O Caminho, a Verdade e a Vida Projeções sobre Os degraus do ...
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O <strong>Caminho</strong>, a <strong>Verdade</strong> e a <strong>Vida</strong><br />
<strong>Projeções</strong> <strong>sobre</strong> <strong>Os</strong> <strong>degraus</strong> <strong>do</strong> Paraíso<br />
INTRODUÇÃO: JOSUÉ MONTELLO E A SAGA MARANHENSE<br />
Bruno Azevê<strong>do</strong><br />
São Luís é uma ilha que se faz questão. Fisicamente ligada ao<br />
continente por um canal não à toa conheci<strong>do</strong> como Estreito (<strong>do</strong>s Mosquitos), a<br />
cidade teve ao longo de sua história poucos vizinhos; durante o perío<strong>do</strong> de<br />
<strong>do</strong>minação portuguesa, seus olhos estavam mais volta<strong>do</strong>s ao mar que ao<br />
continente e, mesmo hoje, leva-se quase uma hora para chegarmos à cidade<br />
mais próxima. Talvez por este isolamento tenha desenvolvi<strong>do</strong> particularidades<br />
que há anos vêm fascinan<strong>do</strong> e expulsan<strong>do</strong> os lu<strong>do</strong>vicenses. Um destes<br />
conseguiu conservar os <strong>do</strong>is aspectos na medida em que nela ficou pouco, mas<br />
dela falou tanto que acabou por erguer uma outra cidade, construção<br />
correntemente conhecida como a “Saga maranhense” de Josué Montello.<br />
O termo foi inicialmente usa<strong>do</strong> pelo crítico Franklin de Oliveira como<br />
referência aos romances montellianos que se passassem no Maranhão, sen<strong>do</strong><br />
aceito largamente, mas nunca estuda<strong>do</strong> a fun<strong>do</strong>, fican<strong>do</strong> a idéia geral de que<br />
Montello, apesar de situar alguns livros em outros lugares como o Rio de<br />
Janeiro, tinha no Maranhão o maior enfoque de sua obra.<br />
O fato de algumas histórias não se situarem no esta<strong>do</strong> denuncia a<br />
intenção de uma inter-relação entre as que têm o Maranhão como cenário.<br />
Assim, a Saga maranhense pode e deve conter textos que não dizem respeito<br />
a um livro específico e sim a to<strong>do</strong>s eles, sen<strong>do</strong> cada romance como um tijolo<br />
com o qual o autor edifica a sua versão <strong>do</strong> lugar. Esta inter-relação pode estar<br />
para além da intencionalidade direta <strong>do</strong> autor e começa pela tentativa de<br />
definição <strong>do</strong> que seria a própria Saga.<br />
A escritora Telenia Hill diz que:<br />
“Depois de Janelas fechadas (1941), Montello retorna aos motivos maranhenses, com<br />
Labirinto de espelhos (1952), seguin<strong>do</strong>-lhes A décima noite (1959), Degraus <strong>do</strong> Paraíso<br />
(1965), Cais da Sagração (l971) e <strong>Os</strong> tambores de São Luís (1975). Constrói-se,<br />
portanto, a saga maranhense que se completaria com o romance que acaba de ser<br />
focaliza<strong>do</strong>, se não fosse a retomada com A coroa de areia (1979), O Largo <strong>do</strong> Desterro<br />
(1981), e Perto da meia-noite (1985).” (HILL, 2007).<br />
É fato que Montello compôs seus romances de maior “relevo” nos anos<br />
1970, mas não deixou de escrever <strong>sobre</strong> o Maranhão em outras épocas; mesmo<br />
após “Perto da meia-noite” (onde a autora situa o final da saga) há livros<br />
lu<strong>do</strong>vicenses como “Uma sobra na parede”, de 1995. 1<br />
1 Hill insere Uma sombra na parede não na Saga maranhense, mas em uma “tetralogia da vida<br />
contemporânea”, que se completaria com A mulher proibida (1996), A viagem sem regresso<br />
(1993) e Enquanto o tempo não passa (1996).<br />
Ciências Humanas em Revista, v.6, n.1, São Luis/MA, 2008 - ISSN 1678-8192
Concor<strong>do</strong> com o pressuposto de que a Saga maranhense consista nos<br />
livros que se situam no Maranhão e a tentativa de subdividi-la, excluir títulos<br />
ou acrescer-lhe obras não romanescas mais acrescenta às aleivosias da crítica<br />
que à fruição <strong>do</strong>s próprios romances, de forma que a Saga aqui é mencionada<br />
nestes termos. No entanto, inter-relacionar seu conteú<strong>do</strong> romanesco pode<br />
contribuir para a descoberta de um escritor ainda maior, autor não só de<br />
vários romances mais de uma obra monumental <strong>sobre</strong> o lugar onde nasceu.<br />
É importante notar que o termo “Saga maranhense” é ainda restrito à<br />
crítica, e as sucessivas edições <strong>do</strong>s livros não a formataram como tal; mesmo<br />
o autor, quan<strong>do</strong> em vida, não o fez. Neste ponto, comprar um livro de Josué<br />
Montello é uma aventura ao desconheci<strong>do</strong>: as orelhas, prefácios e<br />
comentários de contracapa resumem-se a missivas elogiosas à figura <strong>do</strong><br />
escritor, não contribuin<strong>do</strong> em nada para a antevisão da obra e seu possível<br />
diálogo com as demais.<br />
Não há nenhum hermetismo na literatura montelliana, mas seus<br />
romances precisam de reedição racional e sistematizada, para que assim, com<br />
novo fôlego, possam alcançar novos leitores; assim como há necessidade de<br />
uma nova leitura <strong>do</strong>s romances capaz de expor facetas ainda obscuras ou<br />
inexploradas <strong>do</strong> enorme universo ficcional <strong>do</strong> escritor.<br />
Pensan<strong>do</strong> nisso, este estu<strong>do</strong> (pontapé inicial de um projeto mais amplo<br />
e coletivo <strong>sobre</strong> a Saga) se dedica à análise de um destes romances, “<strong>Os</strong><br />
<strong>degraus</strong> <strong>do</strong> paraíso” (em sua edição refundida de 1974), na intenção de lançar<br />
uma nova camada de significa<strong>do</strong> à obra em si e à sua relação com a carreira<br />
<strong>do</strong> autor, a cidade de São Luís e a Saga maranhense.<br />
H A PESCA ÀS BALEIAS 2<br />
São Luís, por volta de 1920, era noite no Desterro. Dir-se-ia que àquela<br />
época a noite era mais escura aos arre<strong>do</strong>res, com a iluminação ainda por<br />
fazer-se elétrica. Um sobra<strong>do</strong> miú<strong>do</strong>, perto da igreja. Na luz da lamparina, o<br />
senhor de batina puída entrega uma carta ao companheiro convalesci<strong>do</strong>,<br />
enquanto lhe parabeniza pelo fato de o AVC recém sofri<strong>do</strong> ter-lhe afeta<strong>do</strong><br />
somente o la<strong>do</strong> direito <strong>do</strong> corpo, sen<strong>do</strong> ele canhoto.<br />
Com a língua paralítica e um fio de saliva a teimar no canto da boca, o<br />
homem pensa, olhan<strong>do</strong> o padre:<br />
“Seria a fé uma forma de ingenuidade elevada ao plano religioso?” 3<br />
A este tempo, um garoto de apenas <strong>do</strong>is anos acompanhava, senta<strong>do</strong> de<br />
frente para o pai, uma fé que ainda não compreendia, mas que viria a<br />
expressar, mais de 30 anos depois, em forma de livro.<br />
<strong>Os</strong> <strong>degraus</strong> <strong>do</strong> Paraíso é o quinto romance de Josué Montello e,<br />
certamente, um <strong>do</strong>s mais importantes, teve função de marco na carreira <strong>do</strong><br />
escritor, na forma, estilo e conteú<strong>do</strong>.<br />
2 “O romancista é um pesca<strong>do</strong>r de baleias. Ao ferir o cetáceo, o pesca<strong>do</strong>r deixa-se levar por<br />
ele. A baleia morre mas oferece um trajeto.” Josué Montello, entrevista em 1949.<br />
3 03. <strong>Os</strong> <strong>degraus</strong> <strong>do</strong> Paraíso, São Paulo, Martins/MEC, 1974 p. 255<br />
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Na São Luís <strong>do</strong> entre-guerras (1918 a 1938), alarmada pela gripe<br />
Espanhola, extasiada com a luz elétrica e majoritariamente católica, uma<br />
família comunga da unidade coletiva da morte.<br />
Mariana é uma senhora séria. Mãe de três filhos e separada <strong>do</strong> mari<strong>do</strong>.<br />
Seu grande desejo é ver o caçula, Teobal<strong>do</strong>, nomea<strong>do</strong> padre e “rezan<strong>do</strong> sua<br />
missa nova, provavelmente à Sé” 4 . Teobal<strong>do</strong> é superprotegi<strong>do</strong>, trancafia<strong>do</strong><br />
num quarto, na eminência da gripe que pode levar com facilidade o sonho de<br />
Mariana. Enquanto isso, suas duas filhas mais velhas (Morena e Cristina)<br />
sofrem com o desprezo da mãe e ausência <strong>do</strong> pai. A família conta ainda com<br />
Ernesto (o pai boêmio, expulso de casa pela agora ex-mulher), o Dr. Luna<br />
(amigo e médico de to<strong>do</strong>s) e a preta velha Cipriana, que foi escrava da mãe<br />
de Mariana e é devota de São Benedito.<br />
Uma fatia considerável da população de Saio Luís morria pela gripe,<br />
mas Teobal<strong>do</strong> morre tragicamente atropela<strong>do</strong> por um automóvel e [e esta<br />
tragédia que desencadeia toda a teia dramática <strong>do</strong> romance. Mariana,<br />
desiludida com tu<strong>do</strong> pela morte <strong>do</strong> filho, acaba por encontrar novo senti<strong>do</strong><br />
através da religião protestante. Esta conversão e o crescente intolerância de<br />
Mariana a outros cultos em detrimento deste passa a afetar a vida de to<strong>do</strong>s.<br />
Nasci<strong>do</strong> em São Luís em 1917, Josué Montello era filho de um diácono<br />
da Igreja Presbiteriana e parece dever este relato a si e a seu pai (à memória<br />
de quem o livro é dedica<strong>do</strong>), sen<strong>do</strong> este, entre seus romances, o que contém<br />
os mais fortes traços “autobiográficos”. O autor só veio a pisar em uma igreja<br />
católica já a<strong>do</strong>lescente, mas teve a liberdade de escolher por qual caminho<br />
iria a Deus.<br />
...<br />
Lança<strong>do</strong> em mea<strong>do</strong>s de 1965 5 , <strong>Os</strong> <strong>degraus</strong> <strong>do</strong> Paraíso era notícia sete<br />
anos antes da sua publicação, quan<strong>do</strong> o autor falava da história de uma<br />
mulher que se converte ao protestantismo depois de perder “to<strong>do</strong>s os<br />
parentes” 6 06 . Montello manteve uma relação longa com o livro em seu<br />
processo de composição, que apesar de pensa<strong>do</strong> por vasto tempo, foi escrito<br />
em somente <strong>do</strong>is anos, entre 1962 e 1964.<br />
Ainda em 1958, na Espanha (onde regia a cadeira de professor de<br />
Literatura Brasileira), o escritor recortava figuras de revistas que comporiam<br />
por similitude física os personagens que imaginava 7 . Lá estavam Mariana,<br />
rosto fecha<strong>do</strong> e corta<strong>do</strong> por rugas; Morena no esplen<strong>do</strong>r de seus 18 anos e o<br />
reveren<strong>do</strong> Tobias com um longo pescoço maquiavélico coberto por um lenço.<br />
Cenas <strong>do</strong> livro também figuram no álbum “imaginioso”, como a localização <strong>do</strong><br />
sobra<strong>do</strong>, o velório de Morena, a sala de estar e personagens que não chegaram<br />
a aparecer no livro, que, àquela época, se chamava O caminho, a verdade e a<br />
vida.<br />
4<br />
04. <strong>Os</strong> <strong>degraus</strong>, p. 23.<br />
5<br />
Estranhamente, só constam 03 notas em seu diário por ocasião deste livro.<br />
6<br />
Jornal <strong>do</strong> Comércio, 30/08/1961.<br />
7<br />
Acervo da casa de Cultura Josué Montello.<br />
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Isto me faz pensar na obsessão em torno da construção desta obra,<br />
recortes semelhantes não podem ser encontra<strong>do</strong>s na feitura de nenhum de<br />
seus outros livros, mesmo os mais populares como Cais da sagração ou<br />
populosos como <strong>Os</strong> tambores de São Luís têm pastas (no acervo da Casa de<br />
Cultura Josué Montello) com mapas e demais materiais de pesquisa, mas eles<br />
não focam nas pessoas e em possíveis cenas ou sentimentos e sim na acuidade<br />
das descrições e informações históricas. O romance contava originalmente o<br />
<strong>do</strong>bro da metragem publicada e teve capítulos reescritos até 11 vezes, na<br />
busca <strong>do</strong> texto final. Além disso, foi inteiramente “refundi<strong>do</strong>” para a sua<br />
terceira edição, 10 anos depois (que é a edição referendada neste artigo).<br />
Este era um hábito corrente de Montello, que reescreveu to<strong>do</strong>s os seus<br />
livros até <strong>Os</strong> <strong>degraus</strong> <strong>do</strong> Paraíso. A luz da estrela morta, por exemplo, tem<br />
três versões publicadas; o enre<strong>do</strong> da novela Duas Vezes perdida (1966) é<br />
revisita<strong>do</strong> uma vez com Glorinha (1977, ainda como novela) e mais outra no<br />
romance Perto da Meia noite (1985).<br />
Assim disse <strong>sobre</strong> a revisão de Janelas fechadas:<br />
“Só fui fazê-lo em 1982. Entretanto de tal forma lhe alterei a forma primitiva, que<br />
desta apenas restaram seis linhas, duas iniciais e quatro finais (...) embora<br />
conservasse a Narrativa da versão original.” 8<br />
Em várias das entrevistas <strong>sobre</strong> <strong>Os</strong> <strong>degraus</strong> <strong>do</strong> Paraíso, Montello<br />
menciona seu primeiro romance como um “ensaio”; outras matérias<br />
consideram <strong>Os</strong> <strong>degraus</strong> <strong>do</strong> Paraíso seu quarto romance (excluin<strong>do</strong><br />
naturalmente o primeiro), o que me leva a pensar que a forma que o romance<br />
adquiria era, para o autor, talvez mais importante que sua história.<br />
Ao ser publica<strong>do</strong>, teve grande atenção da crítica, que foi unânime<br />
quanto às qualidades <strong>do</strong> novo romance maranhense de Josué Montello. Na<br />
época, havia uma certa polêmica <strong>sobre</strong> a consolidação <strong>do</strong> escritor como<br />
ensaísta ou romancista e <strong>Os</strong> <strong>degraus</strong> <strong>do</strong> Paraíso foi um divisor de águas, ten<strong>do</strong><br />
recebi<strong>do</strong> vários prêmios, entre eles o Fernan<strong>do</strong> Chináglia e consolida<strong>do</strong> o<br />
autor como um <strong>do</strong>s grandes romancistas de sua geração.<br />
A característica mais enfocada <strong>do</strong> romance em jornais foi “Josué<br />
inaugura um tema.” 9 ou “<strong>Os</strong> <strong>degraus</strong> <strong>do</strong> Escritor” 10<br />
Em primeiro plano há o ineditismo <strong>do</strong> enre<strong>do</strong> (uma conversão religiosa<br />
ao protestantismo), alia<strong>do</strong> ao fato de ser um tema polêmico, o que o escritor<br />
evitava, dizen<strong>do</strong> que falava com conhecimento de causa e não pretendia<br />
ridicularizar a crença de ninguém. O que acabou por negar em um ensaio anos<br />
mais tarde, dizen<strong>do</strong>: “O que eu pretendia era exprimir o la<strong>do</strong> patético de uma<br />
conversão ao protestantismo.” 11 .<br />
Mesmo que o autor não se envolvesse na querela religiosa em torno <strong>do</strong><br />
romance, a própria propaganda oficial <strong>do</strong> livro alegava ser “Um livro para<br />
católicos e protestantes.” Este não era um tema de to<strong>do</strong> novo, mas numa<br />
8 Confissões de um romancista.<br />
9 Lago Burnnet, Jornal <strong>do</strong> Brasil, 14/04/1964.<br />
10 Virginius da Gama e Melo, Jornal das letras, Rio, fevereiro de 1966.<br />
11 Confissões de um romancista, p. 46.<br />
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época em que se falava <strong>sobre</strong> a “unidade” predita por Jesus Cristo, serviu<br />
como uma luva.<br />
Além da religiosidade, a crítica enfoca o fato de que neste romance o<br />
escritor atinge sua tão esperada maturidade. Já havia da<strong>do</strong> um grande passo<br />
com A décima noite (1959), mas era somente agora que encontrava uma<br />
forma que fosse sua, a despeito das influências românticas, às vezes ainda<br />
parnasianas e <strong>do</strong> nuveau roman francês. Josué Montello nunca se assumiu<br />
como pertencente a nenhuma escola literária (apesar de ter integra<strong>do</strong> um<br />
grupo modernista em São Luís, ainda na juventude), mas adepto <strong>do</strong>s aspectos<br />
convenientes de todas.<br />
O fato é que a crítica se ateve ou ao la<strong>do</strong> polêmico e ao ineditismo da<br />
obra, ou à qualidade técnica <strong>do</strong> escritor. Alguns poucos críticos também<br />
enxergaram um lirismo trágico, como Jorge Ama<strong>do</strong>:<br />
“Tenho umas duas amigas na Bahia que choraram ao ler seu livro” 12<br />
Ou o exagera<strong>do</strong> Valdemar Cavalcante:<br />
“Quem consegue ler este romance (...) sem sentir o menor sinal de alteração em seu<br />
metabolismo psicológico, sem experimentar às vezes uma sensação de <strong>do</strong>r ou repulsa,<br />
uma emoção de entendimento ou solidariedade, há de ter olhos de vidro; e de vidro<br />
os nervos e a sensibilidade. Leitor assim a impressão que tenho é que verá um<br />
caminhão passar por cima de uma criança e ir em frente tranqüilo, infenso à imagem<br />
da morte e da desgraça, como se fosse feito de algodão” 13<br />
Além de Ademar, poucos viram no romance essa tristeza <strong>do</strong>lorosa,<br />
como Stella Leonar<strong>do</strong>s, que disse que “As páginas (...) <strong>do</strong>em.”<br />
...<br />
Como alguém que escreve <strong>sobre</strong> sua terra, estan<strong>do</strong> quase sempre longe<br />
dela, a a<strong>do</strong>ção de imagens pictóricas constrói (como nos quadrinhos) um<br />
imagético <strong>do</strong> imaginário.<br />
Um bom exemplo da construção romanesca montelliana (e que talvez<br />
quebre parte <strong>do</strong> mito da maranhensidade 14 <strong>do</strong> escritor) é que, mesmo<br />
imortalizan<strong>do</strong> Alcântara em seu romance, Montello só veio a conhecê-la bem<br />
depois de ter saí<strong>do</strong> <strong>do</strong> Maranhão.<br />
“Há 20 anos, quan<strong>do</strong> visitei Alcântara pela primeira vez, tive a idéia de escrever um<br />
romance <strong>sobre</strong> a cidade.” 15<br />
O escritor já contava mais de 40 anos, ten<strong>do</strong> mora<strong>do</strong> mais tempo no Rio<br />
de Janeiro que no Maranhão, de onde saiu ainda a<strong>do</strong>lescente, como jornalista,<br />
em um time de futebol.<br />
A distância não invalida a obra imagética e imaginária <strong>do</strong> escritor,<br />
talvez a reforce, fazen<strong>do</strong> ver que somente o romantismo da memória e a<br />
12 Jorge Ama<strong>do</strong>, acervo da casa de Cultura Josué Montello.<br />
13 O jornal, rio, 29/08/1965.<br />
14<br />
Este texto foi escrito antes <strong>do</strong> termo ser apregoa<strong>do</strong> a políticas espetaculares <strong>do</strong> governo <strong>do</strong><br />
esta<strong>do</strong>, favor não confundir.<br />
15<br />
Entrevista a Heloneida Studart, revista manchete, 22/07/1978.<br />
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frieza <strong>do</strong>s <strong>do</strong>cumentos são capazes de reproduzir com beleza o que de perto<br />
pode não se captar.<br />
Ou como diria o próprio:<br />
“De igual mo<strong>do</strong>, em vez de interrogar o romancista para saber da orientação de seu<br />
romance, o melhor é ler-lhe o livro” 16<br />
Sen<strong>do</strong> <strong>Os</strong> <strong>degraus</strong> <strong>do</strong> Paraíso um recorte da memória <strong>do</strong> escritor <strong>sobre</strong> a<br />
sua infância em um ambiente protestante, a Bíblia e usada como personagem<br />
e pedra lapidar <strong>do</strong> discurso de quase to<strong>do</strong>s os demais personagens, O livro é<br />
composto de várias imagens de Deus e da fé, desde o Deus implacável <strong>do</strong><br />
reveren<strong>do</strong> Tobias, o Deus tolerante de Padre Galvão, o Deus-gente de<br />
Cipriana, o Deus funcional de Mariana ou o Deus social de Ernesto.<br />
To<strong>do</strong>s têm seu Deus e falam por ele.<br />
† UM ROMANCE DA MORTE<br />
Bernie: Mas eu me saí bem, não? Ora, vivi uns... quinze mil anos. Eu me sai bem, não?<br />
Vivi bastante tempo.<br />
Morte: Viveu tanto quanto os outros, Bernie. Uma vida inteira.<br />
Neil Gaiman, Sandman.<br />
“Se uma catástrofe destruísse Alcântara, sua grandeza permaneceria<br />
eterna devi<strong>do</strong> a teu maravilhoso romance.”<br />
Assim, em 1978, num telegrama de Lisboa, Jorge Ama<strong>do</strong> saúda o<br />
lançamento de Noite <strong>sobre</strong> Alcântara.<br />
Da mesma forma, James Joyce dizia que poderia se reconstruir a<br />
capital irlandesa, em caso de desastre, através de sua obra.<br />
Assim como Frank Herbert disse que somente em um planeta chama<strong>do</strong><br />
Duna é possível encontrar a especiaria, tão cara à navegação espacial.<br />
Arakis 17 , Dublin, Alcântara ou a Terra <strong>do</strong> Nunca são to<strong>do</strong>s lugares<br />
concretos e construí<strong>do</strong>s através <strong>do</strong> universo narrativo <strong>do</strong> escritor e da<br />
cumplicidade de seus leitores, a despeito de sua existência material. A<br />
comparação com um local físico ou institucional existente aumenta o fetiche<br />
em torno da obra, e talvez aja no mecanismo que Umberto Eco chama de<br />
“suspensão de descrença” 18 ; na prática, é o mecanismo que nos permite crer,<br />
dentro de uma obra de ficção, que Paul Atreides pode ler pensamentos, Peter<br />
Pan é capaz de voar ou que tenha havi<strong>do</strong>, na virada <strong>do</strong> século XIX, um enorme<br />
incêndio em Alcântara.<br />
Esta relação real\imagina<strong>do</strong> é o principal alicerce <strong>do</strong> Maranhão<br />
montelliano. A intenção <strong>do</strong> autor em traduzir o esta<strong>do</strong> em seus romances ou<br />
de edificá-lo através da instituição “imortal” da literatura são sintomáticos de<br />
16 Diário da tarde, 1965. A respeito de perguntas <strong>sobre</strong> <strong>Os</strong> <strong>degraus</strong> <strong>do</strong> Paraíso.<br />
17 Arakis e Duna são o mesmo planeta, dentro <strong>do</strong> universo de Frank Herbert.<br />
18 Umberto Eco, Seis passeios pelos bosques da ficção, Companhia das Letras, São Paulo 1999;<br />
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sua visão de mun<strong>do</strong>. Há múltiplas leituras desta visão, seja da obra como um<br />
to<strong>do</strong> ou de um romance em específico.<br />
Como toda reconstrução é uma construção nova, Montello não escapa<br />
de suas próprias armadilhas:<br />
“Eu aspirava a criação como recriação da realidade.” 19<br />
O real cria<strong>do</strong>, cuja existência independeu da força <strong>do</strong> autor (caben<strong>do</strong> a<br />
ele somente “editá-lo”) e o imaginário se fundem neste real recria<strong>do</strong>. O real é<br />
um discurso, só existin<strong>do</strong> no momento de seu relato ou <strong>do</strong> consumo deste<br />
relato.<br />
“Temos fora <strong>do</strong> país, brasileiros que participaram de terrorismos e que<br />
querem voltar. Isso é romanesco. A História não tomará conhecimento desses<br />
fatos.” 20<br />
Para Montello, a literatura registra o que a História perde.<br />
Dentro da historiografia positivista, preponderante naquele momento<br />
(ou mesmo na marxista), a gripe espanhola e as duas guerras são passíveis de<br />
relato, o sofrimento de Mariana e sua família, o microverso <strong>do</strong> sobra<strong>do</strong>, não e<br />
é <strong>sobre</strong> este microverso que Montello se propõe a erguer seu monumento.<br />
A recria;ao da realidade de <strong>Os</strong> <strong>degraus</strong> <strong>do</strong> Paraíso critica a forma como<br />
o reveren<strong>do</strong> Tobias interpreta a Bíblia, menos explícita em suas atitudes de<br />
pastor interessa<strong>do</strong> em ovelhas e mais nos pedaços da Bíblia (real cria<strong>do</strong>) que<br />
escolhe citar (real recria<strong>do</strong>), num processo muito semelhante à escrita da<br />
história ou <strong>do</strong> romance:<br />
“Mais vale o dia da morte que o dia <strong>do</strong> nascimento.” 21<br />
Sobre o qual Morena reflete:<br />
“A morte, sempre a morte. E por quê? Acaso a vida, com as maravilhas<br />
criadas por Deus, não tinha valor? Se tinha, qual o senti<strong>do</strong> da lembrança da<br />
morte, a cada momento?” 22<br />
Ou mesmo o ateu Dr. Luna:<br />
“— Como é possível viver assim, só pensan<strong>do</strong> na morte e no peca<strong>do</strong>,<br />
com estas ameaças diante <strong>do</strong>s olhos o dia inteiro?” 23<br />
A verdade é que, na condução narrativa <strong>do</strong> romance, como um Deus<br />
vingativo (ou o Deus <strong>do</strong> reveren<strong>do</strong> Tobias), Montello pune seus personagens a<br />
cada atitude não altruísta:<br />
Quan<strong>do</strong> Morena, mesmo tensa com a possível reação da mãe, vai a um<br />
baile, acidenta-se e quase perde a perna, acaban<strong>do</strong> por falecer;<br />
Quan<strong>do</strong> Cipriana (convertida em enfermeira) deixa Ernesto, para ir à<br />
festa de São Benedito, ele morre (e ela mesma morre em conseqüência ao<br />
negar, mesmo que momentaneamente, a sua fé em São Benedito);<br />
19 Confissões de um romancista, p. 46<br />
20 Entrevista para O globo, 15/07/1978.<br />
21 <strong>Os</strong> <strong>degraus</strong>, p. 351, citan<strong>do</strong> Eclesiantes, 07/01<br />
22 <strong>Os</strong> <strong>degraus</strong>, p. 352.<br />
23 <strong>Os</strong> <strong>degraus</strong> p. 274.<br />
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Quan<strong>do</strong> Ernesto decide, em sua derradeira noite boêmia, comemorar o<br />
aniversário da Chicó, gasta to<strong>do</strong> o <strong>do</strong>te da filha à Igreja;<br />
Quan<strong>do</strong> Cristina finalmente embarca para o novicia<strong>do</strong> na Bahia, seu pai<br />
tem um AVC; e<br />
Quan<strong>do</strong> Teobal<strong>do</strong> sai pela primeira vez de casa sem companhia, morre<br />
atropela<strong>do</strong>.<br />
No entanto, o comportamento ditatorial e fecha<strong>do</strong> de Mariana é<br />
premia<strong>do</strong>, com seu desejo de reencontrar o filho feito real dentro da<br />
representação de realidade <strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r onipresente e onisciente:<br />
“(...) Mariana sentia que ia subin<strong>do</strong> <strong>Os</strong> <strong>degraus</strong> <strong>do</strong> Paraíso, para encontrar-se lá no<br />
alto com seu filho, envolto na eterna luz <strong>do</strong> Reino <strong>do</strong> Senhor.” 24<br />
Montello admite claramente que a crença de Mariana, a despeito de<br />
suas atitudes, lhe levaram a seu filho e a Deus, nos mostran<strong>do</strong> que a fé que<br />
critica é ao mesmo tempo a que edifica.<br />
Como já dito, <strong>Os</strong> <strong>degraus</strong> <strong>do</strong> Paraíso foi um filho que mereceu atenção<br />
esmerada de seu cria<strong>do</strong>r, além <strong>do</strong> álbum de fotos e <strong>do</strong> cultivo da memória<br />
(tanto da cidade quanto da própria família), o romance surge, posso dizer, de<br />
um enorme desejo de legitimação, de consolidação <strong>do</strong> escritor ante seus<br />
pares (a academia) e o público (“O romance deve ser ao mesmo tempo<br />
popular e de elite”).<br />
É nesta busca pela maturidade que Montello denuncia afinal a linha<br />
incuba<strong>do</strong>ra de seu romance:<br />
“E nunca havia ocorri<strong>do</strong> comigo. Ao longo da redação de meus romances, afinal<br />
aconteceu quase ao fim de <strong>Os</strong> <strong>degraus</strong> <strong>do</strong> Paraíso, a cena da morte de Morena,<br />
isolada em seu quarto, a penetrar <strong>do</strong> outro la<strong>do</strong> da vida com a sensação de que as<br />
ondas lhe cobrem o corpo na orla da praia, eu as vi com olhos molha<strong>do</strong>s, sentin<strong>do</strong> que<br />
a emoção me pungia e dilacerava. Algumas vezes parei a cena para enxugar os<br />
olhos” 25<br />
A que ele mesmo elucida:<br />
“Eu ainda não havia escrito um romance que me fizesse chorar <strong>sobre</strong> ele. É certo que<br />
me comovera e muito, com <strong>do</strong>is ou três lances de A décima Noite. Mas ainda não<br />
havia encontra<strong>do</strong> aquela identificação profunda que nos sufoca em meio da escrita.<br />
Faltava-me ter na boca o gosto de arsênico que Flaubert experimentara ao narrar a<br />
morte de madame Bovary.” 26<br />
O arsênico na boca de Flaubert são as ondas que cobrem mariana,<br />
é o pára-choque nos muros <strong>do</strong> convento,<br />
é o isolamento no asilo<br />
e a mão que guia escada acima.<br />
24 <strong>Os</strong> <strong>degraus</strong>, p. 390.<br />
25 Confissões de um romancista.<br />
26 Confissões de um romancista.<br />
Ciências Humanas em Revista, v.6, n.1, São Luis/MA, 2008 - ISSN 1678-8192
Assim afirmo crer em <strong>Os</strong> <strong>degraus</strong> <strong>do</strong> Paraíso como um romance <strong>sobre</strong> a<br />
morte, ou ao menos um romance que carrega seu signo. Ela está sempre nas<br />
entrelinhas <strong>do</strong> livro e muitas vezes em sua superfície, seja a morte física,<br />
morte simbólica ou a ressurreição que, para se realizar, deve ser precedida de<br />
morte.<br />
A primeira parte <strong>do</strong> livro, <strong>Os</strong> velhos Lampiões, tem um cheiro ocre de<br />
carne sem vida: a gripe, a escuridão, a incerteza, o desamor de Mariana para<br />
com as filhas. A gripe matava indiscriminadamente, as casas eram fechadas,<br />
fazen<strong>do</strong> com que o calor aberto da cidade volvesse em pequenos fornos cheios<br />
de umidade, <strong>do</strong>ença e desespero. <strong>Os</strong> cemitérios transbordavam, deixan<strong>do</strong> as<br />
ruas mais propícias aos passeios noturnos de Ana Jansen e da Manguda que aos<br />
promenádios <strong>do</strong>s cidadãos de bem.<br />
Este início, curtíssimo, nada acrescenta ao enre<strong>do</strong> central <strong>do</strong> livro e<br />
serve unicamente para situar o leitor no ambiente funesto e inescapável da<br />
morte.<br />
Na segunda parte, As Grades <strong>do</strong> Sobra<strong>do</strong> (que ocupa mais de 90% da<br />
narrativa), Montello situa sua claustrofobia numa esquina em São Luís <strong>do</strong><br />
Maranhão, entre as ruas <strong>do</strong> Sol e da Cruz (sobra<strong>do</strong> que hoje é ocupa<strong>do</strong> pelo<br />
IPAM). Já nesta locação aparece o selo da morte, visto que <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is ícones,<br />
um deles, o sol (ou estrela) simboliza nascimento; e o outro, a cruz, a morte,<br />
como em inscrições tumulares ou epígrafes.<br />
A locação de Montello simboliza um caminho vital que, a despeito <strong>do</strong><br />
desejo de transmigração de sua protagonista (ao menos de início), inclui<br />
somente vida e morte. <strong>Vida</strong> terrena e morte cega. A própria esquina em si é<br />
uma enorme cruz se estenden<strong>do</strong> pela cidade, e somente Morena usa o<br />
patíbulo <strong>do</strong>s fun<strong>do</strong>s.<br />
Além <strong>do</strong> aspecto físico, as relações <strong>do</strong>s personagens se sustentam pela<br />
morte. Teobal<strong>do</strong> morto é a união da família. A imagem <strong>do</strong> menino com o qual<br />
não se consegue competir (<strong>do</strong> ponto de vista das irmãs), ou que morreu em<br />
sua inocência quan<strong>do</strong> tu<strong>do</strong> que queria era servir a Deus (para Mariana), ou da<br />
morte que gera oportunidade de reintegração ao lar (para Ernesto), ou, ainda,<br />
arregimentação de uma nova alma (para o reveren<strong>do</strong> Tobias).<br />
À medida que a narrativa transcorre, o ato de morrer se torna cada vez<br />
mais sublime, menos físico, <strong>do</strong> brutal e inespera<strong>do</strong> atropelamento de<br />
Teobal<strong>do</strong> à catarse de Mariana.<br />
To<strong>do</strong>s os personagens <strong>do</strong> romance, em algum momento, alimentam<br />
desejos de morte (alguns concretiza<strong>do</strong>s):<br />
Ernesto, ao ser recusa<strong>do</strong> como solda<strong>do</strong> na guerra vê-se inútil até para<br />
morrer. Ao ficar inváli<strong>do</strong>, pega a arma para o derradeiro tiro;<br />
Cristina se auto-flagela para não ir à Igreja Protestante;<br />
Cipriana pensa ser melhor morrer a passar pelo que passa;<br />
Dr. Luna é um operário da morte;<br />
Reveren<strong>do</strong> Tobias, Biá e Abigail atuam como agentes mortuários;<br />
Ciências Humanas em Revista, v.6, n.1, São Luis/MA, 2008 - ISSN 1678-8192
Este ambiente de morte se reforça quan<strong>do</strong> nos debruçamos <strong>sobre</strong> os<br />
nomes da<strong>do</strong>s às personagens:<br />
Mariana (como Maria, mãe de Deus ou <strong>do</strong> menino Teobal<strong>do</strong>) é de uma<br />
devoção cega, destinada a seguir o filho até o fim;<br />
Teobal<strong>do</strong> é o próprio Deus: onipresente, a olhar por um velho retrato a<br />
imensidão <strong>do</strong> sobra<strong>do</strong> por <strong>sobre</strong> o piano nunca toca<strong>do</strong>.<br />
Cristina (originalmente batizada pelo autor de Nely) segue o caminho<br />
<strong>do</strong> Cristo (que não é o mesmo que Mariana) tornan<strong>do</strong>-se freira.<br />
Morena (como Mouro, ou seja, Árabe, anti-cristão) deseja uma vida<br />
mundana e acaba por suicidar-se.<br />
São, pois, estes quatro o sustentáculo da cruz montelliana.<br />
...<br />
Mariana, antes católica fervorosa, mantém uma relação edipiana com o<br />
filho pequeno, a<strong>do</strong>ta o protestantismo como <strong>sobre</strong>vida, cultivan<strong>do</strong> o único<br />
objetivo de reencontrar Teobal<strong>do</strong>, o que obviamente só conseguirá morren<strong>do</strong>.<br />
Mariana é um perene desejo de morte. A vida só lhe convém como os<br />
necessários pequenos <strong>degraus</strong> da escada que a levará a Teobal<strong>do</strong>. Antes disso,<br />
passa por sucessivas outras mortes que são a separação <strong>do</strong> mari<strong>do</strong>, a perda<br />
das duas filhas (uma para o caixão e outra para o convento. Ambas<br />
devidamente deserdadas). Como que se matan<strong>do</strong> aos poucos, vai-se<br />
fragmentan<strong>do</strong> para suportar cada vez mais só, mais áspera e esperançosa a<br />
sua <strong>do</strong>r de vida.<br />
Assim se passam mais de 20 anos.<br />
A morte <strong>do</strong> ama<strong>do</strong> mari<strong>do</strong> ainda motiva a Sinhazinha Doura<strong>do</strong> a tocar<br />
sua valsa ao piano, cada vez mais funesta.<br />
Morre o Dr. Luna, morre o padre Galvão, morre a Cipriana e a mulher<br />
<strong>do</strong> reveren<strong>do</strong> Tobias. Mesmo a cidade experimenta um tipo de morte na<br />
terceira parte <strong>do</strong> romance “<strong>Os</strong> <strong>degraus</strong> <strong>do</strong> Paraíso” (também com poucas<br />
páginas):<br />
“E só quan<strong>do</strong> o luar voltou, debruçan<strong>do</strong>-se sôbre os sobradões da Praia Grande, é que<br />
se pôde sentir que São Luís, <strong>sobre</strong>tu<strong>do</strong> ali junto <strong>do</strong> mar, havia si<strong>do</strong> restituída a si<br />
mesma, com a penumbra propícia ao canto de amor <strong>do</strong>s seresteiros.” 27<br />
A cidade moderna, com seus lampiões de gás em desuso, sua vida de<br />
práticas em extinção, só encontrava sua verdadeira natureza na escuridão. O<br />
novo mun<strong>do</strong> das luzes significa a morte <strong>do</strong> lugar com o qual convivemos e de<br />
que somos parte.<br />
E é esta cidade renascida, já sem as luzes vermelhas <strong>do</strong>s vende<strong>do</strong>res de<br />
peixe frito e com me<strong>do</strong> <strong>do</strong>s submarinos alemães e <strong>do</strong> cometa Harley, que<br />
acaba por encontrar Mariana, ainda no sobra<strong>do</strong>, ainda viva, ainda por querer<br />
morrer:<br />
27 26. <strong>Os</strong> <strong>degraus</strong>, p. 378.<br />
Ciências Humanas em Revista, v.6, n.1, São Luis/MA, 2008 - ISSN 1678-8192
“Deus lhe poupara a vida, a despeito de suas suplicas constantes para morrer, a fim<br />
de que ela, desfigurada pelo tempo, o rosto corta<strong>do</strong> de rugas, mãos trêmulas,<br />
testemunhasse a volta de Cristo, depois <strong>do</strong> escurecimento <strong>do</strong> sol e da lua e da queda<br />
das estrelas. E esse dia não tardava.” 28<br />
Este messias, que viria “trazi<strong>do</strong> por uma nuvem” 29 chegou numa manhã<br />
em um pequeno barco; vestia um hábito e seu nome era Cristina.<br />
Como Cristo, a já freira filha de Mariana surge para trazer a verdade:<br />
A verdade <strong>sobre</strong> a morte. A morte de Teobal<strong>do</strong>.<br />
A negação <strong>do</strong> catolicismo por Mariana sustentava-se nas escrituras<br />
bíblicas, que negavam a Igreja Apostólica Romana como detentora da verdade<br />
e a acusava de pecaminosa. Mariana, ao querer entregar seu filho à Igreja<br />
Católica, cai em peca<strong>do</strong>.<br />
A morte de Teobal<strong>do</strong> passa, portanto, a ser parte <strong>do</strong> plano divino para<br />
corrigir um erro da mãe, <strong>do</strong> qual o filho seria vítima.<br />
Antes a morte ao inferno.<br />
Cristina, ao ver os pertences da irmã, reconhece esta mesma<br />
providência em sua morte:<br />
“Na realidade, Morena não se matara: Deus a chamara à sua santa glória, antes que a<br />
mãe a distanciasse da verdade de Cristo. Se a irmã não morresse, acabaria ceden<strong>do</strong>. E<br />
estaria perdida” (<strong>Os</strong> <strong>degraus</strong>, P. 388)<br />
Se Teobal<strong>do</strong> morre pelo Deus <strong>do</strong> reveren<strong>do</strong> Tobias, Morena morre pelo<br />
Deus <strong>do</strong> padre Galvão.<br />
E é esta verdade que Cristina transmite a Mariana, na derradeira<br />
tentativa de reconversão.<br />
É esta verdade, como o discurso <strong>do</strong> escritor, a verdade de quem o lê.<br />
Esta verdade acaba num envelope fecha<strong>do</strong>, como tantos outros<br />
abarrotan<strong>do</strong> o quarto mofa<strong>do</strong> de Mariana.<br />
<strong>Verdade</strong> que Teobal<strong>do</strong> em seu retrato olhava Mariana ao fremir as<br />
teclas <strong>do</strong> piano, na contração final.<br />
Que Cristina pegou o barco que a havia trazi<strong>do</strong>, naquele mesmo dia, de<br />
volta ao caminho de sua verdade.<br />
<strong>Os</strong> <strong>degraus</strong> <strong>do</strong> Paraíso surge de um desejo de morte.<br />
Converter-se em qualquer coisa é morrer o que se era.<br />
Morrer é como voltar pra casa.<br />
Não há escada n<strong>Os</strong> <strong>degraus</strong> <strong>do</strong> Paraíso, a vertigem helicoidal anunciada<br />
por Montello é nada mais que a morte, único passaporte possível para a<br />
felicidade eterna.<br />
28 27. <strong>Os</strong> <strong>degraus</strong>, p. 381.<br />
29 28. <strong>Os</strong> <strong>degraus</strong>, p. 381.<br />
Ciências Humanas em Revista, v.6, n.1, São Luis/MA, 2008 - ISSN 1678-8192
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Nolêto, Nácia Lopes, Marantello (monografia de conclusão de curso),<br />
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Josué Montello, monografia de conclusão de curso, São Luís, 1996<br />
Xavier, Valêncio: O mez da grippe, Companhia das letras, São Paulo,<br />
1998.<br />
Resumo<br />
Análise <strong>do</strong> quinto romance <strong>do</strong> escritor maranhense Josué Montello, <strong>Os</strong><br />
<strong>degraus</strong> <strong>do</strong> Paraíso.<br />
Através de análise literária (o próprio livro), bibliográfica (textos de ou<br />
<strong>sobre</strong> Montello) e <strong>do</strong>cumental (acervo da casa de cultura Josué Montello:<br />
jornais, entrevistas e recortes em geral), procurei dar nova luz ao leque<br />
Ciências Humanas em Revista, v.6, n.1, São Luis/MA, 2008 - ISSN 1678-8192
interpretativo <strong>do</strong> romance, em sua teia de significa<strong>do</strong>s quanto ao escritor, a<br />
cidade e sua inter-relação com o restante da Saga Maranhense.<br />
Palavras-chave: Josué Montello, Maranhão, São Luís, morte.<br />
Abstract<br />
This article Is an analysis of Josué Montello’s fifth novel, <strong>Os</strong> <strong>degraus</strong> <strong>do</strong><br />
Paraíso. (The Paradise Steps).<br />
Trough literary analysis (the novel itself), bibliographical (books and<br />
articles about Montello) and <strong>do</strong>cuments (papers, interviews and general notes<br />
stored at Casa de cultura Josué Montello), I went on trying to add new light to<br />
the novel’s interpretative fold, on it’s possible meanings towards the writer<br />
himself, the city and it’s relation to the rest of the Saga Maranhense.<br />
Resumen<br />
Este artículo es un análisis de la quinta novela de Josué Montello, <strong>Os</strong><br />
<strong>degraus</strong> <strong>do</strong> Paraíso. (Los pasos del Paraíso).<br />
A través de análisis literario (la novela en sí), Bibliográfica (libros y<br />
artículos acerca de Montello) y <strong>do</strong>cumentos (entrevistas y notas generales<br />
almacena<strong>do</strong>s en la Casa de cultura Josué Montello), He trata<strong>do</strong> de añadir<br />
nuevos significa<strong>do</strong>s a la novela, <strong>sobre</strong> los posible significa<strong>do</strong>s hacia el propio<br />
escritor, la ciudad y su relación con el resto de la Saga Maranhense.<br />
Palabras clave: Josué Montello, Maranhão, São Luís, muerte.<br />
Ciências Humanas em Revista, v.6, n.1, São Luis/MA, 2008 - ISSN 1678-8192