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As “cartas” de Michel Tournier para o enigma da vida em

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Maria Cristina Bunn<br />

194<br />

“Mas, a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> é que a ilha administra<strong>da</strong> lhe aparecia, ca<strong>da</strong> vez mais<br />

freqüent<strong>em</strong>ente, como uma <strong>em</strong>presa inútil e louca. Nascia então nele um hom<strong>em</strong><br />

novo, totalmente estranho ao administrador. Estes dois homens ain<strong>da</strong> não<br />

coexistiam nele: sucediam-se e excluíam-se, e o perigo maior seria que o primeiro,<br />

o administrador, <strong>de</strong>saparecesse <strong>para</strong> s<strong>em</strong>pre, antes <strong>de</strong> ser reali<strong>da</strong><strong>de</strong> o novo<br />

hom<strong>em</strong>.” (p.111)<br />

Muito mais atento e sensível, Robinson percebe a existência <strong>de</strong> uma “outra<br />

ilha” e sente-se atraído por ela. Embora procurasse manter a vigilância sobre<br />

sua metamorfose, acabou por relaxar e foi ‘capturado’: “Estava na outra ilha...<br />

sentia como nunca antes, que estava <strong>de</strong>itado sobre a ilha como sobre alguém, e<br />

que tinha <strong>de</strong>baixo <strong>de</strong>le o corpo <strong>da</strong> ilha... A presença quase carnal <strong>da</strong> ilha junto a<br />

si aquecia-o, comovia-o. Estava nua... Também ele se <strong>de</strong>spiu.” (p.111)<br />

Robinson “transa” com a outra ilha – a que vive apesar <strong>de</strong>le –, <strong>de</strong>sposara<br />

a terra, experimentando a (con)fusão <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> e <strong>da</strong> morte. Nas páginas <strong>de</strong> seu<br />

diário, registra a proximi<strong>da</strong><strong>de</strong> vivi<strong>da</strong> <strong>da</strong> morte, mas, ao mesmo t<strong>em</strong>po, a sensação<br />

<strong>de</strong> estar mais perto <strong>da</strong>s próprias fontes <strong>da</strong> sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong>. “Speranza” terá a palavra<br />

e irá gerar o fruto/flores <strong>da</strong>quele amor – as mandrágoras 6 , como que confirmando<br />

esta dupla captura entre a terra e o hom<strong>em</strong>. À essa altura, Robinson<br />

supunha ter experimentado uma suficiente metamorfose. No entanto, as cartas<br />

<strong>de</strong> <strong>Tournier</strong> mostram que o jogo vai continuar. Aproxima-se o arcano vigésimo<br />

primeiro, o Caos.<br />

A chega<strong>da</strong> <strong>de</strong> Sexta-feira à ilha traz <strong>para</strong> Robinson a noção <strong>de</strong> que passou<br />

a ter uma ‘mo<strong>de</strong>sta socie<strong>da</strong><strong>de</strong>’; a existência <strong>de</strong> um companheiro provoca,<br />

<strong>para</strong> seu espanto, o riso, revolve sentimentos, faz ressurgir<strong>em</strong> os preconceitos, a<br />

moral. Seria o retorno <strong>de</strong> outr<strong>em</strong>? Não, essa estrutura não é mais possível. Sua<br />

dissolução já estava avança<strong>da</strong>; apesar <strong>da</strong> aparência inicial <strong>de</strong> retoma<strong>da</strong> <strong>da</strong>s inscrições<br />

passa<strong>da</strong>s, Sexta-feira surge na ver<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>para</strong> acelerar o processo. “Somente<br />

Sexta-feira po<strong>de</strong> guiar e acabar a metamorfose começa<strong>da</strong> por Robinson<br />

e lhe revelar seu sentido...” (DELEUZE, 1991, p.243)<br />

Para Robinson a inferiori<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>ste ser que lhe apareceu era evi<strong>de</strong>nte.<br />

Restava-lhe incorporá-lo ao seu sist<strong>em</strong>a a fim <strong>de</strong> que ele e “Speranza” se beneficiass<strong>em</strong><br />

ao máximo. “Esta socie<strong>da</strong><strong>de</strong> é-me <strong>da</strong><strong>da</strong> sob a forma mais rudimentar<br />

e primitiva, mas ser-me-á por isso mais fácil subjugá-la à minha or<strong>de</strong>m.” (p.130)<br />

Este registro <strong>em</strong> seu diário nos mostra que Robinson não fazia idéia do quanto<br />

seria “contagiado” por Sexta-feira, um selvag<strong>em</strong> que ‘não é no todo um ser<br />

humano’. O primeiro ato <strong>para</strong> incorporação do selvag<strong>em</strong> fora seu batizado: Sexta-feira<br />

- <strong>para</strong> Robinson um nome expressivo <strong>para</strong> uma enti<strong>da</strong><strong>de</strong> meio viva, meio<br />

abstrata.<br />

Nas primeiras s<strong>em</strong>anas que se seguiram à chega<strong>da</strong> <strong>de</strong> Sexta-feira, a<br />

or<strong>de</strong>m parecia reinstala<strong>da</strong> na Ilha. To<strong>da</strong>s as or<strong>de</strong>ns do governador, general, soberano<br />

Robinson eram cumpri<strong>da</strong>s à risca. Qualquer <strong>de</strong>slize era punido, mas, se<br />

Ciências Humanas <strong>em</strong> Revista - São Luís, V. 4, n.2, <strong>de</strong>z<strong>em</strong>bro 2006

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