As “cartas” de Michel Tournier para o enigma da vida em
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AS “CARTAS” DE MICHEL TOURNIER PARA O ENIGMA DA<br />
VIDA EM “SEXTA–FEIRA OU OS LIMBOS DO PACÍFICO”<br />
Maria Cristina Bunn*<br />
Resumo: O ensaio recria cenas <strong>da</strong> obra <strong>de</strong> <strong>Michel</strong> <strong>Tournier</strong> sobre o mito<br />
‘Robinson Crusoé’, estabelecendo cruzamentos entre uma sociologia do romance,<br />
a literatura e a filosofia <strong>de</strong>leuziana. Em meio aos <strong>de</strong>vaneios do personag<strong>em</strong><br />
‘Crusoé’ surg<strong>em</strong> questões <strong>para</strong> reflexão acerca <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rna, sustenta<strong>da</strong><br />
por pilares <strong>da</strong> racionali<strong>da</strong><strong>de</strong> cartesiana-newtoniana, e do sujeito nela inscrito<br />
como o ‘senhor <strong>da</strong> razão’ que t<strong>em</strong> <strong>em</strong> suas mãos o controle <strong>da</strong> natureza. No<br />
processo <strong>de</strong> transformação vivido por ‘Crusoé’, principalmente através <strong>da</strong> relação<br />
que estabelece com o passional “Sexta-feira”, abr<strong>em</strong>-se brechas, fen<strong>da</strong>s, on<strong>de</strong><br />
se gestam outros sujeitos, outras subjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong>s, possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />
“reencantamento do mundo”.<br />
Palavras-chave: Sociologia do romance. Literatura. Filosofia <strong>de</strong>uleziana.<br />
Robinson Crusoé.<br />
Doutora <strong>em</strong> Sociologia pela UFC. Professora Adjunta do Departamento <strong>de</strong> Sociologia e<br />
Antropologia <strong>da</strong> UFMA. E-mail: macbunn@terra.com.br<br />
Ciências Humanas <strong>em</strong> Revista - São Luís, V. 4, n.2, <strong>de</strong>z<strong>em</strong>bro 2006 185
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Maria Cristina Bunn<br />
Neste ensaio pretendo me aproximar <strong>de</strong> uma Sociologia do Romance,<br />
aqui mais como simulacro <strong>da</strong> reflexão filosófico-literária <strong>de</strong>senvolvi<strong>da</strong> pelos filósofos<br />
Gilles Deleuze e <strong>Michel</strong> <strong>Tournier</strong> acerca do mito “Robinson Crusoé”. É<br />
necessário precisar o lugar <strong>da</strong> filosofia <strong>em</strong> que se encontram os dois pensadores<br />
que aqui me guiam. Deleuze, o filósofo <strong>da</strong> “experimentação”, escreve e pensa<br />
valendo-se do ritmo e do tom do artista, contamina-se com a não-filosofia <strong>para</strong><br />
mergulhar na reflexão filosófica. Já <strong>Tournier</strong> formou-se <strong>em</strong> filosofia e “ban<strong>de</strong>ouse”<br />
<strong>para</strong> a Literatura, tornando-se romancista reconhecido também por sua verve<br />
filosófica. Estranhas contaminações, contágios <strong>de</strong>leuzianos que neste ensaio atravessam<br />
também a sociologia, lugar original <strong>de</strong> minha formação acadêmica.<br />
É bom ain<strong>da</strong> dizer que entendo simulacro como Deleuze, enquanto imagens<br />
construí<strong>da</strong>s a partir <strong>da</strong> <strong>de</strong>ss<strong>em</strong>elhança, <strong>da</strong> alteri<strong>da</strong><strong>de</strong>, <strong>da</strong> diferença. E é na<br />
busca <strong>da</strong> produção <strong>de</strong> uma outra leitura, interpretação contamina<strong>da</strong> pela sociologia,<br />
que percorrerei o caminho do romancista <strong>Tournier</strong> <strong>em</strong> sua obra “Sexta-feira<br />
ou os limbos do Pacífico”, numa viag<strong>em</strong> com os personagens e cenários <strong>de</strong>ste<br />
mito recriado. A construção <strong>de</strong>ste ensaio alimenta-se ain<strong>da</strong> do posfácio à obra<br />
<strong>de</strong> <strong>Tournier</strong> escrito por Deleuze.<br />
Ao recriar o drama <strong>de</strong> Robinson Crusoé, vítima <strong>de</strong> um naufrágio no século<br />
XVIII, e arr<strong>em</strong>essado literalmente a uma ilha <strong>de</strong>serta do Pacífico, <strong>Tournier</strong><br />
nos permite pensar acerca <strong>da</strong> racionali<strong>da</strong><strong>de</strong> que sustentava o sujeito Robinson<br />
<strong>em</strong> seu mundo oci<strong>de</strong>ntal organizado e previsível. Lutando contra a solidão,<br />
Robinson experimenta a fragili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> suas crenças e conceitos e vive a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> transformar sua visão <strong>de</strong> mundo instrumental e colonizadora. Da<br />
resistência às agruras que a catástrofe do naufrágio lhe impôs, ao “estranhamento”<br />
criador com a chega<strong>da</strong> do personag<strong>em</strong> Sexta-feira – o selvag<strong>em</strong> - po<strong>de</strong>mos<br />
pensar questões que conformam a racionali<strong>da</strong><strong>de</strong> instrumental cartesiananewtoniana,<br />
substrato <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong> oci<strong>de</strong>ntal mo<strong>de</strong>rna, <strong>em</strong> confronto com uma<br />
racionali<strong>da</strong><strong>de</strong> substantiva que resgata o sujeito ao apresentar-lhe “linhas <strong>de</strong> fuga”.<br />
No sentido <strong>de</strong>leuziano, linhas <strong>de</strong> fuga são vias que nos transportam <strong>para</strong> fora <strong>da</strong><br />
moldura, do enquadramento, trazendo à tona o sujeito dos “<strong>de</strong>sejos”, não mais<br />
apenas <strong>da</strong> razão.<br />
Construí este ensaio seguindo a cena inicial do romance, qual seja: Robinson<br />
encontra-se ain<strong>da</strong> no navio Virginie, refugiado na cabine à frente <strong>de</strong> seu capitão<br />
que lhe propõs um jogo <strong>de</strong> cartas on<strong>de</strong> “<strong>da</strong>va livre curso à sua veia divinatória”.<br />
Apresentado por <strong>Tournier</strong> como hom<strong>em</strong> “malicioso” e “gozador”, o capitão inquietava<br />
Robinson, colocado <strong>de</strong>sconfortavelmente na posição <strong>de</strong> objeto <strong>de</strong> diversão<br />
alheio por força <strong>da</strong> t<strong>em</strong>pesta<strong>de</strong> que se intensificava. <strong>As</strong> cartas retira<strong>da</strong>s<br />
no jogo, <strong>em</strong> tom pr<strong>em</strong>onitório, marcarão as experiências <strong>de</strong> Robinson na Ilha.<br />
Embarqu<strong>em</strong>os, então, nesta viag<strong>em</strong>.<br />
À bordo do Virginie seguia Robinson <strong>em</strong> busca <strong>de</strong> fortuna no Novo<br />
Mundo...que riquezas iria encontrar? Nas cartas coloca<strong>da</strong>s pelo capitão holan-<br />
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Ciências Humanas <strong>em</strong> Revista - São Luís, V. 4, n.2, <strong>de</strong>z<strong>em</strong>bro 2006
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<strong>As</strong> <strong>“cartas”</strong> <strong>de</strong> <strong>Michel</strong> <strong>Tournier</strong> <strong>para</strong> o <strong>enigma</strong> <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> ...<br />
dês, <strong>de</strong>senhava-se o <strong>enigma</strong> <strong>da</strong> aventura robsoniana <strong>da</strong> qual, <strong>de</strong> ant<strong>em</strong>ão, <strong>Tournier</strong><br />
avisa: não terá como fugir.<br />
[...] a algazarra <strong>da</strong> t<strong>em</strong>pesta<strong>de</strong> ressoava aos ouvidos <strong>de</strong> Robinson como o <strong>de</strong><br />
uma ass<strong>em</strong>bléia <strong>de</strong> bruxas a acompanhar o jogo maléfico <strong>em</strong> que ele, quisesse<br />
ou não, estava metido.” (p.7). 1<br />
O infortúnio do naufrágio <strong>em</strong> um ponto qualquer do Pacífico leva Robinson<br />
ao cenário possível <strong>para</strong> vivenciar até a última gota a trama <strong>de</strong> sua vi<strong>da</strong>.<br />
<strong>Tournier</strong> conduz a aventura robsoniana envolvendo o leitor no <strong>enigma</strong>. A<br />
ca<strong>da</strong> “carta” vivi<strong>da</strong> por Robinson, experimenta–se com ele a dor, o cansaço, o<br />
sofrimento e, também, a metamorfose. Realiza-se o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong>leuziano <strong>de</strong> “experimentar”<br />
a escrita, ler-se um livro como se a um filme assistisse ou música<br />
ouvisse 2 . Aqui, um misto <strong>de</strong> sons, cores, cheiros, gostos e gozos perpassam um<br />
leitor “capturado”.<br />
Mas, vamos com Robinson <strong>de</strong>scobrir <strong>em</strong> que mundo novo ele fora lançado.<br />
Na beira <strong>da</strong> praia, entre rochas e mar, encontra-se o corpo <strong>de</strong> um D<strong>em</strong>iurgo<br />
(primeira carta encarna<strong>da</strong> por Robinson) que se esforça <strong>para</strong> levantar, recuperando<br />
aos poucos a consciência... E, espantosamente, inicia uma série <strong>de</strong> “elucubrações”<br />
a fim <strong>de</strong> conseguir novamente “organizar” a situação inusita<strong>da</strong> <strong>em</strong> que se encontra.<br />
Procura raciocinar estabelecendo as probabili<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> sua localização. T<strong>em</strong><br />
ain<strong>da</strong> poucos <strong>da</strong>dos. Move-se <strong>em</strong> busca <strong>de</strong> outros sobreviventes.<br />
Percebe logo a forte presença dos el<strong>em</strong>entos: sol, do qual é necessária a<br />
primeira proteção; vegetação <strong>de</strong>nsa que é preciso transpassar. E lá vai o “arcano<br />
organizador” <strong>em</strong> busca <strong>de</strong> referências... eis que se <strong>de</strong><strong>para</strong> com o primeiro ser<br />
vivo – um bo<strong>de</strong> selvag<strong>em</strong>. A atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> Robinson diante do animal <strong>de</strong>sconhecido<br />
e, posteriormente, diante <strong>da</strong> Ilha batiza<strong>da</strong> improvisa<strong>da</strong>mente <strong>de</strong> ‘Ilha <strong>da</strong> Desolação’<br />
é a do estrangeiro <strong>em</strong> terra inóspita que se arma, estabelece estratégias <strong>de</strong><br />
segurança, “mapeia” o território, cria “saí<strong>da</strong>s” <strong>de</strong> <strong>em</strong>ergência e, dominado pelo<br />
medo e fúria, elimina o diferente que ameaça sua integri<strong>da</strong><strong>de</strong> - pois assim lhe<br />
parece.<br />
Percorrendo a Ilha, Robinson dá-se conta <strong>de</strong> sua solidão e passa a viver<br />
a espera... experimenta a imobili<strong>da</strong><strong>de</strong>, crendo na salvação. Ain<strong>da</strong> como a carta<br />
do <strong>de</strong>miurgo, a primeira que tirou do baralho do holandês, procurava abrigo à<br />
sombra <strong>de</strong> uma or<strong>de</strong>m ilusória, <strong>de</strong>ixava s<strong>em</strong>pre prontos os sinais <strong>de</strong> sua presença<br />
na ilha... a fogueira, os <strong>de</strong>stroços do Virginie que “certamente” seriam avistados<br />
por outra <strong>em</strong>barcação. Os dias iam transcorrendo e Robinson não se preocupava<br />
<strong>em</strong> contá-los... O T<strong>em</strong>po... não importava, a qualquer momento ele<br />
seria salvo...o T<strong>em</strong>po ...foram tantas horas <strong>de</strong> espera...<strong>de</strong> inércia que viu-se<br />
<strong>de</strong>lirando, alucinando “...o medo <strong>de</strong> per<strong>de</strong>r o juízo aflorara-lhe muito <strong>de</strong> leve o<br />
espírito. Nunca mais o <strong>de</strong>ixaria”.(p.20)<br />
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E Robinson <strong>de</strong>fronta-se com a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> agir. Começa a perceber<br />
que a saí<strong>da</strong> <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>de</strong> si mesmo... No entanto, aqui ain<strong>da</strong> busca sair <strong>da</strong><br />
ilha, resiste bravamente à morte s<strong>em</strong> saber que será preciso morrer, libertarse<br />
<strong>de</strong>le mesmo <strong>para</strong> renascer metamorfoseado e “capturado” pelo <strong>de</strong>us solar.<br />
Empreen<strong>de</strong>rá esforços então <strong>para</strong> construir um barco capaz <strong>de</strong> conduzilo<br />
<strong>de</strong> volta à civilização. Experimentará sentimentos diversos nesta tarefa que se<br />
impôs. Ao retornar ao Virginie <strong>para</strong> servir-se dos <strong>de</strong>spojos, vive a culpa pelo<br />
abandono dos mortos...faz promessa às almas vistas como companheiras do<br />
infortúnio...Coloca-se <strong>em</strong> dívi<strong>da</strong> <strong>para</strong> com os outros; mas quê outros? Aqueles<br />
<strong>de</strong> qu<strong>em</strong> Robinson necessita <strong>para</strong> conferir sentido à sua vi<strong>da</strong>... os cadáveres no<br />
barco, as l<strong>em</strong>branças <strong>de</strong> família, a “civilização oci<strong>de</strong>ntal” e sua racionali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
instrumental que está inscrita <strong>em</strong> seu ser.<br />
É necessário manter afastados os abutres, as aves <strong>de</strong> rapina s<strong>em</strong>pre à<br />
espreita dos “restos”, há que se ter prudência com os <strong>de</strong>spojos... reagir ao <strong>de</strong>sespero<br />
e realizar uma prece...elo transcen<strong>de</strong>nte , gestos que parec<strong>em</strong> assegurar<br />
a Robinson sua distinção <strong>em</strong> relação à Ilha e seus el<strong>em</strong>entos.<br />
Robinson experimenta um profundo <strong>de</strong>samparo, uma imensa solidão e<br />
vulnerabili<strong>da</strong><strong>de</strong> quando se vê <strong>de</strong>spojado <strong>de</strong> suas vestes - nu e só: “A nu<strong>de</strong>z é um<br />
luxo que só o hom<strong>em</strong> calorosamente ro<strong>de</strong>ado pela multidão dos seus s<strong>em</strong>elhantes<br />
po<strong>de</strong> <strong>da</strong>r-se s<strong>em</strong> perigo. Para Robinson, enquanto não tivesse mu<strong>da</strong>do <strong>de</strong><br />
alma, era provação <strong>de</strong> mortal t<strong>em</strong>eri<strong>da</strong><strong>de</strong>.” (p.27).<br />
Está exposto à ação dos el<strong>em</strong>entos, <strong>de</strong>snudou sua animali<strong>da</strong><strong>de</strong> e revolta-se<br />
com seu <strong>de</strong>stino. Os traços <strong>da</strong> civilização estão lhe escapando...<strong>de</strong>sespero...Roga<br />
por um sinal divino, indicando que será salvo...o ‘Arco-Íris’ é o sinal...Robinson<br />
veste seus trapos e reencontra sentido no trabalho...entrega-se ao projeto do barco<br />
– batizado <strong>de</strong> Evasão.<br />
<strong>As</strong> dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s experimenta<strong>da</strong>s nesta tarefa tiveram um “registro” singular.<br />
Não ficaram inscritas <strong>em</strong> um ‘diário <strong>de</strong> bordo’, mas “tatua<strong>da</strong>s” no corpo<br />
<strong>de</strong> Robinson. E foi no momento <strong>de</strong> testar seu <strong>em</strong>preendimento que percebeu<br />
uma modificação <strong>em</strong> seu espírito: ele que “pensava <strong>em</strong> tudo” não consi<strong>de</strong>rou o<br />
peso do barco; como levá-lo até à água? ...há algo mais a perceber – implicações<br />
<strong>da</strong> ausência <strong>de</strong> outr<strong>em</strong> – o outro que funciona <strong>em</strong> nossas vi<strong>da</strong>s como “distração”.<br />
Resi<strong>de</strong> fun<strong>da</strong>mentalmente neste veio – fissura – a gran<strong>de</strong> aventura<br />
robsoniana. Este é o limbo a que nos conduz <strong>Tournier</strong>; está <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>a<strong>da</strong> a<br />
metamorfose. A ‘tese’ que move o romance: “... o hom<strong>em</strong> s<strong>em</strong> outr<strong>em</strong> <strong>em</strong> sua<br />
ilha” 3 Maria Cristina Bunn<br />
, será esgarça<strong>da</strong> por <strong>Tournier</strong>.<br />
Não <strong>para</strong> pensar as origens... <strong>Tournier</strong> vai além <strong>de</strong>ssa preocupação. Persegue<br />
os fragmentos, apresenta a dissolução do sujeito, a aventura vivi<strong>da</strong> pelo<br />
espírito diante <strong>da</strong> ausência <strong>de</strong> outr<strong>em</strong> e dos efeitos <strong>de</strong>ssa ausência.<br />
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<strong>As</strong> <strong>“cartas”</strong> <strong>de</strong> <strong>Michel</strong> <strong>Tournier</strong> <strong>para</strong> o <strong>enigma</strong> <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> ...<br />
Segundo Deleuze,<br />
[...] outr<strong>em</strong> assegura as margens e transições no mundo. Ele é a doçura <strong>da</strong>s<br />
contigüi<strong>da</strong><strong>de</strong>s e <strong>da</strong>s s<strong>em</strong>elhanças. Ele regula as transformações <strong>da</strong> forma e do<br />
fundo, as variações <strong>de</strong> profundi<strong>da</strong><strong>de</strong>. Ele impe<strong>de</strong> os assaltos por trás... Quando<br />
nos queixamos <strong>da</strong> mal<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> outr<strong>em</strong>, esquec<strong>em</strong>os esta outra mal<strong>da</strong><strong>de</strong> mais<br />
t<strong>em</strong>ível ain<strong>da</strong>, aquela que teriam as coisas se não houvesse outr<strong>em</strong>. Ele relativiza<br />
o não-sabido, o não-percebido; pois outr<strong>em</strong> <strong>para</strong> mim introduz o signo do nãopercebido<br />
no que eu percebo, <strong>de</strong>terminando-me a apreen<strong>de</strong>r o que não percebo<br />
como perceptível <strong>para</strong> outr<strong>em</strong>.” (DELEUZE, 1991, p.230)<br />
O fracasso <strong>em</strong> transportar o barco até à água <strong>de</strong>u a Robinson a dimensão<br />
do outr<strong>em</strong> <strong>em</strong> nossas vi<strong>da</strong>s e a percepção <strong>de</strong> que “... a multidão dos seus irmãos,<br />
que o tinham sustentado <strong>de</strong>ntro do humano s<strong>em</strong> que ele se <strong>de</strong>sse conta, afastarase<br />
bruscamente.” (p.34)<br />
Entregue à solidão e ao <strong>de</strong>samparo, Robinson mergulha no “lameiro”,<br />
confortando-se com suas l<strong>em</strong>branças, <strong>de</strong>senvolvendo uma filosofia:<br />
Só o passado tinha existência e valor notáveis. O presente apenas valia como<br />
fonte <strong>de</strong> recor<strong>da</strong>ções, fábrica do passado. Vinha finalmente a morte: mais não<br />
era do que o esperado momento <strong>de</strong> fruir a mina <strong>de</strong> ouro acumulado. A eterni<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
era-nos <strong>da</strong><strong>da</strong> <strong>para</strong> retomar a vi<strong>da</strong> <strong>em</strong> profundi<strong>da</strong><strong>de</strong>, mais atentamente, mais<br />
inteligent<strong>em</strong>ente, mais sensualmente do que era possível fazer na confusão do<br />
presente. (p.34)<br />
Suas m<strong>em</strong>órias são vivi<strong>da</strong>s com tal entrega que beiram ao <strong>de</strong>vaneio, ao<br />
<strong>de</strong>lírio. Ao <strong>da</strong>r-se conta que estava próximo <strong>da</strong> <strong>de</strong>mência, principalmente com a<br />
forte imag<strong>em</strong> <strong>de</strong> sua irmã... tão real – <strong>em</strong>bora há muitos anos morta, enten<strong>de</strong><br />
que é necessário mover-se.<br />
“A ilha ficava atrás <strong>de</strong> si, imensa e virg<strong>em</strong>, cheia <strong>de</strong> promessas limita<strong>da</strong>s e <strong>de</strong><br />
lições austeras. Retomaria <strong>em</strong> mãos o seu <strong>de</strong>stino. Trabalharia. Consumaria,<br />
s<strong>em</strong> mais <strong>de</strong>vaneios, as núpcias com sua implacável esposa, a solidão.” (p.37).<br />
A partir <strong>de</strong>sse momento, o <strong>de</strong>miurgo retoma sua jorna<strong>da</strong> sustentado por<br />
Marte. Como na segun<strong>da</strong> carta interpreta<strong>da</strong> pelo holandês, <strong>de</strong>senrola-se a trajetória<br />
do Robinson-Rei que irá perseguir com to<strong>da</strong>s as forças sua vitória contra a<br />
natureza, impondo à sua volta uma or<strong>de</strong>m à sua imag<strong>em</strong>. Sua alma estará alimenta<strong>da</strong><br />
pela ilusão do po<strong>de</strong>r absoluto. Retoma o “espírito organizador” e luta<br />
contra a bestiali<strong>da</strong><strong>de</strong>, cumprindo o ato sagrado <strong>da</strong> escrita.<br />
Passa a fazer um diário e estabelece seu próprio controle do t<strong>em</strong>po – o<br />
T<strong>em</strong>po -, antes ignorado, agora precisa ser aprisionado; elabora um calendário<br />
percebendo-se “... excluído do calendário dos homens tanto como estava sepa-<br />
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Maria Cristina Bunn<br />
rado <strong>de</strong>les pelas águas e reduzido a viver numa ilha do t<strong>em</strong>po como numa ilha do<br />
espaço.” (p.40).<br />
Era como se a Vi<strong>da</strong> tivesse início. Robinson precisava reinventá-la... O<br />
ato que simboliza este momento é a <strong>de</strong>cisão <strong>de</strong> rebatizar a Ilha – <strong>da</strong>qui <strong>para</strong> a<br />
frente ela se chamará “Speranza”. Nome que trazia inscrita a ambigüi<strong>da</strong><strong>de</strong> do<br />
sagrado e do profano que estava a espreitá-lo, com a qual iria se <strong>de</strong>bater. Por um<br />
lado, era um nome melodioso e cheio <strong>de</strong> sol e, por outro, evocava a profaníssima<br />
recor<strong>da</strong>ção <strong>de</strong> uma ar<strong>de</strong>nte italiana que fez parte <strong>de</strong> seu passado.<br />
A racionali<strong>da</strong><strong>de</strong> instrumental, na qual havia sido (con)formado, aflora <strong>da</strong>ndo<br />
visibili<strong>da</strong><strong>de</strong> ao dominador, que se coloca como o Senhor <strong>da</strong> Ilha, tendo como<br />
propósito fun<strong>da</strong>mental a “domesticação” <strong>da</strong> natureza. Estabelecerá as regras,<br />
formulará a “Constituição” <strong>de</strong> “Speranza”, instituirá os papéis – <strong>de</strong>termina a<br />
existência <strong>de</strong> um Conselho <strong>de</strong> Administração bastante singular: os abutres - na<br />
ver<strong>da</strong><strong>de</strong> resignava-se à eterna vigilância <strong>da</strong>queles, compreen<strong>de</strong>ndo que não estavam<br />
anunciando sua morte, mas, tão somente, esperando os ‘restos’ por ele<br />
<strong>de</strong>ixados.<br />
Supõe reforçar seus princípios morais ao classificar as práticas sexuais<br />
dos abutres como “imun<strong>da</strong>s”, violentas, repulsivas. Sua superiori<strong>da</strong><strong>de</strong> lhe parece<br />
óbvia. Mas, ain<strong>da</strong> não estava imune aos momentos <strong>de</strong> infortúnio... Qualquer<br />
<strong>de</strong>sequilíbrio <strong>da</strong> or<strong>de</strong>m preestabeleci<strong>da</strong> (a fuga <strong>da</strong> melhor cabra, por ex<strong>em</strong>plo)<br />
encontrará conforto no “chiqueiro”; mergulhando no lodo, permitindo-se viver a<br />
m<strong>em</strong>ória <strong>da</strong> infância. Ce<strong>de</strong>ndo à tentação do imundo, Robinson experimenta<br />
prazer e alívio.<br />
É preciso lutar contra essa fraqueza:<br />
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Ca<strong>da</strong> hom<strong>em</strong> t<strong>em</strong> um pendor funesto. O meu <strong>de</strong>sce até ao chiqueiro. É <strong>para</strong> lá<br />
que Speranza me enxota quando se torna má e me mostra seu rosto brutal. O<br />
chiqueiro é a minha <strong>de</strong>rrota, o meu vício, a minha vitória é a or<strong>de</strong>m moral que<br />
<strong>de</strong>vo impor a Speranza, contra sua or<strong>de</strong>m natural que mais não é do que a<br />
<strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m absoluta. (p.44).<br />
Esses registros no diário <strong>de</strong> Robinson, <strong>de</strong>vassados pelo olho <strong>de</strong> <strong>Tournier</strong>,<br />
mostram o dil<strong>em</strong>a que o naúfrago vivia – resistir, sobreviver na recusa <strong>da</strong> natureza,<br />
afirmando sua humani<strong>da</strong><strong>de</strong> e aceitando a morte, ou aceitar a natureza e<br />
fazer-se aceitar por ela, vivendo um processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>sumanização.<br />
Esse processo inexorável <strong>de</strong> <strong>de</strong>sumanização se faz na ausência <strong>de</strong> outr<strong>em</strong>,<br />
e Robinson vai experimentando dolorosamente esse <strong>de</strong>scolamento, a dissolução<br />
do sujeito que lhe permitirá a espontanei<strong>da</strong><strong>de</strong>, a liber<strong>da</strong><strong>de</strong> aqui ain<strong>da</strong> não<br />
alcança<strong>da</strong>. A <strong>de</strong>smontag<strong>em</strong> <strong>da</strong> estrutura humana é lenta e sofri<strong>da</strong>, passa primeiro<br />
pela percepção <strong>da</strong>quela:<br />
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<strong>As</strong> <strong>“cartas”</strong> <strong>de</strong> <strong>Michel</strong> <strong>Tournier</strong> <strong>para</strong> o <strong>enigma</strong> <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> ...<br />
[...] Sei agora que todos os homens traz<strong>em</strong> <strong>em</strong> si – e dir-se-ia, acima <strong>de</strong> si – uma<br />
frágil e complexa montag<strong>em</strong> <strong>de</strong> hábitos, respostas, reflexos, mecanismos,<br />
preocupações, sonhos e implicações, que se formou e, vai-se transformando,<br />
no permanente contato com os seus s<strong>em</strong>elhantes. Priva<strong>da</strong> <strong>da</strong> seiva, esta <strong>de</strong>lica<strong>da</strong><br />
florescência <strong>de</strong>finha e <strong>de</strong>sfaz-se.” (p.47).<br />
Em pleno turbilhão <strong>de</strong>ssas forças <strong>de</strong> restauração/dissolução, Robinson<br />
esforça-se <strong>para</strong> manter-se atento, lúcido. Em muitos momentos, ao percorrer os<br />
caminhos <strong>de</strong> “Speranza”, duvi<strong>da</strong> <strong>de</strong> seus sentidos...são “cheiros <strong>da</strong> infância”<br />
que <strong>de</strong> repente lhe inva<strong>de</strong>m o corpo, sensações que lhe perpassam o espírito. É<br />
o espanto ao <strong>de</strong>scobrir a marca <strong>de</strong> seu pé inscrita na rocha... Denunciando o<br />
longo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que se encontra na ilha.<br />
O T<strong>em</strong>po... “O que me surge repentinamente como evidência imperiosa<br />
é a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> lutar contra o t<strong>em</strong>po, isto é: <strong>de</strong> aprisionar o t<strong>em</strong>po. Na medi<strong>da</strong><br />
<strong>em</strong> que vivo dia a dia, abandono-me, o t<strong>em</strong>po <strong>de</strong>sliza-me por entre os <strong>de</strong>dos,<br />
perco o meu t<strong>em</strong>po, perco-me.” (p.53)<br />
Desenvolve uma série <strong>de</strong> estratégias <strong>para</strong> domesticar o t<strong>em</strong>po; adia a<br />
festa do primeiro pão que conseguira retirar <strong>de</strong> “Speranza”. Armazena o fruto<br />
<strong>de</strong> sua colheita. Lamenta não po<strong>de</strong>r transformar <strong>em</strong> capital, <strong>em</strong> dinheiro, o resultado<br />
<strong>de</strong> sua produção. Encontra um aliado na sua luta <strong>para</strong> manter-se humano: o<br />
cão, companheiro <strong>de</strong> viag<strong>em</strong> no Virginie, reaparece e, <strong>para</strong> Robinson, “test<strong>em</strong>unha<br />
e recompensa minha vitória sobre as forças dissolventes que me arrastavam<br />
<strong>para</strong> o abismo. O cão é o natural companheiro do hom<strong>em</strong>... lerei <strong>de</strong> futuro nos<br />
seus bons olhos cor <strong>de</strong> avelã se tenho sabido manter-me à altura <strong>de</strong> hom<strong>em</strong>,<br />
malgrado o horrível <strong>de</strong>stino que me arrasta <strong>para</strong> o chão.”(p.57)<br />
Robinson imagina que recupera sua humani<strong>da</strong><strong>de</strong> ao construir um abrigo<br />
<strong>para</strong> morar... uma casa – símbolo e força moral, espaço sagrado que comportará<br />
rituais <strong>para</strong> o uso. <strong>Tournier</strong> nos revela aqui a dimensão do espaço e t<strong>em</strong>po domesticados,<br />
a ânsia do <strong>de</strong>miurgo <strong>em</strong> “racionalizar” “Speranza”, a luta <strong>para</strong> preservar<br />
um “museu do humano”.<br />
Nos momentos <strong>de</strong> reflexão, <strong>em</strong> que enfrenta o medo <strong>de</strong> ‘per<strong>de</strong>r a palavra’,<br />
constituindo “Speranza”, Robinson não se dá conta, mas a contaminação<br />
prossegue – já vive o contágio, a “captura” <strong>de</strong>leuziana. Sinais <strong>de</strong>sse contágio<br />
evi<strong>de</strong>nciam-se ao leitor:<br />
Creio que a alma só começa a ter um conteúdo assinalável <strong>para</strong> além <strong>da</strong> cortina<br />
<strong>de</strong> pele que se<strong>para</strong> o interior do exterior, e que ela se enriquece infinitamente à<br />
medi<strong>da</strong> que se anexa aos círculos mais amplos <strong>em</strong> torno do ponto-eu. Robinson<br />
só é infinitamente rico no momento <strong>em</strong> que coinci<strong>de</strong> com Speranza, to<strong>da</strong> ela.<br />
(p.61)<br />
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Maria Cristina Bunn<br />
A <strong>de</strong>dicação extr<strong>em</strong>a<strong>da</strong> à organização <strong>da</strong> Ilha não conseguia eliminar o<br />
hom<strong>em</strong> novo que estava surgindo e, como sugere <strong>Tournier</strong>, servia apenas <strong>para</strong><br />
protegê-lo, já que ain<strong>da</strong> não era viável. Em suas noites <strong>de</strong> insônia, Robinson avança<br />
<strong>em</strong> sua percepção <strong>da</strong> metamorfose vivi<strong>da</strong>. Vai além <strong>da</strong> consciência <strong>da</strong> ausência<br />
<strong>de</strong> outr<strong>em</strong>, se aproximando <strong>da</strong> liberação do duplo presente <strong>em</strong> ca<strong>da</strong> coisa.<br />
192<br />
Já há algum t<strong>em</strong>po, efetivamente, que me exercito nesta operação que consiste<br />
<strong>em</strong> arrancar <strong>de</strong> mim sucessivamente, uns atrás dos outros, todos os meus<br />
atributos – digo todos – como sucessivas cascas <strong>de</strong> cebola. E, ao fazê-lo,<br />
constituo longe <strong>de</strong> mim um indivíduo que t<strong>em</strong> apelido <strong>de</strong> Crusoé, nome Robinson,<br />
seis pés <strong>de</strong> altura, etc., vejo-o viver e evoluir na ilha s<strong>em</strong> me aproveitar <strong>da</strong>s suas<br />
venturas. ‘Eu’, qu<strong>em</strong>? A pergunta está longe <strong>de</strong> ser ociosa. N<strong>em</strong> sequer é<br />
insolúvel. Porque se não é ele, então é Speranza. Há, portanto, um ‘eu’ volante<br />
que vai pousar-se, ora no hom<strong>em</strong>, ora na ilha, e que faz <strong>de</strong> mim ora um, ora outra.<br />
(p.79)<br />
Dá-se neste momento uma revelação: Robinson havia experimentado a<br />
ausência <strong>de</strong> outr<strong>em</strong> como a perturbação fun<strong>da</strong>mental do mundo; mas ele <strong>de</strong>scobre<br />
lentamente que é outr<strong>em</strong>, ao contrário, que perturbava o mundo. Era ele a<br />
perturbação.<br />
Robinson, apesar <strong>de</strong> sentir as modificações <strong>de</strong> seu espírito, persiste na<br />
ilusão <strong>de</strong> seu po<strong>de</strong>r sobre a ilha, sobre o T<strong>em</strong>po... Cria uma “Vi<strong>da</strong> Segun<strong>da</strong>”,<br />
aquela on<strong>de</strong> “suspen<strong>de</strong>” o t<strong>em</strong>po <strong>para</strong>ndo a clepsidra 4 . Conce<strong>de</strong> a si mesmo<br />
‘férias’ – aparent<strong>em</strong>ente é o soberano <strong>de</strong> seu império. No entanto, ain<strong>da</strong> faltam<br />
cartas a ser<strong>em</strong> vivi<strong>da</strong>s no jogo <strong>de</strong> <strong>Tournier</strong>; a metamorfose está apenas inicia<strong>da</strong>.<br />
A trajetória do arcano organizador, regido por Marte, será modifica<strong>da</strong><br />
essencialmente através <strong>de</strong> uma experiência radical que traz à tona a profecia <strong>da</strong><br />
terceira carta – o Er<strong>em</strong>ita -:<br />
O guerreiro tomou consciência <strong>da</strong> própria solidão. Retirou-se <strong>para</strong> o fundo <strong>de</strong><br />
uma gruta <strong>para</strong> reencontrar sua fonte original. Mas, mergulhando assim no seio<br />
<strong>da</strong> terra, cumprindo esta viag<strong>em</strong> ao fundo <strong>de</strong> si próprio, tornou-se outro hom<strong>em</strong>.<br />
Se alguma vez <strong>de</strong>ixar este retiro, notará que a sua alma monolítica sofreu íntimos<br />
golpes. (p.6).<br />
Ao mergulhar no “ventre” <strong>de</strong> “Speranza”, Robinson fun<strong>de</strong>-se a ela, entrega-se<br />
ao contágio, dilui-se: “Speranza era um fruto amadurando ao sol, cuja<br />
amêndoa nua e branca, recoberta por mil cama<strong>da</strong>s <strong>de</strong> crosta, casca e pele, tinha<br />
por nome Robinson” (p.94).<br />
Embora tenha sido por <strong>de</strong>mais envolvente e marcante tal experiência,<br />
Robinson ain<strong>da</strong> resiste à dissolução e <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> romper o encanto, que lhe parece<br />
fatal. Sai do ventre, <strong>da</strong> entrega e retoma o controle <strong>de</strong> seus sentimentos, do<br />
Ciências Humanas <strong>em</strong> Revista - São Luís, V. 4, n.2, <strong>de</strong>z<strong>em</strong>bro 2006
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cotidiano, do t<strong>em</strong>po. Mas irá, nos momentos <strong>de</strong> frouxidão do espírito, <strong>de</strong>bater-se<br />
<strong>em</strong> dúvi<strong>da</strong>s e <strong>de</strong>sejos. Em que a gruta/ventre se ass<strong>em</strong>elha ao chiqueiro? É ela<br />
um B<strong>em</strong> ou é o Mal? Mesmo torturado pelo dil<strong>em</strong>a, Robinson retornará à gruta<br />
que lhe possibilita o encontro com uma espécie <strong>de</strong> inocência perdi<strong>da</strong>.<br />
E Robinson macula a inocência <strong>de</strong> Speranza; <strong>de</strong>posita <strong>em</strong> seu ventre sua<br />
“s<strong>em</strong>ente”, sujando-a. Culpa-se pela tragédia incestuosa. É preciso sair do buraco<br />
e, como que <strong>em</strong>purrado pela Vênus <strong>da</strong>s cartas, ele <strong>em</strong>erge e entrega-se<br />
novamente ao trabalho, mantendo ativa a clepsidra; mas é no seu diário que<br />
registrará as meditações sobre a vi<strong>da</strong>, morte e sexo que, nos aponta <strong>Tournier</strong>,<br />
eram reflexo superficial <strong>de</strong> uma metamorfose do seu ser profundo.<br />
Ao nos revelar o diário <strong>de</strong> Robinson, <strong>Tournier</strong> permite-nos que enxergu<strong>em</strong>os<br />
uma sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> modifica<strong>da</strong>. Uma ‘sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>sértica’, no sentido<br />
<strong>de</strong>leuziano, que expressa uma involução, um tornar-se ca<strong>da</strong> vez mais <strong>de</strong>serto e,<br />
portanto, mais povoado, uma disponibili<strong>da</strong><strong>de</strong>. “Sinto ain<strong>da</strong> e s<strong>em</strong>pre murmurar<br />
<strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> mim essa fonte <strong>de</strong> vi<strong>da</strong>, mas tornou-se totalmente disponível. Em vez<br />
<strong>de</strong> se conformar docilmente ao leito <strong>de</strong> ant<strong>em</strong>ão pre<strong>para</strong>do pela socie<strong>da</strong><strong>de</strong>, transbor<strong>da</strong><br />
por todos os lados e irradia <strong>em</strong> forma <strong>de</strong> estrela...” (p.105).<br />
Neste estado <strong>de</strong> disponibili<strong>da</strong><strong>de</strong>, <strong>de</strong> <strong>de</strong>scolamento <strong>da</strong>s ‘amarras morais’,<br />
Robinson <strong>de</strong>dicava-se a observar as práticas sexuais <strong>da</strong> flora e fauna locais. E<br />
permitia-se <strong>da</strong>r asas à imaginação, ‘vivendo’ sensações e, <strong>de</strong> certa forma, enamorando-se<br />
<strong>da</strong> natureza à sua volta. Vênus, alia<strong>da</strong> à Sagitário, envia flechas<br />
<strong>para</strong> o sol; estariam as cartas indicando a <strong>em</strong>ergência <strong>de</strong> uma sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> el<strong>em</strong>entar?<br />
Robinson <strong>de</strong>scobre um tronco <strong>de</strong> quillai5 <strong>As</strong> <strong>“cartas”</strong> <strong>de</strong> <strong>Michel</strong> <strong>Tournier</strong> <strong>para</strong> o <strong>enigma</strong> <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> ...<br />
, <strong>de</strong>itado no chão e dividido <strong>em</strong><br />
dois largos ramos. Por alguns dias <strong>de</strong>dica-se a consi<strong>de</strong>rar a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> do que<br />
chamou <strong>de</strong> a ‘via vegetal’.<br />
Não mais resistindo, Robinson entrega-se ao <strong>de</strong>sejo e “transa” com a árvore.<br />
<strong>Tournier</strong> <strong>de</strong>screve com tal primor esta cena <strong>de</strong> uma “erótica vegetal” que, ao<br />
leitor mais disponível, é possível escutar o silêncio <strong>da</strong> mata naquele instante.<br />
Robinson vive a realização <strong>da</strong> captura no dizer <strong>de</strong>leuziano: a consumação<br />
<strong>de</strong> núpcias <strong>para</strong> além <strong>da</strong> máquina binária, do gênero e <strong>da</strong> espécie, formando<br />
“um único e mesmo <strong>de</strong>vir, um único bloco <strong>de</strong> <strong>de</strong>vir, ou uma ‘evolução a-<strong>para</strong>lela<br />
<strong>de</strong> dois seres que não têm absolutamente na<strong>da</strong> a ver um com o outro’, possibilitando<br />
não uma troca, mas “uma confidência s<strong>em</strong> interlocutor possível”.<br />
(DELEUZE, 1998, pp.10/11)<br />
Experimentou meses <strong>de</strong> felici<strong>da</strong><strong>de</strong> com o quillai, até que teve seu m<strong>em</strong>bro<br />
picado por uma aranha; tal inci<strong>de</strong>nte revestiu-se <strong>de</strong> um significado moral; o<br />
peso <strong>de</strong> sua cultura protestante fez-se presente e passou a ver a via vegetal<br />
como um perigoso beco s<strong>em</strong> saí<strong>da</strong>. Mas, Robinson viveu a experiência... Não<br />
era mais o mesmo. Busca refúgio novamente no trabalho, mas o <strong>de</strong>sânimo o<br />
persegue; questiona o sentido <strong>de</strong> sua obra. É o que nos revela <strong>Tournier</strong>:<br />
Ciências Humanas <strong>em</strong> Revista - São Luís, V. 4, n.2, <strong>de</strong>z<strong>em</strong>bro 2006 193
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Maria Cristina Bunn<br />
194<br />
“Mas, a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> é que a ilha administra<strong>da</strong> lhe aparecia, ca<strong>da</strong> vez mais<br />
freqüent<strong>em</strong>ente, como uma <strong>em</strong>presa inútil e louca. Nascia então nele um hom<strong>em</strong><br />
novo, totalmente estranho ao administrador. Estes dois homens ain<strong>da</strong> não<br />
coexistiam nele: sucediam-se e excluíam-se, e o perigo maior seria que o primeiro,<br />
o administrador, <strong>de</strong>saparecesse <strong>para</strong> s<strong>em</strong>pre, antes <strong>de</strong> ser reali<strong>da</strong><strong>de</strong> o novo<br />
hom<strong>em</strong>.” (p.111)<br />
Muito mais atento e sensível, Robinson percebe a existência <strong>de</strong> uma “outra<br />
ilha” e sente-se atraído por ela. Embora procurasse manter a vigilância sobre<br />
sua metamorfose, acabou por relaxar e foi ‘capturado’: “Estava na outra ilha...<br />
sentia como nunca antes, que estava <strong>de</strong>itado sobre a ilha como sobre alguém, e<br />
que tinha <strong>de</strong>baixo <strong>de</strong>le o corpo <strong>da</strong> ilha... A presença quase carnal <strong>da</strong> ilha junto a<br />
si aquecia-o, comovia-o. Estava nua... Também ele se <strong>de</strong>spiu.” (p.111)<br />
Robinson “transa” com a outra ilha – a que vive apesar <strong>de</strong>le –, <strong>de</strong>sposara<br />
a terra, experimentando a (con)fusão <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> e <strong>da</strong> morte. Nas páginas <strong>de</strong> seu<br />
diário, registra a proximi<strong>da</strong><strong>de</strong> vivi<strong>da</strong> <strong>da</strong> morte, mas, ao mesmo t<strong>em</strong>po, a sensação<br />
<strong>de</strong> estar mais perto <strong>da</strong>s próprias fontes <strong>da</strong> sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong>. “Speranza” terá a palavra<br />
e irá gerar o fruto/flores <strong>da</strong>quele amor – as mandrágoras 6 , como que confirmando<br />
esta dupla captura entre a terra e o hom<strong>em</strong>. À essa altura, Robinson<br />
supunha ter experimentado uma suficiente metamorfose. No entanto, as cartas<br />
<strong>de</strong> <strong>Tournier</strong> mostram que o jogo vai continuar. Aproxima-se o arcano vigésimo<br />
primeiro, o Caos.<br />
A chega<strong>da</strong> <strong>de</strong> Sexta-feira à ilha traz <strong>para</strong> Robinson a noção <strong>de</strong> que passou<br />
a ter uma ‘mo<strong>de</strong>sta socie<strong>da</strong><strong>de</strong>’; a existência <strong>de</strong> um companheiro provoca,<br />
<strong>para</strong> seu espanto, o riso, revolve sentimentos, faz ressurgir<strong>em</strong> os preconceitos, a<br />
moral. Seria o retorno <strong>de</strong> outr<strong>em</strong>? Não, essa estrutura não é mais possível. Sua<br />
dissolução já estava avança<strong>da</strong>; apesar <strong>da</strong> aparência inicial <strong>de</strong> retoma<strong>da</strong> <strong>da</strong>s inscrições<br />
passa<strong>da</strong>s, Sexta-feira surge na ver<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>para</strong> acelerar o processo. “Somente<br />
Sexta-feira po<strong>de</strong> guiar e acabar a metamorfose começa<strong>da</strong> por Robinson<br />
e lhe revelar seu sentido...” (DELEUZE, 1991, p.243)<br />
Para Robinson a inferiori<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>ste ser que lhe apareceu era evi<strong>de</strong>nte.<br />
Restava-lhe incorporá-lo ao seu sist<strong>em</strong>a a fim <strong>de</strong> que ele e “Speranza” se beneficiass<strong>em</strong><br />
ao máximo. “Esta socie<strong>da</strong><strong>de</strong> é-me <strong>da</strong><strong>da</strong> sob a forma mais rudimentar<br />
e primitiva, mas ser-me-á por isso mais fácil subjugá-la à minha or<strong>de</strong>m.” (p.130)<br />
Este registro <strong>em</strong> seu diário nos mostra que Robinson não fazia idéia do quanto<br />
seria “contagiado” por Sexta-feira, um selvag<strong>em</strong> que ‘não é no todo um ser<br />
humano’. O primeiro ato <strong>para</strong> incorporação do selvag<strong>em</strong> fora seu batizado: Sexta-feira<br />
- <strong>para</strong> Robinson um nome expressivo <strong>para</strong> uma enti<strong>da</strong><strong>de</strong> meio viva, meio<br />
abstrata.<br />
Nas primeiras s<strong>em</strong>anas que se seguiram à chega<strong>da</strong> <strong>de</strong> Sexta-feira, a<br />
or<strong>de</strong>m parecia reinstala<strong>da</strong> na Ilha. To<strong>da</strong>s as or<strong>de</strong>ns do governador, general, soberano<br />
Robinson eram cumpri<strong>da</strong>s à risca. Qualquer <strong>de</strong>slize era punido, mas, se<br />
Ciências Humanas <strong>em</strong> Revista - São Luís, V. 4, n.2, <strong>de</strong>z<strong>em</strong>bro 2006
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<strong>As</strong> <strong>“cartas”</strong> <strong>de</strong> <strong>Michel</strong> <strong>Tournier</strong> <strong>para</strong> o <strong>enigma</strong> <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> ...<br />
Sexta-feira eventualmente apanhasse, <strong>de</strong>veria saber que era <strong>para</strong> seu próprio<br />
b<strong>em</strong>. Mas, n<strong>em</strong> tudo estava tão tranqüilo assim; do mesmo modo como Robinson<br />
sentiu a presença <strong>de</strong> uma outra ilha, também agora tinha a sensação <strong>de</strong> que<br />
havia um outro Sexta-feira, diferente <strong>da</strong>quele tão domesticado.<br />
Robinson irá atormentar-se ao <strong>de</strong>scobrir que Sexta-feira <strong>de</strong>positou sua<br />
“s<strong>em</strong>ente negra” na terra <strong>de</strong> “Speranza” – que gerou com ela filhas bastar<strong>da</strong>s.<br />
Descarrega sua fúria sobre ele, consome-se com a “traição” <strong>de</strong> sua esposa.<br />
Mas, o que mais lhe incomo<strong>da</strong>va era a suspeita <strong>de</strong> que havia algo que não conseguia<br />
captar naquele selvag<strong>em</strong>; e se todo ele fosse uma adição <strong>de</strong> coisas igualmente<br />
admiráveis que ele ignora só por cegueira?<br />
Por mais que <strong>de</strong>sse continui<strong>da</strong><strong>de</strong> ao seu dia-a-dia organizado, Robinson<br />
estava <strong>em</strong> estado <strong>de</strong> espera. Esperava um acontecimento <strong>de</strong>cisivo, perturbador,<br />
um começo radicalmente novo que inutilizaria todos os <strong>em</strong>preendimentos passados<br />
ou futuros. Esse acontecimento perturbador v<strong>em</strong> pelas mãos <strong>de</strong> Sexta-feira<br />
– a explosão <strong>da</strong> gruta põe pelos ares a ilha <strong>de</strong> Robinson, sua <strong>em</strong>presa estava<br />
<strong>de</strong>struí<strong>da</strong>. Tudo ardia <strong>em</strong> chamas... é chega<strong>da</strong> a hora <strong>de</strong> Saturno, que se apresentou<br />
<strong>para</strong> Robinson ain<strong>da</strong> no Virginie pendurado pelos pés. Como na profecia<br />
<strong>da</strong>s cartas, achava-se Crusoé <strong>de</strong> cabeça <strong>para</strong> baixo.<br />
Sexta-feira ia arrastá-lo <strong>para</strong> outra coisa. <strong>Tournier</strong> <strong>de</strong>sven<strong>da</strong>-nos as sensações<br />
<strong>de</strong> Robinson: “A este reino telúrico que lhe era odioso... e que ele morria<br />
por <strong>de</strong>scobrir. Debatia-se na sua velha pele um novo Robinson, que aceitava, <strong>de</strong><br />
ant<strong>em</strong>ão, <strong>de</strong>ixar ruir a ilha administra<strong>da</strong> <strong>para</strong> se internar, atrás <strong>de</strong> um iniciador<br />
irresponsável, num caminho <strong>de</strong>sconhecido.” (p.167)<br />
Os próximos dias realizarão a profecia do arcano décimo quinto: Gêmeos,<br />
a nova forma <strong>da</strong> Vênus metamorfosea<strong>da</strong>. Os Gêmeos apresentam-se ligados<br />
pelo pescoço aos pés do Anjo bissexuado. Robinson, encorajado por Sexta-feira,<br />
passou a expor-se nu ao sol. Foi <strong>de</strong>sabrochando, <strong>de</strong> seu corpo irradiava um<br />
calor...experimentava uma segurança que jamais conhecera. Aproximava-se ca<strong>da</strong><br />
vez mais dos el<strong>em</strong>entos, estava por tornar-se el<strong>em</strong>entar, um “Robinson <strong>de</strong> sol na<br />
ilha torna<strong>da</strong> solar”, no dizer <strong>de</strong>leuziano.<br />
O <strong>de</strong>sfecho se avizinha... a metamorfose segue seu curso. <strong>Tournier</strong> faz<br />
com que o par <strong>de</strong> Gêmeos encontre o arcano Leão, <strong>de</strong>senhando a profecia<br />
anuncia<strong>da</strong>: “Duas crianças dão-se as mãos frente a um muro que simboliza a<br />
ci<strong>da</strong><strong>de</strong> solar. O <strong>de</strong>us-sol ocupa todo o alto <strong>de</strong>sta carta que lhe é <strong>de</strong>dica<strong>da</strong>. Na<br />
ci<strong>da</strong><strong>de</strong> solar – suspensa entre o t<strong>em</strong>po e a eterni<strong>da</strong><strong>de</strong>, entre a vi<strong>da</strong> e a morte – os<br />
habitantes estão revestidos <strong>de</strong> pueril inocência, tendo acedido à sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> solar<br />
que, mais ain<strong>da</strong> do que androgínica, é circular. Uma serpente a mor<strong>de</strong>r a<br />
cau<strong>da</strong> é a figura <strong>de</strong>sta erótica fecha<strong>da</strong> sobre si própria. É o zênite <strong>da</strong> perfeição<br />
humana, infinitamente difícil <strong>de</strong> conquistar, ain<strong>da</strong> mais difícil <strong>de</strong> conservar.” (p.9)<br />
O <strong>enigma</strong> <strong>de</strong> <strong>Tournier</strong> t<strong>em</strong> seu <strong>de</strong>ciframento na metamorfose <strong>da</strong> sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong>...<br />
a sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> el<strong>em</strong>entar que não se restringe à duali<strong>da</strong><strong>de</strong> do sexo mas,<br />
Ciências Humanas <strong>em</strong> Revista - São Luís, V. 4, n.2, <strong>de</strong>z<strong>em</strong>bro 2006 195
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Maria Cristina Bunn<br />
que expressa os muitos sexos possíveis entre o hom<strong>em</strong> e a mulher, <strong>para</strong> além do<br />
hom<strong>em</strong> e <strong>da</strong> mulher. Robinson e Sexta-feira, quanto às origens, estão perdidos<br />
no contágio, na entrega, vivendo o “t<strong>em</strong>po tatuado”, <strong>de</strong>scolando-se do esqu<strong>em</strong>a<br />
binário e, junto com “Speranza”, permitindo o nascimento do mundo <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, do<br />
rizoma tecido pela libido plural.<br />
O objetivo <strong>de</strong> <strong>Tournier</strong> é interpretado por Deleuze (1991, p. 227):<br />
196<br />
Colocando o probl<strong>em</strong>a <strong>em</strong> termos <strong>de</strong> fim e não <strong>de</strong> orig<strong>em</strong>, <strong>Tournier</strong> se proíbe <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>ixar Robinson abandonar a ilha. O fim, o alvo final <strong>de</strong> Robinson é a<br />
‘<strong>de</strong>sumanização’, o encontro <strong>da</strong> libido com os el<strong>em</strong>entos livres, a <strong>de</strong>scoberta <strong>de</strong><br />
uma energia cósmica ou <strong>de</strong> uma gran<strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> el<strong>em</strong>entar, que não po<strong>de</strong> surgir a<br />
não ser na ilha e ain<strong>da</strong> na medi<strong>da</strong> <strong>em</strong> que a ilha se tornou aérea e solar.<br />
Robinson se <strong>de</strong>ixa contagiar... se entrega ao espírito <strong>de</strong> Sexta-feira e registra<br />
no seu diário a compreensão ca<strong>da</strong> vez maior acerca do <strong>enigma</strong> <strong>em</strong> que se viu<br />
enre<strong>da</strong>do: “Sexta-feira obrigou-me a uma conversão radical...Na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, no supr<strong>em</strong>o<br />
grau a que nós ace<strong>de</strong>mos, Sexta-feira e eu, a diferença <strong>de</strong> sexo está ultrapassa<strong>da</strong>,<br />
e Sexta-feira po<strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificar-se com Vênus, tal como, <strong>em</strong> linguag<strong>em</strong><br />
humana, po<strong>de</strong> dizer-se que eu me abro à fecun<strong>da</strong>ção do <strong>As</strong>tro Maior” (p.200)<br />
Do jogo <strong>de</strong> <strong>Tournier</strong> faltavam ain<strong>da</strong> duas cartas, a penúltima <strong>de</strong>las –<br />
Capricórnio foi vislumbra<strong>da</strong> no horizonte... Chegava à “Speranza” uma escuna<br />
– o Whitebird. Segundo a profecia, esta carta representa a porta <strong>de</strong> saí<strong>da</strong> <strong>da</strong>s<br />
almas – a morte. A forma como ela se revelaria <strong>para</strong> Robinson foi totalmente<br />
inespera<strong>da</strong>. Sexta-feira <strong>de</strong>ixa a ilha e segue com a escuna.<br />
Robinson <strong>de</strong><strong>para</strong>-se novamente com a solidão, com o <strong>de</strong>sespero... Consi<strong>de</strong>ra<br />
a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> acabar com a própria vi<strong>da</strong>, como se Capricórnio lhe<br />
soprasse aos ouvidos: “... Precipitado do alto <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong> solar, você encontra-se<br />
<strong>em</strong> gran<strong>de</strong> perigo <strong>de</strong> morte”. (p.10) Procura um rochedo, uma gruta, on<strong>de</strong> pu<strong>de</strong>sse<br />
se colocar <strong>em</strong> postura fetal e fechar os olhos <strong>para</strong> que a vi<strong>da</strong> o abandonasse,<br />
<strong>da</strong>ndo um <strong>de</strong>sfecho trágico ao jogo <strong>em</strong> que estava enre<strong>da</strong>do... Mas <strong>Tournier</strong><br />
reservava-lhe uma última carta – Júpiter.<br />
Dizia a profecia: “Você ia à pique e o <strong>de</strong>us do céu veio <strong>em</strong> seu auxílio<br />
com uma admirável oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong>. Encarna num menino <strong>de</strong> ouro, saído <strong>da</strong>s entranhas<br />
<strong>da</strong> Terra – como pepita arranca<strong>da</strong> à mina -, que lhe restitui as chaves <strong>da</strong><br />
ci<strong>da</strong><strong>de</strong> solar.” (p.10)<br />
Robinson encontra uma criança... Fugira do barco on<strong>de</strong> era infeliz. De<br />
mãos <strong>da</strong><strong>da</strong>s com o menino, sentiu-se tomado pela eterni<strong>da</strong><strong>de</strong>. Diz a ele que, no<br />
futuro, irá chamar-se Quinta-feira – É o dia <strong>de</strong> Júpiter. E <strong>Tournier</strong> encerra o jogo<br />
com a metamorfose completa<strong>da</strong>: o <strong>de</strong>miurgo <strong>de</strong>u lugar ao Robinson-solar vivendo<br />
um t<strong>em</strong>po cósmico.<br />
A lenta dissolução do sujeito trama<strong>da</strong> por <strong>Tournier</strong> é vivi<strong>da</strong> pelo leitor<br />
Ciências Humanas <strong>em</strong> Revista - São Luís, V. 4, n.2, <strong>de</strong>z<strong>em</strong>bro 2006
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<strong>As</strong> <strong>“cartas”</strong> <strong>de</strong> <strong>Michel</strong> <strong>Tournier</strong> <strong>para</strong> o <strong>enigma</strong> <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> ...<br />
como se sua própria estrutura estivesse fragmentando-se. Ao ser capturado pelo<br />
romance também ele é lançado no <strong>de</strong>serto – se percebe <strong>de</strong>serto. Pois, como diz<br />
Deleuze:<br />
“Nós somos <strong>de</strong>sertos, mas povoados <strong>de</strong> tribos, <strong>de</strong> faunas e floras. Passamos<br />
nosso t<strong>em</strong>po a arrumar essas tribos, a dispô-las <strong>de</strong> outro modo, a eliminar algumas<br />
<strong>de</strong>las, a fazer prosperar outras. E todos esses povoados, to<strong>da</strong>s essas multidões<br />
não impe<strong>de</strong>m o <strong>de</strong>serto, que é nossa própria ascese.” (DELEUZE, 1998, p.19).<br />
THE “CARTAS” BY MICHEL TOURNIER TO THE MISTERY OF<br />
LIFE IN “SEXTA-FEIRA OU OS LIMBOS DO PACÍFICO “<br />
Abstract: The essay r<strong>em</strong>akes scenes of <strong>Michel</strong> <strong>Tournier</strong>’s literary composition<br />
on “Robinson Crusoé’s” myth, establishing crossings among a sociology of novel,<br />
literature and the “<strong>de</strong>leuzian” philosophy. In the middle of the character Crusoé’s<br />
<strong>da</strong>ydreams, questions to a refletion about mo<strong>de</strong>rn society <strong>em</strong>erge, supported by<br />
pillars of “cartesian-newtonian” rationality and of the subject inscribed in it as<br />
the “mister of ratio” that has in his hands the control of Nature. In the process<br />
of transformation experienced by Crusoé, especially in the relationship with the<br />
passional “Sexta-feira”, gaps, fissures are opened where other subjects,<br />
subjectivities, possibilities of reincantation of the world are created.<br />
Keywords: Sociology of novel. Literature. Deulezian Philosophy. Robinson<br />
Crusoé.<br />
LAS “CARTAS” DE MICHEL TOURNIER PARA EL ENIGMA DE<br />
LA VIDA EN “VIERNES O LOS LIMBOS DEL PACÍFICO”.<br />
Resumen: El ensayo recrea escenas <strong>de</strong> la obra <strong>de</strong> <strong>Michel</strong> <strong>Tournier</strong> sobre el<br />
mito “Robinson Crusoé”, estableciendo acoplamientos entre una sociología <strong>de</strong> la<br />
novela, la literatura y la filosofía “<strong>de</strong>leuziana”. En medio a los <strong>de</strong>vaneos <strong>de</strong>l<br />
personaje “Crusoé” surgen cuestiones <strong>para</strong> reflexión acerca <strong>de</strong> la socie<strong>da</strong>d,<br />
sosteni<strong>da</strong> por pilares <strong>de</strong> la racionali<strong>da</strong>d “cartesiana-newtoniana”, y <strong>de</strong>l sujeto en<br />
ella inscripto como el “señor <strong>de</strong> la razón” que tiene en sus manos el control <strong>de</strong> la<br />
Naturaleza. En el proceso <strong>de</strong> transformación vivido por “Crusoé”, principalmente<br />
a través <strong>de</strong> la relación que establece con el pasional “Viernes”, se abren grietas,<br />
fisuras, don<strong>de</strong> se generan otras subjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong>s, posibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> “reencantamiento<br />
<strong>de</strong>l mundo”.<br />
Palabras Clave: Sociología <strong>de</strong> la novela. Literatura. Filosofía <strong>de</strong>leuziana.<br />
Robinson Crusoé.<br />
Ciências Humanas <strong>em</strong> Revista - São Luís, V. 4, n.2, <strong>de</strong>z<strong>em</strong>bro 2006 197
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Maria Cristina Bunn<br />
Notas:<br />
1 <strong>As</strong> citações textuais <strong>da</strong> obra <strong>de</strong> <strong>Michel</strong> <strong>Tournier</strong> são indica<strong>da</strong>s aqui pela referi<strong>da</strong> página<br />
<strong>da</strong> edição utiliza<strong>da</strong> neste artigo, a saber: TOURNIER, M. Sexta-Feira ou os Limbos do<br />
Pacífico. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Ed. Bertrand Brasil, 1991, 2ª edição.<br />
2 DELEUZE, G.& PARNET, C. Diálogos. São Paulo: Editora Escuta, 1998.<br />
3 DELEUZE, G. Posfácio. <strong>Michel</strong> <strong>Tournier</strong> e o Mundo s<strong>em</strong> Outr<strong>em</strong>. In: TOURNIER, M.<br />
Sexta-Feira ou os Limbos do Pacífico. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Ed. Bertrand Brasil, 1991, 2ª edição.<br />
4 <strong>Tournier</strong> <strong>de</strong>screve <strong>para</strong> o leitor o instrumento <strong>de</strong> controle do t<strong>em</strong>po construído por<br />
Robinson: “Tratava-se apenas <strong>de</strong> um garrafão <strong>de</strong> vidro transparente a que fizera um furo<br />
no fundo, por on<strong>de</strong> a água se vertia gota a gota, sendo recolhi<strong>da</strong> numa gamela pousa<strong>da</strong><br />
no chão. O garrafão levava exatamente vinte e quatro horas <strong>de</strong>spejando <strong>para</strong> a gamela, e<br />
Robinson traçara-lhe nos lados vinte e quatro círculos <strong>para</strong>lelos, ca<strong>da</strong> um <strong>de</strong>les marcado<br />
com um número romano. O nível do líquido <strong>da</strong>va, pois, <strong>em</strong> qualquer ocasião, a hora do<br />
dia.” (p.58)<br />
5 Segundo <strong>Tournier</strong>, trata-se <strong>de</strong> “árvore africana, do gênero rosáceas, uma espécie <strong>da</strong>s<br />
quais dá a casca conheci<strong>da</strong> por pau-do-panamá” (p.107).<br />
6 Em seu romance, <strong>Tournier</strong> narra o surgimento <strong>da</strong>s mandrágoras (“lin<strong>da</strong>s flores brancas<br />
com pétalas lanceola<strong>da</strong>s, aroma a maresia, e bagas castanhas volumosas que caíam <strong>em</strong><br />
abundância do seu cálice”, p.121), como fruto <strong>da</strong> sêmentificação <strong>de</strong> Robinson no solo <strong>de</strong><br />
“Speranza” <strong>em</strong> local singular <strong>da</strong> Ilha – o Combo Rosa. <strong>Tournier</strong> informa ao leitor quanto<br />
à orig<strong>em</strong> espanhola <strong>da</strong> palavra “Combo” e <strong>de</strong> seu significado – “curva”. E acrescenta<br />
que, <strong>em</strong> Moçambique, “combo” significa infelici<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />
Referências:<br />
DELEUZE, Gilles. <strong>Michel</strong> <strong>Tournier</strong> e o Mundo s<strong>em</strong> Outr<strong>em</strong>. Posfácio. In:<br />
TOURNIER, <strong>Michel</strong>. Sexta-Feira ou os limbos do Pacífico. Rio <strong>de</strong> Janeiro:<br />
Bertrand Brasil, 1991.<br />
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Ciências Humanas <strong>em</strong> Revista - São Luís, V. 4, n.2, <strong>de</strong>z<strong>em</strong>bro 2006