As “cartas” de Michel Tournier para o enigma da vida em
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Maria Cristina Bunn<br />
rado <strong>de</strong>les pelas águas e reduzido a viver numa ilha do t<strong>em</strong>po como numa ilha do<br />
espaço.” (p.40).<br />
Era como se a Vi<strong>da</strong> tivesse início. Robinson precisava reinventá-la... O<br />
ato que simboliza este momento é a <strong>de</strong>cisão <strong>de</strong> rebatizar a Ilha – <strong>da</strong>qui <strong>para</strong> a<br />
frente ela se chamará “Speranza”. Nome que trazia inscrita a ambigüi<strong>da</strong><strong>de</strong> do<br />
sagrado e do profano que estava a espreitá-lo, com a qual iria se <strong>de</strong>bater. Por um<br />
lado, era um nome melodioso e cheio <strong>de</strong> sol e, por outro, evocava a profaníssima<br />
recor<strong>da</strong>ção <strong>de</strong> uma ar<strong>de</strong>nte italiana que fez parte <strong>de</strong> seu passado.<br />
A racionali<strong>da</strong><strong>de</strong> instrumental, na qual havia sido (con)formado, aflora <strong>da</strong>ndo<br />
visibili<strong>da</strong><strong>de</strong> ao dominador, que se coloca como o Senhor <strong>da</strong> Ilha, tendo como<br />
propósito fun<strong>da</strong>mental a “domesticação” <strong>da</strong> natureza. Estabelecerá as regras,<br />
formulará a “Constituição” <strong>de</strong> “Speranza”, instituirá os papéis – <strong>de</strong>termina a<br />
existência <strong>de</strong> um Conselho <strong>de</strong> Administração bastante singular: os abutres - na<br />
ver<strong>da</strong><strong>de</strong> resignava-se à eterna vigilância <strong>da</strong>queles, compreen<strong>de</strong>ndo que não estavam<br />
anunciando sua morte, mas, tão somente, esperando os ‘restos’ por ele<br />
<strong>de</strong>ixados.<br />
Supõe reforçar seus princípios morais ao classificar as práticas sexuais<br />
dos abutres como “imun<strong>da</strong>s”, violentas, repulsivas. Sua superiori<strong>da</strong><strong>de</strong> lhe parece<br />
óbvia. Mas, ain<strong>da</strong> não estava imune aos momentos <strong>de</strong> infortúnio... Qualquer<br />
<strong>de</strong>sequilíbrio <strong>da</strong> or<strong>de</strong>m preestabeleci<strong>da</strong> (a fuga <strong>da</strong> melhor cabra, por ex<strong>em</strong>plo)<br />
encontrará conforto no “chiqueiro”; mergulhando no lodo, permitindo-se viver a<br />
m<strong>em</strong>ória <strong>da</strong> infância. Ce<strong>de</strong>ndo à tentação do imundo, Robinson experimenta<br />
prazer e alívio.<br />
É preciso lutar contra essa fraqueza:<br />
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Ca<strong>da</strong> hom<strong>em</strong> t<strong>em</strong> um pendor funesto. O meu <strong>de</strong>sce até ao chiqueiro. É <strong>para</strong> lá<br />
que Speranza me enxota quando se torna má e me mostra seu rosto brutal. O<br />
chiqueiro é a minha <strong>de</strong>rrota, o meu vício, a minha vitória é a or<strong>de</strong>m moral que<br />
<strong>de</strong>vo impor a Speranza, contra sua or<strong>de</strong>m natural que mais não é do que a<br />
<strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m absoluta. (p.44).<br />
Esses registros no diário <strong>de</strong> Robinson, <strong>de</strong>vassados pelo olho <strong>de</strong> <strong>Tournier</strong>,<br />
mostram o dil<strong>em</strong>a que o naúfrago vivia – resistir, sobreviver na recusa <strong>da</strong> natureza,<br />
afirmando sua humani<strong>da</strong><strong>de</strong> e aceitando a morte, ou aceitar a natureza e<br />
fazer-se aceitar por ela, vivendo um processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>sumanização.<br />
Esse processo inexorável <strong>de</strong> <strong>de</strong>sumanização se faz na ausência <strong>de</strong> outr<strong>em</strong>,<br />
e Robinson vai experimentando dolorosamente esse <strong>de</strong>scolamento, a dissolução<br />
do sujeito que lhe permitirá a espontanei<strong>da</strong><strong>de</strong>, a liber<strong>da</strong><strong>de</strong> aqui ain<strong>da</strong> não<br />
alcança<strong>da</strong>. A <strong>de</strong>smontag<strong>em</strong> <strong>da</strong> estrutura humana é lenta e sofri<strong>da</strong>, passa primeiro<br />
pela percepção <strong>da</strong>quela:<br />
Ciências Humanas <strong>em</strong> Revista - São Luís, V. 4, n.2, <strong>de</strong>z<strong>em</strong>bro 2006