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As “cartas” de Michel Tournier para o enigma da vida em

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cotidiano, do t<strong>em</strong>po. Mas irá, nos momentos <strong>de</strong> frouxidão do espírito, <strong>de</strong>bater-se<br />

<strong>em</strong> dúvi<strong>da</strong>s e <strong>de</strong>sejos. Em que a gruta/ventre se ass<strong>em</strong>elha ao chiqueiro? É ela<br />

um B<strong>em</strong> ou é o Mal? Mesmo torturado pelo dil<strong>em</strong>a, Robinson retornará à gruta<br />

que lhe possibilita o encontro com uma espécie <strong>de</strong> inocência perdi<strong>da</strong>.<br />

E Robinson macula a inocência <strong>de</strong> Speranza; <strong>de</strong>posita <strong>em</strong> seu ventre sua<br />

“s<strong>em</strong>ente”, sujando-a. Culpa-se pela tragédia incestuosa. É preciso sair do buraco<br />

e, como que <strong>em</strong>purrado pela Vênus <strong>da</strong>s cartas, ele <strong>em</strong>erge e entrega-se<br />

novamente ao trabalho, mantendo ativa a clepsidra; mas é no seu diário que<br />

registrará as meditações sobre a vi<strong>da</strong>, morte e sexo que, nos aponta <strong>Tournier</strong>,<br />

eram reflexo superficial <strong>de</strong> uma metamorfose do seu ser profundo.<br />

Ao nos revelar o diário <strong>de</strong> Robinson, <strong>Tournier</strong> permite-nos que enxergu<strong>em</strong>os<br />

uma sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> modifica<strong>da</strong>. Uma ‘sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>sértica’, no sentido<br />

<strong>de</strong>leuziano, que expressa uma involução, um tornar-se ca<strong>da</strong> vez mais <strong>de</strong>serto e,<br />

portanto, mais povoado, uma disponibili<strong>da</strong><strong>de</strong>. “Sinto ain<strong>da</strong> e s<strong>em</strong>pre murmurar<br />

<strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> mim essa fonte <strong>de</strong> vi<strong>da</strong>, mas tornou-se totalmente disponível. Em vez<br />

<strong>de</strong> se conformar docilmente ao leito <strong>de</strong> ant<strong>em</strong>ão pre<strong>para</strong>do pela socie<strong>da</strong><strong>de</strong>, transbor<strong>da</strong><br />

por todos os lados e irradia <strong>em</strong> forma <strong>de</strong> estrela...” (p.105).<br />

Neste estado <strong>de</strong> disponibili<strong>da</strong><strong>de</strong>, <strong>de</strong> <strong>de</strong>scolamento <strong>da</strong>s ‘amarras morais’,<br />

Robinson <strong>de</strong>dicava-se a observar as práticas sexuais <strong>da</strong> flora e fauna locais. E<br />

permitia-se <strong>da</strong>r asas à imaginação, ‘vivendo’ sensações e, <strong>de</strong> certa forma, enamorando-se<br />

<strong>da</strong> natureza à sua volta. Vênus, alia<strong>da</strong> à Sagitário, envia flechas<br />

<strong>para</strong> o sol; estariam as cartas indicando a <strong>em</strong>ergência <strong>de</strong> uma sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> el<strong>em</strong>entar?<br />

Robinson <strong>de</strong>scobre um tronco <strong>de</strong> quillai5 <strong>As</strong> <strong>“cartas”</strong> <strong>de</strong> <strong>Michel</strong> <strong>Tournier</strong> <strong>para</strong> o <strong>enigma</strong> <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> ...<br />

, <strong>de</strong>itado no chão e dividido <strong>em</strong><br />

dois largos ramos. Por alguns dias <strong>de</strong>dica-se a consi<strong>de</strong>rar a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> do que<br />

chamou <strong>de</strong> a ‘via vegetal’.<br />

Não mais resistindo, Robinson entrega-se ao <strong>de</strong>sejo e “transa” com a árvore.<br />

<strong>Tournier</strong> <strong>de</strong>screve com tal primor esta cena <strong>de</strong> uma “erótica vegetal” que, ao<br />

leitor mais disponível, é possível escutar o silêncio <strong>da</strong> mata naquele instante.<br />

Robinson vive a realização <strong>da</strong> captura no dizer <strong>de</strong>leuziano: a consumação<br />

<strong>de</strong> núpcias <strong>para</strong> além <strong>da</strong> máquina binária, do gênero e <strong>da</strong> espécie, formando<br />

“um único e mesmo <strong>de</strong>vir, um único bloco <strong>de</strong> <strong>de</strong>vir, ou uma ‘evolução a-<strong>para</strong>lela<br />

<strong>de</strong> dois seres que não têm absolutamente na<strong>da</strong> a ver um com o outro’, possibilitando<br />

não uma troca, mas “uma confidência s<strong>em</strong> interlocutor possível”.<br />

(DELEUZE, 1998, pp.10/11)<br />

Experimentou meses <strong>de</strong> felici<strong>da</strong><strong>de</strong> com o quillai, até que teve seu m<strong>em</strong>bro<br />

picado por uma aranha; tal inci<strong>de</strong>nte revestiu-se <strong>de</strong> um significado moral; o<br />

peso <strong>de</strong> sua cultura protestante fez-se presente e passou a ver a via vegetal<br />

como um perigoso beco s<strong>em</strong> saí<strong>da</strong>. Mas, Robinson viveu a experiência... Não<br />

era mais o mesmo. Busca refúgio novamente no trabalho, mas o <strong>de</strong>sânimo o<br />

persegue; questiona o sentido <strong>de</strong> sua obra. É o que nos revela <strong>Tournier</strong>:<br />

Ciências Humanas <strong>em</strong> Revista - São Luís, V. 4, n.2, <strong>de</strong>z<strong>em</strong>bro 2006 193

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