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As “cartas” de Michel Tournier para o enigma da vida em

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<strong>As</strong> <strong>“cartas”</strong> <strong>de</strong> <strong>Michel</strong> <strong>Tournier</strong> <strong>para</strong> o <strong>enigma</strong> <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> ...<br />

Segundo Deleuze,<br />

[...] outr<strong>em</strong> assegura as margens e transições no mundo. Ele é a doçura <strong>da</strong>s<br />

contigüi<strong>da</strong><strong>de</strong>s e <strong>da</strong>s s<strong>em</strong>elhanças. Ele regula as transformações <strong>da</strong> forma e do<br />

fundo, as variações <strong>de</strong> profundi<strong>da</strong><strong>de</strong>. Ele impe<strong>de</strong> os assaltos por trás... Quando<br />

nos queixamos <strong>da</strong> mal<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> outr<strong>em</strong>, esquec<strong>em</strong>os esta outra mal<strong>da</strong><strong>de</strong> mais<br />

t<strong>em</strong>ível ain<strong>da</strong>, aquela que teriam as coisas se não houvesse outr<strong>em</strong>. Ele relativiza<br />

o não-sabido, o não-percebido; pois outr<strong>em</strong> <strong>para</strong> mim introduz o signo do nãopercebido<br />

no que eu percebo, <strong>de</strong>terminando-me a apreen<strong>de</strong>r o que não percebo<br />

como perceptível <strong>para</strong> outr<strong>em</strong>.” (DELEUZE, 1991, p.230)<br />

O fracasso <strong>em</strong> transportar o barco até à água <strong>de</strong>u a Robinson a dimensão<br />

do outr<strong>em</strong> <strong>em</strong> nossas vi<strong>da</strong>s e a percepção <strong>de</strong> que “... a multidão dos seus irmãos,<br />

que o tinham sustentado <strong>de</strong>ntro do humano s<strong>em</strong> que ele se <strong>de</strong>sse conta, afastarase<br />

bruscamente.” (p.34)<br />

Entregue à solidão e ao <strong>de</strong>samparo, Robinson mergulha no “lameiro”,<br />

confortando-se com suas l<strong>em</strong>branças, <strong>de</strong>senvolvendo uma filosofia:<br />

Só o passado tinha existência e valor notáveis. O presente apenas valia como<br />

fonte <strong>de</strong> recor<strong>da</strong>ções, fábrica do passado. Vinha finalmente a morte: mais não<br />

era do que o esperado momento <strong>de</strong> fruir a mina <strong>de</strong> ouro acumulado. A eterni<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

era-nos <strong>da</strong><strong>da</strong> <strong>para</strong> retomar a vi<strong>da</strong> <strong>em</strong> profundi<strong>da</strong><strong>de</strong>, mais atentamente, mais<br />

inteligent<strong>em</strong>ente, mais sensualmente do que era possível fazer na confusão do<br />

presente. (p.34)<br />

Suas m<strong>em</strong>órias são vivi<strong>da</strong>s com tal entrega que beiram ao <strong>de</strong>vaneio, ao<br />

<strong>de</strong>lírio. Ao <strong>da</strong>r-se conta que estava próximo <strong>da</strong> <strong>de</strong>mência, principalmente com a<br />

forte imag<strong>em</strong> <strong>de</strong> sua irmã... tão real – <strong>em</strong>bora há muitos anos morta, enten<strong>de</strong><br />

que é necessário mover-se.<br />

“A ilha ficava atrás <strong>de</strong> si, imensa e virg<strong>em</strong>, cheia <strong>de</strong> promessas limita<strong>da</strong>s e <strong>de</strong><br />

lições austeras. Retomaria <strong>em</strong> mãos o seu <strong>de</strong>stino. Trabalharia. Consumaria,<br />

s<strong>em</strong> mais <strong>de</strong>vaneios, as núpcias com sua implacável esposa, a solidão.” (p.37).<br />

A partir <strong>de</strong>sse momento, o <strong>de</strong>miurgo retoma sua jorna<strong>da</strong> sustentado por<br />

Marte. Como na segun<strong>da</strong> carta interpreta<strong>da</strong> pelo holandês, <strong>de</strong>senrola-se a trajetória<br />

do Robinson-Rei que irá perseguir com to<strong>da</strong>s as forças sua vitória contra a<br />

natureza, impondo à sua volta uma or<strong>de</strong>m à sua imag<strong>em</strong>. Sua alma estará alimenta<strong>da</strong><br />

pela ilusão do po<strong>de</strong>r absoluto. Retoma o “espírito organizador” e luta<br />

contra a bestiali<strong>da</strong><strong>de</strong>, cumprindo o ato sagrado <strong>da</strong> escrita.<br />

Passa a fazer um diário e estabelece seu próprio controle do t<strong>em</strong>po – o<br />

T<strong>em</strong>po -, antes ignorado, agora precisa ser aprisionado; elabora um calendário<br />

percebendo-se “... excluído do calendário dos homens tanto como estava sepa-<br />

Ciências Humanas <strong>em</strong> Revista - São Luís, V. 4, n.2, <strong>de</strong>z<strong>em</strong>bro 2006 189

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