A PSICOLOGIA SOCIAL NO BRASIL - Nucleo de Humanidades
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A <strong>PSICOLOGIA</strong> <strong>SOCIAL</strong> <strong>NO</strong> <strong>BRASIL</strong>: um pequeno resgate *<br />
Márcia Antonia Pieda<strong>de</strong> Araújo **<br />
Resumo<br />
Este trabalho aponta, <strong>de</strong> forma breve, a história da Psicologia Social no Brasil a partir <strong>de</strong><br />
1920 até o ano 2000 enfocando-se as várias contribuições <strong>de</strong> estudiosos como Raul<br />
Briquet, Arthur Ramos, Manoel Bomfim, entre outros. Aborda-se a criação dos primeiros<br />
cursos <strong>de</strong> graduação e pós-graduação em psicologia social no país, além da criação <strong>de</strong><br />
entida<strong>de</strong>s – conselhos e associações -, como novos espaços <strong>de</strong> reflexão e discussão acerca<br />
<strong>de</strong>sse campo. Parte-se do princípio <strong>de</strong> que o conhecimento <strong>de</strong> sua construção histórica<br />
po<strong>de</strong> possibilitar reconhecer melhor as lutas atuais e on<strong>de</strong> elas se situam ou contradizem a<br />
trajetória histórica.<br />
Palavras-chave: História. Psicologia. Psicologia Social.<br />
Abstract<br />
This work highlights, briefly, the social psychology history in Brazil, from 1920 to 200,<br />
focusing several contributions from scholars such as Raul Briquet, Arthur Ramos, Manoel<br />
Bomfim, among others. The criation of the first graduation and post graduation courses in<br />
social psychology in the country is aproached, besi<strong>de</strong>s the criation of counsellings and<br />
associations entities. It starts from the principle that the knowledge of its historical<br />
construction can lead to better acknowledge the present battles and where they are placed<br />
or contradict the historical way.<br />
Key-words: History. Psychology. Social Psychology.<br />
1 INTRODUÇÃO<br />
O <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> uma ciência e, sobretudo, as gran<strong>de</strong>s transformações<br />
que nela se registram são produto <strong>de</strong> um conjunto <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminações históricas, as quais<br />
culminaram por estruturar idéias que fundamentaram e possibilitaram seu surgimento<br />
como ciência.<br />
O processo <strong>de</strong> constituição da Psicologia foi multi<strong>de</strong>terminado e, <strong>de</strong>ntre suas<br />
várias causas, é pertinente consi<strong>de</strong>rar <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a preocupação com os fenômenos psicológicos<br />
que foram, ao longo dos séculos, modificando-se e <strong>de</strong>senvolvendo-se até conquistar sua<br />
autonomia científica.<br />
Nessa rápida trajetória da Psicologia Social que vamos traçar é imperativo<br />
saber que compreen<strong>de</strong>r o processo <strong>de</strong> sua construção histórica significa abrir caminhos<br />
* Trabalho apresentado na Mesa Redonda “Psicologia Social no Brasil: percursos e possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />
atuação” do VIII Encontro Humanístico Nacional, São Luís, 2008.<br />
** Doutoranda em Psicologia Social pela Universida<strong>de</strong> do Estado do Rio <strong>de</strong> Janeiro. Professora do<br />
Departamento <strong>de</strong> Psicologia da Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Maranhão.<br />
1
para que seja possível apren<strong>de</strong>r, questionar e transformar os princípios que fundamentam o<br />
pensamento psicológico. Uma vez que o homem se encontra em constante movimento, sua<br />
construção ocorre <strong>de</strong> forma sempre contínua, influenciado que é pelas diversas mudanças<br />
por que passa no contexto em que está inserido, sejam elas mudanças <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m histórica,<br />
política, econômica, social ou cultural (JURBERG, 2000; KAHHALE; ANDRIANI,<br />
2002).<br />
2 A <strong>PSICOLOGIA</strong> <strong>SOCIAL</strong> <strong>NO</strong> <strong>BRASIL</strong><br />
Segundo Bomfim (2003a) três referenciais fazem parte do contexto <strong>de</strong><br />
produção da Psicologia Social: os relacionados com o progresso <strong>de</strong> áreas afins como a<br />
sociologia, a antropologia, a educação, a história social e a própria psicologia; o avanço da<br />
psicologia social em países da Europa, nos Estados Unidos e, mais recentemente, na<br />
América Latina e ainda às condições históricas e econômicas mundiais, especialmente, às<br />
condições nacionais que, aliadas às <strong>de</strong>mandas sociais <strong>de</strong> comunida<strong>de</strong>s, grupos e<br />
movimentos sociais, abriram caminhos no campo do conhecimento psicossocial.<br />
A Psicologia Social aparece em 1908, com a publicação <strong>de</strong> “Social<br />
Psychology”, <strong>de</strong> Edward Ross e “An Introduction to Social Psychology” <strong>de</strong> William<br />
McDougall. Ross, <strong>de</strong> orientação sociológica, fazia referência a conceitos como mente<br />
coletiva, costumes sociais, opiniões sociais e conflitos. McDougall referia que as<br />
características sociais e o comportamento se baseavam na natureza biológica, idéia em que<br />
a psicologia social se apoiou em seu <strong>de</strong>senvolvimento.<br />
Mesmo sabendo que existem contribuições nesse campo vindas,<br />
principalmente, da Europa e dos Estados Unidos, cabe <strong>de</strong>stacar que vamos nos <strong>de</strong>ter na<br />
história da Psicologia Social no Brasil.<br />
O primeiro livro com título específico referido a Psicologia Social foi<br />
publicado, no Brasil, somente em 1921. De autoria <strong>de</strong> Francisco José <strong>de</strong> Oliveira Viana,<br />
intitulado “Pequenos estudos <strong>de</strong> psychologia”, este fora composto <strong>de</strong> artigos publicados em<br />
jornais, versando sobre temas como o meio social e o meio político.<br />
Mas, já havia um pensamento psicossocial no Brasil, que é normalmente<br />
<strong>de</strong>nominado <strong>de</strong> "pensamento social brasileiro". Dentre os autores que mais se <strong>de</strong>stacaram<br />
neste sentido, ainda no século XIX ou na passagem para o XX, citam-se Sylvio Romero,<br />
Raimundo Nina Rodrigues e Manoel Bomfim, cujas idéias traziam as marcas brasileiras <strong>de</strong><br />
uma época <strong>de</strong> pouca industrialização, domínio da oligarquia rural e um contexto intelectual<br />
2
egido pelo predomínio das idéias positivistas. Uma questão bastante discutida em suas<br />
obras era o regime escravocrata, que revelava reações diferentes quando incluía discursos<br />
sobre a inferiorida<strong>de</strong> do povo brasileiro e das raças (BOMFIM, 2003b).<br />
Sylvio Romero nasceu em Sergipe, em 1851, e formou-se em Direito, sendo<br />
também sociólogo, professor e historiador. Sua contribuição para a Psicologia Social<br />
ocorreu com a publicação da obra “História da literatura brasileira”, <strong>de</strong> 1886, na qual<br />
tratava da relação existente entre a literatura e as manifestações políticas, econômicas e<br />
artísticas. No capítulo intitulado “Psicologia Nacional - Prejuízo <strong>de</strong> educação - Imitação do<br />
estrangeiro” o autor <strong>de</strong>clara sua crença numa psicologia dos povos. Segundo seu<br />
entendimento, o povo brasileiro, em especial, tinha características como apatia, falta <strong>de</strong><br />
iniciativa, <strong>de</strong>sânimo e propensão para esperar a iniciativa vinda do po<strong>de</strong>r. Seu texto <strong>de</strong>nota<br />
a situação do Brasil à época, quando 90% da população era analfabeta (preocupação com<br />
educação), com mais <strong>de</strong> 7% <strong>de</strong> estrangeiros (preocupação com a questão da imitação).<br />
Assim, ele inaugurou uma linha <strong>de</strong> estudos em Psicologia Social.<br />
Raimundo Nina Rodrigues nasceu no Maranhão, em 1862 e formou-se em<br />
Medicina na Bahia, em 1886. Entre as várias obras publicadas, <strong>de</strong>staca-se “As raças<br />
humanas e a responsabilida<strong>de</strong> penal no Brasil” <strong>de</strong> 1894, on<strong>de</strong> afirma que a diferença entre<br />
os povos civilizados e bárbaros é baseada em uma organização cerebral herdada.<br />
Suas idéias comungavam tanto da necessida<strong>de</strong> i<strong>de</strong>ológica <strong>de</strong> "enten<strong>de</strong>r" a gente<br />
brasileira como também faziam parte da i<strong>de</strong>ologia racial que impunha o urgente<br />
aprimoramento da raça brasileira, consi<strong>de</strong>rada inferior. A importante presença <strong>de</strong> Nina<br />
Rodrigues no campo da Medicina Legal influenciou os campos médico e jurídico no país.<br />
Manoel Bomfim nasceu em Sergipe em 1868 e formou-se em Medicina no Rio<br />
<strong>de</strong> Janeiro, em 1890. Sua atuação como intelectual do seu tempo envolveu vários campos<br />
disciplinares como Medicina, Educação, História, Antropologia, Língua Portuguesa e<br />
Psicologia Entre suas várias produções, uma se <strong>de</strong>staca para este contexto: trata-se da obra<br />
“America Latina - males <strong>de</strong> origem” concluída em 1905, em Paris, na qual o autor,<br />
conforme Bomfim (2003a, p. 24), já <strong>de</strong>stacava que:<br />
“[...] para se estudar um grupo social e compreen<strong>de</strong>r os motivos pelos quais ele<br />
se apresenta em <strong>de</strong>terminadas condições, seria preciso analisar não só o meio no<br />
qual se encontra, como também os seus antece<strong>de</strong>ntes. Como conseqüência, a<br />
nacionalida<strong>de</strong> seria o produto <strong>de</strong> uma evolução resultante <strong>de</strong> ações passadas e <strong>de</strong><br />
ações do meio [...]”.<br />
A característica significativa <strong>de</strong>ssa obra foi a sua rejeição às teorias raciais, <strong>de</strong><br />
caráter racista tão presentes naquele momento. Além disso, Manoel Bomfim fundou e<br />
3
dirigiu o Laboratório <strong>de</strong> Psicologia Experimental no Rio <strong>de</strong> Janeiro em 1906, época em<br />
que com a reforma do ensino no Brasil, nos fins do século XIX e início do século XX -<br />
propiciada por Benjamin Constant (1890), houve a introdução <strong>de</strong> noções <strong>de</strong> psicologia nos<br />
cursos <strong>de</strong> educação, sendo criados os primeiros laboratórios <strong>de</strong> psicologia, objetivando o<br />
<strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> pesquisas nessa área.<br />
Na década <strong>de</strong> 1930 surgiram os primeiros cursos superiores em Psicologia<br />
Social. Cabendo a Raul Carlos Briquet o pioneirismo docente. Médico, nascido em São<br />
Paulo em 1887, ele foi responsável pela ca<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> Psicologia Social na Escola Livre <strong>de</strong><br />
Sociologia e Política <strong>de</strong> São Paulo. Desse curso resultou uma publicação do primeiro livro<br />
acadêmico em Psicologia Social, editado em 1935. O livro foi estruturado em duas partes:<br />
a primeira, versa sobre as contribuições da Sociologia, Biologia e Psicologia; a segunda,<br />
<strong>de</strong>nominada <strong>de</strong> especial, traz temáticas específicas em Psicologia Social, em que o autor<br />
realizou uma análise dos fatores psíquicos que motivam o comportamento social, o<br />
instinto, o hábito, as três formas <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> social (sugestão, imitação e simpatia), a<br />
inteligência e a vida social.<br />
O segundo curso <strong>de</strong> Psicologia Social foi ministrado em 1935 por Arthur<br />
Ramos – médico, nascido em Alagoas em 1903 - que resultou na edição do livro<br />
“Introdução à Psychologia Social”, publicado em 1936, na Escola <strong>de</strong> Economia e Direito<br />
da extinta Universida<strong>de</strong> do Distrito Fe<strong>de</strong>ral 1 . Para ele, a Psicologia Social era uma<br />
disciplina entre a Psicologia e a Sociologia que necessitava <strong>de</strong> maiores <strong>de</strong>limitações do seu<br />
campo, com crescente importância, embora seus métodos e objetivos ainda não estivessem<br />
claros. Na sua visão, caberia à Psicologia Social estudar: as bases psicológicas do<br />
comportamento social, as inter-relações psicológicas dos indivíduos na vida social e a<br />
influência total do grupo sobre a personalida<strong>de</strong>.<br />
A década <strong>de</strong> 1940 foi marcada, segundo Bomfim (2003b), por missões<br />
estrangeiras que chegaram ao Brasil no auge da II Gran<strong>de</strong> Guerra Mundial, acrescentando,<br />
portanto, várias contribuições psicossociais. Desse grupo po<strong>de</strong>-se <strong>de</strong>stacar Pierre Weil que<br />
chegou ao país em 1948 para trabalhar em treinamentos do recém-criado Serviço Nacional<br />
<strong>de</strong> Aprendizagem Comercial (SENAC), no Rio <strong>de</strong> Janeiro. Entre suas obras, merece<br />
<strong>de</strong>staque “Dinâmica <strong>de</strong> Grupo e Desenvolvimento em Relações Humanas” (1967) e a partir<br />
<strong>de</strong>ssa obra ele <strong>de</strong>senvolveu, com colegas, a técnica <strong>de</strong> Desenvolvimento das Relações<br />
Humanas (DRH).<br />
4
Outro autor estrangeiro que veio ao Brasil para ministrar cursos na<br />
Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo (USP), no Serviço Nacional <strong>de</strong> Aprendizagem Industrial<br />
(SENAI) e no Departamento Administrativo do Serviço Público (DASP), foi Emílio Mira<br />
y López. Algumas <strong>de</strong> suas obras foram: “Manual <strong>de</strong> Psicologia Jurídica” (1917), “Manual<br />
<strong>de</strong> orientación profesional” (1947) e “La Psiquiatria en la guerra” (1944).<br />
Na década <strong>de</strong> 1950, a i<strong>de</strong>ologia <strong>de</strong>senvolvimentista torna-se mais impregnante<br />
no pais, com a crença <strong>de</strong> que um parque industrial forte melhorará a qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida do<br />
Brasil, <strong>de</strong> que a industrialização e a urbanização levarão à qualificação dos recursos<br />
humanos, ou seja, construir-se-á um país mo<strong>de</strong>rno e <strong>de</strong>senvolvido. Para tanto, houve maior<br />
ênfase no setor educacional. Assim, foram criados órgãos como o “Conselho Nacional <strong>de</strong><br />
Pesquisas” (CNPQ) em 1951, “Campanha <strong>de</strong> Aperfeiçoamento e Difusão do Ensino<br />
Secundário” (CADES) em 1954 e o “Serviço <strong>de</strong> Educação <strong>de</strong> Adultos”, em 1957. Este<br />
momento foi importante para a Psicologia Social, pois possibilitou as primeiras teses <strong>de</strong><br />
doutorado com temáticas comprometidas com essa perspectiva, como a tese <strong>de</strong> Carolina<br />
Bori, que versava sobre a “Análise dos Experimentos <strong>de</strong> Interrupção <strong>de</strong> Tarefas e da Teoria<br />
da Motivação” na obra <strong>de</strong> Kurt Lewin (1953) e a tese <strong>de</strong> Dante Moreira Leite com o título<br />
“Caráter Nacional do Brasileiro” (1954), que analisou a visão do que seja o "brasileiro" em<br />
diferentes obras representativas do chamado "pensamento social brasileiro", apontando,<br />
nelas, seu caráter conservador ou progressista.<br />
Além das teses, outras contribuições se fizeram presentes, nessa década, no<br />
periódico “Boletim do Instituto <strong>de</strong> Psicologia” do Rio <strong>de</strong> Janeiro criado por Nilton<br />
Campos, quando diretor do Instituto <strong>de</strong> Psicologia da Universida<strong>de</strong> do Brasil. Nesse<br />
boletim, foram publicados uma série <strong>de</strong> artigos do próprio Nilton Campos além <strong>de</strong> Antonio<br />
Gomes Penna e <strong>de</strong> Eliezer Schnei<strong>de</strong>r, enfocando as situações do ensino, da pesquisa e das<br />
publicações da Psicologia Social no Rio <strong>de</strong> Janeiro. Além disso, nesse período na<br />
Psicologia Social, segundo Bomfim (2003a), houve um aumento <strong>de</strong> estudos sobre<br />
comunicação <strong>de</strong> massa, violência, papéis sociais, valores e normas, em que o sujeito era<br />
flexível às influências da informação.<br />
Mudanças consi<strong>de</strong>ráveis foram realizadas na década <strong>de</strong> 1960 na socieda<strong>de</strong> e<br />
nas formas <strong>de</strong> governo. A rebelião <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 1968 na França foi um marco na expressão<br />
dos conflitos e das <strong>de</strong>mandas por mudanças sociais e políticas na busca <strong>de</strong> uma nova<br />
or<strong>de</strong>m social, mais justa e mais humana. No Brasil, na primeira meta<strong>de</strong> da década <strong>de</strong> 1960,<br />
mais precisamente em 1964, ocorreu a revolução militar, acabando com a liberda<strong>de</strong><br />
5
<strong>de</strong>mocrática (política, social, econômica e cultural). Esse regime autoritário era mantido<br />
por pactos com o capital internacional, coor<strong>de</strong>nado pelo Serviço Nacional <strong>de</strong> Informação<br />
(SNI), pelas práticas <strong>de</strong> cassação <strong>de</strong> direitos políticos, prisões e torturas.<br />
A Psicologia Social, até o início dos anos 1960 parecia que daria respostas a<br />
todos os problemas sociais, mas foi atravessada por uma polêmica em torno <strong>de</strong> seu caráter<br />
teórico e i<strong>de</strong>ológico, ocasionando uma crise. Tal crise foi <strong>de</strong>vida tanto à sua metodologia<br />
como às formas <strong>de</strong> teorização utilizadas, pois a Psicologia <strong>de</strong> até então não havia<br />
<strong>de</strong>senvolvido uma base sólida <strong>de</strong> conhecimentos estruturada na realida<strong>de</strong> social e nas<br />
vivências cotidianas. Sua teorização era centrada, segundo Krüger (1986), no cognitivismo<br />
(relevo aos fatores cognitivos do indivíduo), no experimentalismo como método <strong>de</strong><br />
pesquisa, no individualismo (ou seja, na análise dos fenômenos sociais a partir da<br />
perspectiva do indivíduo), no etnocentrismo (já que este mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> indivíduo era o<br />
estabelecido na cultura norte-americana), no uso <strong>de</strong> microteorias (ou seja, na investigação<br />
<strong>de</strong> micro-espaços do social) e, finalmente, na perspectiva a-histórica, já que o "homem"<br />
estudado através <strong>de</strong>stes diversos invólucros seria um homem presente em todos os tempos<br />
e espaços. Para superar a crise, segundo Bonfim (2003a), seria necessário buscar uma<br />
maior e mais cuidadosa produção <strong>de</strong> conhecimento, discutindo as questões i<strong>de</strong>ológicas,<br />
elucidando os conflitos sociais, analisando as diferenças individuais, grupais e<br />
comunida<strong>de</strong>s e questionando seu papel político.<br />
Assim, a crise teórica <strong>de</strong> caráter internacional que aconteceu nesse período<br />
residiu em gran<strong>de</strong> parte nas dúvidas sobre o método experimental e sobre a sua a<strong>de</strong>quação<br />
à complexida<strong>de</strong> e exigências do objeto <strong>de</strong> estudo, pois, as regras do comportamento<br />
humano, contrariamente às das ciências naturais, não po<strong>de</strong>m ser estabelecidas<br />
<strong>de</strong>finitivamente, porque elas se alteram em função das circunstâncias culturais e históricas.<br />
Desse modo, as investigações <strong>de</strong>veriam esten<strong>de</strong>r-se do individual para o social, levar em<br />
conta o político e o econômico, no sentido <strong>de</strong> se obter uma compreensão apropriada da<br />
evolução da psicologia contemporânea e da vida social.<br />
No Brasil, a Psicologia Social cresceu em meio às conturbações políticas e<br />
sociais internas. Cresceram, também, nas empresas e nas instituições brasileiras, as práticas<br />
<strong>de</strong> dinâmica <strong>de</strong> grupo e <strong>de</strong> intervenção psicossociológica que privilegiavam as relações<br />
interpessoais, empresariais e/ou terapêuticas. Houve ainda um crescente aumento no<br />
número <strong>de</strong> cursos <strong>de</strong> psicologia criados no país.<br />
A década <strong>de</strong> 1960 também foi importante para a Psicologia pela conquista <strong>de</strong><br />
6
sua autonomia e pelo reconhecimento da profissão <strong>de</strong> psicólogo regulamentada pela Lei nº<br />
4.119, <strong>de</strong> 27 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 1962, que estimulou a criação <strong>de</strong> novos cursos, assim como<br />
consolidou o ensino da Psicologia nos cursos superiores. Dessa forma, ocorreu o<br />
<strong>de</strong>senvolvimento da produção psicossocial, principalmente em relação a disciplinas, como<br />
“Dinâmica <strong>de</strong> Grupo e Relações Humanas”, “Seleção e Orientação Profissional” e<br />
“Psicologia da Indústria”, além da obrigatorieda<strong>de</strong> da “Psicologia Social”.<br />
Na década seguinte, 1970, o Brasil continuava sob o regime militar que durante<br />
muitos anos buscou controlar a população, suas ações e pensamentos. A Psicologia, por<br />
sua vez, ainda vivia a crise da década passada, refletida em fóruns <strong>de</strong> discussões, os<br />
impasses da psicologia social enquanto ciência e espaço <strong>de</strong> práticas políticas e i<strong>de</strong>ológicas.<br />
Entre eles: o “Fórum <strong>de</strong> Psicologia Social”, que aconteceu no Rio <strong>de</strong> Janeiro, em outubro<br />
<strong>de</strong> 1970, promovido pela Associação Brasileira <strong>de</strong> Psicologia Aplicada, o “I Encontro dos<br />
Psicólogos Brasileiros”, em São Paulo em 1971 e o “III Encontro Nacional <strong>de</strong> Socieda<strong>de</strong>s<br />
<strong>de</strong> Psicologia”, em 1973 na cida<strong>de</strong> do Rio <strong>de</strong> Janeiro, promovido pela Associação<br />
Brasileira <strong>de</strong> Psicologia Aplicada.<br />
Foi também nessa década, fase áurea da expansão <strong>de</strong> cursos <strong>de</strong> Psicologia na<br />
re<strong>de</strong> privada, que a visão empresarial dominante sustentou a criação <strong>de</strong> cursos sem<br />
estrutura a<strong>de</strong>quada para a formação <strong>de</strong> psicólogos. O campo da Psicologia continuava<br />
crescendo, com a implantação dos primeiros cursos <strong>de</strong> mestrado específicos em Psicologia<br />
Social na Pontifícia Universida<strong>de</strong> Católica <strong>de</strong> São Paulo, os quais geraram dissertações<br />
com temáticas voltadas à realida<strong>de</strong> brasileira. A produção literária também aumentava,<br />
embora neste período tenha ocorrido o auge das traduções dos livros estrangeiros. Entre a<br />
produção nacional, citamos: “Psicologia Social”, <strong>de</strong> Aroldo Rodrigues (1972); “Relações<br />
Humanas: psicologia das relações interpessoais” (1978) <strong>de</strong> Agostinho Minicucci e “Psicosociologia<br />
das Relações Públicas”, <strong>de</strong> Cândido <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> (1975). Outro fato marcante<br />
nesse período foi a criação do Conselho Fe<strong>de</strong>ral e dos Conselhos Regionais <strong>de</strong> Psicologia,<br />
pela Lei nº 5.766 <strong>de</strong> 20/12/1971. Assim, conforme Bomfim, (2003a), “[...] Essa lei<br />
complementava a Lei 4.119 <strong>de</strong> 1962 que veio regulamentar a profissão <strong>de</strong> psicólogo. Com<br />
a instalação dos conselhos <strong>de</strong> psicologia, foram criadas melhores condições para <strong>de</strong>finição<br />
da área e do exercício profissional”.<br />
O Brasil na década <strong>de</strong> 1980, ainda sob o regime militar, vivenciou novas<br />
greves resultantes do processo recessivo, <strong>de</strong>vido às perdas salariais e à instabilida<strong>de</strong> no<br />
7
emprego. O po<strong>de</strong>r já não estava somente com o Estado, mas também em instituições<br />
sociais que criticavam e <strong>de</strong>nunciavam exclusões e opressões.<br />
Nesse período, a Psicologia Social no Brasil, <strong>de</strong> acordo com Bomfim (2003a),<br />
buscou autonomia científica, por um conjunto <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s: crescimento expressivo da<br />
produção publicada, <strong>de</strong>talhamento das temáticas anteriormente abordadas (educação,<br />
saú<strong>de</strong>, comunida<strong>de</strong>, trabalho, etc.), inclusão <strong>de</strong> outras (representações sociais, relações <strong>de</strong><br />
gênero, movimentos sociais, etc.) através <strong>de</strong> estudos realizados, além <strong>de</strong> publicação <strong>de</strong><br />
estudos e ampliação da divulgação <strong>de</strong> aplicações da psicologia social, principalmente em<br />
relação aos trabalhos com comunida<strong>de</strong>s carentes.<br />
Predominou, nesse momento, a busca por uma nova i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, com muitos<br />
<strong>de</strong>bates, congressos, encontros, publicações, reflexões. Cotejem-se alguns aspectos<br />
enumerados por Bock (1999): encerravam-se duas etapas da categoria, uma marcada pelas<br />
intervenções e lutas corporativistas, e outra que teve como resultado a consolidação da<br />
profissão no Brasil; engajavam-se os psicólogos nas lutas junto aos trabalhadores e<br />
começavam a participar <strong>de</strong> movimentos sindicais para a construção da Central Única dos<br />
Trabalhadores (CUT). A partir daí, iniciou-se uma mudança na história <strong>de</strong>sses<br />
profissionais através <strong>de</strong> <strong>de</strong>bates e reflexões sobre seus problemas, com a proposta <strong>de</strong> uma<br />
atuação mais a<strong>de</strong>quada junto à população brasileira e suas necessida<strong>de</strong>s.<br />
Essa década foi importante para a Psicologia Social, pois além do aumento da<br />
produção <strong>de</strong> artigos e dissertações <strong>de</strong> mestrado, foram criados os primeiros cursos <strong>de</strong><br />
doutorado específicos nessa área e <strong>de</strong>fendidas as primeiras teses nos cursos instituídos.<br />
Vale ressaltar que com a criação das associações científicas, entre elas a “Associação<br />
Brasileira <strong>de</strong> Psicologia Social” (ABRAPSO), em julho <strong>de</strong> 1980, e a “Associação Nacional<br />
<strong>de</strong> Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia” (ANPEPP), em julho <strong>de</strong> 1983, a Psicologia,<br />
<strong>de</strong> modo geral e a social <strong>de</strong> modo específico, <strong>de</strong>ram um salto <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong> por meio dos<br />
encontros promovidos com a categoria em diferentes eventos científicos.<br />
O Brasil da década <strong>de</strong> 1990 mantinha algumas características da década<br />
anterior, tais como estagnação econômica, grave crise social, inflação <strong>de</strong>scontrolada e caos<br />
nas finanças públicas, <strong>de</strong>vido às dívidas internas e externas. Foi a época em que a<br />
Psicologia, segundo Bock (1999), partiu para a sistematização da diversida<strong>de</strong> construída na<br />
década <strong>de</strong> 1980, quando os psicólogos refletiram e construíram novas idéias.<br />
A categoria que, anteriormente, almejava uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> para o psicólogo, <strong>de</strong>u<br />
lugar, na década <strong>de</strong> 1990, à preocupação com a imagem da Psicologia e do psicólogo junto<br />
8
à população. Segundo Bock (1999, p. 127): “[...] Em 1990, vamos nos <strong>de</strong>parar com mais<br />
certezas e posições. Se a década <strong>de</strong> 80 levantou questões, a década <strong>de</strong> 90 parece se propor<br />
a respondê-las”. Para isso, ainda segundo a autora, os congressos, as publicações e a<br />
realização sistemática <strong>de</strong> pesquisas sobre a categoria no Brasil tiveram papel importante na<br />
discussão <strong>de</strong> questões relativas à profissão e à própria ciência. Assim sendo, essa década<br />
obteve alguns resultados para suas reivindicações, entre eles: o psicólogo começou a ser<br />
visto como profissional da saú<strong>de</strong>; a profissão se aproximou dos contextos sociais; houve<br />
aumento do número <strong>de</strong> profissionais em outros campos <strong>de</strong> trabalho não tradicionais, o que<br />
levou à necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> rever a formação tradicional dos psicólogos. Um dos marcos<br />
significativos <strong>de</strong>sse período foi a publicação pelo Conselho Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Psicologia em 1994<br />
do livro “Psicólogo brasileiro – práticas emergentes e <strong>de</strong>safios para a formação”.<br />
O segundo milênio foi aberto pela Psicologia Social no Brasil sendo<br />
consi<strong>de</strong>rada como um campo <strong>de</strong> busca <strong>de</strong> compromissos sociais, com a apresentação <strong>de</strong><br />
muitos trabalhos inseridos na temática social. Isso pô<strong>de</strong> ser <strong>de</strong>monstrado na “I Mostra<br />
Nacional <strong>de</strong> Práticas em Psicologia: psicologia e compromisso social”, cuja iniciativa foi<br />
do Conselho Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Psicologia.<br />
Apesar do número elevado <strong>de</strong> trabalhos apresentados com o cunho “social”,<br />
isso não reflete a realida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sse compromisso, pois, segundo Bock (2003), não havia <strong>de</strong><br />
fato um real comprometimento social dos profissionais com a socieda<strong>de</strong>.<br />
A Psicologia Social que hoje conhecemos e com a qual convivemos, nos<br />
diferentes centros <strong>de</strong> investigação e trabalho, foi e está sendo construída por profissionais<br />
que estão aí, em pleno exercício das suas ativida<strong>de</strong>s, comprometendo-se com as <strong>de</strong>mandas<br />
e necessida<strong>de</strong>s explícitas em seus locais <strong>de</strong> atuação. Trata-se <strong>de</strong> pessoas que viveram a<br />
“crise” da psicologia social, e colaboraram para chamar a atenção sobre realida<strong>de</strong>s sociais<br />
e cotidianas que se diferenciavam daquelas vividas nos centros <strong>de</strong> domínio econômico,<br />
político e científico (FREITAS, 2000).<br />
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS<br />
Limitamo-nos a assinalar, brevemente, autores e algumas obras importantes<br />
para o conhecimento da constituição histórica da Psicologia Social. No entanto, vários<br />
outros estudiosos po<strong>de</strong>riam ter sido citados aqui, mas em razão do objeto visto para este<br />
texto, <strong>de</strong>ixamos <strong>de</strong> contar com suas valiosas contribuições.<br />
9
Assinalamos como aconteceu a Psicologia Social no Brasil e, <strong>de</strong> certo modo,<br />
na América Latina, tendo como propósito mostrar porque ela esteve muito tempo ignorada.<br />
Essa visão, motivada <strong>de</strong>pois da “crise”, provocou mudança <strong>de</strong> idéias, que se<br />
materializavam pela ação <strong>de</strong> profissionais e investigadores na luta por se manter e<br />
sobreviver em resistência aos clássicos mo<strong>de</strong>los importados dos centros hegemônicos <strong>de</strong><br />
produção científica, o que no caso específico nosso apresentou-se diferente das múltiplas<br />
<strong>de</strong>mandas impostas pelas condições sociais brasileiras.<br />
É certo que a história não é estática e nem estagnada, está sempre sujeita a<br />
revisões à medida que são revelados novos dados ou novas interpretações <strong>de</strong> dados já<br />
existentes. E só assim, é possível enten<strong>de</strong>r que o conjunto <strong>de</strong> mudanças na socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong>ve<br />
ser visto <strong>de</strong> forma articulada, ou seja, história, socieda<strong>de</strong>, progresso, transformação.<br />
Finalmente, é preciso pensar uma Psicologia Social mais comprometida com a<br />
realida<strong>de</strong> social e com as condições <strong>de</strong> vida das pessoas no contexto em que elas estejam<br />
inseridas, e, para tanto, <strong>de</strong>ve-se acabar com a idéia <strong>de</strong> que o mundo psicológico está oposto<br />
ao social.<br />
Nota<br />
1<br />
A Universida<strong>de</strong> do Distrito Fe<strong>de</strong>ral foi extinta em 1939 e seus cursos absorvidos pela Universida<strong>de</strong> do<br />
Brasil.<br />
REFERÊNCIAS<br />
BOCK, Ana Mercês Bahia. Aventuras do barão <strong>de</strong> Münchhausen na psicologia. São Paulo:<br />
EDUC, 1999.<br />
BOCK, Ana Mercês Bahia. Psicologia e sua i<strong>de</strong>ologia: 40 anos <strong>de</strong> compromisso com as elites. In:<br />
BOCK, Ana Mercês Bahia (Org.) Psicologia e compromisso social. São Paulo: Cortez, 2003.<br />
BOMFIM, Elizabeth <strong>de</strong> Melo. Psicologia social no Brasil. Belo Horizonte, Edições do Campo<br />
Social, 2003a.<br />
BOMFIM, Elizabeth <strong>de</strong> Melo. Contribuições para a história da psicologia no Brasil. In: JACÓ-<br />
VILELA, Ana Maria; ROCHA, Marisa Lopes da; MANCEBO, Deise (Org.). Psicologia social:<br />
relatos na América Latina. São Paulo: 2003b.<br />
FREITAS, Maria <strong>de</strong> Fátima Quintal <strong>de</strong>. O movimento da lente focal na história recente da<br />
psicologia social latino-americana. In: CAMPOS, Regina Helena <strong>de</strong> Freitas; GUARESCHI,<br />
Pedrinho (Org.). Paradigmas em psicologia social. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000.<br />
KAHHALE, Edna Maria Petres; ANDRIANI, Ana Gabriela Pedrosa. Constituição histórica da<br />
psicologia como ciência. In: KAHHALE, Edna Maria Petres (Org.). A diversida<strong>de</strong> da psicologia:<br />
uma construção teórica. São Paulo: Cortez, 2002.<br />
KRÜGER, Helmuth. Introdução à psicologia social. São Paulo: EPU, 1986.<br />
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