÁ-CARNEIRO, 1984, pp. 08-09)<br />

Os próprios amantes que tivera situam-se sob um véu <strong>de</strong> penumbra: não<br />

se sabe quem são, nem <strong>de</strong> on<strong>de</strong> proce<strong>de</strong>m. Ela fala pouco e, <strong>de</strong> sua vida íntima,<br />

sequer uma palavra é mencionada.<br />

Tão misteriosa e esfíngica é Júlia Gama que, no final do segundo ato da<br />

peça “Doida”, contorce-se e serpenteia-se em espasmos loucos e sobrenaturais,<br />

numa verda<strong>de</strong>ira e autêntica apoteose, semelhante à festa da “americana fulva”<br />

<strong>de</strong> A confissão <strong>de</strong> Lúcio.<br />

Contudo, após a união <strong>de</strong> Luís e Júlia, a existência até então misteriosa e<br />

enigmática <strong>de</strong>sta última parece <strong>de</strong>svanecer-se, embora mantivesse inviolável<br />

sua vida íntima. Devido talvez a esse último porém, Júlia resolve fugir para o<br />

estrangeiro com o secretário da legação da Áustria, abandonando Leonor e Luís.<br />

A partir daí, a Júlia-Esfinge metamorfoseia-se na Júlia-Serpente, símbolo do<br />

mal ardiloso e insinuante, capaz <strong>de</strong> seduzir e aliciar <strong>de</strong>smedidamente: “No leito<br />

vasto <strong>de</strong> pau-santo, profundo como um túmulo, muitas vezes tivera medo, medo<br />

da gran<strong>de</strong> serpente amorosa que o mordia, que o feria nas carícias brutais <strong>de</strong> sua<br />

boca escaldante, nas convulsões <strong>de</strong>spedaçadoras <strong>de</strong> todo o seu corpo nu!...”<br />

(SÁ-CARNEIRO, 1984, p. 24)<br />

Entretanto, a Júlia-Esfinge volta a atuar. Uma certa manhã, num “cenário<br />

magnífico duma vila em Nice”, aparece morta a punhaladas num quarto<br />

on<strong>de</strong>, apesar dos evi<strong>de</strong>ntes sinais <strong>de</strong> luta, todas as portas estavam fechadas por<br />

<strong>de</strong>ntro: “Singular <strong>de</strong>stino o <strong>de</strong> Júlia! Passara em carreira fugaz pela vida, como<br />

um meteoro pelos céus a resplan<strong>de</strong>cer num turbilhão dourado. Pobre alma<br />

fugitiva...linda estrela ca<strong>de</strong>nte...” (SÁ-CARNEIRO, 1984, p. 24)<br />

Toda essa atmosfera nebulosa e não muito lúcida aparecerá novamente<br />

quando da viagem <strong>de</strong> Luís ao estrangeiro após a morte prematura <strong>de</strong> Leonor. Num<br />

estado <strong>de</strong> semi<strong>de</strong>lírio, não consegue atribuir a razão <strong>de</strong> seus atos a si mesmo, mas<br />

a uma força sobrenatural, <strong>de</strong>sconhecida, mediúnica, que o induz e o conduz a<br />

praticá-los. Não obstante reconheça seu estado <strong>de</strong> martírio, prefere-o à razão, uma<br />

vez que, com ela, não teria conseguido resistir ao golpe da morte da filha.<br />

Ciências Humanas em Revista - São Luís, V. 3, n.2, <strong>de</strong>zembro 2005 181


Mais adiante, após o casamento com Magda (jovem nórdica, muito parecida<br />

com Leonor e que ele conheceu em Davos, on<strong>de</strong> a filha esteve internada) e já<br />

alucinado pelo reconhecimento do incesto moral, entrega-se, <strong>de</strong>sesperadamente,<br />

à paixão física, a ponto <strong>de</strong> se tornar para Magda um homem misterioso, enigmático<br />

e, por isso, incompreensível, com expressões faciais monstruosas e “faiscantes”:<br />

182<br />

E ela recordava-se do brilho singular que surpreen<strong>de</strong>ra às vezes nos olhos <strong>de</strong><br />

Luis, durante os amplexos. Às vezes? Quase sempre. Eram umas faíscas<br />

vermelho-esver<strong>de</strong>adas que, irradiando das pupilas, lhe cobriam o rosto duma<br />

luz estranha, duma luz fantástica, arrepiante. (SÁ-CARNEIRO, 1984, p. 68)<br />

3. O relevo e a glorificação da e pela arte<br />

Como todo protagonista <strong>de</strong> Sá-Carneiro, Luís <strong>de</strong> Monforte também é<br />

um artista, mais especificamente, um dramaturgo, cuja ascensão se torna eminente<br />

quando da encenação <strong>de</strong> “Glória” – “um dos mais belos estudos que<br />

existem sobre a “gran<strong>de</strong> fera”. A “gran<strong>de</strong> fera”, aqui, configura-se numa metáfora<br />

da própria arte, tão explorada e esmiuçada nas digressões do narrador.<br />

Vejamos, pois, como Mário <strong>de</strong> Sá-Carneiro enten<strong>de</strong> o que vem a ser a “arte” e<br />

o seu feitor – o “artista”, discorrendo a respeito <strong>de</strong> algumas <strong>de</strong>ssas digressões.<br />

No capítulo II, há dois momentos em que o narrador disserta sobre o<br />

objeto <strong>de</strong> seu trabalho: o primeiro, quando Luís procura refugiar-se na arte ante<br />

o abandono <strong>de</strong> Júlia, e o segundo, quando do triunfo do drama “Glória”. Ele<br />

revela, diante do <strong>de</strong>sespero <strong>de</strong> Luís, que:<br />

...o prazer <strong>de</strong> criar avantaja-se a todos. Em frente da arte, o artista esquece. A<br />

sua dor, se não se cura, suaviza-se pelo menos. A arte é um refúgio. O artista,<br />

na sua angústia, consola-se com a sua arte. É que a arte é também um<br />

“brinquedo”. Os homens são crianças eternas. (SÁ-CARNEIRO, 1984, p. 15)<br />

Tal concepção <strong>de</strong> “arte” equivale a uma “poética” ou a um “programa <strong>de</strong><br />

arte”, segundo Luigi Pareyson em Os problemas da estética. Para ele:<br />

Há quem busque na arte um alimento espiritual completo e, por isso, lhe assinala<br />

um campo <strong>de</strong> ação vasto como a própria vida. Complexos conteúdos espirituais e<br />

múltiplas funções na vida, e há quem busque na arte o alívio <strong>de</strong> um instante <strong>de</strong> pura<br />

contemplação e o fascinante <strong>de</strong>leite do sonho, sendo, por isso, levado a consi<strong>de</strong>rála<br />

apenas como evasão da vida e não da fantasia. (PAREYSON, 1984, p. 42)<br />

Mário <strong>de</strong> Sá-Carneiro e, conseqüentemente, Luís <strong>de</strong> Monforte inseremse<br />

nessa segunda concepção, já que <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>m a arte evasiva e lúdica; mas, nem<br />

por isso, sem “um posicionamento completo em face da vida”, uma vez que são:<br />

O incesto, <strong>de</strong> Mário <strong>de</strong> Sá-Carneiro


[...] filhos <strong>de</strong> um tempo e da socieda<strong>de</strong> em que vivem, e mesmo na sua<br />

intolerância com respeito à vida social e a sua revolta contra a comunicação<br />

atestam em seu relacionamento – embora negativo – com a socieda<strong>de</strong>, quando<br />

não qualificam, <strong>de</strong>veras, o costume <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>terminada socieda<strong>de</strong> ou grupo<br />

social. (PAREYSON, 1984, p. 91)<br />

No capítulo II – um capítulo da arte? – uma nova digressão do narrador<br />

procura enfocar agora uma das suas especialida<strong>de</strong>s, senão a maior: a literatura.<br />

Tal enfoque vem a propósito por ocasião da formação intelectual <strong>de</strong> Leonor,<br />

“inteiramente diversa, totalmente oposta” à das mocinhas da época. Sua leitura<br />

consiste apenas <strong>de</strong> “belos livros” e não <strong>de</strong> “chochos idílios”, “literatura <strong>de</strong><br />

pacotilha, recatada e enfadonha, abominável literatura que a ‘gente honesta’<br />

compra para suas filhas!” (SÁ-CARNEIRO, 1984, p. 21). <strong>Sem</strong>elhante<br />

posicionamento em face da literatura revela o quanto o narrador renega a<br />

romantização literária, levada a extremo através <strong>de</strong> amores cor-<strong>de</strong>-rosa e lirismos<br />

exacerbados, sem a soberba e o crispamento <strong>de</strong> uma obra <strong>de</strong> gênio. Observamos,<br />

portanto, que, num mesmo capítulo, faz-se arte ao mesmo tempo em que<br />

se fala <strong>de</strong>la, numa prática efusiva da metalinguagem.<br />

Além das digressões, inserindo-se na própria narrativa, há vários momentos<br />

em que se evi<strong>de</strong>ncia a glorificação da arte. Um <strong>de</strong>les diz respeito ao<br />

círculo <strong>de</strong> amigos <strong>de</strong> Luís <strong>de</strong> Monforte, restrito e seletivo, eminentemente artístico,<br />

formado por “poetas, escritores e artistas”; <strong>de</strong>ntre eles, Fialho <strong>de</strong> Almeida<br />

e Eça <strong>de</strong> Queirós. O outro relaciona-se à escolha <strong>de</strong> Carlos (filho do Doutor)<br />

para marido <strong>de</strong> Leonor. Tal escolha, longe <strong>de</strong> se assentar nas suas qualificações<br />

como guarda-marinha, firma-se mais no seu “protogênio” artístico, revelado já<br />

nos primeiros escritos e na confecção <strong>de</strong> um “romance exótico”.<br />

Quanto à glorificação pela arte, verificamos uma passagem curiosa no final<br />

do capítulo VII. Após ter retornado da Dinamarca, casado com Magda, Luís <strong>de</strong><br />

Monforte, em princípios <strong>de</strong> 1911, começa a trabalhar na sua nova obra-prima, “singular<br />

e perturbadora”: Céu em fogo. “As páginas imortais <strong>de</strong>sse livro”, relata o<br />

narrador, “ainda que nebulosas e angustiantes, <strong>de</strong>monstravam à evidência um espírito<br />

torturado, era certo, mas perfeitamente lúcido e mais do que nunca genial” (SÁ-<br />

CARNEIRO, 1984, p. 65). Tal publicação provoca um estranhamento no leitor,<br />

visto que Céu em fogo, publicado em 1915, é um dos livros do próprio Sá-Carneiro,<br />

enquanto escritor e poeta; marcado, inclusive, pela genialida<strong>de</strong>, nebulosida<strong>de</strong> e singularida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> um espírito perturbado. Seria, pois, um mero caso <strong>de</strong> homonímia?<br />

Teria em mente Sá-Carneiro, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1912, quando da publicação <strong>de</strong> “O incesto”, o<br />

<strong>título</strong> da obra <strong>de</strong> 1915? Luís <strong>de</strong> Monforte não seria, portanto, o seu próprio reflexo,<br />

a sua projeção? Questões que ficam em aberto diante da <strong>de</strong>licada fronteira<br />

entre o mundo ficcional e o mundo real em Mário <strong>de</strong> Sá-Carneiro.<br />

Ciências Humanas em Revista - São Luís, V. 3, n.2, <strong>de</strong>zembro 2005 183


4. A realização onírica do pecado<br />

No que concerne ao incesto – ponto fulcral da narrativa -, este já se<br />

indicia, sutilmente, em vários momentos no fluxo da história. O primeiro <strong>de</strong>les<br />

po<strong>de</strong> ser <strong>de</strong>notado no capítulo II, quando do abandono <strong>de</strong> Júlia: “Ela era com<br />

efeito o que <strong>de</strong> mais seu Júlia <strong>de</strong>ixara perto <strong>de</strong>le. A filha recordara-lhe a mãe.”<br />

(SÁ-CARNEIRO, 1984, p. 16)<br />

Outro indício, não tão sutil quanto o já referenciado, <strong>de</strong>vido mesmo à<br />

manifestação maliciosa do narrador e ao seu caráter reticente, revela-se após a<br />

morte da filha, quando Luís se refugia em sua casa <strong>de</strong> Lisboa e se apega aos<br />

objetos e roupas outrora pertencentes a Leonor:<br />

184<br />

Imóvel, chorava longo tempo e, por fim, levava aos lábios um feixe <strong>de</strong>ssas<br />

roupas íntimas, perturbadoras, don<strong>de</strong> se <strong>de</strong>sprendia, estonteante, um perfume<br />

loiro a mocida<strong>de</strong> e a carne. Beijava-as, sofregamente as beijava, numa ânsia,<br />

num <strong>de</strong>lírio tal, que mais parecia <strong>de</strong> luxúria que <strong>de</strong> dor. (SÁ-CARNEIRO,<br />

1984, p. 51)<br />

A partir daí, num crescendo vigoroso e intenso, o incesto emerge, aos poucos,<br />

do plano do subconsciente e afeta a racionalida<strong>de</strong>: “beijou <strong>de</strong> novo as travessas,<br />

beijou-as com <strong>de</strong>sespero, beijou-as como quem beija uma recordação <strong>de</strong> amor,<br />

até que por fim – voltando-lhe a razão – fechou o estojo num confrangimento<br />

horrível, arremessou-o para o fundo duma gaveta.” (SÁ-CARNEIRO, 1984, p.<br />

56)<br />

Já na página seguinte, tal manifestação da subconsciência ganha realce<br />

por parte do narrador, <strong>de</strong>nunciando o que há por <strong>de</strong>trás <strong>de</strong>ssas alucinações e<br />

<strong>de</strong>lírios do protagonista. O leitor, por conseguinte, acaba sendo conduzido facilmente<br />

ao <strong>de</strong>slindamento do mistério, <strong>de</strong>vido a essa atitu<strong>de</strong> do narrador:<br />

Freqüentemente tinha visões estranhas: Uma noite, antes <strong>de</strong> adormecer,<br />

pensando em Leonor, foi a imagem <strong>de</strong> Júlia, a imagem esquecida da gran<strong>de</strong><br />

amante loira, que se aquarelou nas trevas, toda nua sobre um leito <strong>de</strong> rosas.<br />

Enquanto durava a visão perturbadora nem só por um momento ele<br />

esquecera a filha. (SÁ-CARNEIRO, 1984, p. 57)<br />

Nova manifestação do <strong>de</strong>sejo carnal pela filha, realçada pelo narrador<br />

com mais veemência através não só <strong>de</strong> uma oração em negrito e reticências, mas<br />

também <strong>de</strong> uma linha pontilhada, ocorre no Folies-Bergère, quando da apresentação<br />

<strong>de</strong> um bailado. Quem lhe suscita agora a volúpia por Leonor não é Júlia,<br />

mas “uma das muitas profissionais do amor”, com os lábios pintados e os seios<br />

à mostra. Contudo, nem Júlia, nem as prostitutas assumem o trono <strong>de</strong> Leonor,<br />

por não serem como Magda, a sua ressuscitação física.<br />

O incesto, <strong>de</strong> Mário <strong>de</strong> Sá-Carneiro


Do momento em que a conheceu até seu casamento com ela, o leitor se<br />

<strong>de</strong>para apenas com duas linhas pontilhadas, como se tudo que pu<strong>de</strong>sse estar<br />

implícito entre esses dois acontecimentos ficasse mais do que explícito: a união<br />

<strong>de</strong> Luís não com Magda-Magda, mas com Magda-Leonor.<br />

A mesma surpresa que afeta o leitor, afeta também o Dr. Noronha que vê,<br />

nessa união bizarra e estranha, algo <strong>de</strong> muito grave na alma do artista. Contudo,<br />

<strong>de</strong>vido à aparente tranqüilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>monstrada por Luís, tal preocupação se <strong>de</strong>sanuvia<br />

<strong>de</strong> sua mente, a ponto <strong>de</strong> justificá-la com certa passagem <strong>de</strong> A Dama das<br />

Camélias, numa tentativa <strong>de</strong> a<strong>de</strong>quar a arte à vida. Conclui, portanto, que Luís<br />

casou-se com Magda por amá-la como sua filha e não como sua esposa.<br />

Entretanto, é a partir do capítulo VIII que o clímax atinge o seu cume, uma<br />

vez que o incesto, até então semiconsciente, aflora <strong>de</strong> todo: “O que ele sentira<br />

<strong>de</strong>fronte <strong>de</strong>ssa segunda Leonor – <strong>de</strong>scobrira hoje horrorizado – fora uma paixão<br />

súbita, ar<strong>de</strong>ntíssima, toda ela carnal” (SÁ-CARNEIRO, 1984, p. 66).<br />

Realiza, a cada noite, o <strong>de</strong>sejo onírico do pecado, possuindo Magda numa<br />

ânsia violenta e monstruosa, com súbitas contrações e brilhos singulares nos olhos,<br />

finalmente, “a evidência apavorante” do pecado assume a sua alma através das<br />

reminiscências <strong>de</strong> todos os seus atos que julgava paternos e puros. Contudo, ao<br />

invés <strong>de</strong> se redimir perante o sacrilégio, “cada noite mordia com maior ânsia o<br />

corpo nu da estrangeira” (SÁ-CARNEIRO, 1984, p. 71), por ter acreditado que<br />

não era crime ou loucura o que estava fazendo, mas sim o que estava conjecturando,<br />

uma vez que se sentia absorvido por um <strong>de</strong>sejo inexplicável, “um <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> perversida<strong>de</strong>”,<br />

que o dominava e o controlava; portanto, exterior a sua vonta<strong>de</strong>. Inicia-se,<br />

pois, o duelo entre a luci<strong>de</strong>z e a loucura, sem que haja, todavia, um vencedor.<br />

Luís procura, então, conciliá-las, convencendo-se <strong>de</strong> que era preferível ter um<br />

crime e sofrer com ele, a não tê-lo e sofrê-lo mais.<br />

Como o <strong>de</strong>lírio perdura, resolve, “num último lampejo <strong>de</strong> razão”, conhecer<br />

a alma <strong>de</strong> Magda, já que “dois rostos semelhantes, ainda se po<strong>de</strong>m encontrar<br />

– dois rostos e duas almas iguais, com certeza que não” (SÁ-CARNEIRO, 1984,<br />

p. 75). Entretanto, <strong>de</strong>siste <strong>de</strong> tal intento, pois “quando Magda lhe surgisse como<br />

aquilo que realmente era, e não como fantasma <strong>de</strong> Leonor, ele não <strong>de</strong>ixaria <strong>de</strong> a<br />

beijar com a mesma ânsia. Eis a prova conclu<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> que apenas <strong>de</strong>sejava o<br />

corpo <strong>de</strong> Magda”. (SÁ-CARNEIRO, 1984, p. 75). Estava configurado, portanto,<br />

o incesto. Deci<strong>de</strong>, com solução extrema, a morte <strong>de</strong> Magda; só assim po<strong>de</strong>rá<br />

restituir a pureza à filha. Porém, “o <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>iro lampejo <strong>de</strong> razão” vence o duelo,<br />

e Luís se suicida ante a culpa moral do pecado cometido.<br />

Vemos, por conseguinte, que a realização onírica <strong>de</strong> Luís, no caso o sujeito,<br />

só se concretiza quando da criação <strong>de</strong> um terceiro – Magda, já que Leonor<br />

- o objeto – é inacessível no plano real. Uma vez ciente <strong>de</strong>sse complexo, assimila<br />

o crime e, conseqüentemente, o castigo, suicidando-se para se ver livre <strong>de</strong> sua<br />

própria consciência.<br />

Ciências Humanas em Revista - São Luís, V. 3, n.2, <strong>de</strong>zembro 2005 185


5. Conclusão<br />

A <strong>título</strong> <strong>de</strong> conclusão, a escolha <strong>de</strong> “O incesto”, como uma das obras do<br />

principiante Sá-Carneiro digna <strong>de</strong> análise e aprofundamento, baseou-se na sua<br />

“capacida<strong>de</strong> anunciadora” do que seria, futuramente, a prosa poética do seu autor.<br />

Vimos, no <strong>de</strong>correr <strong>de</strong>ste trabalho, motivos que atestam essa sua caracterização<br />

com o afloramento do subconsciente e a poetização excêntrica da prosa;<br />

presentes, sobretudo, em A confissão <strong>de</strong> Lúcio. Procurando, pois, manter um elo<br />

<strong>de</strong> comparação entre o criminoso (“O incesto”) e um dos seus cúmplices (A<br />

confissão <strong>de</strong> Lúcio), chegou-se à conclusão <strong>de</strong> que um outro motivo, talvez o<br />

mais importante, tenha sido legado a esta última narrativa: o <strong>de</strong>sdobramento da<br />

pessoa em personae.<br />

Em “O incesto”, verificamos que houve a necessida<strong>de</strong> da criação <strong>de</strong> uma<br />

ponte para que o eu e o outro se encontrassem. Magda não passou, portanto, <strong>de</strong><br />

um <strong>de</strong>sdobramento <strong>de</strong> Leonor. Outro cúmplice <strong>de</strong>sse ciúme é o último “conto”<br />

<strong>de</strong> Céu em fogo: “Ressurreição”, em que Inácio <strong>de</strong> Gouveia vai encontrar, na<br />

união com um dos amantes <strong>de</strong> Paulette, a ressurreição <strong>de</strong>ssa antiga companheira<br />

morta. Entretanto, é, em A confissão <strong>de</strong> Lúcio, que o uso <strong>de</strong>sse subterfúgio mais<br />

se assemelha ao utilizado em “O incesto”. Ricardo <strong>de</strong>sdobra-se em Marta para<br />

atingir o outro lado da ponte: Lúcio; porém, precisa anulá-la para que se estabeleça<br />

novamente o status quo. Anulando-a, anula-se a si próprio. Logo, alia-se a<br />

Luís <strong>de</strong> Monforte pelo suicídio. Ambos necessitam <strong>de</strong> um terceiro para a<br />

viabilização do objeto <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejo e ambos, impossibilitados <strong>de</strong> permanecerem<br />

com ele, aniquilam-se.<br />

Cúmplice, portanto, <strong>de</strong> “O incesto”, A confissão <strong>de</strong> Lúcio não procurou<br />

se <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r; antes seguiu seus passos até que pô<strong>de</strong> ultrapassá-la e configurar-se<br />

na obra-prima <strong>de</strong> Mário <strong>de</strong> Sá-Carneiro.<br />

Referências:<br />

GALHOZ, Maria Aliete. Mário <strong>de</strong> Sá-Carneiro. Lisboa: Editorial Presença,<br />

1963.<br />

PAREYSON, Luigi. Os problemas da estética. Trad. Maria Helena Nery Garcez.<br />

São Paulo: Martins Fontes, 1984.<br />

SÁ-CARNEIRO, Mário <strong>de</strong>. A confissão <strong>de</strong> Lúcio. Lisboa: Publicações Europa-<br />

América, s/d.<br />

_________. Céu em fogo. Lisboa: Publicações Europa-América, s/d.<br />

_________. O incesto. Lisboa: Edições Rolim,1984.<br />

186<br />

O incesto, <strong>de</strong> Mário <strong>de</strong> Sá-Carneiro

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