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1. INTRODUÇÃO<br />
1.1. O contexto da pesquisa<br />
Segundo Ariès (1985), até o fim do século XIX a criança era vista como um<br />
adulto em miniatura. A partir desse período de transição, alguns escritores mostraram-se<br />
interessados em atingir o público infantil, passando então a adaptar para ele os clássicos<br />
da literatura, sobretudo contos moralizantes. Os contos que os jovens da atualidade<br />
conhecem como infantis não eram originalmente tão naïf (isto é, de estilo ingênuo) e<br />
tampouco tinham finais felizes. Pelo contrário! Eram trágicos 1 . Mas qual seria a reação<br />
de uma criança de seis anos de idade que vive no século XXI ao saber que, na verdade,<br />
Chapeuzinho Vermelho e dois dos Três Porquinhos são devorados pelo lobo, ou que a<br />
Bela Adormecida tinha narcolepsia e foi deflorada pelo “príncipe” que se aproveitou de<br />
sua situação física?<br />
O desenvolvimento da mentalidade do homem ao longo da História pode ser<br />
observado através de sua literatura e o mesmo vale para a literatura infantil. A criança,<br />
como público, passa de um adulto em miniatura do fim do século XIX para um ser<br />
inofensivo, inocente e superprotegido em meados do século XX, para logo então<br />
transformar-se em um cidadão tão exigente e seletivo quanto os adultos.<br />
Ao longo do século XX, a literatura, a TV e o cinema mostraram ao mundo seu<br />
padrão formatado de “criança”, bem como as transformações que eles influenciaram em<br />
sua remodelagem. A Priscilla de Lassie, Volte para Casa (1943) e as sete crianças Von<br />
Trapp de A Noviça Rebelde (1965) têm em comum a inocência, que pode ser<br />
questionada de acordo com os padrões da época em que cada filme foi lançado. Quase<br />
vinte anos de diferença entre os dois filmes mudam bastante a visão que se tinha a<br />
respeito do público infantil. Se nos anos 1940 Priscilla representava uma criança<br />
excessivamente alienada, os anos 1960 mostram sete crianças transformadas em<br />
paralelo à evolução social, que fazem travessuras, algumas maldosas até demais mesmo<br />
para um adulto – como jogar cobras no quarto da governanta.<br />
Muitos anos de histórias “mamão-com-açúcar” concluem o século XX, como<br />
E.T. – O Extra-Terrestre (1982), A História Sem Fim (1984) e inúmeros filmes<br />
envolvendo a relação da criança com seu animal de estimação) e o início do atual nos<br />
1 Revista Mundo Estranho, nº 98, Ed. Abril, Abril de 2010, p. 15-23<br />
11
mostra a nova criança-público-padrão: esperta, inteligente e entendedora dos conflitos<br />
do mundo adulto.<br />
Os conflitos da personagem infantil e/ou juvenil no século XXI se tornam mais<br />
complicados do que eram no século anterior (quando os conflitos eram mais<br />
“inocentes”), como a separação dos pais, a disputa pela namoradinha, crimes, violência<br />
e... o professor “sádico” que ameaça reprovar os alunos. Todos esses conflitos são<br />
próprios, também, do século XX, pois estão presentes nas relações familiares e sociais<br />
de todos os tempos, aliás. O conflito de gerações literárias, em se tratando de literatura<br />
infanto-juvenil, gira em torno da representação da criança na literatura e nas outras<br />
artes, isto é, numa representação da criança idealizada, nos moldes da tradição cristã:<br />
uma criança desprovida da maldade do mundo.<br />
Outra característica da literatura infanto-juvenil contemporânea é a de<br />
“atualização” das discussões sociais. Já no fim do século XX, alguns autores<br />
demonstram preocupação em retratar personagens “fora do padrão” ou com<br />
necessidades espaciais, trazendo para a literatura a diversidade de características que<br />
permeia também o universo infantil.<br />
O trio “Léo, Ângela e Gino” de Marcos Rey, inclui um herói adolescente<br />
portador de necessidades especiais (nos livros O Mistério do 5 Estrelas, O Rapto do<br />
Garoto de Ouro, Um Cadáver Ouve Rádio e Um Rosto no Computador). Maurício de<br />
Souza também diversificou as características de personagens da Turma da Mônica. A<br />
versão infantil da Turma da Mônica, atualmente, conta com um autista, um cadeirante e<br />
um deficiente visual. Na Turma da Mônica Jovem foi criado um personagem<br />
homossexual. A escritora Georgina Martins, em seus livros O Menino que Brincava de<br />
Ser e Minha Família É Colorida, também gerou polêmicas a respeito de tabus que<br />
dificilmente são levados à discussão para o leitor infantil e o juvenil, tendo sua obra<br />
sido taxada de Literatura Infantil Gay.<br />
Como exemplos de personagens heróicos na literatura brasileira do período de<br />
transição do século XX para o XXI temos os cinco Karas (da série de Pedro Bandeira<br />
que consiste dos livros A Droga da Obediência, Pântano de Sangue, O Anjo da Morte,<br />
A Droga do Amor e A Droga de Americana). Este tipo de herói pré-adolescente ainda<br />
mantinha as principais características do heroísmo do século XX: idealismo, obediência,<br />
senso de justiça e descumprimento de regras apenas pela salvação do próximo, entre<br />
outras. Já o herói-mirim do século XXI é dotado de maiores ambições: a busca do<br />
sucesso, o questionamento dos idealismos – e até mesmo a falta deles, que é uma<br />
12
característica cada vez mais presente no inconsciente coletivo da atual juventude –, a<br />
pressa em se tornar um adulto, o excesso de responsabilidades na infância, a ironia, o<br />
deboche e a violência. Harry Potter, por exemplo, é uma personagem que reúne todas<br />
essas características. O herói do século XXI é o desdobramento do conhecido “herói<br />
moderno” do século que o precede, pois apresenta um caráter sujeito a falhas e<br />
fraquezas.<br />
A diversificação na representação das personagens infantis passa então a<br />
apresentar uma visão mais realista da criança e do adolescente, a ponto de<br />
estabelecerem um padrão de anti-herói na literatura infanto-juvenil. Não que já não<br />
houvesse, pois mesmo na literatura de quadrinhos ele já era presente desde meados do<br />
século passado. O Brasil tem seu melhor exemplo na personagem Cebolinha, da Turma<br />
da Mônica – criação de Maurício de Souza. Cebolinha, por mais carismático e<br />
engraçado que seja, é um menino que adora arranjar confusão e fazer maldades. Entre<br />
suas mais malévolas artimanhas está a implicância com o coelho de pelúcia da Mônica,<br />
que se torna violenta e espanca qualquer coleguinha que a insulte ou mexa com seu<br />
coelhinho, isto é, adota um comportamento agressivo decorrente de suas frustrações.<br />
Na literatura estrangeira, o ápice da maldade está concretizado na figura de<br />
Artemis Fowl, personagem-título dos livros do irlandês Eoin Colfer. Artemis é o mais<br />
novo descendente de uma bilionária família de ladrões. Quando seu pai está<br />
desaparecido e a mãe surta com sua ausência (Artemis Fowl – O Menino Prodígio do<br />
Crime), Fowl decide assumir os “negócios” da família e passa a investigar a real<br />
existência das fadas. Ao descobrir que elas existem de fato, seqüestra uma delas e exige<br />
metade do ouro do mundo élfico em troca de sua refém. Consegue alcançar seu objetivo<br />
mas mostra-se contrariado no segundo livro (Artemis Fowl – Uma Aventura no Ártico),<br />
já que descobre que seu pai pode ainda estar vivo e que as personagens míticas são as<br />
únicas pessoas que podem ajudá-lo a resgatar o pai. Artemis não é apenas uma criação<br />
fantasiosa de Colfer, mas também um retrato de uma criança dos dias atuais, que manda<br />
nos pais, é mimada e exigente.<br />
Uma garçonete se aproximou, dando um sorriso ofuscante.<br />
— Olá, meu jovem. Gostaria de ver o menu infantil? Uma veia pulsou na têmpora de Artemis.<br />
— Não, mademoiselle, eu não gostaria de ver o menu infantil. Não tenho dúvida de que o<br />
próprio menu infantil tem gosto melhor do que as comidas que estão nele. Gostaria de pedir à<br />
la carte. Ou vocês não servem peixe para menores de idade?<br />
O sorriso da garçonete se encolheu uns dois molares. O vocabulário de Artemis tinha esse<br />
efeito sobre a maioria das pessoas. (COLFER, 2005)<br />
13
Entre as questões que esta pesquisa levanta e investiga, grande atenção foi<br />
destinada às desgraças vividas pelos jovens Irmãos Baudelaire e ao sentimento de<br />
frustração que estas personagens compartilham com os leitores.<br />
Os irmãos Violet, Klaus e Sunny Baudelaire passaram por situações mais<br />
terríveis do que quaisquer outras personagens infantis. Criadas pelo autor-fictício<br />
Lemony Snicket – que narra a história dos Baudelaire como um participante dela – as<br />
três desafortunadas crianças são assunto para treze (seria o número de volumes uma<br />
provocação para o azar?) livros da série Desventuras em Série, que é o eixo central<br />
desta pesquisa.<br />
As Desventuras em Série contam as aflições vividas por três crianças, os irmãos<br />
Baudelaire, após a trágica morte de seus pais. Apesar de ter um enorme apelo para a<br />
conquista de um público infantil, as ilustrações e a linguagem acessíveis também<br />
chamaram a atenção de adolescentes e adultos. Recheada de humor negro e situações<br />
non-sense, a série vai contra a corrente literária destinada ao público infantil ao tratar de<br />
temas que são ainda tabus para os pais que escolhem o que comprar para os filhos<br />
lerem. Assuntos tristes e “pesados” como violência doméstica, morte, assassinato,<br />
crime, sequestro, exploração de trabalho escravo e infantil e – principalmente -<br />
frustração são discutidos ao longo da obra com a maior naturalidade, sem subestimar<br />
qualquer faixa etária de leitores. Como disse a escritora Georgina Martins 2 , em um<br />
seminário sobre literatura infantil no IFRJ (Instituto Federal de Educação Tecnológica<br />
do Rio de Janeiro), campus Nilópolis, em 2009, “não existe tema que não possa ser<br />
passado às crianças, desde que se saiba como tocar no assunto”. E Daniel Handler o faz<br />
com maestria, sob o pseudônimo de Lemony Snicket, um narrador onisciente e – de vez<br />
em quando – participativo que é capaz de brincar com todas as figuras de linguagem<br />
possíveis e ainda enriquecer o repertório e o senso crítico do leitor.<br />
A criança exige dos adultos explicações claras e inteligíveis, mas não explicações infantis, e<br />
muito menos as que os adultos concebem como tais. A criança aceita perfeitamente coisas<br />
sérias, mesmo as mais abstratas e pesadas, desde que sejam honestas e espontâneas.<br />
(BENJAMIN, 1994a: 236-237)<br />
Como só um bom escritor consegue fazer, Handler consegue provocar o leitor,<br />
fazendo-o sentir na pele o mesmo tédio e a frustração sofridos pelos protagonistas.<br />
O sarcasmo exagerado da narração possibilita a compreensão de toda e qualquer<br />
situação, metáfora ou trocadilho inseridos no texto. Snicket se utiliza até mesmo da<br />
2 Professora e escritora de livros infantis<br />
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inserção de um glossário próprio dentro da narrativa, ao citar uma palavra que não seja<br />
corriqueira no vocabulário de leitores iniciantes (sejam crianças ou adultos) ou que<br />
tenha um sentido irônico e totalmente deslocado do sentido usual, mas que tem uma<br />
significação própria dentro do universo da obra de Snicket. Ironicamente, (e esta é uma<br />
palavra cujo uso repetitivo não poderei evitar) são da bebê Sunny algumas da falas mais<br />
maduras. Como todo bebê, a caçula dos Baudelaire possui um vocabulário próprio à sua<br />
idade, que consiste de palavras desconexas, e desprovidas de sentido fora do texto.<br />
Também por isso é non-sense. O “gugu-dadá” de Sunny pode ser entendido somente<br />
por seus irmãos, portanto, os adultos ignoram que a bebê tenha uma visão filosófica e<br />
construtiva ao se expressar. Este é um dos motivos por que há uma dose de non-sense<br />
no texto. Além disso, o desenvolvimento do seu vocabulário é abordado ao longo dos<br />
treze livros. Se, nos primeiros livros, Sunny pronuncia “Varni!” para dizer “Deve ter<br />
sido uma coincidência!”, a partir do sexto volume ela adquire um vocabulário mais<br />
significativo para as outras pessoas, como por exemplo, ao falar a palavra “Cinderela”<br />
ela tentou dizer que foi forçada a lavar e cozinhar para o conde Olaf.<br />
A estrutura narrativa de cada livro, até o volume 5, segue a mesma fórmula. No<br />
início de cada história, os três irmãos perdem seus tutores (ou pais, como no primeiro<br />
volume), e têm seu destino decidido por um executor testamentário que está mais<br />
preocupado com a própria ascensão profissional do que com a segurança deles, para em<br />
seguida serem perseguidos pelo vilão que quer capturá-los e inventar um modo de<br />
roubar a herança dos Baudelaire para depois matar as crianças. Nos treze livros eles<br />
estão fugindo do conde Olaf e sua trupe de péssimos atores e, no final, quase sempre, o<br />
infame antagonista é desmascarado, mas consegue escapar de uma punição, fugindo<br />
para voltar no próximo livro sob outro disfarce. A série retrata, entre outras coisas, o<br />
tédio. E isso é reforçado pela constante repetição de um esquema, que passa a ter<br />
elementos diversificantes a partir do último capítulo do volume 5, quando os Baudelaire<br />
descobrem que não são os únicos órfãos perseguidos por Olaf. É no Colégio Interno que<br />
eles conhecem dois dos trigêmeos Quagmire (o outro está desaparecido). Os pais dos<br />
trigêmeos morreram nas mesmas circunstâncias em que os pais dos Baudelaire, e estes<br />
novos amigos são raptados pelos comparsas de Olaf ao final deste volume.<br />
A partir do sexto volume é inserido na história um objetivo a mais: descobrir<br />
onde estão e salvar os Quagmire. E uma nova vilã é apresentada: Esmé Squalor, sexta<br />
tutora dos Baudelaire e – como será revelado ao final do volume 6 – noiva de Olaf.<br />
Além da inclusão destas novas personagens surgem indícios de que os pais dos<br />
15
Baudelaire integravam uma sociedade secreta filantrópica, na qual houve uma cisão. Os<br />
causadores deste rompimento de laços passaram então a se vingar de seus novos<br />
inimigos, provocando incêndios para matá-los, e raptar os herdeiros para roubar-lhes a<br />
fortuna e matá-los em seguida.<br />
Outra característica marcante das Desventuras em Série é o modo como o<br />
marketing foi pensado. Através da psicologia reversa, o autor – já na contra-capa e nas<br />
orelhas do livro – pede para que o leitor não compre aquele livro ou que o tranque num<br />
baú e nunca o leia. A primeira frase do primeiro livro é: “Se vocês se interessam por<br />
histórias com final feliz, é melhor ler algum outro livro” (SNICKET, Vol. 1: 9). Se<br />
levarmos em consideração o ditado popular “tudo que é proibido é mais gostoso”, temos<br />
a certeza de que esta estratégia só faz crescer a curiosidade da pessoa que encontrar por<br />
acaso estes livros na estante de uma biblioteca ou livraria, levando-o a ao menos folhear<br />
o livro que possui uma identidade visual curiosa e atrativa, padrão em todos os volumes,<br />
com ilustrações de situações trágicas de modo irreverente. Esta talvez seja a receita para<br />
fisgar de vez os adolescentes e adultos: a irreverência trágica que se finge de segredo.<br />
Este recurso não se limita à contra-capa, mas também se aplica no texto. Snicket, entre<br />
um capítulo e outro, insiste para que o leitor abandone a leitura e vá procurar uma<br />
história mais feliz, que terá um final satisfatório – ao contrário de sua obra.<br />
Figura 1 - Stand de vendas da série em livraria<br />
16
Se, mesmo com todas as advertências de Snicket, o leitor prosseguir e chegar ao<br />
volume 13, de título O Fim, correrá um risco de se arrepender mesmo por não ter<br />
interrompido. A razão disto é que o autor brinca com o sentimento de frustração,<br />
fazendo antes com que o leitor ria das frustrações das personagens, para depois, no fim,<br />
fazer o leitor sentir a mesma frustração. É a vez do narrador rir e fazer joça do leitor.<br />
Eu, particularmente, fiquei revoltado com o final, xinguei Snicket e queria queimar o<br />
livro. Mas esta reação – pensei depois – provavelmente era o objetivo do escritor.<br />
João Ubaldo Ribeiro, por exemplo, teve a habilidade de seduzir seus leitores,<br />
provocando com as palavras tamanha intimidade entre ele e o leitor, que consegue<br />
manipular sensorialmente quem segura seu livro. Não é à toa que a maioria das pessoas<br />
que leu A Casa dos Budas Ditosos disse ter-se excitado, constantemente, ao longo da<br />
leitura, e em O diário do Farol, Ubaldo consegue prever o temperamento do leitor em<br />
cada trecho do livro, ao ponto de interromper a história para dizer que sabe que naquele<br />
exato momento o leitor ficou tão irado com a provocação da narrativa que o insultou.<br />
Isto é ter domínio da escrita, uma genialidade que demonstra um refinado senso<br />
estético do escritor. E depois de toda a minha raiva com o fim de Desventuras em Série<br />
percebi que Snicket/Handler também possui esta qualidade e se arrisca a fazê-lo até com<br />
o público infantil, tão cansado de leituras prontas, óbvias e nada desafiadoras.<br />
A grande “frustração” provocada por Snicket é que a partir do sexto livro,<br />
quando descobrimos a história da sociedade secreta, surgem construções com passagens<br />
secretas, indagações sobre signos e símbolos que são descritos na narrativa (a existência<br />
da figura de um olho na tatuagem de Olaf e na decoração de alguns edifícios; a sigla<br />
C.S.C.; o mistério do significado do açucareiro que passa a ser tão buscado quanto o<br />
Santo Graal; o signo “ponto de interrogação”, o grande desconhecido, que os persegue<br />
pelo radar do submarino) e questionamentos a respeito da identidade, do parentesco e da<br />
ligação de algumas personagens, só que NADA disso é explicado no fim. Se esta fosse<br />
uma obra moralizante, a moral deveria ser “assim como na vida real, na ficção também<br />
não podemos ter respostas para tudo o que queremos saber”. Não descobrimos tudo que<br />
queremos. O “desenlace” não ocorre, e mais uma vez brinca-se com a utilização dos<br />
signos quando no penúltimo volume da série, os Baudelaire acabam tendo que provocar<br />
um incêndio num hotel chamado Hotel Desenlace, no qual estão hospedadas todas as<br />
personagens dos livros anteriores (todas as que não morreram, obviamente).<br />
Simbolicamente, as crianças, ao incendiar o Hotel Desenlace, estão “queimando o<br />
17
desenlace”, isto é, destruindo qualquer possibilidade de desvendar os mistérios e<br />
hipóteses levantados.<br />
1.2. Objeto da pesquisa<br />
Figura 2 - Os treze livros que compõem a série<br />
O objeto desta pesquisa é a relação do leitor com a estória e a elaboração da<br />
narrativa da série Desventuras em Série, de Lemony Snicket. Estudar-se-á, portanto, o<br />
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entrelaçamento de uma aparente hegemonia de uma sequência de situações inusitadas e<br />
do esforço para a elaboração do texto artístico-literário.<br />
1.3. Problemas<br />
O texto de Snicket resiste a uma análise literária?<br />
Há nele instigação para o leitor estético infantil e juvenil?<br />
Como as editoras destinam suas obras a faixas etárias específicas?<br />
1.4. Hipótese<br />
A série de narrativas Desventuras em série caracteriza-se como obra da cultura<br />
de massa, por apresentar um aparente centramento na estória dos personagens. No<br />
entanto, é possível depreender de seus arranjos verbais elaborações dialógicas e<br />
polifônicas e de estilo receptivo, que podem classificá-la como obra literária juvenil<br />
contemporânea, ao se deter no estudo das imprevisibilidades estéticas.<br />
Supõe-se que esta obra ocupe um lugar limite entre a cultura de massa e a<br />
cultura da arte literária, agradando, por causa disso, a públicos de idades diferenciadas.<br />
1.5. Objetivo Geral<br />
Analisar o conjunto da obra de Lemony Snicket, as Desventuras em série,<br />
discutindo sua classificação como cultura de massa e ao mesmo tempo como obra de<br />
valor artístico-literário, bem como sua classificação como literatura infantil.<br />
1.6. Objetivos específicos<br />
a) Estudo do dialogismo e da polifonia presentes na obra;<br />
b) Fundamentação da análise segundo a estética da recepção e do efeito do<br />
conjunto dos livros da série;<br />
c) Investigar as características de contemporaneidade da criação narrativa e da<br />
construção dos personagens;<br />
d) Estudo da adaptação da obra literária para o cinema.<br />
19
1.7. Metodologia<br />
A pesquisa é qualitativa, bibliográfica e teórico-descritiva. Procedeu-se à análise<br />
crítica dos 13 livros da série tendo como principais suportes teóricos os estudos sobre<br />
polifonia e dialogismo e a estética da recepção e do efeito.<br />
Após a coleta de dados sobre a série e a análise do filme “Desventuras em série”,<br />
houve uma busca por adolescentes que já leram toda a série. Esta triagem foi realizada<br />
em parceria com uma biblioteca pública que possui a série quase completa (em Nova<br />
Iguaçu).<br />
Os leitores, os tradutores, os editores e o próprio autor receberam um<br />
questionário elaborado (para cada um, especificamente) após a coleta de dados. Após o<br />
preenchimento do questionário, cada um seria entrevistado individualmente.<br />
1.8. Avaliação das dificuldades<br />
A principal dificuldade foi encontrar jovens que teivessem lido toda a série. Uma<br />
solução para isto foi estender a pesquisa a adultos de até 22 anos que tenham iniciado a<br />
leitura da série durante a adolescência.<br />
Já se tentou minimizar esta dificuldade, através da disponibilização dos volumes<br />
do meu acervo particular para jovens que leram a maior parte da série e não concluíram<br />
por não terem adquirido os últimos volumes ou não terem encontrado (a biblioteca<br />
municipal de Nova Iguaçu não possui os dois últimos volumes).<br />
Outra atitude tomada para agilizar o contato com leitores que leram todos os 13<br />
livros foi a busca no site de relacionamentos Orkut, no qual existem diversas<br />
comunidades dedicadas à obra de Snicket. Através deste site de relacionamentos<br />
encontrei a preparadora de editoração do último volume da série, que aceitou me ajudar<br />
nas questões relativas ao processo editorial e nos repasses de contatos com os<br />
tradutores, com o editor do primeiro volume e com o autor (a quem este projeto de<br />
pesquisa foi encaminhado, junto com o questionário, devidamente traduzidos para o<br />
inglês).<br />
Entretanto, com o imenso volume de informações que fui inserindo na pesquisa,<br />
os questionários e entrevistas foram abolidos, uma vez que também se mostraram<br />
inconclusivos por causa do pequeno número de entrevistados que se enquadravam no<br />
mesmo perfil.<br />
20
2. A SÉRIE<br />
As personagens centrais são as crianças da família Baudelaire, que perdem a<br />
casa e os pais num incêndio já no primeiro capítulo do primeiro volume. A partir daí os<br />
três órfãos citados terão que passar por todo tipo de desgraça, tendo como principal pivô<br />
o Conde Olaf, um parente distante que os persegue com as piores intenções possíveis. Já<br />
na contracapa do livro o autor adverte o leitor para que escolha outro livro, cujo final<br />
seja feliz – o que, definitivamente, não está programado para os órfãos Baudelaire.<br />
2.1. Mau começo<br />
Em uma manhã cinzenta e nublada, Violet, Klaus e Sunny Baudelaire se<br />
distraíam na Praia do Sal quando chega o Sr. Poe (bancário e executor testamentário da<br />
fortuna da família Baudelaire) e anuncia que seus pais haviam morrido num enorme<br />
incêndio que destruiu sua mansão. O Sr. Poe então leva os órfãos para sua própria casa<br />
até que se encontrasse um tutor para eles. Mais tarde, leva as crianças para a casa do<br />
conde Olaf (ator e primo em terceiro ou quarto grau dos Baudelaire), um parente<br />
desconhecido que se tornaria responsável por eles. O conde possui em seu tornozelo<br />
esquerdo a tatuagem de um olho estilizado. Este ícone está presente na decoração de<br />
toda a casa e incomoda as crianças.<br />
Tão logo o Sr. Poe se despede das crianças, Olaf já começa a maltratá-las e deixa<br />
claro que ambiciona a fortuna dos Baudelaire. Contudo, mesmo as crianças só terão<br />
acesso ao dinheiro quando Violet atingir a maioridade (ela tem quatorze anos).<br />
Inúmeros são os maus tratos dispensados aos irmãos, entre eles chantagem,<br />
ofensas e agressão. Olaf tem uma vizinha muito querida pelas crianças, a juíza Strauss.<br />
Ela possui uma biblioteca em sua casa, o que ajudará Klaus a entender melhor a<br />
legislação relativa ao matrimônio civil, e que os salvará de perder sua herança – e sua<br />
vida – para Olaf.<br />
Olaf, frequentemente, convida sua trupe para ensaiar em casa. É nessas ocasiões<br />
que as crianças sofrem mais, uma vez que toda a companhia teatral os trata da mesma<br />
forma que o conde. São na verdade cúmplices dos crimes cometidos por ele.<br />
Para garantir o acesso à fortuna dos órfãos, Olaf então decide produzir um<br />
espetáculo teatral chamado O Casamento Maravilhoso. Trata-se de um casamento real<br />
entre Olaf e Violet, que é obrigada a integrar o elenco, sob a pena de ter sua irmã bebê<br />
21
(Sunny) assassinada, sendo que esta cerimônia terá um disfarce: todos fingirão que se<br />
trata de uma peça teatral. Para que um casamento se realize é necessária a presença de<br />
um juiz. Logo a juíza Strauss é convidada por Olaf para integrar o elenco. “Sempre quis<br />
subir num palco”, diz a juíza eufórica no momento em que aceita o convite.<br />
Os adultos, portanto, ignoram a real situação sofrida pelas crianças. Eles não<br />
contam a verdade à juíza Strauss com medo de serem punidos por Olaf e por causa<br />
disso só podem contar consigo próprios. Olaf deixa bem claro que, após a cerimônia irá<br />
matar os três e ficar com o dinheiro. Violet consegue invalidar o casamento por assinar<br />
o registro com a mão esquerda, sendo destra, e Olaf é desmascarado. Foge com sua<br />
trupe antes mesmo que a polícia chegue. Caberá ao Sr. Poe encontrar um novo tutor<br />
legal para os Baudelaire.<br />
2.2. A Sala dos Répteis<br />
Os órfãos são levados para morar com Montgomery Montgomery (nome e<br />
sobrenome iguais mesmo), que pede para ser chamado de tio Monty. O tio, que eles<br />
também não conheciam, é um famoso herpetologista e possui uma vasta coleção de<br />
répteis em sua residência, sobretudo de ofídios peçonhentos. Ele é irmão da mulher do<br />
primo do falecido pai das crianças.<br />
Mal chegam à casa do tio Monty, as crianças – muito bem recebidas pelo<br />
carinhoso e responsável cientista – ficam sabendo que ele acabara de receber um bilhete<br />
de Gustavo, seu antigo assistente, pedindo demissão e encaminhando um substituto<br />
chamado Stephano. As crianças passam momentos felizes ao lado do tio. Obviamente<br />
esta felicidade será muito breve.<br />
Stephano, na verdade, é o conde Olaf disfarçado. Ele matou Gustavo e forjou o<br />
bilhete de despedida para poder se aproximar novamente das crianças. À primeira vista<br />
as crianças sabem que se trata de um impostor, mas seus alertas são inúteis, pois os<br />
adultos (Sr. Poe e tio Monty) acham que por causa dos traumas sofridos eles estão<br />
vendo Olaf por toda parte. Mais ainda, Olaf disfarçou com maquiagem a tatuagem, o<br />
que deixa os Baudelaire mais desacreditados ainda.<br />
Olaf/Stephano não demora muito a cometer um novo crime. Ao saber que<br />
Montgomery pretende viajar ao Peru com as crianças – e já tem as passagens de navio<br />
compradas – ele mata o novo tutor das crianças injetando veneno de cobra com uma<br />
22
seringa no pescoço do cientista. É a primeira vez que os órfãos se deparam com um<br />
cadáver.<br />
Olaf mantém seu disfarce enquanto espera os legistas chegarem para recolher o<br />
corpo que, segundo ele, foi atacado pela Víbora Incrivelmente Mortífera. Ironicamente,<br />
é a cobra mais dócil de todas e Sunny adora brincar com ela.<br />
Novamente, diante do Sr. Poe (que se recusava a acreditar nas crianças), as<br />
crianças conseguem desmascarar Stephano, provando que ele é Olaf. Ele foge com seu<br />
comparsa, que estava disfarçado como o legista Dr. Lucafont.<br />
Poe leva novamente as crianças para buscar um novo lar.<br />
2.3. O Lago das Sanguessugas<br />
Após atravessar a barco o Lago Lacrimoso, o Sr. Poe – com todo o descaso do<br />
mundo –, aporta no Cais de Dâmocles e coloca as crianças em um táxi para que<br />
conheçam seu novo lar e sua nova tutora. Tia Josephine é cunhada da prima dos<br />
Baudelaire em segundo grau e vive numa casa pendurada (literalmente) na encosta de<br />
um alto penhasco às margens do lago. Após perder seu marido num acidente<br />
envolvendo as sanguessugas do lago, adquiriu Síndrome do Pânico. Tinha medos até<br />
irracionais, como por exemplo, medo de corretores de imóveis ou de usar o telefone.<br />
Josephine é muito agradável com as crianças, porém é rígida quanto ao uso correto da<br />
gramática e da ortografia. É sua obsessão. Todas as refeições são servidas frias, por<br />
causa do medo de que o fogão exploda.<br />
A casa de tia Josephine tem um formato irregular que acompanha a descida<br />
íngreme do penhasco, e possui suportes (andaimes) que se prendem à encosta como<br />
patas de aranha gigantes. Por dentro, o que mais chama a atenção de todos é a ampla<br />
janela (que dá nome ao título original, The Wide Window) da biblioteca. Este cômodo<br />
possui um formato oval e a janela em questão acompanha o formato da sala, indo do<br />
chão ao teto. Tem uma majestosa vista para o lago.<br />
A cidade do Lago Lacrimoso aguarda para a semana seguinte a chegada do<br />
Furacão Hermano, portanto, as crianças vão com a tia fazer compras (a pé, porque ela<br />
tem medo de automóveis) para estocar mantimentos no caso de uma catástrofe<br />
acontecer. Durante as compras, um marinheiro com perna-de-pau corteja Josephine, que<br />
se encanta com sua suposta gentileza. Ele se apresenta como o capitão Sham. É mais um<br />
disfarce do conde Olaf, com a perna de madeira, um tapa-olho (que não disfarça o<br />
23
monocelho) e cartões de visita que, segundo ele, provam que ele é o capitão Sham. Os<br />
Baudelaire, novamente percebem o disfarce, mas – novamente – não são levados a<br />
sério.<br />
Mais tarde, em casa, Olaf telefona para Josephine, mas é Violet quem atende.<br />
Ela não quer passar o gancho para a tia, mas ele a ameaça. Josephine cria coragem e<br />
atende ao telefone. Pede para as crianças irem para o quarto, a fim de ter privacidade.<br />
Algum tempo depois, os três ouvem um barulho de vidraça se quebrando e saem do<br />
quarto procurando pela tia. Tudo o que encontram é um bilhete de despedida – eterna –<br />
e um grande rombo no vidro da janela da biblioteca. O bilhete é uma nota de suicídio,<br />
escrito por ela, que passa a guarda das crianças para o capitão Sham.<br />
Obviamente, Sham/Olaf chantageou/ameaçou Josephine e forçou-a a escrever o<br />
tal bilhete. Avisado por telefone sobre o ocorrido, o Sr. Poe chega e confirma com eles<br />
que a letra do bilhete é mesmo de tia Josephine, comparando com a lista de compras<br />
escrita por ela. Contudo, Klaus percebe erros crassos no texto dela, coisa que ela em sã<br />
consciência jamais cometeria.<br />
Sr. Poe, contrariando a vontade das crianças, telefona para Sham e marca um<br />
encontro no restaurante para que assine os papéis da adoção.<br />
Em seguida, Poe os leva de táxi morro abaixo para o restaurante, ao encontro de<br />
Sham. Durante a refeição, disfarçadamente, os órfãos põem na boca uma bala da qual<br />
são alérgicos, e assim que os efeitos (inchaço na língua, placas na pele) começam a<br />
aparecer, eles pedem para voltar sozinhos para casa. Poe fica no restaurante com Sham<br />
para ler o contrato e as crianças correm para a casa, em meio à crescente ventania<br />
causada pela aproximação do furacão.<br />
Mal entram na casa, Klaus corre direto para a biblioteca a fim de decifrar o<br />
bilhete e Violet e Sunny vão tomar banho com uma solução para aliviar a alergia. Klaus<br />
observa que a primeira letra de cada uma das palavras escritas de modo incorreto forma<br />
uma mensagem escondida: PGRUTA. Percebem que a tia pode estar viva e forjou a<br />
própria morte, deixando-lhes a indicação de onde poderiam encontrá-la. Vasculham o<br />
quarto da tia e encontram um atlas no baú, contendo o mapa do lago. Descobrem que<br />
existe um lugar chamado Gruta do “P”. É nesta hora que o furacão atinge a casa, que<br />
começa a despencar, cômodo a cômodo, enquanto os Baudelaire “escalam” o chão já<br />
inclinado até conseguir sair pela porta da frente um segundo antes de toda a casa<br />
desabar no abismo.<br />
24
Necessitados de um barco, entram no escritório de fachada de Sham (que fingia<br />
alugar barcos no lago) e roubam um barco que conseguem velejar tendo a ventania a seu<br />
favor. Chegam à gruta do “P”, que tem uma placa de vende-se na entrada, e encontram a<br />
tia, que fica feliz em saber que não viverá sozinha para sempre na gruta. Na verdade ela<br />
queria viver para sempre e não sozinha. E se recusa a sair de lá, com medo de Sham.<br />
Klaus só consegue convencê-la ao lembrar que o local está à venda e em breve<br />
corretores iriam aparecer. Apavorada com a ideia, Josephine entra no barco com eles.<br />
A novidade nesta história é que as sanguessugas do lago atacam qualquer pessoa<br />
em quem sintam cheiro de comida. Só é recomendado entrar no lago uma hora após a<br />
refeição, porém havia apenas 45 minutos que a tia comera uma banana e uma gigantesca<br />
multidão de sanguessugas começa a atacar o barco furando-o, ele começa a afundar.<br />
Violet consegue criar um sinalizador e um barco vem fazer o resgate. Mas é um barco<br />
ocupado por Sham/Olaf, que foi resgatar as crianças (se elas morressem antes da adoção<br />
ele não receberia a fortuna) após saber do roubo do barco e que atira Josephine para as<br />
sanguessugas.<br />
O Sr. Poe os aguarda no cais e felicita Sham por ser um tutor responsável. Mas<br />
Sunny rói (a caçula tem quatro dentes afiadíssimos) a corda da perna de pau do falsário<br />
e sua perna (com tatuagem no tornozelo) é identificada por Poe, que manda chamar a<br />
polícia. Como sempre, Olaf consegue fugir. As crianças vão precisar de um novo lar.<br />
2.4. Serraria Baixo Astral<br />
Os Baudelaire chegam de trem a Paltryville com o Sr. Poe – que nem sai do trem<br />
para não perder a hora de voltar. Encontram-se sozinhos na plataforma de uma cidade<br />
quase desabitada e nada agradável. Tudo é feio e cinzento. Seu novo tutor tem um nome<br />
grande e complicado, e por isso ninguém sabe seu nome. Todos o chamam apenas de<br />
Senhor. Ele é dono da Serraria Alto Astral, que fica próxima à estação ferroviária. A<br />
descrição da serraria (interna e externa) é deprimente. Próximo à serraria, há uma casa<br />
em formato de olho, e o desenho estilizado (pintura, riscos) é idêntico ao da tatuagem de<br />
Olaf.<br />
A partir de agora, dadas as prévias exposições, não vou aprofundar tanto em<br />
cada um dos livros. O que realmente importa nessa obra é que, livro após livro, as<br />
crianças são submetidas a situações mais absurdas e complexas, sempre com uma<br />
fórmula repetitiva (novo tutor + outro disfarce de Olaf + perigos sofridos + órfãos<br />
25
desmascarando o vilão + recusa dos adultos em acreditar nos órfãos + fuga de Olaf). O<br />
que muda, como eu disse, são apenas as situações. O novo tutor de cada livro pode não<br />
ser uma pessoa, mas sim uma instituição (como veremos no próximo volume, as<br />
crianças ficarão sob a guarda de um internato).<br />
Neste volume 4, as crianças vão parar no dormitório coletivo de uma serraria em<br />
que são forçados a trabalhar. A exploração do trabalho infantil é o tema central (a<br />
situação chocante) deste livro. E, como<br />
as crianças exploradas na vida real, os<br />
Baudelaire são mal remunerados. Bem<br />
como os outros funcionários da<br />
serraria, eles recebem apenas chicletes<br />
como pagamento. Senhor, o tutor dos<br />
Baudelaire, fuma charuto o tempo<br />
inteiro e tem sua cabeça coberta por<br />
uma fumaça. Ninguém conhece seu<br />
rosto, a fumaça simboliza a dúvida, o<br />
mistério, semiologicamente falando.<br />
Associo esta característica do<br />
personagem ao quadro “O Filho do<br />
Homem”, de René Magritte (Figura 1),<br />
obra surrealista na qual um homem tem<br />
o rosto oculto por uma maçã.<br />
Figura 3 – “O filho do Homem”, pintura de René Magritte<br />
Na fábrica há um novo capataz, muito severo (capanga narigudo de Olaf<br />
disfarçado), que brutaliza todos no local e força até mesmo Sunny – que ainda engatinha<br />
– a serviços de alta periculosidade. Phil, um dos funcionários que sempre se prejudica,<br />
mas sempre vê o lado bom das coisas ruins tem sua perna esmagada por uma máquina.<br />
Sunny quase é serrada junto com uma tábua no clímax da história.<br />
Klaus, ao ter seus óculos quebrados, precisa de um oftalmologista. O consultório<br />
é a tal casa em formato de olho. Lá encontra Olaf, em seu disfarce mais ridículo de toda<br />
a série: Shirley, a secretária da Dra. Orwell. Os métodos da médica causam hipnose em<br />
Klaus e ele é levado a provocar os acidentes na serraria.<br />
26
2.5. Inferno no colégio Interno<br />
As crianças chegam à Escola Preparatória Prufrock e já são mal recebidas na<br />
entrada por Carmelita Spats, uma aluna de temperamento rude e irritante. A escola é, na<br />
verdade, um colégio interno em cuja entrada há uma inscrição em latim, “Memento<br />
Mori”, que significa “Lembra-te de que morrerás”. O vice-diretor da Prufrock, Nero,<br />
considera-se um exímio violinista e toca violino a todo instante, mas muito mal. Nero<br />
explica que, entre as punições da escola é comum não se receber talheres para almoçar.<br />
Quem se atrasa para as refeições não recebe xícaras nem copos, tendo que beber os<br />
líquidos despejados em grandes poças na mesa. Sunny, por sua idade, ainda não pode<br />
estudar e para poder morar lá terá de trabalhar (!) para Nero. Caso a bebê se atrase para<br />
o trabalho, o castigo é ficar com as mãos amarradas nas cosas durante as refeições.<br />
“Vocês terão que se abaixar e abocanhar a comida no prato, como cachorros”, diz o<br />
vice-diretor.<br />
Todas as noites, Nero dá um recital de violino de seis horas de duração, aos<br />
quais os alunos são obrigados a assistir. A professora de educação física caíra de uma<br />
janela três dias antes da chegada dos Baudelaire, num suposto acidente. Olaf irá se<br />
disfarçar de instrutor substituto, obviamente.<br />
Carmelita lidera os outros estudantes, todos hostis em relação a alunos órfãos,<br />
que são segregados em barracos imundos, ao invés de se alojarem nos dormitórios. É<br />
por isso que acabam conhecendo Isadora e Duncan Quagmire, trigêmeos órfãos que<br />
também perderam seus pais nas mesmas circunstâncias em que os Baudelaire. Seu outro<br />
irmão trigêmeo, Quigley, supostamente padeceu junto com os pais. Cabe mencionar<br />
que, por também serem personagens planas e com personalidade previsível por suas<br />
aptidões vocacionais (da mesma forma que Violet em relação a inventos e Klaus em<br />
relação à leitura), Isadora é poetisa e Duncan tem talento para o jornalismo.<br />
Na escola eles só têm três professores, a Sra. Bass, que “ensina” Klaus e possui<br />
como única ementa curricular fazer com que os alunos meçam objetos com uma régua e<br />
decorem as medidas, e o S. Remora, professor de Violet, que apenas dita frases de<br />
histórias cotidianas pessoais para que os alunos escrevam e decorem. Resumindo: as<br />
aulas são absolutamente inúteis.<br />
Ao fim do livro, o instrutor Genghis é desmascarado como sendo o Conde Olaf.<br />
Ele foge seqüestrando Isadora e Duncan, que em apuros, enquanto estão sendo enfiados<br />
27
num carro pela gangue de Olaf, deixam aos Baudelaire aos gritos a seguinte pista: “Os<br />
cadernos! C.S.C.”<br />
2.6. O elevador ersatz<br />
O Sr. Poe leva os Baudelaire para morar com Esmé Squalor, uma mulher<br />
soberba e arrogante que classifica tudo como in (por dentro) ou out (por fora). Cada<br />
peça de roupa, cor ou atividade pode mudar de classificação, dependendo da vontade de<br />
Esmé (numa declarada crítica de Snicket aos designers de moda e decoração). Se, por<br />
exemplo, Esmé decide que risca-de-giz é in, todos m seu prédio, incluindo o porteiro,<br />
devem trajar exclusivamente isso. O mesmo se estende aos Baudelaire.<br />
Fato lamentável é que o uso de elevadores está out e as crianças deverão subir de<br />
escada os quarenta e oito andares que levam à cobertura de Esmé. Próximo ao<br />
apartamento de Esmé há uma porta de elevador fechada. Supostamente é um elevador<br />
privativo, mas logo descobrem que se trata de um elevador ersatz, isto é, de fachada,<br />
sendo na verdade uma descida para uma rede de túneis que percorre toda a cidade, com<br />
diversas saídas subterrâneas ao longo de seus túneis. O destino dessas saídas é uma<br />
incógnita.<br />
Os Baudelaire prosseguem na busca pelos Quagmire, e na tentativa de descobrir<br />
o que C.S.C. significa. Esmé revela-se noiva do Conde Olaf e várias pistas falsas são<br />
deixadas por eles, que fogem após um leilão em que os Quagmire estariam “embalados”<br />
dentro de alguma peça (algo como caixas, pianos de cauda ou estátuas gigantes). Os<br />
Quagmire estavam escondidos num estojo de tuba (instrumento musical) e o objeto é<br />
transferido pelo casal de vilões para um local desconhecido.<br />
2.7. A cidade sinistra dos corvos<br />
Os Baudelaire são deixados sob a guarda de uma cidade conhecida como C.S.C.,<br />
de significado desconhecido. Várias pistas falsas são deixadas a respeito da sigla. Na<br />
cidade, habitat natural de milhares de corvos, os habitantes são chamados de Cultores<br />
Solidários de Corvídeos, por exemplo.<br />
Lemony inicia o livro sugerindo O Menorzinho dos Elfos como opção de leitura<br />
melhor do que as Desventuras em Série:<br />
28
Por exemplo, eu sei de um livro chamado O Menorzinho dos Elfos, que conta a história de um<br />
homenzinho minúsculo que fica correndo de um lado para outro no País das Fadas, vivendo<br />
toda sorte de aventuras adoráveis, e você logo irá perceber que, provavelmente, faria melhor<br />
em ler O Menorzinho dos Elfos e se contorcer de prazer com as coisas adoráveis que<br />
aconteceram com essa criatura imaginária em um lugar de faz-de-conta, em vez de ler este<br />
livro e ficar gemendo com as coisas terríveis que aconteceram com os três órfãos Baudelaire na<br />
pequena cidade onde estou agora batendo à máquina estas mesmas palavras. Os tormentos,<br />
desgraças e perfídias contidos nas páginas deste livro são tão pavorosos que é importante que<br />
você não leia mais nada além do que já leu. (SNICKET, Vol. 7: 10)<br />
Violet, Sunny e Klaus conhecem Jacques Snicket, que teria algo de importante<br />
para lhes contar, mas ele é morto por Olaf, disfarçado de detetive. Os corvos trazem em<br />
seus bicos alguns pedaços de papel escritos por Isadora Quagmire, com dísticos<br />
(poemas de dois versos) dando pistas indiretas sobre sua localização. O jornal local (O<br />
Pundonor Diário) publica informações erradas e a opinião pública é facilmente<br />
manipulada.<br />
As crianças são acusadas pela morte de Jacques e vão a julgamento pelo<br />
Conselho de Anciãos. São presas na cadeia e condenadas à morte na fogueira em praça<br />
pública, mas conseguem escapar da prisão e, quando descobrem que os Quagmire<br />
estiveram escondidos numa cavidade embaixo do chafariz da cidade já é tarde demais.<br />
Os Quagmire foram salvos por Hector – adulto amigo e ajudante dos Baudelaire – e<br />
estavam fugindo num balão. Quando os Baudelaire tentam subir as escadas de corda do<br />
balão para fugir com os Quagmire quando um arpão atinge a escada e a corda começa a<br />
se desfazer.<br />
Os Baudelaire pousam numa gigantesca árvore e os Quagmire jogam para eles<br />
seus dois cadernos de anotações, que são atingidos por um segundo arpão e têm suas<br />
folhas destruídas. O balão sobe e a última coisa que os Baudelaire ouvem os Quagmire<br />
gritar antes do balão subir é a palavra “voluntário”.<br />
A oficial de polícia Luciana, que disparou os arpões, é desmascarada como<br />
sendo Esmé, e Olaf também é desmascarado em seu disfarce de detetive Dupin.<br />
Os Baudelaire terminam o livro saindo da cidade. Pela primeira vez sem a<br />
“ajuda” do Sr. Poe e por conta própria. É no final deste livro que Sunny dá seus<br />
primeiros passos sozinha, finalmente aprendendo a andar.<br />
29
2.8. O hospital hostil<br />
É a partir deste livro que as crianças não possuem mais tutor e vivem por conta<br />
própria. Um homem chamado Hal cuida deles na Biblioteca de Registros do Hospital<br />
Heimlich.<br />
É neste livro que as crianças descobrem o dossiê Snicket e que quando<br />
voluntários e vilões usam nomes falsos eles usam anagramas dos seus verdadeiros<br />
nomes. Klaus tenta saber de vários nomes, qual deles seria um anagrama de Violet<br />
Baudelaire. E entre eles tem um que é Monty Kensicle, que conforme diz no livro<br />
Lemony Snicket: Autobiografia Não Autorizada, é autor de O Menorzinho dos Elfos 3 .<br />
Monty Kensicle é um anagrama de Lemony Snicket. Existem ainda nessa lista os<br />
anagramas de Beatrice Baudelaire (Carrie E. Abelabudite), Daniel Handler (Linda<br />
Rhaldeen) e Brett Helquist (Eriq Bluthetts).<br />
Elas tentaram mandar um telegrama para o Sr. Poe, mas ele acreditou no jornal<br />
O Pundonor Diário e mandou que eliminassem todos os telegramas do banco. Os órfãos<br />
Baudelaire se juntam aos Combatentes pela Saúde do Cidadão (C.S.C.) e vão trabalhar<br />
no Hospital Heimlich, cuja construção encontrava-se inacabada. Olaf cria mais um de<br />
seus horríveis planos e quase serra a cabeça de Violet para fora do corpo, alegando ser a<br />
primeira cranioectomia do mundo, tendo inclusive apoio dos acadêmicos e cientistas.<br />
Ao final deste livro, o agente andrógino de Olaf (que não se sabe se era homem<br />
ou mulher) morre no incêndio do hospital Heimlich, que começou na biblioteca de<br />
registros e foi ateado pelo próprio conde Olaf.<br />
2.9. O espetáculo carnívoro<br />
Os Baudelaire, escondidos no porta-malas do carro de Olaf e seus comparsas,<br />
chegam ao Parque Caligari. Olaf está à procura dos órfãos, sem saber que eles estão tão<br />
perto. Assim que saem do esconderijo, têm a ideia de usar o mesmo truque que os<br />
vilões. As crianças se disfarçam e vão pedir emprego (não-remunerado) na “Casa dos<br />
Monstros”, uma espécie de freak show que é uma das atrações circenses do parque.<br />
Sunny faz uso de peruca e barba, tornando-se o “bebê-monstro”, e os irmãos mais<br />
3 Referência a uma obra inventada que é mencionada por Snicket como sugestão de leitura mais<br />
agradável do que suas desventuras. Esta estória é mencionada no Vol. 07 e no filme.<br />
30
velhos transformam-se nos gêmeos siameses. A questão das diferenças e do preconceito<br />
é muito discutida entre eles e as outras “aberrações” do parque (um ambidestro, um<br />
corcunda e uma contorcionista).<br />
A dona do parque é a clarividente Madame Lulu, amiga de Olaf e Esmé, que tem<br />
a “brilhante” ideia de trazer um bando de leões para interagir com as aberrações no<br />
picadeiro e “entreter” o público.<br />
A história termina com Madame Lulu sendo atirada no fosso dos leões e o circo<br />
sendo incendiado pelas crianças, que, antes de serem desmascarados pelos vilões, são<br />
induzidos a cometer o crime. As três outras aberrações do parque se aliam aos vilões,<br />
por estarem sem emprego agora. Olaf rapta Sunny e foge com ela no carro preto. É a<br />
primeira vez que os Baudelaire se separam. Violet e Klaus se escondem no trailer preso<br />
ao carro, que ruma para as montanhas. No meio do caminho, cheio de precipícios, os<br />
vilões percebem a presença dos Baudelaire mais velhos e soltam o trailer, que começa a<br />
descer de ré, sem freios. O livro termina com este clímax, que é o gancho mais forte de<br />
toda a série.<br />
2.10. O escorregador de gelo<br />
O livro começa com Violet inventando um drag chute com itens caseiros<br />
encontrados dentro do trailer, em seu momento mais “MacGyver” 4 dentro da história.<br />
Ela e o irmão conseguem sair com segurança frações de segundos antes do trailer<br />
despencar no abismo. Sunny acampa com Olaf no Cume das aflições enquanto seus<br />
irmão entram numa caverna para se abrigar à noite e encontram os Escoteiros da Neve,<br />
grupo que inclui Carmelita Spats e outras crianças desagradáveis de Prufrock. Junto a<br />
eles está Quigley, o irmão trigêmeo de Duncan e Isadora que (descobre-se agora)<br />
sobreviveu ao incêndio e estava foragido. Quigley fala mais sobre a sociedade secreta<br />
que seus pais integravam. O trigêmeo fala sobre a possibilidade dos pais dos Baudelaire<br />
também estarem vivos e procurando por eles.<br />
4 Personagem-título de seriado norte-americano, produzido entre 1985 e 1992 e exibido no Brasil pela<br />
Rede Globo de Televisão, que narrava as estórias de um agente secreto que tinha infinitas<br />
possibilidades de construir artefatos bélicos com itens caseiros.<br />
31
O que se conta a partir deste livro a respeito de C.S.C. é que era uma sociedade<br />
filantrópica que se dedicava a apagar incêndios, tendo como símbolo um açucareiro,<br />
que passa a ser procurado por todos na história, mocinhos ou vilões.<br />
A Montanha da Mão-Morta, que eles estão escalando em busca de Sunny, é uma<br />
montanha com o topo congelado, o que transforma a queda-d’água congelada num<br />
gigantesco escorregador de gelo. Surgem dois novos e enigmáticos vilões, cujos nomes<br />
são desconhecidos, mas que são chamados de O Homem Com Barba Mas Sem Cabelo e<br />
a Mulher Com Cabelo Mas Sem Barba. Sunny, que descobre enfim um talento para a<br />
culinária, ouve os vilões dizerem que têm um encontro secreto no Hotel Desenlace.<br />
Violet, Klaus e Quigley encontram a caçula e fogem com ela, depois de furar os pneus<br />
do carro de Olaf. Na montanha ocorre um fenômeno chamado Falsa Primavera, que<br />
consiste no degelo precoce da montanha. É quando o gelo começa a se quebrar que eles<br />
escorregam montanha abaixo, até cair nas turbulentas águas do Arroio Enamorado.<br />
Quigley acaba se separando deles e caindo sozinho em outra parte do rio. O livro<br />
termina com outro gancho, uma vez que os Baudelaire estão à beira do afogamento sem<br />
ter um barco ou colete salva-vidas, apenas uma tábua de madeira.<br />
2.11. A gruta gorgônea<br />
Sem saber que fim levou Quigley, os Baudelaire são resgatados pelo submarino<br />
Queequeg, comandado pelo Capitão Andarré e sua enteada Fiona, um pouco mais velha<br />
que Violet. Os Baudelaire recebem um uniforme igual ao dos outros dois tripulantes. O<br />
traje em questão é um macacão com o nome do submarino e uma foto do escritor<br />
Herman Melville. Phil, que trabalhava na Serraria Alto Astral, agora era um dos<br />
tripulantes do navio.<br />
Os Baudelaire descobrem então que, antes da morte de seus pais, houve uma<br />
cisão dentro de C.S.C., na qual Olaf declarou-se inimigo de quem fosse contra suas<br />
ideias. Os que estavam contra Olaf tornaram-se vítimas de seus crimes, como os pais<br />
dos Baudelaire e dos Quagmire. Há pessoas que vivem clandestinamente lutando para<br />
defender crianças de Olaf, como o capitão Andarré, Jacques Snicket (que fora<br />
assassinado na cidade C.S.C.), entre outros. Da mesma forma que Olaf recruta novos<br />
vilões, os “mocinhos” também recrutam ajudantes, como o Phil.<br />
Segundo o capitão, não há tempo para diversões dentro do submarino, porque o<br />
encontro de membros da C.S.C. seria na próxima quinta-feira, no Hotel que Sunny<br />
32
descobriu. A missão dos tripulantes do submarino é então anunciada por Andarré:<br />
encontrar o açucareiro antes do Conde Olaf. O Queequeg possui um painel com detector<br />
por sonar, que detecta um submarino, representado no painel pelo ícone de um olho,<br />
idêntico à tatuagem de Olaf. Há também um outro ícone no painel do radar,<br />
representado por um Ponto de Interrogação. Andarré se recusa a contar para as crianças<br />
o que aquele ícone representa, dizendo apenas que é “uma coisa muito ruim, pior do que<br />
Olaf. (...) O mal que existe por aí não dá nem pra imaginar”.<br />
O submarino Queequeg se encaminha então para a Gruta Gorgônea, no fundo do<br />
mar, e será missão dos Baudelaire vasculhar a gruta em busca do açucareiro. Lá na grua<br />
eles serão intoxicados com cogumelos e Sunny salvará suas vidas com conhecimentos<br />
culinários, uma vez que sabe que o tempero japonês wasabi, feito da raiz-forte, combate<br />
aquele tipo de fungo.<br />
As crianças que antes integravam os Escoteiros da Neve agora trabalham como<br />
escravos de Olaf, remando sua embarcação. Carmelita, que caíra nas graças de Esmé,<br />
torna-se mascote dos vilões e é bem tratada, em relação às outras crianças.<br />
O Capitão Andarré “desaparece” do submarino e os Baudelaire não encontram o<br />
açucareiro (na verdade, ninguém parece ter encontrado) e são traídos por Fiona, que<br />
descobre que seu irmão Fernald é o homem com mãos-de-gancho e se junta ele e a Olaf,<br />
que fogem. Os Baudelaire, ao sair pela escotilha, encontram-se na Praia do Sal, ponto<br />
de partida da série (mesma praia em que receberam as trágicas informações do Sr. Poe).<br />
O Sr. Poe está na Praia do Sal, porque havia recebido uma mensagem dizendo que os<br />
órfãos estariam ali naquela manhã. Mas as crianças foram alertadas pelo capitão de que<br />
deveriam embarcar num táxi, e por isso escapam do Sr. Poe e entram num táxi com uma<br />
mulher desconhecida, que se apresenta como Kit Snicket e diz estar à espera deles.<br />
Cabe mencionar que este é o livro com mais citações e referências à literatura<br />
dita cânone, como Lewis Carroll, T. S. Elliot, Platão, Herman Melville e Elisabeth<br />
Bishop.<br />
2.12. O penúltimo perigo<br />
Ao término de A Gruta Gorgônea, os meninos entraram no carro de uma nova<br />
personagem Kit Snicket, a misteriosa mulher que tem o mesmo sobrenome do escritor<br />
das estórias dos órfãos, e dirigiram-se ao Hotel Desenlace. Ao primeiro contato com<br />
Kit, Violet, Klaus e Sunny perceberam que Kit estava grávida.<br />
33
Ao chegarem ao hotel, os meninos pensaram estar vendo o reflexo da lagoa, que<br />
era uma ilusão de ótica. E ficaram sabendo que na verdade o hotel fora projetado para<br />
realmente parecer ser um reflexo e não algo real.<br />
Kit revela aos pequenos que naquele dia haveria um encontro entre os<br />
voluntários de C.S.C. e eles se reuniriam para que pudessem trocar<br />
informações.Também conta às crianças que não poderia permanecer na companhia<br />
deles no hotel, pois tinha negócios para resolver no céu, não o céu literal, mas ela estava<br />
fazendo referência ao balão de ar quente auto-sustentável de Hector. No entanto, deixa<br />
para crianças uma missão bem importante e perigosa: atuarem como Concierges, e vão<br />
precisar espionar pessoas vis, deixando claro que seriam muito bem atendidas por um<br />
voluntário conhecido dela, chamado Frank. O que as crianças não sabiam ainda é que<br />
dentre muitas das pessoas que eles espionariam estavam figuras conhecidas que já<br />
haviam feito parte de suas vidas nos seus piores momentos, após a morte de seus pais no<br />
misterioso e triste incêndio que lhes levara as vidas e a mansão em que eles viviam.<br />
Com a ida de Kit, as crianças entram no hotel e são recepcionados por gêmeos.<br />
Após o encontro eles são chamados em quartos diferentes: o 371, 674 e o salão de<br />
bronzeamento. O primeiro contato com os gêmeos é o prenuncio de que dali em diante a<br />
presença e o contato com os gêmeos vai resultar em uma certa confusão para os<br />
pequenos, pois entre as suas atividades de espionar, eles ainda vão ter que descobrir<br />
qual dos dois é o verdadeiro voluntário, o do bem e o vilão, mais uma vez eles vão se<br />
deparar com a C.S.C. e o mistério que a envolve e sem contar que vão ter que continuar<br />
procurando pelo tal açucareiro.<br />
Para tentar solucionar o problema do chamado para cômodos distintos, os irmãos<br />
Baudelaire decidem se separar e cada um vai para um encontro. Violet se dirige à<br />
cobertura. Quando chega percebe que era uma armadilha e não era realmente um<br />
encontro amigável, pois é recebida pelas vilãs Esmé Squalor, Carmelita Spats e<br />
Geraldine Julianne. Além delas havia também Hugo que estava disfarçado como<br />
funcionário do hotel. Carmelita exige que a Baudelaire mais velha pegue um lançador<br />
de arpões e Violet, prontamente a atende.<br />
A Klaus coube ir ao quarto 674, onde se encontra Senhor e Charles (as<br />
personagens que já conhecemos no livro Serraria Baixo-Astral). Senhor manda que<br />
Klaus o leve até a sauna do hotel. Quando ele atende ao pedido do antigo tutor Senhor<br />
quase consegue descobrir algo relacionado aos seus pais. Ernest, o irmão gêmeo do<br />
34
voluntário Frank, pede que Klaus pendure um papel pega-pássaros do lado de fora da<br />
sauna e Klaus, prontamente o atende.<br />
Restou então a Sunny ir ao salão de bronzeamento. Lá ela encontra o pessoal do<br />
colégio interno. É recebida pelo vice-diretor Nero, o Sr. Remora e a Srta. Bass. No<br />
local, a Srta. Bass revela ser uma assaltante de bancos que roubara a Administração de<br />
Multas (o setor em que o Sr. Poe trabalha no banco que administra a herança milionária<br />
dos Baudelaire). Juntos, eles vão ao restaurante indiano do hotel, que ficava no nono<br />
andar. Ao chegarem ao restaurante, lá estava Hal, atuando como cozinheiro. Sunny<br />
como uma boa garota que tem dotes culinários, segue Hal até a cozinha, flagrando no<br />
local uma conversa entre ele e Dewey, o misterioso trigêmeo de Frank e Ernest. Ele<br />
trabalha no relógio do hotel e lá passava todos os seus dias durante todo o dia. O relógio<br />
do hotel é o refúgio de Dewey que se esconde de todas as pessoas, para que elas nunca<br />
deixem de pensar que ele é uma lenda. Após ser flagrada ouvindo a conversa entre eles,<br />
Dewey pede que Sunny implante um Cerramento Supravernacular Complexo (C.S.C.?)<br />
na porta da lavanderia e Sunny, prontamente o atende.<br />
Os irmãos então voltam a se encontrar e vão em direção ao saguão do hotel<br />
durante a noite e começam a refletir sobre os acontecimentos do dia, as informações que<br />
colheram e os encontros atrás do blacão de Concierges. O esperto e inteligente Klaus<br />
chega a conclusão de que o misterioso açucareiro provavelmente estaria para chegar ao<br />
hotel naquela noite. Dewey acaba descendo por uma corda do domo do hotel e<br />
encontra-se com os Baudelaire.<br />
Dewey e as crianças vão para perto da lagoa, do lado de fora e o terceiro gêmeo<br />
revela aos meninos que no Hotel Desenlace havia uma biblioteca. E ele, pessoalmente,<br />
juntamente com Kit Snicket catalogava tudo que se referia a C.S.C. Além dessa<br />
revelação, ele confessa também que provavelmente seja o pai do bebê que Kit espera,<br />
devido ao contato que eles tinham quando trabalharam juntos. Enquanto isso, notam que<br />
um táxi parara na frente do hotel e dele desceram a Juíza Strauss e Jerome Squalor, mais<br />
dois voluntários que coincidentemente tinham as mesas iniciais: J.S.<br />
Os meninos voltam para o interior do hotel e vão em direção ao saguão de<br />
entrada. Mais uma vez as crianças não fazem a menor idéia de que encontrariam lá<br />
dentro e que as conseqüências desse encontro seriam, mais uma vez, trágicas e<br />
desafortunadas. O Conde Olaf, sua namorada Esmé Squalor, as ex-aberrações do Parque<br />
Caligari e Carmelita Spats estão juntos. Os Baudelaire vêem o conde repreendendo a<br />
filha adotiva e toma dela o lançador de arpões que Violet entregara a ela mais cedo<br />
35
naquele dia. Ao dar de cara com Dewey pareceu ficar chocado e, maquiavélico como<br />
sempre, aponta o lançador para o terceiro trigêmeo. Diante da cena, os meninos tentam<br />
tomar o lançador das mãos de Olaf e na guerra entre eles pela disputa do lançador, ele<br />
cai no chão e o arpão atinge Dewey ferindo-o gravemente. Entre a vida e a morte, ele<br />
sai do hotel e cai na lagoa, desaparecendo em seguida.<br />
O acidente envolvendo o lançador de arpões acabou acordando, com o barulho,<br />
todo o hotel. Dentre os que aparecem está um misterioso motorista de táxi (ao que tudo<br />
indica trata-se do autor dos livros, Lemony Snicket) que sugere aos meninos que entrem<br />
no táxi e fujam, mas Violet não aceita a sugestão e refuta veementemente a idéia e a<br />
conseqüência fora a permanência dos três Baudelaire no lugar. Será que fora uma má<br />
idéia eles recusarem a sugestão do motorista? Pois ao que tudo indicava ele poderia<br />
portar o açucareiro que os Baudelaire tanto procuravam.<br />
Como muitos apareceram para verificar o que estava acontecendo, o Sr. Poe<br />
aparece e os leva para longe do saguão. Um dos gêmeos, que ainda não sabemos quem é<br />
o bom e quem é o mau, os leva para dentro de um armário e lá eles passam a noite e<br />
dormem até o outro dia.<br />
Na manhã do dia seguinte eles recebem como café da manhã um chá de um dos<br />
gêmeos, são obrigados a usar uma venda preta e se dirigem ao local onde ocorreria o<br />
julgamento deles. Lá, os que “assistem” ao julgamento também tiveram que usar uma<br />
venda preta, com exceção de algumas pessoas. Dentre elas a juíza Strauss, o Homem<br />
Com Barba Mas Sem Cabelo e a Mulher Com Cabelo Mas Sem Barba, que são, como<br />
Strauss, juízes.<br />
Tudo estava pronto para o julgamento acontecer, mas o inesperado acontece:<br />
Olaf seqüestra a juíza Strauss, levando-a para o elevador que os levaria para o subsolo e<br />
as crianças os seguem, indo os cinco para a lavanderia, que tinha o Cerramento<br />
Supravernacular Complexo na porta que fora pendurado anteriormente por Sunny. Eles<br />
tiveram que responder cinco perguntas para ter acesso ao local. Após responderem<br />
corretamente às questões, os cinco adentram a lavanderia.<br />
Eles procuraram pelo açucareiro, mas não o encontraram e acabam ajudando<br />
Olaf a incendiar a lavanderia (!) deixando claro, com isso, que a reunião estava<br />
encerrada. Após o incêndio iniciado na lavanderia, eles sobem o elevador e avisam aos<br />
demais hóspedes que todo o prédio estava em chamas. Mas o leitor não fica sabendo ao<br />
certo quem sobreviveu ao incêndio, porque nem mesmo o autor tem conhecimento.<br />
36
Mas pelo menos ficamos sabendo que, para variar, o maléfico Conde Olaf<br />
sobrevive às chamas e as três crianças também, pois conseguem escapar no barco que<br />
Carmelita possuía e, em segurança os órfãos e Olaf caem no mar. Os meninos tentam<br />
levar a juíza Strauss com eles, mas ela se recusa a ir e não sabemos sobre o seu<br />
paradeiro, nem o que aconteceu com ela. Em segurança (será mesmo? Ao lado de Olaf<br />
as crianças não têm de fato como estar em segurança) os Baudelaire seguem com Olaf<br />
em direção ao horizonte.<br />
2.13. O fim<br />
Os órfãos conseguiram escapar ilesos e em segurança (apesar de estarem na<br />
companhia de Olaf) do incêndio do Hotel Desenlace em um barco. No entanto, eles<br />
ficaram à deriva perdidos em alto mar.<br />
Se já não bastassem todas as aventuras desafortunadas das crianças, eles acabam<br />
sendo atingidos por uma tempestade que os arrasta até uma praia. Lá eles reparam que o<br />
local trata-se de uma ilha habitada por ovelhas e pessoas com hábitos e costumes<br />
bastante pitorescos, à primeira vista.<br />
As crianças, abaladas e meio inconscientes após o naufrágio, acabam sendo<br />
encontradas por uma das habitantes da ilha, uma criança chamada Sexta-Feira (numa<br />
nítida referência à aventuras do náufrago Robinson Cruzoé 5 , que encontra uma<br />
personagem de mesmo nome, escritas por Daniel Defoe). Os órfãos acabam se<br />
aproximando dela e a menina consegue perceber rapidamente a pessoa má e mesquinha<br />
que é Olaf e decide abandoná-lo em uma plataforma costeira que em poucos dias seria<br />
inundada.<br />
Os ilhéus decidem admitir a presença e morada das crianças na ilha deles. No<br />
entanto, ao serem aceitos, eles deveriam exercer funções que todos os demais também<br />
exerciam. Com isso, os Baudelaire não ficaram muito felizes e satisfeitos com a vida<br />
que estavam levando lá. Para surpresa de todos, agitando a vida pacata dos habitantes da<br />
ilha, uma balsa feita toda de livros atraca na ilha e dentro dela se encontrava Kit<br />
Snicket, bastante atordoada e confusa.<br />
Após ser encontrada depois do seu naufrágio, o líder dos ilhéus, Ishmael, decide<br />
que Kit não deveria ser aceita na ilha, optando por abandoná-la e também decide<br />
5 DEFOE, Daniel.<br />
37
prender o conde em uma gaiola, pois ele fingira mais uma vez ser Kit, usando um dos<br />
seus diversos disfarces ridículos. Dessa vez ele fora desmascarado antes de aprontar<br />
muitas e muitas das dele.<br />
Ishmael toma uma decisão drástica: abandonar os órfãos à própria sorte. Isso<br />
porque, como o hábito da ilha era ninguém ter direito a ter nada próprio, sendo<br />
compartilhado e entregue ao líder, os órfãos escondem seus pertences mais preciosos,<br />
violando assim, a regra primeira e básica para ser aceito como morador do local. Violet<br />
esconde sua fita que sempre usara quando precisava realizar algum invento. Klaus omite<br />
a existência do seu precioso e necessário livro de lugar-comum e Sunny não revelara<br />
possuir o seu batedor que era essencial para exercer as suas artes culinárias. Com receio<br />
de que fossem atirados para as ovelhas, os meninos optam por levá-los para o outro lado<br />
da ilha, além da escarpa.<br />
Após serem abandonados, Finn (referência à personagem Huckleberry Finn, de<br />
Mark Twain 6 ) e Erewhon (referência à obra Erewhon, de Samuel Butler 7 , cujo título<br />
significa “lugar nenhum” de trás para frente, nowhere, em inglês), dois amigos dos<br />
órfãos, procuram por eles e lhes informam que o grupo de ilhéus pretende fazer um<br />
motim para derrubar o líder Ishmael e os convida para participarem, sugerindo que<br />
consigam encontrar uma arma para a realização do motim. As crianças ficam com muito<br />
receio desse motim e, principalmente, de participar dele. Tinham medo, inclusive, de<br />
provocar uma cisão no grupo.<br />
Os Baudelaire acabam descobrindo um arvoredo em cima de uma macieira<br />
muito grande que era o local utilizado pelo líder ilhéu para prever as tempestades com<br />
um periscópio. Os meninos o observam à distância e notam que lá, Ishmael,<br />
secretamente, preparava refeições muito melhores do que as refeições diárias<br />
distribuídas aos outros moradores da ilha. Ainda desfrutava de outros prazeres irrestritos<br />
aos demais, como ler e escrever capítulos do livro Desventuras em Série, contendo<br />
relatos de todos os náufragos que chegaram à ilha, incluindo os pais dos Baudelaire.<br />
Ishmael acaba encontrando os meninos no esconderijo que eles estavam<br />
utilizando como observatório e acaba lhes revelando toda a história da ilha. Até mesmo<br />
como conseguia convencer a todos os náufragos aceitos para habitar o local, a jogar o<br />
6 TWAIN, Mark.<br />
7 BUTLER, Samuel.<br />
38
que possuíam e encontravam no arvoredo. O líder revela que utilizava o cordial de coco,<br />
uma bebida nativa que, de certa forma, drogava as pessoas.<br />
Na manhã do dia seguinte haveria a inundação da plataforma, marcando o início<br />
do motim. No meio da confusão, Olaf é atingido e ferido com o lançador de arpão. O<br />
conde mostra e prova o quanto é maléfico até mesmo nos momentos em que sua vida<br />
corre perigo. Ao ser atingido por Ishmael com o arpão, Olaf liberta o Micélio<br />
Medusóide (o cogumelo venenoso do qual ele guardara uma amostra durante a<br />
passagem de A Gruta Gorgônea), que ele mantinha escondido em um capacete.<br />
A destruição fora lançada, pois todos na ilha acabam sendo infectados, mas as<br />
crianças, após lerem Desventuras em Série, acabam descobrindo que as maçãs da ilha<br />
tem uma substância especial que deixa o efeito do veneno do cogumelo mais ralo, a<br />
raiz-forte. Os meninos parecem ter descoberto a solução para o problema,<br />
principalmente porque vão contar com uma ajuda muito especial: a Víbora<br />
Incrivelmente Mortífera. Ela chegara à ilha juntamente com Kit Snicket no barco todo<br />
feito de livros. A víbora ajuda às crianças a pegarem os frutos da macieira para<br />
neutralizar a atuação do veneno do cogumelo. Uma referência bíblica é feita então de<br />
modo a subverter o referencial simbólico deste ato: a cobra oferecendo maçãs como<br />
forma de salvação.<br />
Mas todo o esforço dos meninos parece estar sendo em vão, pois quando<br />
oferecem os frutos aos ilhéus, eles preferem não dar ouvidos às crianças e partem do<br />
local. Parece cruel o fato de os leitores sentirem alívio ao que acontece a seguir, mas<br />
finalmente o Conde Olaf fora neutralizado, devido às complicações nos ferimentos<br />
provocados pelo arpão. Mas, como se não bastassem todas as perdas dos meninos desde<br />
o começo de todas as suas desventuras, é a vez deles perderem Kit Snicket, que desde<br />
que fora abandonada por Ishmael, estando grávida acabara perdendo a vida após o<br />
parto.<br />
Sabendo bem como é a sensação de se tornar órfãos, os meninos assumem a<br />
responsabilidade de cuidar da filha de Kit que se parecia muito com a falecida mãe. Eles<br />
continuaram vivendo na ilha, somente os quatro, mas após um ano, no momento em que<br />
a plataforma inundara novamente, eles decidem partir no barco Beatrice que fora<br />
batizado há muitos anos em homenagem à mãe dos Baudelaire.<br />
Após 13 livros vivendo em situações limite, com perseguições implacáveis e<br />
cruéis feitas pelo Conde Olaf, tendo perdido muitas pessoas queridas e, muitas vezes,<br />
mesmo tão jovens, precisaram cuidar uns dos outros para viverem juntos, unidos e com<br />
39
certa paz em meio a turbilhões de acontecimentos. Algo novo acontecera na vida deles,<br />
pois terão que cuidar e se responsabilizar por mais uma criança inocente que tivera<br />
tirada de sua vida seu bem mais preciso: a família. E família é agora mais do que nunca<br />
o que eles quatro juntos formam.<br />
No entanto, como a própria ilustração final do livro (uma interrogação) o leitor<br />
fecha o último volume da série com uma interrogação na cabeça. Já que nada é muito<br />
esclarecido, muitas dúvidas ainda existem.<br />
Figura 4 - Ilustração de Brett Helquist ao final do último livro<br />
40
3. CARACTERÍSTICAS DA NARRATIVA<br />
A narrativa da série foi elaborada numa perspectiva seriada que condiz em muito<br />
com a linguagem cinematográfica e inclusive com a televisiva. Há uma relação entre<br />
esta elaboração e a aparente hegemonia da uma sequência de situações inusitadas.<br />
Wolfgang Iser classifica a obra literária como “uma produção esquemática, que esboça<br />
o seu objeto” (ISER, 2001: 103).<br />
Há momentos na série em que Lemony Snicket dá pistas de que tudo se passa de<br />
ficção. O que não é ficção? Tudo que é escrito, será que é verdade? Qual a fronteira<br />
entre a ficção e a não-ficção? A estrutura? Não se consegue chegar a uma conclusão<br />
sobre esta fronteira. Dentro do campo da análise do discurso, o que determina uma<br />
verdade são as condições históricas, uma vez que todo discurso está condicionado a<br />
elas. Na ficção se cria uma história que duplica essa realidade.<br />
Uma das diferenças entre o texto ficcional e outros textos reside no fato de, no primeiro, as<br />
orações projetarem contextos objectuais e, através destes, seres e mundos puramente<br />
intencionais, que não se referem, a não ser de modo indireto, a seres também intencionais, ou<br />
seja, a objetos determinados que independem do texto. Na obra de ficção, o raio da intenção<br />
detém-se nestes seres puramente intencionais, somente se referindo de um modo indireto – e<br />
isso nem em todos os casos – a qualquer tipo de realidade extraliterária. Já nas orações de<br />
outros escritos, por exemplo, de um historiador, químico, repórter etc., as objectualidades<br />
puramente intencionais não costumam ter por si só nenhum (ou pouco) “peso” ou “densidade”,<br />
uma vez que, na sua abstração ou esquematização maior ou menor, não tendem a conter em<br />
geral esquemas especialmente preparados de aspectos que solicitam o preenchimento<br />
concretizador (CANDIDO, 1976: 17)<br />
A obra de Snicket é totalmente intencional. Não se pode chamar de previsível<br />
porque, ao se problematizar aquela estrutura realista, materialista, linear, previsível e<br />
sequencial, se problematizou o tempo, o espaço, a relação da personagem nesse espaço<br />
e nesse tempo. Existe o absurdo, como nos textos que são chamados de teatro do<br />
absurdo, non-sense, literatura do absurdo ou literatura fantástica, Snicket reúne tudo<br />
isso. Segue abaixo as opiniões de D’Onofrio e Rosenfeld a respeito:<br />
Se faltar a verossimilhança interna, dizemos que a obra é incoerente ou aloucada,<br />
aproximando-se do não-sentido; se faltar a verossimilhança externa, entramos no domínio do<br />
gênero fantástico, definido por Todorov como uma hesitação entre o estranho e o<br />
maravilhoso, entre uma explicação natural e uma explicação sobrenatural dos acontecimentos<br />
evocados. (D’ONOFRIO, 1999: 20)<br />
41
O termo “verdade”, quando usado com referência a obras de arte ou de ficção, tem significado<br />
diverso. Designa com frequência qualquer coisa como a genuinidade, sinceridade ou<br />
autenticidade (termos que em geral visam à atitude subjetiva do autor); ou a verossimilhança,<br />
isto é, na expressão de Aristóteles, não a adequação àquilo que aconteceu, mas àquilo que<br />
poderia ter acontecido; ou a coerência interna no que tange ao mundo imaginário das<br />
personagens e situações miméticas; ou mesmo a visão profunda – de ordem filosófica,<br />
psicológica ou sociológica – da realidade. (...) Quando chamamos “falsos” um romance trivial<br />
ou uma fita medíocre, fazemo-lo, por exemplo, porque percebemos que neles se aplicam<br />
padrões do conto de carochinha a situações que pretendem representar a realidade cotidiana.<br />
Os mesmos padrões que funcionam muito bem no mundo mágico-demoníaco do conto de fadas<br />
revelam-se falsos e caricatos quando aplicados à representação do universo profano da nossa<br />
sociedade atual (a não ser que esta própria aplicação se torne temática). “Falso” seria também<br />
um prédio com portal e átrio de mármore que encobrissem apartamentos miseráveis. É esta<br />
incoerência é que é “falsa”. Mas ninguém pensaria em chamar de falso um autêntico conto de<br />
fadas, apesar de o seu mundo imaginário corresponder muito menos à realidade empírica do<br />
que o de qualquer romance de entretenimento. (ROSENFELD, 1976: 18-19)<br />
Há um maravilhoso típico dos contos de fada, que, entretanto, parece que não é o<br />
maravilhoso da “fada boa” e da “fada má”, mas sim o fato de as crianças Baudelaire<br />
lidarem muito bem com as iminências. Tudo é muito iminente: o medo, a destituição do<br />
lar e a insistência de Olaf em roubar e fazer mal às crianças, então há sempre uma<br />
iminência de alguma coisa que está pra acontecer. E até mesmo a iminência de um<br />
desfecho que, iminentemente, não ocorre. Há uma atmosfera de permanente corda-<br />
bamba, instabilidade o tempo todo. Nada é estável, as crianças têm uma situação<br />
insegura. Sempre tem algo para acontecer, mas as coisas não acontecem por inteiro, os<br />
desfechos não satisfazem. Seu caráter antirrealista nega um desfecho “enclausurado”.<br />
Sobre a influência da elaboração dos tempos verbais, Candido diz:<br />
O pretérito, apesar de em certos casos ter o cunho fictício do “era uma vez”, tem em geral mais<br />
força “realizadora” e “individualizadora” do que a voz do presente (“O elefante pesa no<br />
mínimo uma tonelada” pode ser o enunciado de um zoólogo sobre os elefantes em geral; mas<br />
“o elefante pesava no mínimo uma tonelada” refere-se a um elefante individual, existente em<br />
determinado momento). (CANDIDO, 1976: 16)<br />
“O elefante pesava” faz o leitor ver o sujeito. Essa função do narrador tem um<br />
peso de rememoração, i.e., só se rememora aquilo que já foi vivenciado. Essa é a<br />
relação mais comum com o rememorar. O narrador tem essa função. Ou seja, a narrativa<br />
é rememorativa, é remissiva.<br />
[O escritor] veicula a sua visão por meio de uma estória vivida por certas pessoas num<br />
determinado lugar. (...) A experiência da vida, própria do artista, e que lhe veio tanto da própria<br />
existência vivida quanto da experiência intelectual, que é vivida, vista ou imaginada,<br />
42
adquirindo um significado especial, é recebida pelo leitor, que dela se enriquece. (...) A<br />
narrativa implica uma técnica de arranjo e apresentação, que lhe comunica estrutura<br />
arquitetônica, beleza de forma e unidade de efeito. Estas são as fontes de interesse entre a<br />
personalidade do autor e a personalidade do leitor, nesta criando um interesse absorvente, uma<br />
sintonia psíquica. (COUTINHO, 2008: 50-51)<br />
Já o teatro, presentifica. Não como a literatura. Presentifica trazendo pra frente<br />
da cena uma situação, por meio também dos verbos e das orações, da estrutura textual.<br />
O discurso do teatro acaba sendo presentificante e põe o leitor dentro da situação. “Os<br />
Baudelaire eram crianças adoráveis”, por exemplo, é uma construção que “fertiliza” a<br />
imaginação do leitor mais do que se o verbo estivesse no tempo presente do indicativo.<br />
Snicket utiliza em seu discurso, na elaboração da narrativa, a ironia, a mudança<br />
de sentido das palavras, a criação de novas palavras, uma personagem que não sabe<br />
falar ainda, mas que entende sinestesias (Sunny troca o olfato pelo paladar em uma<br />
situação). Isso dá um caráter diferente à sua obra, devido à contradição da expectativa<br />
que o autor cria para o leitor.<br />
Mesmo em termos de estrutura o autor mostra sua intenção de fazer alguma<br />
diferença no mercado editorial. A repetição da palavra “nunca” é uma estrutura<br />
escolhida como menção à liberdade da poesia concreta de ocupação do espaço. Em vez<br />
de escrever um parágrafo inteiro para dizer aos leitores infantis os motivos pelos quais<br />
não se deve mexer em eletricidade, ele enfatiza com a repetição do “nunca” que isso não<br />
deve ser feito sob qualquer hipótese, mesmo sem dar explicação para tais motivos.<br />
Quando ele faz uso de tais artifícios (ver Anexos), ele está dizendo algo de uma maneira<br />
incomum. Analiticamente isso pode ter uma projeção na mente da criança, por efeito da<br />
estrutura em que esta advertência foi transmitida. É como a variação da entonação na<br />
oralidade ou da expressão facial grave. Desta forma é possível manipular o leitor.<br />
Candido e Benjamin falam a respeito:<br />
A arte, e, portanto, a literatura, é uma transposição do real para o ilusório por meio de uma<br />
estilização formal, que propõe um tipo arbitrário de ordem para as coisas, os seres, os<br />
sentimentos. Nela se combinam um elemento de vinculação à realidade natural ou social, e um<br />
elemento de manipulação técnica, indispensável à sua configuração, e implicando uma atitude<br />
de gratuidade. Gratuidade tanto do criador, no momento de sentir e apreciar. Isto ocorre em<br />
qualquer tipo de arte, primitiva ou civilizada. (CANDIDO, 1985: 53).<br />
A narrativa, que durante tanto tempo floresceu num meio de artesão – no campo, no mar e na<br />
cidade –, é ela própria, num certo sentido, uma forma artesanal de comunicação. Ela não está<br />
interessada em transmitir o “puro em si” da coisa narrada como uma informação ou um<br />
relatório. Ela mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retirá-la dele. Assim se<br />
43
imprime na narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso.<br />
(BENJAMIN, 1994a: 205)<br />
A narrativa é a essência da ficção. Nem toda estória pode ser considerada obra<br />
de arte. “Para que tenha valor artístico, a ficção exige uma técnica de arranjo e<br />
apresentação, que comunicará à narrativa beleza de forma, estrutura e unidade de efeito”<br />
(COUTINHO, 2008: 49). Sobre o caráter ficcional e falso, encontramos na obra de<br />
Snicket o seguinte comentário:<br />
"Ersatz" é uma palavra que descreve uma situação em que uma coisa está fingindo que é outra,<br />
do mesmo modo como a passagem secreta para a qual os Baudelaire estavam olhando fingia<br />
ser um elevador (SNICKET, Vol. 6: 116)<br />
Em relação ao caráter repetitivo da obra, fato que foi inclusive satirizado pela<br />
edição norte-americana da Revista Mad (ver Anexos). Pode-se dizer que o excesso de<br />
repetições em uma obra evidencia seu tédio. No caso de Snicket, até o tédio é<br />
intencional. Todorov explica:<br />
Em toda obra, existe uma tendência à repetição, que concerne à ação, aos personagens ou<br />
mesmo a detalhes da descrição. (...) Uma outra forma de repetição é a gradação. Quando uma<br />
relação entre os personagens permanece idêntica durante muitas páginas, um perigo de<br />
monotonia espreita suas cartas. (TODOROV,2008: 223).<br />
Contudo, o mais importante em toda obra literária talvez seja a questão do<br />
suspense. O autor tem que dispor o seu material de maneira que desperte e mantenha o<br />
interesse do leitor. O suspense, no caso, é o estado emocional criado no leitor pela<br />
incerteza do que vai acontecer depois, e de como será o desenlace da estória. O<br />
suspense também influi na natureza dos personagens, uma vez que seu caráter e suas<br />
transformações (ou ausência delas) são os derivadores dos acontecimentos.<br />
3.1 – A construção das personagens<br />
As personagens das Desventuras em Série são lineares e construídas com<br />
características estereotipadas. Para entendermos os Baudelaire basta pensarmos em uma<br />
criança que gosta de determinada atividade ou brinquedo para entendermos isso. Essa<br />
criança passa a criar uma rotina repetitiva e quase obcecada a respeito daquilo que<br />
gosta. Se gosta de videogame, vai praticamente ignorar todas as outras atividades que<br />
não sejam relacionadas àquilo, e o mesmo acontece com as personagens do livro. Elas<br />
são “limitadas” por suas aptidões lúdicas ou intelectuais. Violet é uma inventora, e em<br />
certos momentos chega a ser caricato o comportamento dela por estar pensando em<br />
44
inventos full-time. Da mesma forma age Klaus, em relação à leitura, e Sunny, que por<br />
ser ainda um bebê só pensa em morder tudo que encontra pela frente.<br />
Dispondo dos artifícios técnicos para a caracterização, o ficcionista integrará e dará corpo a<br />
seus personagens utilizando-se de vários outros processos, seja de descrição, seja de captação<br />
de comportamento e ações: descrições físicas, reprodução de gostos, hábitos, maneira,<br />
cacoetes, fala, atitudes, comportamento com os semelhantes, descrições de ambientes,<br />
recordações do passado, apelidos e nomes, monólogo interior etc. (COUTINHO, 2008: 56)<br />
Para Afrânio Coutinho, “Há três espécies de personagens quanto ao volume ou<br />
conjunto de qualidade que os caracteriza: o personagem individual, o típico e a<br />
caricatura” (COUTINHO, p. 53). O caricatural seria marcado pelo desenvolvimento<br />
exagerado ou pela ênfase dada a uma qualidade ou alguns traços. Esta característica<br />
inclui as personagens de Snicket na categoria de personagens caricatas, ou planas, cuja<br />
definição é explicada por Forster:<br />
As personagens planas eram chamadas temperamentos (humours) no século XVII, e são por<br />
vezes chamadas tipos, por vezes caricaturas. Na sua forma mais pura, são construídas em torno<br />
de uma única idéia ou qualidade. (...) A personagem realmente plana pode ser expressa numa<br />
frase. (...) Tais personagens ‘são facilmente reconhecíveis sempre que surgem. São, em<br />
seguida, facilmente lembradas pelo leitor’ (FORSTER apud CANDIDO, 1976: 62)<br />
Sunny é a única personagem que sofre mudanças ao longo da história. À medida<br />
que vai crescendo e desenvolvendo sua fala de uma maneira mais lógica e menos<br />
dadaísta (isto é, o non-sense ou a falta de sentido que pode ter a linguagem, como na<br />
fala dos bebês), a caçula dos Baudelaire descobre um talento para a culinária, que passa<br />
a ser limitador de sua personalidade. A partir do meio da série, Sunny também deixa de<br />
engatinhar a aprende a andar após escapar da prisão junto com seus irmãos (SNICKET,<br />
Vol. 7: 226).<br />
A classificação plana também vale para as personagens adultas – Olaf tem como<br />
aptidão natural a maldade e a provocação de incêndios. Sunny é a única personagem<br />
que pode ser chamada de esférica, segundo a classificação de Candido (1976).<br />
Na obra de Snicket há três estereótipos básicos de personagens:<br />
a) Crianças talentosas e milionárias que foram vítimas de injustiças;<br />
b) Vilões obstinados que querem “dominar o mundo” (pelo menos o mundo interno<br />
da história) às custas de crimes contra as crianças (e seus respectivos pais);<br />
c) Adultos que atrapalham as crianças mais do que ajudam, por acharem que suas<br />
suspeitas são delírios infantis. Estes adultos são incapazes de perceber as farsas<br />
45
de Olaf e sua quadrilha, sendo negligentes em relação à segurança das crianças e<br />
impotentes perante o medo de sofrer punições de Olaf por ajudar as crianças.<br />
Na primeira categoria não apenas os Baudelaire se enquadram, mas também os<br />
trigêmeos Quagmire. Na segunda, temos, além dos adultos, as crianças rebeldes e cruéis<br />
que se unem à insuportável Carmelita Sparks e Esmé na captura dos Baudelaire. Na<br />
terceira, temos alguns dos tutores dos Baudelaire, como o Tio Monty, e moradores dos<br />
locais onde eles são alojados, como a vizinha Juíza Strauss.<br />
Entre as poucas personagens que fogem a esta regra estão Kit Snicket, mulher<br />
esclarecida que em muito ajuda os Baudelaire ao fim da série, por saber de toda a<br />
conspiração contra eles, e Lemony Snicket, autor/narrador que investigou e publicou as<br />
desventuras enviando para o editor os textos através de bootlegs 8 (Figura 5).<br />
Figura 5 - Mensagem de Snicket, em bootleg, para o editor, ao final do livro 6<br />
8 O termo bootleg tem sua origem na famosa obra da literatura inglesa “As viagens de Gulliver”,<br />
escrita em 1726 por Jonathan Swift, na qual os contrabandistas escondiam suas mercadorias dentro<br />
de baús, balsas etc. (“boots”) para não serem presos. Por bootleg entende-se todo tipo de<br />
mercadoria ou informação que é enviado ou comercializado em segredo ou clandestinamente, ou<br />
seja, de modo ilegal.<br />
46
Para Anatol Rosenfeld, “a personagem de um romance é sempre uma<br />
configuração esquemática, tanto no sentido físico como psíquico” (ROSENFELD,<br />
1976: 33). O teórico ainda afirma que “É geralmente com o surgir de um ser humano<br />
que se declara o caráter fictício (ou não-fictício) do texto, por resultar daí a totalidade de<br />
uma situação concreta em que o acréscimo de qualquer detalhe pode revelar a<br />
elaboração imaginária” (ROSENFELD, 1976: 23). Só através disso pode existir verdade<br />
na condução das personagens e na elaboração de uma identificação honesta com o<br />
leitor, que passa a enxergar a personagem como uma pessoa de certo modo real, mas<br />
cuja realidade se encerra ao fechar o livro ou se mantém apenas na imaginação.<br />
Confirmando esta hipótese – da existência da personagem no imaginário como<br />
sendo real – Antonio Candido levanta as seguintes indagações:<br />
Não espanta, portanto, que a personagem pareça o que há de mais vivo no romance; e que a<br />
leitura deste dependa basicamente da aceitação da verdade da personagem por parte do leitor.<br />
(...) A personagem é um ser fictício, - expressão que soa como paradoxo. De fato, como pode<br />
uma ficção ser? Como pode existir o que não existe? No entanto, a criação literária repousa<br />
sobre este paradoxo, e o problema da verossimilhança no romance depende desta possibilidade<br />
de um ser fictício, isto é, algo que, sendo uma criação da fantasia, comunica a impressão da<br />
mais lídima verdade existencial. Podemos dizer, portanto, que o romance se baseia, antes de<br />
mais nada, num certo tipo de relação entre o ser vivo e o ser fictício, manifestada através da<br />
personagem, que é a concretização deste. (CANDIDO, 1976: 54-55)<br />
Candido, por outro lado, ainda defende que esta personagem, embora real na<br />
imaginação do leitor, não pode ser tão parecida e próxima de uma pessoa real, sob pena<br />
de desconstruir o caráter fictício da obra. “A personagem é um ser fictício; logo, quando<br />
se fala em cópia do real, não se deve ter em mente uma personagem que fosse igual a<br />
um ser vivo, o que seria a negação do romance”. (CANDIDO, 1976: 69)<br />
Nas Desventuras em Série as situações narradas e as características das personagens<br />
aproximam-se do non-sense, o que minimiza a possibilidade de referências naturalistas<br />
ou realistas. O que poderia ligar o leitor às personagens seria pura e simplesmente o<br />
humor – negro – que as circunda e uma “familiaridade” com seus problemas. Os<br />
Baudelaire são heróis modernos caracterizados por passividade que é natural da infância<br />
e pela incapacidade de enfrentar seus oponentes. Sua única salvação é a fuga. Os órfãos<br />
Baudelaire têm na palavra fuga a melhor definição de seu caráter.<br />
47
3.2 - O autor-narrador às vezes participativo<br />
Lemony Snicket é, sem dúvida, a personagem mais interessante da obra. A obra<br />
foi publicada sob sua autoria (pseudônimo de Daniel Handler) e Lemony é o narrador<br />
onisciente das desgraças vividas por Klaus, Violet e Sunny. Quase toda a informação<br />
que o leitor terá a respeito de Snicket é jogada às migalhas, fato que é representado pela<br />
ilustração no capítulo 6 do sexto volume (figura 6).<br />
Figura 6 – Ilustração de Brett Helquist para o capítulo 6 do Volume 6<br />
No volume 1, por exemplo, tudo o que podemos depreender a respeito de<br />
Snicket é que ele toca acordeom, que tem uma foto tremida da tal Beatrice, a quem ele<br />
dedica cada um dos livros, e que ele possui várias anotações a respeito do paradeiro dos<br />
Baudelaire. Sabemos também que a janela de seu quarto dá vista para o cemitério que<br />
fica atrás de sua casa. Lemony também faz inúmeras referências a personagens<br />
externos, em tom de confidência. Por exemplo, foi no iate de sua amiga Bela que ele<br />
escreveu boa parte do volume 2, e sua amiga Madame diLustro é, além de excelente<br />
cozinheira, uma ótima detetive. O que aponta que a vida privada de Snicket é cercada<br />
pelo universo investigativo. Até mesmo essas menções exteriores à história principal<br />
contribuem para o entendimento da diegese, bem como para a caracterização perfilática<br />
da personalidade do autor-narrador.<br />
A participação de Snicket na obra é enigmática. Ele não testemunhou os fatos<br />
ocorridos com os Baudelaire, mas visitou todos os lugares por onde eles passaram para<br />
entrevistar pessoas e coletar evidências dos fatos ocorridos. Ele se comporta ora como<br />
um jornalista, ora como um químico forense, na elucidação dos fatos. Mas mesmo ele é<br />
incapaz de saber sobre todos os acontecimentos. O que ele descobriu é passado ao<br />
leitor, que terá ao fim da obra as mesmas dúvidas a respeito das coisas que Snicket não<br />
descobriu e a respeito das coisas que o autor não quer comentar, como por exemplo, sua<br />
relação com Beatrice; quem eram os pais dos Baudelaire e se eles de fato morreram ou<br />
48
se fugiram e estão escondidos, qual é o seu parentesco com algumas das personagens; e<br />
qual foi o seu papel nisso tudo além da narração. “Outro problema importante, e<br />
relacionado com o ponto de vista, é o da posição do narrador em relação à estória. Ele<br />
pode isolar-se dela ou intrometer-se no relato como um intérprete ou comentador.”<br />
(COUTINHO, 2008: 68)<br />
Com respeito à onisciência de Snicket a respeito dos Baudelaire, o narrador/<br />
investigador demonstra possuir uma visão pseudo-totalizadora. Totalizadora porque ele<br />
sabe exatamente tudo a respeito das personagens – tudo que é necessário saber para<br />
contar sua história. E pseudo porque ele ignora ou finge desconhecer os mistérios não-<br />
resolvidos pelos Baudelaire – e por ele mesmo. Chega a ser intrigante esta característica<br />
ambígua do conhecimento do autor em relação ao que por ele é contado.<br />
Fundamental na narrativa é o problema do ponto de vista, isto é, a posição da qual o autor<br />
conta a estória. O bom êxito da narrativa depende, em grande parte, da solução adequada do<br />
problema. Quem contará a estória? São os diversos ângulos de visão em que se pode situar o<br />
narrador. É clara a relevância do assunto, porque um episódio pode ser diferentemente visto,<br />
julgado e testemunhado consoante o posto d observação em que se coloca a pessoa que narra. E<br />
o relato de um mesmo fato pode variar se diferentes são os narradores, conforme ensina a<br />
psicologia do testemunho (COUTINHO,2008: 65)<br />
Algumas perguntas são respondidas (e a maioria não) de forma póstuma nos<br />
livros publicados após o volume 13: Lemony Snicket – Autobiografia Não-autorizada,<br />
The Beatrice Letters e The Blank Book. Até a data de conclusão desta pesquisa os dois<br />
últimos livros ainda não haviam sido publicados no Brasil. Um livro foi publicado em<br />
2009, sob o título Raiz-Forte: Verdades Amargas Que Você Não Pode Evitar, contendo<br />
citações tiradas dos treze volumes que compõem a odisseia dos Baudelaire, como por<br />
exemplo, “O destino é como um estranho e impopular restaurante, cheio de garçons<br />
esquisitos trazendo coisas que você nunca pediu e de que nem sempre gosta”<br />
(SNICKET, 2009: 143). Esta publicação reforça a ideia de humor negro existente no<br />
texto – e na persona sombria – de Snicket.<br />
Por mais familiar que seja seu nome, o narrador não está de fato presente entre nós, em<br />
sua atualidade viva. Ele é algo de distante, e que se distancia ainda mais.<br />
(...) A experiência de pessoa a pessoa é a fonte a que recorreram todos os narradores. E,<br />
entre as narrativas escritas, as melhores são as que menos se distinguem das histórias<br />
orais contadas pelos inúmeros narradores anônimos. (BENJAMIN, 1994a: 197-198)<br />
(...) O narrador retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a<br />
relatada pelos outros. E incorpora as coisas narradas à experiência dos seus ouvintes.<br />
(BENJAMIN, 1994a: 201)<br />
49
Segundo a classificação de tipos de narrador de Todorov (TODOROV, 2008:<br />
246), Snicket se inclui na categoria “narrador > personagem”, isto é, um narrador que<br />
possui a visão “por trás”. Neste caso o narrador sabe mais que seu personagem. Sua<br />
superioridade pode se manifestar seja em um conhecimento dos desejos secretos de<br />
alguém, seja nos pensamentos simultâneos dos pensamentos de muitos personagens.<br />
Por alguns instantes ninguém disse nada, e os meninos ficaram imaginando o que o Sr. Poe<br />
poderia estar fazendo na Praia de Sal quando deveria estar no banco, no centro da cidade, onde<br />
trabalhava. Não estava com roupas de ir à praia. (SNICKET, Vol. 1: 15)<br />
Sobre a relação do leitor com o narrador de um livro, Benjamin diz:<br />
Quem escuta uma história está em companhia do narrador; mesmo quem a lê partilha dessa<br />
companhia. Mas o leitor de um romance é solitário. Mais solitário que qualquer outro leitor<br />
(pois mesmo quem lê um poema está disposto a declamá-lo em voz alta para um ouvinte<br />
ocasional). Nessa solidão, o leitor do romance se apodera ciosamente da matéria de sua leitura.<br />
Quer transformá-la em coisa sua, devorá-la, de certo modo. Sim, ele destrói, devora a<br />
substância lida, como o fogo devora lenha na lareira. A tensão que atravessa o romance se<br />
assemelha muito à corrente de ar que alimenta e reanima a chama. (BENJAMIN, 1994a: 213)<br />
3.3 – Enredo, conflito e ação dramática<br />
Há que considerar dois tipos de enredo: o orgânico e o episódico. Este é<br />
resultante de certo número de episódios ou partes, mais ou menos completas e<br />
independentes entre si, que poderiam ser extraídas do conjunto. Já no orgânico, a<br />
sucessão de acontecimentos se inter-relacionam, de modo a não poderem ser retirados<br />
do conjunto sem prejuízo da unidade e da lógica. É o caso das Desventuras em Série.<br />
Apesar de estar dividida em treze volumes, cada livro depende do outro para possibilitar<br />
a compreensão dos fatos narrados. O orgânico constitui, de fato, um quebra-cabeça, no<br />
qual o leitor monta as peças com o que vai recebendo a cada volume.<br />
O enredo clássico típico é elaborado conforme o seguinte esquema estrutural:<br />
apresentação ou exposição (em que o autor explica as circunstâncias da estória,<br />
estabelece a diegese ou define as personagens); involução ou complicação (onde<br />
começam os conflitos); clímax (ponto alto da complicação, o ápice da estória); solução,<br />
conclusão ou desenlace (leva a estória ao final e esclarece). Geralmente, os elementos<br />
citados se apresentam nesta sequência, mas nem sempre é assim, uma vez que o próprio<br />
Snicket tende a desobedecer a ordem em alguns casos. O volume 9, por exemplo, não<br />
50
possui desenlace, terminando no auge do clímax, e o último volume não esclarece os<br />
fatos em seu pseudo-desenlace.<br />
Uma das características da série Desventuras em Série é o fato de ela ter sido<br />
elaborada numa lógica estrutural próxima do cinema e dos seriados de TV. A própria<br />
divisão da história em volumes, o revezamento clímax versus anticlímax e a falsa<br />
promessa de um desfecho remetem o leitor aos esquemas cinematográficos. É por isso<br />
que fundamenta-se a seguir as caracterizações de conflito e ação dramática embasadas<br />
nas teorias de roteirização para cinema.<br />
O conflito é a força motriz que impulsiona a personagem para a ação. Para Doc<br />
Comparato (2000), conflito consiste no embate entre forças e personagens através do<br />
qual a ação se organiza e se vai desenvolvendo até o final.<br />
O homem é um ser dialético – desenvolve-se a partir de antagonismos e contradições. (...)<br />
Portanto, o conflito é consubstancial ao indivíduo. (...) O homem encontra-se sempre entre<br />
uma coisa e outra e tem de optar e encontrar soluções para os conflitos, a fim de resolver<br />
suas contradições.” (COMPARATO, 2000: 95)<br />
Comparato ainda classifica três tipos de conflitos na personagem:<br />
a) Conflito com uma força humana, com outro homem ou grupo de homens;<br />
b) Conflito com forças não-humanas, a natureza ou outros obstáculos;<br />
c) Conflito consigo mesma, com uma força interna.<br />
Esses tipos de conflito nem sempre se isolam, por aparecerem misturas e<br />
combinações desses três conflitos numa mesma obra. Um conflito pode conter todos os<br />
conflitos. “No entanto, temos um único conflito-matriz; e apenas um deles pode sê-lo”<br />
(COMPARATTO, 2000: 97).<br />
Isso pode ser demonstrado na obra de Snicket. Os órfãos Baudelaire possuem um<br />
conflito do primeiro tipo supracitado, isto é, contra um homem (o Conde Olaf) ou um<br />
grupo de homens (os comparsas de Olaf e mesmo os adultos “inocentes” que se<br />
recusam a acreditar nas crianças, ou a população da Cidade Sinistra dos Corvos sob<br />
efeito da “psicologia das turbas”, que consiste em manipular a opinião pública e incitar<br />
a turba a agir). Este primeiro tipo de conflito é o conflito-matriz da história, contudo, os<br />
outros tipos de conflito se associam a ele, mesmo que de forma despercebida ou isolada.<br />
Por exemplo, quando os órfãos estão nas correntezas do Arroio Enamorado ou na<br />
prisão, eles enfrentam forças da natureza ou obstáculos, e quando incendeiam o Hotel<br />
Desenlace estão em conflito consigo próprios, indo contra seus próprios princípios.<br />
51
Para a teoria literária, o conflito da personagem se integra, de alguma forma, aos<br />
conflitos do leitor. O teórico Anatol Rosenfeld diz que:<br />
A obra-de-arte literária é o lugar em que nos defrontamos com seres humanos de contornos<br />
definidos e definitivos, em ampla medida transparentes, vivendo situações exemplares de um<br />
modo exemplar (exemplar também no sentido negativo). Como seres humanos encontram-se<br />
integrados num denso tecido de valores de ordem cognoscitiva, religiosa, moral, político-<br />
social e tomam determinadas atitudes em face desses valores. Muitas vezes debatem-se com a<br />
necessidade de decidir-se em face da colisão de valores, passam por terríveis conflitos e<br />
enfrentam situações-limite em que se revelam aspectos trágicos, sublimes, demoníacos,<br />
grotescos ou luminosos. Estes aspectos profundos, muitas vezes de ordem metafísica,<br />
incomunicáveis em toda a sua plenitude através do conceito, revelam-se, como num momento<br />
de iluminação, na plena concreção do ser humano individual. São momentos supremos, à sua<br />
maneira perfeitos, que a vida empírica, no seu fluir cinzento e cotidiano, geralmente não<br />
apresenta de um modo tão nítido e coerente, nem de forma tão transparente e seletiva que<br />
possamos perceber as motivações mais íntimas, os conflitos e crises mais recônditos na sua<br />
concatenação e no seu desenvolvimento. O próprio cotidiano, quando se torna tema da ficção,<br />
adquire outra relevância e condensa-se na situação-limite do tédio, da angústia e da náusea.<br />
(...) Todavia, o que mais importa é que não só contemplamos estes destinos e conflitos à<br />
distância. Graças à seleção dos aspectos esquemáticos preparados e ao ‘potencial’ das zonas<br />
indeterminadas, as personagens atingem a uma validade universal que em nada diminui a sua<br />
concreção individual; e mercê desse fato liga-se, na experiência estética, à contemplação, a<br />
intensa participação emocional. Assim, o leitor contempla e ao mesmo tempo vive as<br />
possibilidades humanas que a sua vida pessoal dificilmente lhe permite viver e contemplar,<br />
visto o desenvolvimento individual se caracterizar pela crescente redução de possibilidades.<br />
De resto, quem realmente vivesse esses momentos extremos, não poderia contemplá-los por<br />
estar demasiado envolvido neles. E se os contemplasse à distância (no círculo dos conhecidos)<br />
ou através da conceituação abstrata de uma obra filosófica, não os viveria. É precisamente a<br />
ficção que possibilita viver e contemplar tais possibilidades, graças ao modo de ser irreal de<br />
suas camadas profundas, graças aos quase-juízos que fingem referir-se a realidades sem<br />
realmente se referirem a seres reais; e graças ao modo de aparecer concreto e quase-sensível<br />
deste mundo imaginário nas camadas exteriores. (...) É importante observar que não poderá<br />
apreender esteticamente a totalidade e plenitude de uma obra de arte ficcional, quem não for<br />
capaz de sentir vivamente todas as nuanças dos valores não-estéticos – religiosos, morais,<br />
político-sociais, vitais, hedonísticos etc. – que sempre estão em jogo onde se defrontam seres<br />
humanos. (ROSENFELD, 1976: 45-46)<br />
Esta integração dos conflitos do leitor aos da personagem, portanto, é<br />
responsável pelo acompanhamento da história, isto é, faz com que o leitor continue sua<br />
leitura em vez de fechar o livro e pegar outro, contrariando inclusive os conselhos do<br />
próprio Lemony Snicket, em sua psicologia reversa de marketing editorial. O conflito<br />
52
em si talvez seja mais importante para uma leitura fluente do que a construção da<br />
personagem. Mesmo personagens sem qualquer carisma são atratoras de atenção do<br />
leitor quando seus conflitos são convincentes.<br />
Já em relação à ação dramática, é um termo mais adequadamente aplicável ao<br />
gênero dramático e ao cinema. Contudo, a elaboração desta série possui um caráter<br />
linear que induz a um roteiro cinematográfico, seja em termos de ritmo (revezamento<br />
clímax/anticlímax) ou na própria divisão em volumes e capítulos, que a caracteriza<br />
como obra seriada.<br />
3.4 - Diegese, ambientação e tempo dramático<br />
A diegese é a realidade própria da narrativa e diz respeito à sua dimensão<br />
ficcional. É o que justifica a existência da verossimilhança interna de uma obra. Por<br />
exemplo, se no livro Harry Potter e a Pedra Filosofal 9 a magia existe e as pessoas<br />
podem voar em vassouras, isto se torna válido por causa de uma diegese que regula o<br />
“funcionamento” da “realidade” interna e ficcional da obra, mesmo que essas regras<br />
sejam completamente opostas às da vida real. Para Coutinho, “a influência do ambiente<br />
sobre a história é inegável. O personagem surge do meio, do qual adquire as motivações<br />
de sua existência” (COUTINHO, 2008: 60)<br />
Por meio da linguagem, somos capazes de construir um modelo de mundo em que inserimos<br />
imagens mentais de tudo o que conhecemos. E mais: inserimos imagens de coisas que nunca<br />
existiram ou já deixaram de existir no real. Ou seja, criamos coisas mentalmente. Nisso<br />
consiste a memória, a imaginação, o raciocínio abstrato, a criação artística... (BIZZOCCHI,<br />
2006)<br />
Ninguém pode criar a partir do nada: as estruturas linguísticas, sociais e ideológicas fornecem<br />
ao artista material sobre o qual ele constrói o seu mundo de imaginação. A teoria clássica da<br />
arte como mímese da vida é sempre válida, quer se conceba a arte como imitação do mundo<br />
real, quer como imitação de um mundo ideal ou imaginário. (D’ONOFRIO, 1999: 19-20)<br />
No conto maravilhoso, é tácita a concordância do leitor com as situações<br />
fantásticas. O leitor aceita que há uma carruagem feita de abóbora que depois vai virar<br />
abóbora de novo. O leitor não questiona isso. Tal é o grau de envolvimento que ele tem<br />
a partir do texto anterior, daquilo que foi engendrado naquele tecido textual. Ninguém<br />
9 ROWLING, J. K.<br />
53
questiona que uma varinha mágica bateu na abóbora. Há um objeto do mundo factual<br />
que é transportado para o mundo ficcional e detém um poder.<br />
No panorama teórico do formalismo e do futurismo russo, Chklovski definiu a especificidade<br />
da obra de arte em geral e da literatura em particular como um modo “difícil” de organizar a<br />
realidade, que deve levar o receptor a estranhá-la e obrigá-lo a uma reflexão para identificá-la,<br />
ou seja, é necessário “re-conhecer” a realidade, conhecê-la outra vez. (FERRARA, 2007: 32)<br />
As desventuras dos Baudelaire são narradas de modo a não identificar<br />
precisamente quando e onde elas acontecem. Ambientada em local e época não<br />
facilmente identificáveis, a série conquista um universo autônomo com distintas<br />
referências. Um pouco de byronismo em um detalhe, um pouco de expressionismo<br />
alemão e dadaísmo em outro, e assim a diegese é controlada por inúmeros dialogismos<br />
com o cinema, a moda, as artes visuais, o circo, o teatro, a filosofia, a psicologia e –<br />
obviamente – a própria literatura, em um passeio por entre diferentes estilos. Quando se<br />
fala no tom cinzento das roupas e paisagens, nas peças enferrujadas, no mofo, nos<br />
cantos sujos e úmidos, podemos pensar que se passa em fins do século XIX, no auge do<br />
romantismo mórbido, no universo doentio de um Augusto dos Anjos.<br />
Entretanto, o autor quebra esta noção de temporalidade – deixando-nos perdidos<br />
no tempo – ao inserir um automóvel, um aparelho de fax, um cartão de crédito ou um<br />
submarino no meio da narrativa, puxando-nos de volta para o fim do século XX. Tudo o<br />
que temos sobre a época e o local são pequenas pistas “cuspidas” propositalmente entre<br />
um trocadilho e outro. Às vezes, a ideia é explorada de forma alegórica.<br />
De acordo com a ênfase posta nesse ou naquele fator, a ficção torna-se pictórica ou de cor<br />
local, ou regional; e de atmosfera. No primeiro caso, predominam os elementos físicos<br />
(ambiente geográfico, vestes, costumes, língua etc.); no segundo, um estado emocional e<br />
intelectual, que cria um halo indefinível em torno dos personagens e acontecimentos.<br />
(COUTINHO, 2008: 61)<br />
Disfarçadamente, surgem pistas de que Lemony Snicket escreveu a série muitos<br />
anos depois dos fatos terem acontecido, o que gera a suposição de que foi escrita<br />
inclusive após a morte de Violet, Klaus e Sunny, uma vez que os comentários a seu<br />
respeito são feitos no pretérito imperfeito (“Os Baudelaire eram crianças adoráveis”).<br />
Este dialogismo que harmoniza a ambientação será mais explorado no capítulo 5.<br />
Novamente retomo os fundamentos do cinema para falar sobre o tempo<br />
dramático das desventuras. “A noção de tempo dramático está presente em cada<br />
partícula, em cada fragmento da estrutura e, consequentemente, também no produto<br />
audiovisual final” (COMPARATO, 2000: 229). Há, portanto, um tempo dramático<br />
54
total e um tempo dramático parcial. O tempo dramático total é a soma de todos os<br />
tempos parciais.<br />
Embora um filme possa ter uma duração de duas horas de tempo real, quando vemos, vivemos<br />
outro tempo, que, evidentemente, não é real, mas sim mágico, de ficção, que nos faz condensar<br />
em apenas duas horas toda uma tarde, uma vida inteira ou até dois séculos. (COMPARATO,<br />
2000: 229)<br />
Podemos dizer que, na obra de Snicket, o tempo dramático total é representado<br />
pelos treze volumes, sendo iniciado no momento em que os Baudelaire estão na Praia<br />
do Sal e são avisados sobre a morte de seus pais, e sendo finalizado no desfecho do<br />
volume 13, quando os Baudelaire abandonam a ilha com o bebê órfão de Kit Snicket.<br />
Comparativamente ao cinema, a recepção de uma obra literária possui um tempo<br />
real diferente do que o cinema apresenta. Em uma sala de cinema o filme é emitido de<br />
modo uniforme e assim todos os espectadores/receptores possuem o mesmo tempo para<br />
receber a mensagem emitida, mesmo que esta recepção seja feita de modo heterogêneo<br />
– uma vez que cada receptor possui um repertório e um horizonte de expectativa<br />
individuais, o que os leva a reagir à mesma mensagem de modo diferenciado. Já na obra<br />
literária o tempo de transmissão da mensagem varia de um leitor para outro,<br />
dependendo da velocidade de leitura e da capacidade de compreensão da mensagem que<br />
cada um exerce.<br />
O tempo da leitura é um tempo irreversível que determina nossa percepção do conjunto, mas<br />
pode também tornar-se um elemento literário com a condição de que o autor o leve em conta<br />
na história. Por exemplo, no início da página, diz-se que são dez horas; e na página seguinte<br />
que são dez e cinco. Esta introdução inocente do tempo de leitura na estrutura da narrativa não<br />
é a única possível: existem outras nas quais não nos podemos deter; indiquemos apenas que se<br />
toca aqui no problema da significação estética das dimensões de uma obra. (TODOROV, 2008:<br />
246)<br />
O tempo dramático possui, portanto, uma “velocidade” constante de emissão ao<br />
ser total, e uma “velocidade” diferenciada (pelo ritmo, pela estrutura narrativa ou pelos<br />
detalhamentos) ao ser parcial. Pode-se presumir que o tempo dramático total das<br />
desventuras compreenda um período inferior a um ano na vida dos órfãos Baudelaire, já<br />
que nele é percebido o amadurecimento de Sunny, apenas Klaus “comemora” seu<br />
aniversário dentro da prisão na Cidade Sinistra dos Corvos (vol. 7) e nenhuma data<br />
comemorativa (Natal, Páscoa, passagem de ano) é mencionada.<br />
A manipulação do tempo na narrativa é outro importante problema. Seu uso requer uma grande<br />
flexibilidade e apuro. O autor deve usar uma série de artifícios e táticas de narrativa a fim de<br />
dar ao leitor a exata ideia da marcha do tempo na estória, ou para encurtá-la e acelerá-la de<br />
55
acordo com as necessidades. (...) O essencial é a impressão final de uma forma coerente<br />
interna, na marcha dos acontecimentos e nas descrições (COUTINHO, 2008: 62-63).<br />
Já o tempo dramático parcial varia tanto de um volume para outro volume, como<br />
de um capítulo para o seguinte. No volume 5 as crianças passam um longo período no<br />
internato enquanto toda a história do segundo volume se passa num período de, no<br />
máximo, dois dias. Os acontecimentos frenéticos da Sala dos Répteis se contrapõem ao<br />
longo tédio do Inferno no Colégio Interno.<br />
Outra característica marcante da narração de Snicket é o fato de ele brincar com<br />
este tempo dramático parcial, acelerando, reduzindo ou até mesmo interrompendo-o em<br />
pleno clímax, como na passagem entre os capítulos 2 e 3 da Sala dos Répteis:<br />
(...) e nesse exato momento aconteceu algo que, tenho absoluta certeza, interessará muito a<br />
vocês. Com um movimento do rabo, a cobra soltou a trava que mantinha a porta de sua gaiola<br />
fechada, deslizou para cima da mesa e, antes que o tio Monty ou qualquer dos órfãos<br />
Baudelaire pudesse dizer alguma coisa, ela abriu a boca e mordeu o queixo de Sunny. (Fim do<br />
Capítulo 2)<br />
(Capítulo 3:) Peço muitas, mas muitas, muitas desculpas, por ter deixado vocês em suspenso<br />
desse jeito, mas é que eu estava escrevendo a história dos órfãos Baudelaire quando olhei para<br />
o relógio e vi que estava atrasado para um jantar de cerimônia de uma amiga minha, madame<br />
diLustro. Madame diLustro é ótima amiga, excelente detetive, e cozinha que é uma maravilha,<br />
mas fica uma fúria se a pessoa chega cinco minutos depois da hora estabelecida no convite.<br />
Vocês me entendem, não? Não tive outro jeito senão interromper tudo. Vocês devem ter<br />
pensado, no final do capítulo anterior, que Sunny morreu e que essa foi a coisa terrível que<br />
aconteceu aos Baudelaire na casa do tio Monty, mas prometo a vocês que Sunny sobrevive a<br />
esse episódio. Quem vai morrer, infelizmente, é o tio Monty, mas não agora.<br />
Quando as presas da Víbora Incrivelmente Mortífera cerraram-se sobre o queixo de Sunny,<br />
Violet e Klaus testemunharam com horror os olhinhos de Sunny se fecharem e o rosto ficar<br />
inerte. Até que, num movimento tão súbito quanto o da cobra, Sunny sorriu luminosamente,<br />
abriu a boca e mordeu a Víbora Incrivelmente Mortífera bem no seu minúsculo focinho<br />
escamado. A cobra soltou o queixo da menina, e Violet e Klaus puderam ver que a marca<br />
deixada na pele de Sunny era quase insignificante. Os dois Baudelaire mais velhos olharam<br />
para o tio Monty, tio Monty retribuiu-lhes o olhar e caiu na gargalhada. A sonora gargalhada<br />
do tio ricocheteou nas paredes de vidro da Sala dos Répteis. (SNICKET, Vol. 2: 32-34)<br />
Analisando o ponto de vista diegético, notamos que em qualquer tipo de ficção<br />
(desenho, pintura, cinema, teatro ou na literatura) se manipula o tempo e o espaço pra se<br />
criar uma atmosfera. E os seres que habitam este espaço também são manipulados.<br />
56
Figura 7 - Ilustração de Brett Helquist no capítulo 1 do livro 3<br />
57
4. A CONTEMPORANEIDADE NO ESTILO DO AUTOR<br />
A classificação da historiografia da arte em eras, bem como a da historiografia<br />
humana universal, é fundamentada em marcos históricos. Na arte, uma simples<br />
mudança de temas ou estilos pode caracterizar essa “passagem”.<br />
A etimologia da palavra contemporâneo nos remete ao que acontece no tempo<br />
em que estamos. Contudo, atualmente, convencionou-se chamar de arte contemporânea<br />
ou pós-moderna toda a produção artística gerada a partir da década de 1960 que se<br />
diferencia dos conceitos da “prévia” modernidade por absorver características e<br />
conceitos das vanguardas sessentistas.<br />
A Arte Conceitual em si é uma vanguarda, por propor a desconstrução de<br />
valores e significados pré-estabelecidos até a primeira metade do século XX. O que<br />
seria o dialogismo senão uma releitura atualizada do antropofagismo cultural das<br />
vanguardas modernistas? Para Ítalo Calvino, na sociedade contemporânea “há uma<br />
aceitação da heterogeneidade e da relatividade cultural, com seus pluralismos,<br />
ambiguidades, localismo, simultaneidade, informalidade, subjetividade, suas verdades<br />
múltiplas”. (ANTONIO, 1998: 190)<br />
O historiador Eric Hobsbawn (1995) chama o século XX de “Era dos Extremos”.<br />
Ainda na primeira metade do século, a humanidade sofreu duas guerras mundiais e o<br />
grande holocausto. A bipolarização da Guerra Fria, a partir dos anos 1950, exigiu que<br />
cada ator internacional 10 – e cada indivíduo – adotasse uma postura, assumisse um lado<br />
e aceitasse ou recusasse uma doutrina. A enorme contestação popular – em âmbito<br />
global – fez com que a arte adotasse também sua postura perante a reflexão dos<br />
acontecimentos – mesmo que fosse uma postura supostamente neutra e cínica.<br />
Ergueram-se ditaduras, estipulou-se uma grande censura na liberdade de<br />
expressão e muitos pensadores do século XX foram marginalizados da mesma forma<br />
que os poetas da Grécia Antiga foram excluídos da cidade perfeita e justa idealizada por<br />
Platão, sob o argumento de que a poesia ficcional não teria utilidade pública. Lemony<br />
Snicket é um escritor/narrador que vive na clandestinidade, sempre fugindo e se<br />
escondendo.<br />
10 Ator internacional é toda entidade que desempenha alguma função no sistema internacional e sobre<br />
o qual produz algum efeito (GONÇALVES & SILVA, 2010: 10-11). São atores internacionais: os<br />
Estados, ONG’s, corporações transnacionais, blocos, grupos terroristas, igrejas e forças<br />
transnacionais, como as epidemias, as catástrofes e até mesmo a opinião pública.<br />
58
Jamais meu nome aparecerá em seus registros infames (BAUDELAIRE apud BENJAMIN,<br />
1994b: 12).<br />
Jair Ferreira dos Santos, por exemplo, cita como características atuais “o vazio, a<br />
ausência de valores e de sentido para a vida na pós-modernidade” (SANTOS apud<br />
COELHO, 2000: 14). Arthur D. Efland (2005) afirma que no mundo pós-moderno “há<br />
menos confiança de que o futuro há de ser, necessariamente, melhor do que o presente<br />
ou o passado” (EFLAND, 2005: 176). Para ele, a visão pós-moderna é menos otimista e<br />
menos orientadora para o futuro. Este pessimismo pós-moderno em pouco se difere do<br />
pessimismo baudelaireano do século anterior.<br />
Em meio a todo este contexto, na passagem do século XX para o século XXI, é<br />
que Daniel Handler assume o pseudônimo Lemony Snicket e passa a publicar as<br />
Desventuras em Série, uma série aparentemente destinada a ser exclusiva para o público<br />
infanto-juvenil que, talvez contrariando o horizonte de expectativas do próprio mercado<br />
editorial (incluindo talvez os editores, mas certamente os consumidores), não subestima<br />
o seu leitor, seja ele de qualquer faixa etária, e consegue abranger temas<br />
contemporâneos sem cair nos clichês da pieguice. A qualidade estética da narrativa e a<br />
forma de (nem sempre) solucionar os conflitos da estória é um dos principais sinais<br />
desta contemporaneidade. O fim satisfatório passa a ser chamado de clausura, por<br />
limitar a subjetividade do leitor ao dar um fim coerente à narrativa.<br />
A arte contemporânea, diferente do realismo, não se preocupa em dar respostas.<br />
Enquanto os realistas explicavam tudo, dando resoluções, o contemporâneo assume o<br />
curso da vida, que nem sempre se explica. Ela é retórica e provocativa. A resposta<br />
nunca é a mesma para todos os leitores, portanto, cada um que busque suas próprias<br />
explicações através da reflexão. A frustração gerada pelo desfecho do volume 13 das<br />
Desventuras é um reflexo da sociedade contemporânea: não se pode esperar tanto do<br />
que vem pela frente, pois nunca teremos resposta para tudo o que queremos saber. O<br />
acontecimento passa, mas a história não precisa ter fim – na vida e na reportagem<br />
também é assim. O grande fluxo de informações nos leva a viver um período de meias-<br />
notícias. A superficialidade torna-se comum por termos tantas informações a ponto de<br />
quase não nos aprofundarmos em nenhuma.<br />
Snicket leva a literatura infanto-juvenil ao rompimento com a tradição literária<br />
que a precede. Efland (2005) afirma que, na contemporaneidade, “as tradições do<br />
passado não são necessariamente reverenciadas como tradições consagradas, mas<br />
podem ser exploradas por meio da sátira e da paródia” (EFLAND: 2005, p. 178). É por<br />
59
isso que, em Snicket, no volume 2, Chapeuzinho Vermelho não é tida como uma pobre<br />
vítima do lobo, na concepção naïf, ou seja, inocente e pueril, que se tinha a respeito dos<br />
contos da tradição clássica, mas sim que Chapeuzinho é uma boboca.<br />
Há outra história a respeito de lobos que provavelmente devem ter contado a vocês e que<br />
também é absurda. Estou falando de Chapeuzinho Vermelho, uma garotinha bastante<br />
desagradável que, como o Menino que deu Alarme contra o Lobo, insistiu em intrometer-se<br />
no território de animais perigosos. Como vocês hão de estar lembrados, o lobo, depois de ser<br />
tratado muito rudemente por Chapeuzinho Vermelho, comeu a avó da menina e vestiu a roupa<br />
da velha como disfarce. Esse é o aspecto mais ridículo da história, porque mesmo uma garota<br />
tão boboca como Chapeuzinho Vermelho saberia na mesma hora notar a diferença entre a avó<br />
e um lobo metido numa camisola e calçado com chinelos felpudos. Quando conhecemos<br />
muito bem uma pessoa, como nossa avó ou a babá, na mesma hora sabemos dizer se elas são<br />
reais ou se são impostoras. Por isso, quando Sunny começou a gritar, Violet e Klaus<br />
perceberam de imediato que o grito era absolutamente falso. (SNICKET, Vol. 2: 136-137)<br />
Snicket também desconstrói a moral da tradição ao mesmo tempo em que<br />
desestrutura o desfecho da obra ficcional na pós-modernidade:<br />
"Desenlace” é uma palavra usada para descrever o ato de desamarrar um nó, e se refere ao<br />
deslindamento de uma história misteriosa e desconcertante, tal como a dos órfãos Baudelaire,<br />
ou de qualquer outra pessoa cuja vida esteja cheia de perguntas não respondidas. O desenlace<br />
é o momento em que todos os nós de uma história são desfeitos, e todos os fios são<br />
desemaranhados, e tudo é exposto claramente para que o mundo veja. Mas o desenlace não<br />
deve ser confundido com o fim da história. O desenlace de Branca de Neve, por exemplo,<br />
ocorre no momento em que a Srta. Branca acorda do seu sono encantado e decide deixar os<br />
anões para trás e se casar com o bonito príncipe, e a velha misteriosa que lhe deu uma maçã se<br />
revela como a pérfida rainha. Mas o final de Branca de Neve ocorre muitos anos depois,<br />
quando um acidente em um passeio a cavalo mergulha a Srta. Branca em uma febre da qual<br />
ela nunca mais se recupera. O desenlace de Cachinhos Dourados e os três ursos ocorre no<br />
momento em que os ursos voltam para casa e encontram Cachinhos Dourados tirando uma<br />
pestana em sua propriedade privada; eles ou a enxotam do local, ou a devoram, dependendo<br />
de qual versão você tem na sua biblioteca, mas o final de Cachinhos Dourados e os três ursos<br />
ocorre quando uma tropa de jovens escoteiros se esquece de apagar a fogueira do<br />
acampamento e nem mesmo os esforços de um corpo de bombeiros voluntários conseguem<br />
salvar de uma morte certa a maior parte da vida selvagem.<br />
Há algumas histórias em que o desenlace e o final ocorrem simultaneamente, como La forza<br />
del destino, em que as personagens se reconhecem e se destroem no decurso de uma única<br />
canção, mas usualmente o desenlace de uma história não é o último evento na vida dos heróis,<br />
ou o último infortúnio que recai sobre eles. Com freqüência é o evento que vem antes do<br />
último, ou do penúltimo perigo. Enquanto os órfãos Baudelaire seguiam o homem misterioso<br />
para fora do hotel e através da nuvem de vapor até a beira da lagoa refletiva, o desenlace da<br />
60
história deles se aproximava depressa, porém o final ainda aguardava pelos três, como um<br />
segredo encoberto pela névoa, ou uma ilha distante no meio de um mar encapelado cujas<br />
ondas bramiam contra as praias de uma cidade e as paredes de um hotel desconcertante.”<br />
(SNICKET, Vol. 12: 158-160)<br />
Como podemos notar, já no penúltimo livro da série, Snicket declara que o real<br />
desenlace não será dado no livro seguinte. O último grande clímax da série ocorre ao<br />
fim do livro 12, quando os Baudelaire incendeiam o Hotel Desenlace, e a série é<br />
terminada no anticlímax. Este revezamento clímax/anticlímax é mais uma característica<br />
da literatura contemporânea, pois faz uso de um recurso utilizado no cinema. Filmes<br />
geralmente terminam em anticlímax, além de serem construídos por um roteiro que<br />
reveza os “pontos de atenção” na história. Snicket pode prender a atenção do leitor e<br />
tematizá-lo a ponto de se sentir tenso com a leitura para em seguida frear qualquer<br />
catarse com uma abrupta interrupção do ritmo da narrativa.<br />
Figura 8 - Exemplo da estética narrativa de Snicket retirado do Vol. 2<br />
61
Figura 9 - Exemplo da estética narrativa de Snicket retirado do Vol. 2 (cont.)<br />
Visualmente, o texto das Desventuras em Série demonstra eventuais referências<br />
à poesia concreta dos anos 1960. A disposição dos parágrafos em algumas páginas e a<br />
própria falta de palavras em outras impactua o leitor, levando a formatação do texto a<br />
adotar uma imagem que leva ao pé da letra o que o autor está querendo expressar. Eis<br />
um exemplo de como um texto verbal pode se comportar como um texto não-verbal:<br />
Snicket, ao contar que Violet mexeu na rede elétrica para usar uma de suas invenções,<br />
diz ao leitor para nunca mexer em eletricidade, mas o faz repetindo a palavra “nunca”<br />
por uma página inteira (SNICKET: Vol. 2: 146-148). A repetição da palavra “nunca”<br />
induz a uma compreensão compulsória da advertência emitida, de modo a não permitir<br />
questionamentos a respeito de sua validade (Figuras 8 e 9).<br />
Lemony Snicket é uma personagem que extrapola os limites da ficção, saindo de<br />
sua própria história fictícia e passando a ter autoria em outras obras, que nada têm a<br />
haver com a história dos Baudelaire, como The Composer Is Dead (O compositor está<br />
morto) e The Latke Who Couldn't Stop Screaming: A Christmas Story (A panqueca que<br />
não conseguia parar de gritar: um conto de Natal). Snicket assina, inclusive, a capa do<br />
62
livro de Neil Gailman, Coraline, quando esta obra de terror juvenil foi relançada por ter<br />
ganhado uma adaptação para o cinema.<br />
Este livro conta uma história fascinante e perturbadora que quase me matou de susto. A menos<br />
que você queira se esconder debaixo de sua cama, com o dedo na boca, tremendo de medo e<br />
fazendo toda a espécie de sons estranhos, sugiro que largue o livro devagarinho e vá procurar<br />
uma diversão mais leve, algo assim como um crime sem solução, por desvendar. (SNICKET<br />
apud GAIMAN, 2003: quarta capa)<br />
A obra literária contemporânea e suas personagens, portanto, não se limitam<br />
mais apenas à existência em palavras impressas. Mesmo o escritor não é o único<br />
“dono” de sua obra, uma vez que seu conteúdo pertence a cada leitor/receptor, que<br />
absorve e transforma a informação emitida por ele e se apropria a ponto de criar além<br />
do que foi publicado. A democratização do acesso aos meios de produção permite que<br />
grande parte do público tenha condições hoje de pegar uma câmera e fazer sua<br />
adaptação fílmica caseira e distribuí-la pela internet. Houve quem produzisse<br />
animações contando as histórias dos livros que não entraram na adaptação para o<br />
cinema, como, por exemplo, o video Serraria Baixo Astral, disponível no YouTube 11 .<br />
4.1 – Lemony Snicket versus Daniel Handler<br />
Há em Snicket um problema epistemológico que melhor se explica nas palavras<br />
de Rosenfeld (1976):<br />
É porém a personagem que com mais nitidez torna patente a ficção, e através dela a camada<br />
imaginária se adensa e se cristaliza. Isto é pouco evidente na poesia lírica, em que não parece<br />
haver personagem. Todavia, expresso ou não, costuma manifestar-se (...) um “Eu lírico” que<br />
não deve ser confundido com o Eu empírico do autor. (ROSENFELD, 1976: 21)<br />
Lemony comporta-se quase como um alter-ego de Daniel Handler. Nas sessões<br />
de autógrafos, Handler costuma brincar dizendo que o escritor Lemony não pôde<br />
comparecer e que ele veio em seu lugar (Revista Recreio, edição n° 253, 13/01/2005).<br />
Mesmo as entrevistas cedidas, ora como Handler, ora como Snicket, contribuem<br />
para a consolidação da diegese da obra. Por exemplo, em entrevista ao website A. V.<br />
Club 12 , perguntado sobre qual instrumento musical ele gostava de tocar, Snicket afirma<br />
11 The Miserable Mill, direção de Stephen Horn e produção de Dayakar Padayachee (produzido pela<br />
Bouncing Biscuit Studios e apresentado por Stikel Media & Entertainment e Dayakar Productions),<br />
disponível no link http://www.youtube.com/watch?v=Tk4RLKUhAn4<br />
12 Texto original e tradução constantes nos anexos<br />
63
estar aprendendo a tocar teremin – um instrumento eletroacústico que emite sons<br />
fantasmagóricos, muito usado na sonoplastia de filmes de terror.<br />
Lemony também extrapola o universo particular da obra literária. Quando a<br />
versão para o cinema das Desventuras em Série foi lançada em DVD 13 , a distribuidora<br />
do filme incluiu um áudio extra com comentários do filme feitos por Lemony Snicket.<br />
Era na verdade Daniel Handler tecendo comentários sob um ponto de vista sarcástico<br />
que é próprio da persona de Snicket, na cena em que Tia Josephine e as crianças estão<br />
sendo atacadas por sanguessugas no barco, Lemony (no áudio dos comentários) diz que<br />
está tocando acordeão por considerar mais interessante do que fazer qualquer crítica à<br />
adaptação de sua obra e por considerar aquela cena e os gritos muito deprimentes 14 .<br />
Daniel Handler, antes de virar Lemony Snicket, era um escritor que tinha como<br />
alvo o público adulto. Apesar de ter dois livros publicados, sentiu recusa de mais de<br />
trinta editoras ao tentar publicar mais um romance. Até que então foi-lhe sugerido que<br />
escrevesse algo para crianças e daí surgiu a ideia de contar uma história em três<br />
volumes contendo finais trágicos. O sucesso foi imediato já no lançamento do primeiro<br />
Figura 10 - Daniel Handler tocando acordeão<br />
volume e a editora lhe propôs extender a série.<br />
Handler achou que o número 13 seria mais<br />
adequado, por narrar a história de crianças tão<br />
azaradas. Daniel também é roteirista, daí<br />
podemos entender por que a elaboração da obra<br />
de forma seriada é tão similar à estrutura de um<br />
roteiro de cinema. Assim como Lemony Snicket,<br />
Handler toca acordeom, como integrante da<br />
banda Magnetic Fields.<br />
Foucault diz que “a noção de autor constitui o momento forte da<br />
individualização na história das idéias, dos conhecimentos, das literaturas, na história da<br />
13 DESVENTURAS em Série. Direção: Brad Silberling. Produção: Laurie MacDonald, Walter E. Parkes e Jim<br />
Van Wyck. Roteiro: Rober Gordon. Intérpretes: Jim Carrey; Jude Law; Liam Aiken; Emily Browning;<br />
Meryl Streep e outros. [Manaus: Videolar S.A.], 2006. 1 DVD (108 min).<br />
14 Comentários de Lemony Snicket incluídos no DVD supramencionado.<br />
64
filosofia também, e na das ciências” (FOUCALT, 1992: 33). Porém, com esta autoria<br />
reservada a um possível alter-ego, Daniel Handler transfere à sua própria personagem<br />
(Lemony Snicket) esta autoria. De modo que nem Handler se mostra à vontade para<br />
discutir a obra de Snicket. Em todas as entrevistas encontradas com o escritor, ele se<br />
refere à obra como sendo de Snicket, e não dele. Esta atitude comprovaria uma possível<br />
metalinguagem em seu próprio discurso, uma vez que ele é um escritor que escreve<br />
sobre uma personagem que escreveu toda a série. Diz Handler, na introdução da<br />
autobiografia de Lemony Snicket:<br />
Na posição de representante oficial de Lemony Snicket para todos os assuntos legais,<br />
literários e sociais, muitas vezes sou solicitado a responder perguntas difíceis, mesmo quando<br />
estou com pressa. As perguntas que tenho ouvido com mais freqüência são:<br />
1. Quer fazer o favor de sair do meu caminho?<br />
2. De onde veio Lemony Snicket: autobiografia não autorizada, de Lemony Snicket?<br />
As respostas a essas perguntas são histórias muito longas, e só há espaço aqui para<br />
responder a uma delas. (HANDLER apud SNICKET, 2006c: IX)<br />
Entre os livros publicados por Handler (sob sua assinatura real), alguns adotam o<br />
mesmo senso sarcástico de Snicket já no título da obra. Em um total sarcasmo, o<br />
escritor publicou um livro irônico e non-sense chamado How to Dress for Every<br />
Occasion by the Pope (ainda não publicado no Brasil, de tradução “Como se vestir para<br />
cada ocasião, pelo Papa”), no qual Sua Santidade narra dicas de moda. A resenha do<br />
livro diz “Quer se vestir como o Papa? Bem, por que não? Afinal de contas o Papa é<br />
uma das pessoas mais importantes do mundo e é convidado para jantares de chefes de<br />
estado e coisas do tipo, além de viver num lugar super bem ornamentado chamado<br />
Vaticano. (...) Finalmente, o Papa apresenta um livro ensinando você a se vestir bem<br />
para cada ocasião”. Para ironizar ainda mais a respeito da falta de variedade dos<br />
uniformes papais, há um slogan na capa dizendo “Contém mais de 9 dicas do Papa”.<br />
Para escrever o livro Inventors and Creators - Lemony Snicket, Hayley Mitchell<br />
Haugen entrevistou Handler e tenta explicar as razões do autor para adotar o<br />
pseudônimo. Também explica os motivos de Snicket interromper tanto sua narrativa<br />
para dar lições de vocabulário, entre outras curiosidades.<br />
A obra literária (como devaneio) é uma continuação do brincar infantil, segundo<br />
Sigmund Freud (FREUD, S., 1976). O escritor criativo faz o mesmo que a criança que<br />
brinca ao criar um mundo de fantasia que ele leva muito a sério. Uma grande<br />
quantidade de emoção é investida na obra, por mais que seja mantida nitidamente uma<br />
separação entre ela e a realidade.<br />
65
Cabe mencionar também que, durante alguns anos, o rosto e a identidade do<br />
homem por trás de Snicket não eram divulgados. Para os curiosos que tentassem<br />
encontrar fotos do autor na internet, todas as suas fotos estavam disponíveis em web<br />
sites de busca, porém, sempre com o rosto oculto, fosse por uma tarja (Figura 11), um<br />
livro que estivesse lendo ao ser fotografado ou mesmo por posar de costas para a foto<br />
(Figuras 12 e 13).<br />
Figura 11 - Primeira foto de divulgação de Lemony Snicket<br />
Figura 12 - Foto de divulgação de Lemony Snicket<br />
Figura 13 - Foto de divulgação de Lemony Snicket<br />
66
As entrevistas cedidas à imprensa eram feitas por telefone ou e-mail, sempre<br />
com o alter-ego de Snicket encarnado. Somente na ocasião do lançamento dos últimos<br />
livros da série é que Daniel Handler mostrou sua face, ainda que não admitisse ser<br />
Lemony Snicket, mas sim seu representante, como em uma entrevista para a TV, na qual<br />
uma repórter entra em sua sala para entrevistar Snicket e Handler diz que ele não se<br />
encontra, mas que poderia responder por ele. A capa do livro de Haugen (Figura 14),<br />
lançado em março de 2005, mostra a foto do rosto de Daniel Handler.<br />
Figura 14 - Capa do livro de Hayley Mitchell Haugen<br />
Como foi dito acima, Handler não pretendia estender a série até que com o<br />
lançamento dos primeiros volumes foi-lhe sugerido fazê-lo. A falta de resoluções pode<br />
levar alguns leitores inclusive a pensar que Snicket é, na verdade, um charlatão que<br />
“encheu linguiça” para faturar com o mercado editorial e que não foi capaz de explicar<br />
os mistérios que surgem para prender a curiosidade do leitor, por não ter planejado no<br />
início da série um desenvolvimento que levasse a conclusões satisfatórias, ou seja, à<br />
clausura à qual os leitores da mass-media 15 estão acostumados. Essa característica, de<br />
15 Termo referente à mídia da cultura de massa (ADORNO & HORKHEIMER in LIMA.: 1978)<br />
67
“trapacear” mesmo seu leitor, é um dos motivos que o coloca num nível elevado de<br />
originalidade dentro da literatura universal – e não só da dita “infanto-juvenil”.<br />
Após o sucesso das Desventuras em Série, Daniel Handler publicou onze títulos<br />
diferentes. Dentre estes, os que visavam ao público infantil foram publicados sob o<br />
pseudônimo Lemony Snicket, recheados de humor negro.<br />
Figura 15 - Handler x Snicket<br />
Figura 16 - Daniel Handler<br />
68
5. DIALOGISMO E POLIFONIA<br />
Mikhail Bakhtin (BAKHTIN apud STAM), definiu a polifonia como sendo a<br />
presença de outros textos dentro de um texto, causada pela inserção do autor num<br />
contexto que já inclui previamente textos anteriores que lhe inspiram ou influenciam. Já<br />
o dialogismo possui uma definição mais ampla por Bakhtin, uma vez que ele o designa<br />
como o processo de interação entre textos em que ocorre a polifonia. Tanto na escrita<br />
como na leitura, o texto não é visto isoladamente, mas sim correlacionado com outros<br />
discursos similares e/ou próximos. Dialogismo se dá a partir da noção de<br />
recepção/compreensão de uma enunciação o qual constitui um território comum entre o<br />
locutor e o locutário. Pode-se dizer que os interlocutores, ao colocarem a linguagem em<br />
relação frente um a outro, produzem um movimento dialógico. Segundo Bakhtin<br />
(BAKHTIN apud STAM), o diálogo pode ser definido como "toda comunicação verbal,<br />
de qualquer tipo que seja". Robert Stam explica Bakhtin ao dizer que o dialogismo<br />
opera dentre de qualquer produção cultural. “Qualquer desempenho verbal<br />
inevitavelmente se orienta por outros desempenhos anteriores na mesma esfera, tanto do<br />
mesmo autor como de outros autores, originando um diálogo social e funcionando como<br />
parte dele” (BAKHTIN apud STAM, 1992: 73)<br />
A série Desventuras em Série possui uma inegável riqueza referencial a outras<br />
obras, sobretudo à de Charles Baudelaire, dialogismo que será aprofundado no<br />
subcapítulo a seguir. Diversas outras obras e movimentos artísticos são incluídos no<br />
dialogismo de Snicket.<br />
Mas é uma ilusão crer que a obra tem uma existência independente. Ela aparece em um<br />
universo literário povoado pelas obras já existentes e é aí que ela se integra. Cada obra de arte<br />
entra em relações complexas com as obras do passado que formam, segundo as épocas,<br />
diferentes hierarquias. (TODOROV, 2008: 220)<br />
Sua escrita dialoga, por exemplo, com a da escritora inglesa Virginia Woolf,<br />
que muito escreveu sobre o tédio e que passou parte de sua vida utilizando a escrita para<br />
tentar se curar de sua forte depressão que a levou ao suicídio em 1941. As personagens<br />
de Snicket vivem em constante tédio, que com a eficácia da narrativa de Snicket pode<br />
“contaminar” o leitor tematizado. No volume 2, A Sala dos Répteis, há uma debochada<br />
menção à autora inglesa: “e preveniu-os de que nunca, em hipótese alguma, deveriam<br />
deixar que a Cobra-Lobo da Virgínia chegasse perto de uma máquina de escrever”.<br />
69
Também dentro da literatura, Klaus, ao vestir um macacão com a foto do<br />
escritor Herman Melville, diz:<br />
"É um dos meus autores favoritos", disse Klaus. "Eu realmente gosto muito do modo como ele<br />
dramatiza a dura condição das pessoas negligenciadas, tais como os marinheiros pobres, ou os<br />
jovens explorados, através de sua prosa filosófica insólita, por vezes experimental."<br />
(SNICKET, vol. 11: 41)<br />
O texto faz inúmeras críticas à literatura infantil tradicional e aos contos de<br />
fadas, ao mostrar interpretações que ridicularizam Chapeuzinho Vermelho, Branca de<br />
Neve e Cachinhos Dourados, por exemplo. Nas artes visuais, há uma referência sutil a<br />
um quadro de René Magritte, “O Filho do Homem” (Figura 1), tanto na construção de<br />
uma das personagens quanto no suspense que foi criado em torno do autor pela editora.<br />
“Senhor” é como chamam o dono da serraria na qual os Baudelaire trabalham no<br />
volume 4 e seu rosto e nome são desconhecidos. Mesmo em sua presença é impossível<br />
ver seu rosto, por ele fumar um enorme charuto que cobre toda a sua cabeça com uma<br />
fumaça espessa. Da mesma forma, todas as fotos de Lemony Snicket divulgadas pela<br />
internet, em revistas, jornais e em sua própria autobiografia ocultavam seu rosto, ao<br />
mesmo estilo da fruta cobrindo a face do homem retratado por Magritte.<br />
Em todos os volumes da série, há uma dedicatória a uma mulher de nome<br />
Beatrice, que já está morta. É uma analogia direta com Dante Alighieri, que teve com<br />
Beatrice uma trágica história de amor. Tragédias amorosas são também tema do<br />
Romantismo Byronista, que tinha o mal-do-século como um dos principais argumentos.<br />
Se o verdadeiro mal do século XIX foi a tuberculose, isso leva o leitor a, no mínimo,<br />
desconfiar da infinita tosse do Sr. Poe, sempre cobrindo a boca com um lenço imundo<br />
para tossir. Até mesmo as personagens das tragédias de Goethe podem ser ligadas ao<br />
mood das personagens principais de Snicket, sobretudo o amargurado Werther.<br />
As principais características do Expressionismo Alemão, que são a<br />
ambientação sombria e a opressão das personagens principais, também estão aqui. “Por<br />
toda parte ouço vozes e as relações dialógicas entre elas” (Bakhtin apud STAM: p. 72).<br />
Se Bakhtin dizia que “ouvia vozes” em todos os lugares, isso pode ser exemplificado da<br />
seguinte forma: uma referência puxa outra, que se liga a outras mais, e desta forma está<br />
tecida a “teia” do dialogismo.<br />
A trupe do Conde Olaf, em suas atuações, faz uso da farsa e da Commedia<br />
Dell’Arte, uma vez que são todos caricatos, estereotipados e parodiam situações<br />
cotidianas. Há também um dialogismo com a carnavalização, logo no primeiro volume<br />
70
da série, quando a trupe está reunida na casa de Olaf para festejar, comer, se embriagar<br />
e até mesmo “profanar” a comida, jogando-a. O circo é outra expressão artística<br />
mencionada, no volume O Espetáculo Carnívoro, cujo título original, Carnivorous<br />
Carnival, reforça a ideia da carnavalização. Por carnavalesco, supõe-se uma ala<br />
incidência de comida, bebida, sexo, diversão e escatologias. O termo foi criado por<br />
Bakhtin, supostamente para ser “subversivo”.<br />
Figura 17 - Ilustração de Brett Helquist para o capítulo 10 do volume 6<br />
A própria fala da Sunny pode ser vista como uma forma de tentar explicar de<br />
modo irônico a formação dos poemas dadaístas, que consistia em escolhas de palavras e<br />
sílabas aleatórias com as quais se escreviam frases ininteligíveis – como a fala dos<br />
bebês. O dadaísmo também está presente a cada vez que a narrativa se deixa levar pelo<br />
non-sense, em situações absurdamente inverossímeis até internamente.<br />
Eles não gostaram da idéia de ver a irmãzinha bebê escalando o poço até as portas deslizantes<br />
do elevador ersatz usando apenas os dentes, mas não conseguiam pensar em nenhum outro<br />
jeito de escapar a tempo de frustrar o plano de Gunther. (...) a mais jovem dos Baudelaire<br />
inclinou a cabeça para trás e depois jogou-a para a frente, cravando um dos dentes na parede<br />
71
com um som áspero que faria um dentista chorar durante horas. Mas os Baudelaire não eram<br />
dentistas, e as três crianças escutaram atentamente para ouvir se os dentes de Sunny tinham<br />
ficado tão firmemente cravados quanto as cavilhas da rede. Para sua satisfação, não ouviram<br />
nada — nenhum som de coisas raspando, ou escorregando, ou rachando, ou qualquer coisa que<br />
indicasse que os dentes de Sunny não estavam segurando. Sunny até sacudiu um pouquinho a<br />
cabeça para verificar se com isso o seu dente não se soltaria com facilidade da parede, mas ele<br />
continuou sendo um firme apoio dental. Sunny jogou a cabeça de leve e fincou um outro dente,<br />
ligeiramente acima do primeiro. O segundo dente ficou firmemente cravado, então Sunny<br />
soltou cautelosamente o primeiro dente e o inseriu de novo na parede, ligeiramente acima do<br />
segundo dente. Cravando os dentes a espaços ligeiramente separados, Sunny conseguira subir<br />
alguns centímetros pela parede e, quando ela fincou o primeiro dente acima do segundo outra<br />
vez, seu pequeno corpo já não tocava mais a rede. (SNICKET, Vol. 6: 168-169) (Figura 17).<br />
Outros dialogismos, mais amplos e sutis, podem ser percebidos por leitores<br />
mais atentos no que diz respeito à moda, à psicologia, às ciências sociais e até à<br />
filosofia. Em tempos de Byronismo, as cores eram frias como as das roupas dos órfãos<br />
Baudelaire e Esmé Squalor é uma vilã muito “antenada” nas tendências de moda e<br />
decoração. Quanto à psicologia, toda a série dialoga com os traumas de infância e a<br />
frustração como possibilitadora de reações agressivas, além de tratar, no livro 7, da<br />
manipulação da opinião pública como “psicologia das turbas” 16 .<br />
Numa visão sociológica há uma crítica à exploração do trabalho infantil no<br />
volume 4 e uma muito sutil alusão ao pensamento pedagógico de Ivan Ilich, autor de<br />
Uma Sociedade Sem Escolas, ao colocar, no livro 5, os órfãos estudando numa<br />
instituição em que todo o conhecimento era inútil, sem contar a crítica à pena de morte,<br />
que é sentenciada aos Baudelaire no julgamento por um crime que não cometeram no<br />
volume 7.<br />
Outra sutil comparação seria com o pensamento do filósofo Guy Debord, autor<br />
de A Sociedade Do Espetáculo, já que Esmé Squalor e o Conde Olaf buscam o sucesso<br />
e a fama a qualquer custo, mesmo sem ter talento algum – a não ser para o crime. A<br />
16 Fazendo referência ao estudo do sociólogo francês Gustave Le Bom (1841 – 1931), A psicologia das<br />
multidões. “Para o autor, a multidão é uma entidade onde os indivíduos estão submetidos a uma alma<br />
coletiva, pois ela tem sua própria natureza. A multidão, como ele descreve, é feminina, impulsiva,<br />
móvel, dominada por uma mentalidade ‘mágica’”. (citado por FERREIRA, Giovandro Marcus. As origens<br />
recentes: os meios de comunicação pelo viés do paradigma da sociedade de massa. In: HOHLFELDT,<br />
Antonio, MARTINO, Luiz C. e FRANÇA, Vera Veiga (Org.) Teorias da Comunicação; 3.ed. Petrópolis:<br />
Vozes, 2003).<br />
72
jornalista Sra. Morrow, colunista do jornal “O Pundonor Diário”, lido pelas<br />
personagens, alardeia fatos comuns, fazendo com que cada notícia se transforme num<br />
verdadeiro espetáculo. A própria Juíza Strauss, no primeiro livro, ao ser convidada para<br />
integrar o elenco da peça de Olaf, diz: “Sempre quis subir no palco, desde garotinha”<br />
(SNICKET, vol. 1: 80). José Aloise Bahia 17 diz a respeito do trabalho de Guy Debord:<br />
Esta nova sociedade do espetáculo e desinformação, de acordo com o autor, é o universo,<br />
onde tudo é possível. Um grande carnaval caracterizado pelo desaparecimento de critérios de<br />
verdade e validade, que antes eram referenciados em atitudes e funções específicas<br />
desempenhadas no mundo do trabalho. Neste contexto, por exemplo, um médico pode ser<br />
cantor e ator ao mesmo tempo, e aparecer na televisão defendendo o uso de determinado<br />
produto, marca ou remédio de ponta, de determinado laboratório, como sendo o mais eficaz<br />
contra determinada doença, fratura ou inflamação. Bem como pode aparecer também em<br />
programas de auditório e novelas, garantindo e corroborando o status científico, e a noção do<br />
bom e do belo, do asséptico e o efeito dourado de bem-estar do produto para a saúde dos<br />
consumidores e cidadãos. Este seria um outro novo aspecto que alimenta e afirma que o<br />
espetáculo não pode parar, e que todos podem um dia ter a possibilidade, nem que seja em 15<br />
minutos de fama, de se tornarem artistas e aparecer na televisão. (BAHIA: 2005)<br />
Debord (1997) discute a reestruturação de fenômenos cotidianos (julgamentos,<br />
cirurgias, casamentos) em espetáculos que atiçam as massas e confundem a opinião<br />
pública. No caso da obra de Snicket, isso se exemplifica quando, por exemplo, Violet é<br />
forçada a se casar com Olaf sob disfarce de uma encenação em Mau Começo, quando<br />
os Baudelaire se tornam inimigos públicos por causa do tablóide O Pundonor Diário e<br />
vão a julgamento ou quando a mais velha dos três é quase submetida a uma cirurgia<br />
inédita que tornou-se espetáculo para a classe científica (atraindo, inclusive, a atenção<br />
da jornalista do tablóide).<br />
O poder do espetáculo, tão essencialmente unitário, centralizador pela força das coisas e de<br />
espírito perfeitamente despótico, costuma ficar indignado quando vê constituir-se, sob seu<br />
reino, uma política-espetáculo, uma justiça-espetáculo, uma medicina-espetáculo, ou outros<br />
tantos surpreendentes “excessos midiáticos”. (DEBORD, 1997: 171)<br />
Ainda em relação à filosofia, há uma menção não-nominativa a Nietzsche no<br />
volume 10, muito irônica, por sinal:<br />
"Quando eu estava olhando para dentro do buraco", disse Klaus mansamente, "lembrei de um<br />
livro escrito por um filósofo famoso. Ele disse: 'Quem enfrenta monstros deve cuidar para que,<br />
no processo, não se transforme em monstro também. Quando você olha longamente para o<br />
abismo, o abismo também olha para você'." Klaus olhou para a irmã, depois para Esmé, que já<br />
17 Jornalista, pesquisador e escritor.<br />
73
se aproximava, e por fim para a madeira que cobria o buraco. "Um 'abismo' é, de fato, um<br />
'buraco'", disse ele. "Nós construímos um abismo para Esmé. Isso é algo que só um monstro<br />
faria."<br />
Quigley estava copiando as palavras de Klaus no seu livro de lugar-comum. "O que aconteceu<br />
com esse filósofo?", perguntou.<br />
"Está morto", disse Klaus. (SNICKET, Vol. 10: 225)<br />
No Volume 12 está presente uma atmosfera própria da literatura de Agatha<br />
Christie. No auge do suspense, todas as personagens dos livros anteriores se hospedam<br />
no mesmo hotel e ocorre um crime, surgindo um clima investigativo. No volume 7 é o<br />
cinema que será referenciado na figuras dos corvos. A quantidade de corvos voando em<br />
bando lembra o filme Os Pássaros (1963) de Alfred Hitchcock, cineasta conhecido por<br />
criar suspense. Há também uma referência direta a um poema de Edgar Allan Poe,<br />
chamado O Corvo. No livro sétimo das Desventuras em Série, os corvos em questão<br />
habitam uma árvore chamada de A Árvore do Nunca Mais. No poema de Poe, todas as<br />
últimas estrofes terminam com “Nunca mais!”, única resposta que o corvo sabe<br />
pronunciar para o eu-lírico do poema.<br />
.<br />
Figura 18 - Ilustração de Brett Helquist para o capítulo 3 do volume 7<br />
74
O texto de Snicket é recheado de simbolismos, o que podemos entender como<br />
um dialogismo com o movimento literário simbolista. Ele também faz uso do método<br />
parnasiano de utilizar vocabulário rebuscado, mas zomba disso explicando as palavras<br />
“difíceis” de maneira esdrúxula.<br />
Em termos de política, o livro A Cidade Sinistra dos Corvos mostra uma cidade<br />
que adota características de Platão no que se refere à educação das crianças. O Sr. Poe<br />
menciona o aforismo “É preciso uma cidade para educar uma criança” (SNICKET, vol.<br />
7: 21). Os habitantes de C.S.C, como a cidade é conhecida, se revezariam na tutela das<br />
crianças. A cidade seria responsável por elas. Outro elemento da política grega clássica<br />
é a existência de um Conselho de Anciãos que julga e toma decisões com base em<br />
argumentos falaciosos. É uma crítica direta aos Sofistas, que na Grécia Antiga (399<br />
a.C.) condenaram Sócrates, considerado por Platão o mais sábio dos homens.<br />
E é por essas analogias que a arte contemporânea se insere no contexto<br />
histórico iniciado na segunda metade do século XX, quando toda produção cultural deve<br />
absorver, filtrar e recriar ideias, pensamentos e opiniões oriundas de outras obras<br />
artísticas, da História, das informações jornalísticas e das próprias transformações<br />
sociais. Não se trata apenas de reproduzir o que já existe, mas sim de contestar, criticar<br />
e aperfeiçoar, com o devido talento estético. O autor é, em primeira e última instância,<br />
um leitor.<br />
5.1 – A influência de Charles Baudelaire na obra de Lemony Snicket<br />
Para entender melhor a diegese da obra e a construção das personagens é<br />
fundamental conhecer um pouco sobre Baudelaire. Mais que alusões, Snicket faz<br />
menções diretas à obra baudelaireana, sobretudo ao batizar os protagonistas das<br />
Desventuras em Série com o sobrenome do poeta.<br />
Assim como Violet, Klaus e Sunny, Charles Baudelaire foi órfão e era<br />
maltratado por seu tutor – no caso do poeta, o padrasto, um general muito austero que se<br />
opunha às inclinações literárias do enteado.<br />
Charles foi, em seu tempo, considerado um poeta maldito, por retratar em suas<br />
estrofes quão ruim pode ser a vida. Sua poesia chocou a sociedade francesa no século<br />
XIX por conter temas fúnebres e escatológicos, bem como a poesia de um de seus<br />
sucessores temáticos, Augusto dos Anjos, recebeu severas críticas no círculo literário<br />
brasileiro poucas décadas depois.<br />
75
Baudelaire entregou-se a vícios e à boemia. Já sofria de depressão antes mesmo<br />
de encontrar-se na miséria. E sentiu-se toda a vida perseguido pelo padrasto.<br />
Perseguição: eis o argumento-motriz da saga dos órfãos Baudelaire na obra de Snicket.<br />
O caráter maldito, porém, coube ao próprio narrador das história, uma vez que vive na<br />
clandestinidade e tem medo de ser punido pelas coisas que escreve.<br />
O universo baudelaireano inclui a exisência de um flâneur. Baudelaire tentou<br />
explicar o complexo sentido do termo como sendo a pessoa cujo papel seria o de<br />
entender o processo da modernidade, do urbanismo e do cosmopolitismo através do<br />
fluxo da cidade. O flâneur é afetado pelo desenho da cidade e pelo andamento da<br />
mesma. Os órfãos Baudelaire, sub-repticiamente são afetados na medida em que<br />
transitam pelas cidades. Antes do incêndio que os deixou órfãos, os irmãos “moravam<br />
com seus pais numa enorme mansão no centro de uma cidade muito movimentada e<br />
muito poluída” (SNICKET, vol. 1: 10).<br />
Os nomes dos lugares por onde eles transitam – ou “flanam” –, como a Praia do<br />
Sal, o Porto Enevoado, a Aldeia de Tédia, o Rio da Amargura e a Avenida Sombria nos<br />
remetem a situações sempre desagradáveis, causando no leitor um mood tão pessimista<br />
quanto os poemas de Baudelaire eram capazes de criar. E mesmo com esta intenção,<br />
Snicket ironiza a respeito destes nomes próprios:<br />
Embora a Avenida Sombria ficasse a apenas alguns quarteirões de distância do lugar onde<br />
antes se erguera a mansão Baudelaire, as três crianças nunca tinham estado antes naquelas<br />
vizinhanças e presumiram que a palavra "sombria" na Avenida Sombria era simplesmente um<br />
nome e nada mais, assim como Bulevar George Washington não indica necessariamente que ali<br />
mora George Washington, ou Sexta Avenida não indica que as lojas ali só abrem às sextas-<br />
feiras. Mas naquela tarde os Baudelaire perceberam que Avenida Sombria era mais que um<br />
nome. Era uma descrição apropriada. Em vez de postes de luz, havia árvores enormes a<br />
intervalos regulares ao longo da calçada, de um tipo que as crianças nunca tinham visto antes<br />
— e que mal podiam ver agora. No alto de um tronco grosso e espinhento, os galhos pendiam<br />
como roupa pendurada para secar, espalhando suas folhas largas e chatas em todas as direções,<br />
como um teto baixo e folhudo por cima das cabeças dos Baudelaire. Esse teto bloqueava toda a<br />
luz que vinha de cima e com isso, muito embora fosse o meio da tarde, a rua parecia escura<br />
como se já fosse noite — se bem que um tanto esverdeada. Não se diria que era um bom jeito<br />
de fazer com que os órfãos se sentissem bem-vindos ao se aproximar do seu novo lar.<br />
(SNICKET, Vol. 6: 12-13).<br />
Para Walter Benjamin (1994b), a dialética da flânerie se descreve da seguinte<br />
maneira: “por um lado, o homem que se sente olhado por tudo e por todos,<br />
76
simplesmente o suspeito; por outro, o totalmente insondável, o escondido”.<br />
(BENJAMIN,1994b: 190).<br />
A rua conduz o flanador a um tempo desaparecido. Para ele, todas são íngremes. Conduzem<br />
para baixo, (...) para um passado que (...) permanece sempre o tempo de uma infância.<br />
(BENJAMIN, 1994b)<br />
A Beatrice a quem Snicket dedica os treze volumes, além da previamente citada<br />
alusão à amante de Dante – poeta que descreve o inferno em sua clássica Divina<br />
Comédia –, referencia a destinatária de um dos poemas que compõem a principal obra<br />
de Charles Baudelaire, As Flores do Mal, no qual a descreve no poema La Béatrice<br />
como “a deusa a cujo olhar outro nenhum se iguala”. Em outro poema, A Fonte de<br />
Sangue, Baudelaire expõe as fatalidades do amor:<br />
morta:<br />
(...) Eu procurei no amor um sono de esquecer;<br />
E é-me somente o amor um colchão de punhais<br />
Em que eu dou de beber às amadas fatais!<br />
No poema O Letes, Charles fala mais abertamente sobre o amor por uma mulher<br />
Nas tuas saias perfumadas, junto<br />
Ao teu colo, enterrar fronte saudosa,<br />
E respirar, como ressequida rosa,<br />
Suave bolor do meu amor defunto.<br />
Quero dormir! Dormir o tempo que me sobre!<br />
Num sono doce como a morte eu posso<br />
Estender os meus beijos sem remorso<br />
Nesta carne tão polida como o cobre.<br />
Vejamos agora as dedicatórias de Lemony para Beatrice. A cada livro o autor<br />
vai deixando uma pista sobre como ela morreu. No Livro 7 ele já informa que Beatrice<br />
morreu por falta de ar, e no Livro 12 fica claro que esta falta de oxigênio foi causada<br />
por um incêndio:<br />
Livro 1:<br />
Para Beatrice —<br />
querida, adorada, morta<br />
Livro 2:<br />
Para Beatrice —<br />
Meu amor por você viverá para sempre. Você não teve a mesma sorte.<br />
77
Livro 3:<br />
Para Beatrice —<br />
Preferiria que você estivesse viva e com saúde.<br />
Livro 4:<br />
Para Beatrice —<br />
Meu amor voou como uma borboleta<br />
Até a morte pousar como um morcego.<br />
Como disse a poeta Emma Montaria McElroy:<br />
"Aí acabou-se a história".<br />
Livro 5:<br />
Para Beatrice —<br />
Você estará sempre no meu coração,<br />
na minha memória<br />
e no seu túmulo.<br />
Livro 6:<br />
Para Beatrice —<br />
Quando nos conhecemos, minha vida começou.<br />
Logo depois, a sua terminou.<br />
Livro 7:<br />
Para Beatrice —<br />
Quando estávamos juntos, eu ficava sem fôlego.<br />
Agora, foi você quem ficou.<br />
Livro 8:<br />
Para Beatrice —<br />
O verão sem você é frio como o inverno. O inverno sem você é mais frio ainda.<br />
Livro 9:<br />
Para Beatrice —<br />
78
Nosso amor partiu meu coração,<br />
e parou o seu.<br />
Livro 10:<br />
Para Beatrice —<br />
Quando nos conhecemos você<br />
tinha a beleza e eu, a solidão.<br />
Agora, só tenho uma bela solidão.<br />
Livro 11:<br />
Para Beatrice —<br />
Mulheres mortas não contam histórias.<br />
Homens tristes as escrevem.<br />
Livro 12:<br />
Para Beatrice —<br />
Ninguém conseguiu extinguir o fogo do meu amor,<br />
nem o da sua casa<br />
Livro 13:<br />
Para Beatrice —<br />
Meu amor apareceu,<br />
o mundo empesadeleceu.<br />
Livro Último (capítulo extra ao fim do Volume 13):<br />
Para Beatrice —<br />
Nós somos como barcos navegando pela noite<br />
— especialmente você.<br />
Há um poema em francês escondido nos créditos do capítulo 14 do volume 13.<br />
O eu-lírico do poema dirige sua fala à Morte.<br />
Ô Mort, vieux capitaine, il est temps! Levons l'ancre!<br />
Ce pays nous ennuie, ô Mort! Appareillons!<br />
Si le ciel et Ia mer sont noirs comme de l'encre,<br />
79
Nos coeurs que tu connais sont remplis de rayons!<br />
Livre tradução:<br />
Ó, Morte, velho capitão, é tempo! Zarpemos!<br />
Esse país cansa-nos, ó morte! Pronto!<br />
Se o céu e o mar são negros como tinta,<br />
Nossos corações, que você conhece, estão cheios de luz!<br />
O tom excessivamente fúnebre das dedicatórias de forma alguma recusa a<br />
influência de Baudelaire sobre a ambientação, à diegese e ao mood em geral da obra.<br />
Outro elemento na obra de Charles Baudelaire que não deve ser esquecido é o que o<br />
próprio poeta chamava de spleen. Trata-se de um estado de espírito no qual se<br />
contempla o nada e no qual a alma se enche de melancolia.<br />
Na obra de Snicket, as paisagens descritas são cinzentas. As casas são feias, há<br />
sujeira por toda a parte. E a atitude passiva dos Baudelaire, bem como seu resígnio nos<br />
momentos em que lutar mostra-se inútil, reforça esta ideia. O spleen predomina nos<br />
versos de Charles Baudelaire. E o fim das Desventuras em Série pode causar<br />
semelhante efeito no leitor, que lê até o fim em busca da verdade e não a encontra.<br />
Pode-se dizer que a própria frustração vivida pelo leitor ao fim da série é um exemplo<br />
de spleen.<br />
[Kit Snicket diz] “Eu gostaria que tivéssemos mais tempo para conversar, mas já é terça-feira.<br />
Do jeito que as coisas vão, vocês mal terão tempo de comer o seu importante brunch antes de<br />
vestir os disfarces de concierges dar início às observações como flâneurs.”<br />
“Concierge?", perguntou Violet.<br />
"Flâneurs?", perguntou Klaus.<br />
"Brunch?”, perguntou Sunny. (SNICKET, Vol. 12, p. 12-13)<br />
Figura 19 - Personagens principais (Violet, Klaus, Sunny e Olaf) ilustrados de modo sombrio por Brett<br />
Helquist (ilustrações presentes na segunda capa de todos os livros)<br />
80
6. A ESTÉTICA DA RECEPÇÃO E DO EFEITO E O HORIZONTE DE<br />
EXPECTATIVA<br />
Para poder demonstrar a importância da estética de Lemony Snicket torna-se<br />
imprescindível para esta pesquisa explorar o campo da teoria da informação que<br />
abrange a estética da recepção e do efeito. A estética da recepção, por mais que possa<br />
parecer empírica, é devidamente teorizada.<br />
A recepção abrange cada uma das atividades que se desencadeia no receptor por meio do texto,<br />
desde a simples compreensão até a diversidade das reações por ela provocadas – que incluem<br />
tanto o fechamento de um livro, como o ato de decorá-lo, de copiá-lo, de presenteá-lo, de<br />
escrever uma crítica ou ainda o de pegar um papelão, transformá-lo em viseira e montar a<br />
cavalo. (STIERLE, 2001: 135-136)<br />
O que podemos depreender a respeito do leitor? Como ele recebe e percebe uma<br />
obra? A obra produz, de fato, algum efeito no leitor? E quais efeitos seriam esses?<br />
Podemos colocar os leitores em duas categorias: o leitor estético (de arte) e o leitor best-<br />
seller (de consumo ou de massa).<br />
A arte, e portanto a literatura, é uma transposição do real para o ilusório por meio de uma<br />
estilização formal, que propõe um tipo arbitrário de ordem para as coisas, os seres, os<br />
sentimentos. Nela se combinam um elemento de vinculação à realidade natural ou social, e um<br />
elemento de manipulação técnica, indispensável à sua configuração, e implicando uma atitude<br />
de gratuidade. Gratuidade tanto do criador, no momento de sentir e apreciar. Isto ocorre em<br />
qualquer tipo de arte, primitiva ou civilizada. (CANDIDO, 1985: 53)<br />
O leitor estético é o que quer arte, e que não quer esquemas simples, repetitivos,<br />
gastos, do tipo “entendi tudo ao final”. Esse lado simplista e esquemático é a razão da<br />
enorme popularidade e massificação das telenovelas. A ponto de existir pessoas que<br />
acreditem que as novelas de TV são histórias reais. Obras esquemáticas são mais fáceis<br />
para o leitor decodificar, mas tornam-se previsíveis. A língua é esquemática mesmo,<br />
qualquer linguagem é esquemática. Quanto mais a palavra – o signo –, está na<br />
construção de uma estrutura oracional, ou uma estrutura fílmica de maneira discreta,<br />
sem ser problematizado, os esquemas ficam fáceis. E o leitor é enganado, uma vez que é<br />
ele quem está decodificando, embora tenha sido o autor que elaborou aquele esquema<br />
de maneira ao previsível, apesar de cheia de efeitos e apelos, que o leitor se encanta e<br />
não percebe que está lendo a mesma coisa que já foi mostrada diversas outras vezes.<br />
Confirmou-se que a literatura de consumo não é determinável sem referência à função estética<br />
e social da literatura “elevada”. (JAUSS, 2001: 50)<br />
81
Esquemas são jogos de palavras que constituem ideias que ativam na nossa<br />
mente situações que já conhecemos, da realidade, do passado, presente ou futuro.<br />
Quando os esquemas se tornam muito fáceis e repetitivos, os chamamos de maquinação.<br />
Todas as linhas de estudo da arte são conhecimentos parciais. A leitura de uma obra de arte se<br />
dá por camadas, níveis, filtros esclarecedores. São aproximações que nos revelam uma das<br />
muitas faces da arte. (OLIVEIRA, Ruy de, 2008: 30)<br />
Snicket aponta um caminho para a leitura estética mesmo fazendo uso deste<br />
recurso. A repetição em sua obra objetiva um efeito entediante e é elaborada com um<br />
esforço que demonstra a ruptura com os padrões simplórios. As Desventuras em Série<br />
estão numa posição limítrofe entre o mercado estético e o de best-sellers, e é neste<br />
limite em de transição em que seu leitor se encontra ao absorver sua obra. Mesmo que o<br />
caráter “de massa” seja um disfarce para enganar este público-alvo e fazê-lo consumir<br />
uma obra estética.<br />
Snicket também é leitor da tradição, e por isso vai tematizar o leitor dos contos<br />
maravilhosos consagrados pela tradição ocidental e desconfigura seu repertório,<br />
desconstruindo o status quo desta tradição, ao contestar o valor simbólico de<br />
Chapeuzinho Vermelho, por exemplo. E ele faz isso justamente numa série direcionada<br />
para o público infanto-juvenil, bem como o filme Shrek (2001), que faz sátiras a este<br />
mesmo status quo simbólico. Stierle diz que “A ampliação do potencial de recepção<br />
ganho pelo contato com uma ficção experimental permite que se apresentem as ficções<br />
do passado sob novas premissas de recepção.” (STIERLE, 2001: 171).<br />
Wolfgang Iser inclui junto à teoria da recepção uma teoria do efeito estético, que<br />
leva, a partir dos processos de transformação, à constituição do sentido pelo leitor e que<br />
descreve a ficção como uma estrutura de comunicação. Para Jauss, a literatura possui<br />
uma dupla tarefa: diferençar metodicamente os dois modos de recepção.<br />
Ou seja, de um lado esclarecer o processo atual em que se concretizam o efeito e o significado<br />
do texto para o leitor contemporâneo e, de outro, reconstruir o processo histórico pelo qual o<br />
texto é sempre recebido e interpretado diferentemente, por leitores de tempos diversos. A<br />
aplicação, portanto, deve ter por finalidade comparar o efeito atual de uma obra de arte com o<br />
desenvolvimento histórico de sua experiência e formar o juízo estético, com base nas duas<br />
instâncias de efeito e recepção. (JAUSS, 2001:46)<br />
Jauss também menciona a existência de três funções da ação humana dentro da<br />
atividade estética, na qual a Poiesis representa a técnica, a Katharsis seria a forma de<br />
comunicação e a Aisthesis a visão de mundo. Em sua tese conclusiva, Jauss diz:<br />
82
A conduta de prazer estético, que á ao mesmo tempo liberação de e liberação para realiza-se<br />
por meio de três funções: para a consciência produtora, pela criação do mundo como sua<br />
própria obra (poiesis); para a consciência receptora, pela possibilidade de renovar a sua<br />
percepção, tanto na realidade externa, quanto da interna (aisthesis); e, por fim, para que a<br />
experiência subjetiva se transforme em inter-subjetiva, pela anuência ao juízo exigido pela<br />
obra, ou pela identificação com normas de ação predeterminadas e a serem explicitadas. (...)<br />
(...) As três categorias básicas da experiência estética, poiesis, aisthesis e katharsis não devem<br />
ser vistas numa hierarquia de camadas, mas sim como uma relação de funções autônomas: não<br />
se subordinam umas às outras, mas podem estabelecer relações de sequência. Em face de sua<br />
própria obra, o criador pode assumir o papel de observador ou de leitor; sentirá então a<br />
mudança de sua atitude, ao passar da poiesis para a aisthesis, diante da contradição de não<br />
poder, ao mesmo tempo, produzir e receber, escrever e ler. (JAUSS,2001: 81)<br />
Ele também discute a adesão do juízo de gosto do indivíduo a um juízo lógico<br />
universal, por este apresentar razões, uma vez que cada indivíduo espera um acordo dos<br />
outros.<br />
O expectador pode ser afetado pelo que se representa, identificar-se com as pessoas em ação,<br />
dar assim livre curso às próprias paixões despertadas e sentir-se aliviado por sua descarga<br />
prazeirosa, como se participasse de uma cura (katharsis). Esta descoberta e justificação do<br />
prazer catártico (...) nos deu a única resposta até hoje convincente sobre a questão de por que a<br />
contemplação do mais trágico acontecimento nos causa o mais profundo prazer. (JAUSS,<br />
2001: 65).<br />
Esta afirmação pode responder à pergunta “Por que ler as Desventuras em<br />
Série?”. Se a própria capa do livro sugere que só desgraças acontecerão e que a leitura<br />
não será de todo modo agradável, por que então o leitor prossegue sua leitura? Será<br />
mesmo prazeroso ler sobre tragédias alheias? Jauss responde:<br />
O expectador no teatro ou o leitor de romances pode “gozar-se como uma figura importante se<br />
entregar de peito aberto a emoções normalmente recalcadas”, pois o seu prazer tem “por<br />
pressuposto a ilusão estética, ou seja, o alívio da dor pela segurança de que, em primeiro lugar,<br />
de que se trata apenas de um outro que age e sofre, na cena, e, em segundo lugar, de que se<br />
trata apenas de um jogo, que não pode causar dano algum à nossa segurança pessoal”. Deste<br />
modo, o prazer estético da identificação possibilita participarmos de experiências alheias.<br />
(JAUSS, 2001: 78)<br />
Ainda segundo Jauss, para analisar a experiência do leitor ou de uma “sociedade<br />
de leitores” de um determinado tempo histórico, torna-se necessário diferenciar, colocar<br />
e estabelecer a comunicação entre os dois lados da relação texto e leitor.<br />
Ou seja, entre o efeito, como o momento condicionado pelo texto, e a recepção, como o<br />
momento condicionado pelo destinatário, para a concretização do sentido como duplo<br />
horizonte – o interno ao literário, implicado pela obra, e o mundivivencial, trazido pelo leitor<br />
83
de uma determinada sociedade. Isso é necessário a fim de se discernir como a expectativa e a<br />
experiência se encadeiam e para saber se, nisso, se produz, um momento de nova significação.<br />
No entanto, o estabelecimento do horizonte de expectativa interna ao texto é menos<br />
problemático, pois derivável do próprio texto, do que o horizonte de expectativa social, que<br />
não é tematizado como contexto de um mundo histórico. Por isso, enquanto a psicologia do<br />
processo de recepção for tão pouco esclarecida quanto o papel e a produção da experiência<br />
estética no sistema das estruturas de ação de um mundo histórico, é pouco apropriado esperar-<br />
se um esclarecimento total sobre o comportamento dos leitores pelas análises fundadas em<br />
classes e camadas, bem como procurar na literatura da moda, a literatura trivial e de consumo,<br />
a mais rigorosa expressão das relações econômicas e os interesses disfarçados de poder.<br />
(JAUSS, 2001: 49-50)<br />
O horizonte de expectativa é uma característica fundamental de todas as<br />
situações interpretativas. Para Jauss, o horizonte de expectativa de um texto diz respeito<br />
às expectativas que o leitor nutre em relação ao texto. Mas é com base na teoria de<br />
Stierle que exponho tal característica:<br />
Se a ficção for interpretada como uma indicação para o cumprimento de uma figura de<br />
relevância, exigida por sua forma, daí decorrerá a pergunta sobre até que ponto o leitor porá em<br />
jogo o mundo como horizonte de ficção e quais as conseqüências disso quanto à distância<br />
histórica entre o texto e a recepção. Por fim, com a pergunta complementar sobre a função vital<br />
da ficção, i.e., sobre a ficção como “horizonte do mundo”. (STIERLE, 2001: 137)<br />
O horizonte de expectativa de um leitor está diretamente ligado ao seu repertório<br />
particular. Membros de uma mesma sociedade tendem a compartilhar sensos comuns, i.<br />
e., equilíbrio de significações simbólicas, padrões comportamentais (cumprimento de<br />
regras, tipo de vestuário, hábitos alimentares etc.) e valores morais. Estes elementos<br />
variam tanto de uma sociedade para outra como de um tempo para outro ou entre<br />
indivíduos de uma mesma sociedade.<br />
Cada informação, conhecimento ou ponto de vista que um indivíduo absorve<br />
contribui para a formação de seu repertório. Mesmo membros de uma mesma família<br />
que residem juntos possuem conhecimentos diferentes.<br />
Se o escritor dá instruções para o leitor imaginar, o leitor, por sua vez, é um imaginador.<br />
Imagina, quer dizer, busca na sua memória experiências vividas e seleciona imagens e as<br />
recria, visando torná-las coerentes com o contexto. Esse modelo, talvez excessivamente<br />
subjetivista, parece, no entanto, explicar certos desvios de interpretação, certas associações<br />
não-autorizadas pelo contexto, enfim, certas “viagens” dos leitores.<br />
No caso de leitores iniciantes, a falta de conhecimento linguístico, de conhecimento de mundo<br />
ou de experiências pessoais compatíveis com as situações do texto pode dificultar o encontro<br />
de imagens coerentes e, dessa forma, comprometer a compreensão. (CAMARGO, 2006: 10)<br />
84
A obra de Snicket possui um caráter acessível, principalmente pelo fato de ser<br />
destinada a crianças e adolescentes, que requerem as intervenções do autor para explicar<br />
o significado de uma expressão ou provérbio que possivelmente ainda não esteja<br />
incluído no repertório do público-alvo não-adulto. Isso demonstra que mesmo o escritor<br />
possui um horizonte de expectativa: o escritor também nutre expectativas em relação ao<br />
seu leitor (Quem lerá o meu livro? Que idade terá esta pessoa? É membro de uma<br />
sociedade laica, cristã ou islâmica? Quais características das personagens que crio<br />
podem não estar de acordo com a moral deste leitor?).<br />
Contudo, mesmo que o público-alvo sejam os menores, Snicket não os<br />
subestima, deixando pistas e referências a outras obras que também povoam o<br />
imaginário coletivo do Ocidente (Robinson Cruzoé, Chapeuzinho Vermelho, Lewis<br />
Carroll, os irmãos Grimm e algumas lendas populares). Provavelmente, com o<br />
excessivo refinamento de algumas citações, é possível depreender que o leitor adulto<br />
também está contemplado no horizonte de expectativas de Snicket, uma vez que ele<br />
referencia a literatura constante do repertório adulto (Virginia Woolf, T. S. Elliot,<br />
Baudelaire, Platão e Shakespeare, entre outros). Stierle afirma que “o sujeito da<br />
produção e o sujeito da recepção não são pensáveis como sujeitos isolados, mas apenas<br />
como social e culturalmente mediados, como sujeitos ‘transubjetivos’”. (STIERLE,<br />
2001: 143)<br />
A auto-reflexividade da ficção não implica a sua autonomia quanto ao mundo real. O mundo<br />
da ficção e o mundo real se coordenam reciprocamente: o mundo se mostra como horizonte da<br />
ficção, a ficção, como horizonte do mundo. O âmbito da recepção dos textos ficcionais<br />
demarca-se apenas na apreensão desta dupla perspectiva. (STIERLE, 2001: 171)<br />
Mas é pela explicação de Ieda de Oliveira que esta relação autor-leitor torna-se<br />
mais compreensível:<br />
O Eu-comunicante e o Tu-interpretante são pessoas reais, com identidade psicossocial, ao<br />
passo que o Eu-enunciador e o Tu-destinatário são entidades do discurso, só tendo existência<br />
teórica.<br />
(...) O Eu-comunicante, portanto, é quem fala ou escreve e o Tu-interpretante é quem ouve ou<br />
lê (e interpreta) o texto, seja este oral ou escrito. O Tu-destinatário é a imagem que o Eu-<br />
comunicante tem do Tu-interpretante, ou seja, é uma hipótese formulada pelo Eu-comunicante<br />
sobre quem seja o Tu-interpretante. Ocorre que essa é a “imagem” que o Eu-comunicante se<br />
dirige. Se o Tu-destinatário coincidir com o Tu-interpretante (se, portanto, a hipótese do Eu-<br />
comunicante estiver correta) a comunicação será bem sucedida. Caso contrário, ela fracassará.<br />
85
(...) Quanto ao Eu-enunciador, é a imagem de si mesmo que o Eu-comunicante pretende passar<br />
para o Tu-interpretante e que este poderá “comprar” ou não. Na verdade existem dois “eus”<br />
enunciadores, imaginados um pelo Eu-comunicante e outro pelo Tu-interpretante.<br />
(...) Em outras palavras, o Eu-comunicante não tem domínio sobre o Tu-interpretante e a<br />
imagem do Eu-enunciador que o primeiro tenta passar ao segundo pode ser recusada por este.<br />
(OLIVEIRA, Ieda de, 2003: 28-29)<br />
No caso específico da literatura infantil, uma das condições para o sucesso do projeto de<br />
comunicação – que se corre sempre o risco de negligenciar em virtude da diferença de idade<br />
entre o Eu-comunicante e o Tu-interpretante – é a adequação à faixa etária. Os contratos<br />
variam conforme os elementos da situação comunicativa e o Tu-interpretante (com sua faixa<br />
etária) é um desses elementos. (OLIVEIRA, Ieda de, 2003: 35)<br />
6.1 – Aspectos Gráficos: Marketing, editoração e ilustração<br />
É inegável que os aspectos gráficos influenciem a decisão sobre a escolha da<br />
leitura. A primeira leitura de uma obra é a leitura não-verbal de sua capa. A imagem<br />
(fotografia ou desenho, colorida ou P&B), o tipo de material com o qual se<br />
confeccionou o livro (capa de couro, papel reciclado...) e o design (editoração, fonte<br />
tipográfica, posição de inserção das ilustrações) podem dizer muito sobre o livro.<br />
Os critérios de avaliação e de escolha de livros ilustrados são geralmente baseados no âmbito<br />
da “preferência pessoal”, alicerçados em gostos e aversões não-justificados. Assim como existe<br />
uma sintaxe das palavras, existe também uma relativa sintaxe das imagens. (Ruy de Oliveira,<br />
2008: 29)<br />
E no caso das Desventuras em Série isso não é diferente. O tom mórbido da<br />
capa, acentuado pela palidez do bege e pelas ilustrações com motivações de arte gótica,<br />
induz o comprador/sócio de biblioteca a imaginar que temas são ratados na obra.<br />
Os departamentos de marketing das editoras planejam o lançamento de uma obra<br />
de forma muito bem calculada. Tudo é pensado no projeto: qual será o público-alvo, que<br />
estilo de ilustração será mais adequado, o que colocar na contracapa e até mesmo as<br />
dimensões do livro.<br />
Para o lançamento do quinto volume, a editora Cia. das Letras disponibilizou um<br />
livreto, contendo a capa, os créditos e o primeiro capítulo, distribuído gratuitamente nas<br />
grandes livrarias e megastores das regiões metropolitanas do Brasil. (ver Anexos)<br />
Outro fator de enorme contribuição para o sucesso da obra no Brasil foi a<br />
classificação da mesma como “altamente recomendável” pela FNLIJ – Fundação<br />
Nacional do Livro Infantil e Juvenil.<br />
86
As contracapas de todos os livros das Desventuras em Série contêm uma carta de<br />
Lemony Snicket praticando a psicologia reversa ao informar quais são os “ingredientes”<br />
do livro e sugerir que o leitor prefira outro livro àquele.<br />
Caro Leitor,<br />
Se você esperava encontrar uma história tranqüila e alegre, lamento dizer que escolheu o livro<br />
errado. A história pode parecer animadora no início, quando os meninos Baudelaire passam o<br />
tempo em companhia de alguns répteis interessantes e de um tio alto-astral, mas não se deixem<br />
enganar. Se vocês têm uma leve noção da incrível má sorte dos irmãos Baudelaire, já sabe que,<br />
no caso deles, até mesmo acontecimentos agradáveis acabam sempre em sofrimento e<br />
desgraça.<br />
Nas páginas que você tem em mãos, as três crianças sofrem um acidente de carro, vêem-se às<br />
voltas com uma serpente mortífera, um cheiro pavoroso, um facão enorme e o reaparecimento<br />
de uma pessoa que esperavam nunca mais ver.<br />
Infelizmente, é meu dever pôr no papel esses trágicos episódios. Mas nada impede que você<br />
coloque este livro de volta na estante e procure algo mais leve.<br />
Respeitosamente,<br />
Lemony Snicket<br />
(SNICKET, Vol. 2: contracapa)<br />
As ilustrações de Brett Helquist, assim como o texto de Snicket, nos informam.<br />
Há três tipos de ilustrações: informativa, persuasiva e narrativa. As de Helquist se<br />
dividem entre a segunda e a terceira categoria, por estarem direcionadas ao marketing<br />
ao mesmo tempo em que se relacionam com o texto. Sua ilustração chega a se fundir<br />
com o texto, contendo este (Figura 23). Outro exemplo são as ilustrações das páginas<br />
160 e 161 do livro 6. Elas sucedem o trecho em que as crianças são atiradas no poço do<br />
elevador e consistem em dois retângulos totalmente preenchidos pela cor preta, que<br />
cobrem todo o espaço destinado ao corpo do texto (Figuras 20, 21 e 22).<br />
87
Figura 20 - Páginas que antecedem as páginas em preto (Vol. 6)<br />
Figura 21 - Páginas em preto (Vol. 6)<br />
88
Figura 22 - Páginas que sucedem as páginas em preto (Vol. 6)<br />
Figura 23 - Ilustração de Brett Helquist contendo trecho do texto (Vol. 12, cap. 13)<br />
89
As personagens e paisagens da diegese de Snicket são retratadas pelo ilustrador<br />
em tons sombrios e com traços que remetem ao byronismo. Espinhos, grades, dentes<br />
afiados e objetos pontiagudos prevalecem em suas ilustrações (Figuras 24 e 25), de<br />
modo a representar o perigo constante, como se, metaforicamente, a própria capa<br />
tornasse o livro perigoso demais para ser segurado. Em outras palavras, o trabalho de<br />
Helquist foi bem sucedido por estar em consonância com o discurso do autor.<br />
Figura 24 - Ilustração de Brett Helquist (Vol. 4, cap. 5)<br />
Figura 25 - Ilustração de Brett Helquist (Vol. 3, cap. 5)<br />
90
O programador visual ou o ilustrador devem ter um apurado conhecimento de projeto gráfico<br />
para que possam transformar o livro em um objeto físico e sensorial, de contemplação estética.<br />
(...) A atenção aos aspectos plásticos de um livro não se justifica somente no auxílio à<br />
competição e à concorrência, como se o livro fosse um produto de prateleira. Tal esmero com o<br />
gráfico é para inserir a eternidade do livro na contemporaneidade – esta é sua função maior. O<br />
legado artístico que movimentos nos deixaram é o salvo-conduto para essa inserção.<br />
(OLIVEIRA, Ruy de, 2008: 45)<br />
Quanto à classificação das Desventuras em Série como obra estética ou obra de<br />
massa, já foi mencionada anteriormente uma ambiguidade. É uma obra estética que se<br />
aproveita da elaboração das obras de consumo em massa. O livro estético quer ser<br />
vendido em larga escala, e por isso, Snicket, de forma inteligente, engana o leitor best-<br />
seller, para que este compre o livro, embora a narrativa da obra demonstre uma<br />
preocupação maior para com o leitor estético. Jauss discursa sobre a arte vista como<br />
mercadoria:<br />
O discurso pouco crítico sobre o “caráter de mercadoria” da arte, mesmo sob as condições da<br />
sociedade industrial, não considera que, até mesmo os produtos da “indústria da cultura”,<br />
permanecem como mercadorias sui generis, cujo caráter permanente de arte é tão pouco<br />
compreendido pelas categorias de valor de uso e de mais-valia, quanto a sua circulação o é pela<br />
relação de oferta e procura. É só de modo parcial que a necessidade estética é manipulável,<br />
pois a produção e a reprodução da arte, mesmo sob as condições da sociedade industrial, não<br />
consegue determinar a recepção: a recepção da arte não é apenas um consumo passivo, mas<br />
sim uma atividade estética, pendente da aprovação e da recusa, e, por isso, em grande parte não<br />
sujeita ao planejamento mercadológico. (JAUSS, 2001: 56-57)<br />
E por ser contemporânea, a obra de Snicket extrapola o limite gráfico/editorial<br />
ao se incluir em outras mídias. Parte da obra (os três primeiros volumes) foi adaptada<br />
para o cinema e produziram-se comerciais de TV para promover os lançamentos de<br />
cada volume. Um deles, que anunciava o último volume, propunha contar em 120<br />
segundos toda a história dos 12 livros anteriores para quem ainda não tinha lido nenhum<br />
e desejasse ler o último. Este comercial foi transmitido a um número maior de<br />
espectadores, por ter sido lançado também no site YouTube 18 . Por fim, um web site 19<br />
sobre a série foi criado, com textos assinados por Lemony Snicket, no qual são<br />
divulgados novos produtos com a assinatura do autor.<br />
18 Disponível no link http://www.youtube.com/watch?v=ej3hAZ1QnqA<br />
19 Endereço: http://www.lemonysnicket.com/<br />
91
Até a Revista MAD 20 , em uma edição norte-americana, fez uma grande e<br />
inteligente referência às Desventuras em Série. Trata-se de uma sátira da obra,<br />
criticando o excessivo número de volumes e as tediosas repetições de esquemas do<br />
enredo. Embora a revista critique a repetição, ela demonstra reconhecer que o discurso<br />
da obra é inteligente. O jogo com o discurso, isto é, a elaboração discursiva, descarta a<br />
massificação desses livros, pois é o mercado que vai incluir a obra na recepção.<br />
O leitor é muito mais influenciado pelo mercado do que pela própria qualidade<br />
da obra. Ele desconhece a qualidade até que tenha, de fato, lido. É o mercado quem diz<br />
para ele o que deve ser lido. E não adianta dizer “esse livro é bom”, o mercado precisa<br />
criar estratégias para conquistar o leitor e, cada vez mais, essas estratégias têm que ser<br />
mais inteligentes, para conquistar o leitor inteligente.<br />
20 Ver Anexos<br />
Figura 26 - Matéria comparando a obra de Snicket à de J. K. Rowling<br />
92
6.2 - Classificação etária<br />
Como pode uma série aparentemente destinada a crianças e adolescentes ter<br />
conquistado também o público adulto? Seria mesmo esta coleção uma obra infanto-<br />
juvenil ou também trata-se de uma “jogada” de marketing de psicologia reversa dizendo<br />
aos adultos que não devem ler aquilo para instigar sua curiosidade?<br />
O mercado editorial – incluindo a editora que publicou a série – vive uma<br />
enorme instabilidade. Não se pode prever o sucesso de uma obra literária até que ela<br />
chegue às prateleiras, daí a preocupação dos editores em garimpar novos talentos e<br />
consultar especialistas da área a fim de poder especular se aquele produto (o livro) será<br />
consumido em grande escala.<br />
A literatura infantil e juvenil é, antes de infantil e juvenil, LITERATURA. E esta<br />
arte se destina a quem quer que possa por ela se interessar – exceto em casos de obras<br />
inadequadas para menores. A série aqui analisada possui um caráter ambíguo, devido à<br />
própria fluência de sua narrativa e ao sarcasmo diversas vezes empregado.<br />
Vulgarmente, a expressão “literatura infantil” sugere de imediato a ideia de belos livros<br />
coloridos destinados à distração e ao prazer das crianças em lê-los, folheá-los ou ouvir suas<br />
histórias contadas por alguém. Devido a essa função básica, até bem pouco tempo, a literatura<br />
infantil foi minimizada como criação literária e tratada pela cultura oficial como um gênero<br />
menor.<br />
Ligada desde a origem à diversão ou ao aprendizado das crianças, obviamente sua matéria<br />
deveria ser adequada à compreensão e ao interesse desse peculiar destinatário. E como a<br />
criança era vista como um “adulto em miniatura”, os primeiros textos infantis resultaram da<br />
adaptação (ou da minimização) de textos escritos para adultos. Expurgadas as dificuldades de<br />
linguagem, as digressões ou reflexões que estariam acima da compreensão infantil; retiradas as<br />
situações ou os conflitos não-exemplares e realçando principalmente as ações ou peripécias de<br />
caráter aventuresco ou exemplar... as obras literárias era reduzidas em seu valor intrínseco, mas<br />
atingiam o novo objetivo: atrair o pequeno leitor/ouvinte e levá-lo a participar das diferentes<br />
experiências que a vida pode proporcionar, no campo do real ou do maravilhoso.<br />
Compreende-se, pois, que até bem pouco tempo, em nosso século [séc. XX], a literatura<br />
infantil fosse encarada pela crítica como um gênero secundário, e fosse vista pelo adulto como<br />
algo pueril (nivelada ao brinquedo) ou útil (nivelada à aprendizagem ou meio para manter a<br />
criança entretida e quieta). (COELHO. 2000: 29-30)<br />
Se para um leitor infantil os trechos abaixo, por exemplo, podem ter caráter<br />
meramente informativo, para adultos pode indicar plena ironia ao explicar termos que<br />
talvez não façam parte do vocabulário de uma criança:<br />
93
Queimar formigas, não resta dúvida, é um passatempo abominável — a palavra abominável<br />
está aqui usada com o sentido de “habitual do conde Olaf quando ele tinha mais ou menos a<br />
idade de vocês” (SNICKET, Vol. 3: 154)<br />
Durante toda a conversa, Sunny ficou olhando fixo para a frente, e, para um bebê, “olhar para a<br />
frente” significa “olhar para as pernas das pessoas". (SNICKET, Vol. 3: 171)<br />
“Duc!”, gritou Sunny, num desabafo genérico de frustração, e socou o chão com o pequeno<br />
punho. A palavra “genérico” aqui significa “quando a gente é incapaz de pensar em qualquer<br />
outra coisa para dizer”, e não era somente Sunny que se via nessa situação: Violet e Klaus já<br />
não tinham mais idade, naturalmente, para dizer coisas como “Duc!” mas bem que gostariam<br />
de desabafar assim. (SNICKET, Vol. 2: 84)<br />
Apesar do pavor que sentiram ao serem encurralados no retiro secreto dele — expressão que<br />
aqui significa “lugar imundo onde se arquitetam planos maléficos” —, na verdade a<br />
permanência na torre revelou-se bem proveitosa. (SNICKET, Vol. 2: 126-127)<br />
Quando vocês eram muito pequenos, talvez alguém tenha lido para vocês a insípida história —<br />
a palavra "insípida" aqui quer dizer "indigna de se ler para alguém" — do Menino que deu<br />
Alarme contra o Lobo. (SNICKET, Vol. 2: 135).<br />
O dinheiro é um incentivo - a palavra incentivo aqui quer dizer “recompensa oferecida a<br />
alguém para que faça algo que não quer fazer” - para ler livros compridos, chatos e difíceis.<br />
(SNICKET, Vol. 1: 78)<br />
Os bastidores se converteram num completo pandemônio – expressão que aqui quer dizer<br />
“lugar em que atores e auxiliares de cena correm em todas as direções para resolver detalhes de<br />
última hora”. (SNICKET, Vol. 1: 127)<br />
Uma criança talvez não tenha o senso de humor apropriado para rir do deboche,<br />
da mesma forma que para um adulto pode não ser necessário que o autor interrompa a<br />
narrativa para expor seu glossário particular, com a intenção de não causar<br />
ambiguidade. Entretém um adulto e alimenta o vocabulário do leitor jovem, através da<br />
utilização de vocábulos eventualmente rebuscados e não tão corriqueiros na oralidade,<br />
como a palavra “pérfido”, diversas vezes usada para adjetivar os vilões. Cabe<br />
mencionar que a diferença de idade implica na variação dos repertórios e dos horizontes<br />
de expectativas dos leitores. Mesmo com a possibilidade de variação, o texto de Snicket<br />
é claro e acessível, sem que o autor tenha que “baixar o nível” de maturidade da obra,<br />
mostrando que respeita o leitor adulto e não subestima o leitor infanto-juvenil.<br />
Não se trata de um livro exclusivamente infantil e juvenil. Mas o que faz o<br />
mercado colocar estes 13 livros numa seção diferenciada das livrarias é a capa e as<br />
ilustrações, além da linguagem acessível devido a uma certa linearidade narrativa.<br />
Afinal, sempre que uma criança quer um livro é o adulto quem vai à loja comprar. E por<br />
94
mais que um escritor pense num público-alvo quando escreve, é a editora quem vai<br />
direcionar a faixa etária.<br />
Nely Novaes Coelho classifica o leitor infanto-juvenil da seguinte maneira<br />
(COELHO, 2000: 37-40):<br />
a) Pré-leitor: categoria inicial que abrange duas fases. A primeira é chamada de<br />
“primeira infância” (dos 15/17 meses aos 3 anos), quando a criança começa a<br />
conquista da própria linguagem e passa a nomear coisas). Na “segunda<br />
infância” (a partir dos 2/3 anos) predominam o valores vitais e sensoriais e a<br />
criança passa a ser sugestionada por imagens.<br />
b) Leitor iniciante (a partir dos 6/7 anos): fase de aprendizagem da leitura,<br />
predomínio na leitura ainda é em relação a imagens. Os textos já existem,<br />
mas elaborados com palavras de sílabas simples e frases curtas nominais.<br />
c) Leitor-em-processo (a partir dos 8/9 anos): Surge atração pelos desafios e<br />
pelos questionamentos de toda espécie. Requer um esquema linear (início,<br />
meio e fim).<br />
d) Leitor fluente (a partir dos 10/11 anos): Fase de consolidação do domínio do<br />
mecanismo da leitura e da compreensão do mundo expresso no livro. A<br />
leitura segue apoiada pela reflexão. O leior está mais engajado em se<br />
concentrar e as imagens já não são indispensáveis.<br />
e) Leitor crítico (a partir dos 12/13 anos): Fase de total domínio da leitura,<br />
podendo atingir a visão de mundo ali presente. Desenvolve o pensamento<br />
reflexivo e crítico.<br />
Assim, a inclusão do leitor em determinada “categoria” depende não apenas de sua faixa etária,<br />
mas principalmente da inter-relação entre a sua idade cronológica, nível de amadurecimento<br />
biopsíquico-afetivo-intelectual e grau ou nível de conhecimento/domínio do mecanismo da<br />
leitura. Daí que as indicações de livros para determinadas “faixas etárias” sejam sempre<br />
aproximadas. (COELHO, 2000: 32)<br />
Não é incomum no mercado norte-americano que livros “infanto-juvenis” que<br />
abarcaram grande parte do público adulto sejam reeditados com capas diferenciadas,<br />
com uma fotografia em vez de um desenho, de modo que o consumidor adulto não se<br />
sinta constrangido ao ler o livro em locais públicos. A série Harry Potter, por exemplo,<br />
teve duas edições diferenciadas para adultos em alguns países. Foi relançada com capa<br />
de couro e com fotografias em preto e branco ou em cores sóbrias que remetiam a<br />
situações da obra sem acusar, entretanto, o caráter mágico da obra. Na capa de Harry<br />
95
Potter e o Prisioneiro de Azkaban, por exemplo, há na capa a fotografia da ilha em que<br />
fica a masmorra da prisão.<br />
Figura 27 - Versão adulta da capa de um dos livros da série Harry Potter<br />
Andressa Bezerra da Silva, preparadora e revisora da coleção no Brasil, pela<br />
editora Companhia das Letras, esclarece:<br />
"A Companhia das Letras divide os livros em 3 selos: adulto (Companhia das Letras),<br />
infanto-juvenil (Cia das Letras) e infantil (Companhia das Letrinhas). De fato, as<br />
Desventuras estão no selo que atende ao público juvenil (depois do filme, o número de<br />
leitores mais novinhos aumentou, mas o humor negro é para os mais velhos... as<br />
crianças não entendem). Após a aquisição dos direitos de tradução dos livros é que os<br />
editores decidem em que selo vai entrar, de acordo com a faixa etária. Isso não significa<br />
que vá restringir a idade dos leitores." (Recado publicado como recado no site de<br />
relacionamentos Orkut por Andressa, que autorizou o uso desta citação por e-mail 21 ).<br />
As capas diferenciadas para adultos denotam uma flexibilidade editorial. São as<br />
editoras que fazem a distinção dos leitores, mas é com análises como esta que se<br />
reconhece esta flexibilidade. Há, portanto, uma total imprevisibilidade da recepção dos<br />
livros pelo público. Não se sabe, de fato, como prever seu sucesso ou que tipo de<br />
público irá consumir aquele produto. É tudo muito especulativo.<br />
21 Correspondência em anexo<br />
96
6.3. Psicologia<br />
A saga dos irmãos Baudelaire combina uma série de fatores, muitos já<br />
mencionados, que contribuem para a lógica interna dos livros. Especificamente, numa<br />
leitura dos elementos psicológicos presentes no texto, podem-se mencionar dois<br />
métodos de análise: a psicologia reversa e a psicologia infantil.<br />
A primeira, além de ter sido empregada com maestria no marketing editorial, é<br />
muito bem aplicada nas interferências – leia-se “interrupções da narrativa – que o<br />
autor/narrador faz quando se dirige diretamente ao leitor para incentivá-lo a desistir de<br />
continuar sua leitura. Este tipo de psicologia consiste em induzir alguém a fazer<br />
determinada tarefa (ler todos os livros) por meio da sugestão de um ato contrário<br />
(sugerir que pare de ler), como no seguinte trecho:<br />
Por três vezes no decurso da história as personagens estarão em algum lugar terrível com<br />
poucas esperanças de escapar com vida, e por essa razão, se eu fosse você, poria o livro de lado<br />
e escaparia com vida, pois essa deplorável história é tão profundamente sombria, e desgraçada,<br />
e deprimente que você poderá sentir-se na barriga da fera e chegar à conclusão de que o tempo<br />
pouco importa. (SNICKET, Vol. 09, p. 10).<br />
Já a psicologia infantil, uma área de estudo muito complexa e ainda não<br />
totalmente explorada, abrange alguns elementos observados na obra de Snicket.<br />
Tomando como base de fundamentação os estudos de Anne Freud e Dorothy<br />
Burlinghan publicados no livro Meninos Sem Lar (1958), que aborda a psicanálise<br />
infantil aplicada a crianças órfãs, é possível entender melhor o comportamento das<br />
crianças que protagonizam as Desventuras em Série.<br />
Em relação ao desenvolvimento da linguagem, papel que cabe a Sunny<br />
desempenhar ao longo dos treze livros (assunto que será explorado com mais detalhes<br />
no capítulo 8), Freud & Burlinghan afirmam que uma criança entre os 9 e os 10 meses<br />
já é capaz de balbuciar, emitindo diversos ruídos e sons, além de outras melopeias ou<br />
melodias destinadas a chamar certas pessoas (FREUD & BURLINGHAN, 1958: 24).<br />
Com 1 ano de idade a criança possui em média duas palavras habituais que repete<br />
inclusive para designar coisas diferentes.<br />
Sunny ficou batendo numa panela com uma colher de pau, enquanto cantava uma canção um<br />
tanto repetitiva que ela havia composto (SNICKET, Vol. 1: 46).<br />
A frustração sofrida por crianças gera um comportamento agressivo e/ou<br />
antissocial, conforme as psicanalistas informam no capítulo “Satisfação e frustração<br />
instintivas”. Contudo, poucas vezes os órfãos Baudelaire, por mais oprimidos que<br />
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estejam sendo, apresentam tal comportamento. Sua frustração tem como consequência o<br />
mais simples resígnio – mesmo que fiquem com muita raiva, eles raramente externam<br />
isso fisicamente no decurso da obra (agressividade latente, isto é, uma forma de<br />
agressividade mais sutil, presente nos pequenos gestos ou na voz). De qualquer forma,<br />
este silêncio dos oprimidos – grupo do qual também fazem parte os irmãos Quagmire –<br />
pode representar um grito interno, sinal de depressão mais grave, difícil de ser<br />
detectado. Em matéria publicada na Revista Isto É Gente, o Dr. Brunini 22 afirma que a<br />
criança tem seus gritos interiores e o comportamento depressivo é um desses gritos.<br />
De acordo com o Dicionário Técnico de Psicologia, o termo “deslocamento de<br />
agressividade” se refere a uma “ação agressiva dirigida contra uma pessoa ou objeto que<br />
não foi (ou não é) a causa da frustração” (CABRAL & NICK, 2006: 15). O termo, longe<br />
de ser de aplicação exclusiva na psicologia infantil, pode também ser utilizado para<br />
demonstrar o comportamento dos vilões ao terem seus planos frustrados.<br />
Cabe, porém, destacar os casos em que a agressividade toma conta das crianças<br />
Baudelaire. No capítulo 11 do terceiro volume, Snicket conta que “Violet já não tinha<br />
paciência (...) e estendeu a mão e arrancou a rede da cabeça de tia Josephine”<br />
(SNICKET, Vol. 3: 150). No capítulo seguinte é a vez de Klaus agredir Olaf<br />
verbalmente, chamando-o de “demônio do inferno” (SNICKET, Vol. 3: 164). O simples<br />
desejo de matar ou agredir também é uma agressividade, apesar de reprimida. No<br />
volume 1, Violet “olhou com tristeza para o prato de comida do conde, e se surpreendeu<br />
desejando ter comprado veneno no mercado para acrescentar ao molho” (SNICKET,<br />
Vol. 1: 52), e em seguida sugere aos irmãos, como astuciosa maneira de se defender:<br />
“Poderíamos quebrar garrafas ao meio e usá-las como facas” (SNICKET, Vol. 1: 120).<br />
Anne e Dorothy (1958) afirmam também que a criança, ao se sentir abandonada ou<br />
desprotegida, pode adotar um comportamento autodestrutivo para chamar a atenção das<br />
pessoas. É o que acontece quando os Baudelaire provocam alergia em si próprias com<br />
balas de hortelã-pimenta para escapar do novo tutor (SNICKET, Vol. 3: 90-92).<br />
Surge, então, a seguinte indagação: e o leitor? Não é difícil imaginar que um<br />
final frustrante como o volume 13 provoque alguma reação, mesmo que seja um<br />
pequeno spleen. Peço licença para abordar um assunto particular, mas eu, como leitor,<br />
22 Carlos Roberto Brunini é pediatra, mestre em homeopatia, doutor em clínica médica, membro da<br />
American Academy of Pediatrics, diretor da FACIS (Faculdade de Ciências da Saúde de São Paulo) e<br />
autor de mais de 20 livros<br />
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tive vontade de rasgar o livro 13 ao terminá-lo, mas contentei-me em praguejar Lemony<br />
Snicket. Minutos depois raciocinei e concluí que aquele comportamento era exatamente<br />
o que o autor tencionava provocar em quem acompanhasse a série até o fim. Nas<br />
entrelinhas de tudo aquilo, havia um grande “Eu bem que avisei” por trás de toda a<br />
psicologia reversa que insistia para que eu deixasse o livro de lado. Sob o meu ponto de<br />
vista, esta foi a grande genialidade de Lemony Snicket. É o que o torna diferente da<br />
maior parte dos escritores para o público infanto-juvenil, pois ele trata o mero leitor<br />
como um leitor refinado para as devidas apreciações estéticas.<br />
Não é de se admirar que se publique uma série sobre eventos frustrantes e que ao<br />
final de tudo transfira a frustração para o leitor, sobretudo numa época – início do<br />
século XXI – em que a psicologia diagnostica stress e depressão causados por<br />
frustração na infância, e na qual milhares de crianças recebem psicotrópicos e isso é<br />
abertamente discutido pela imprensa de modo geral. Crianças e adolescentes, hoje,<br />
integram o rol dos consumidores de antidepressivos. Em março de 2003, o FDA 23<br />
liberou o uso do Prozac para crianças a partir de 7 anos 24 . Estima-se que a depressão<br />
atinja 2% das crianças e 5% dos adolescentes em todo o mundo (Revista Isto É Gente,<br />
08/05/2006). Na Santa Casa de Misericórdia do Rio, por exemplo, o número de casos<br />
aumentou 10% de 1995 até 2000. Dos pacientes atendidos nesse período, 76%<br />
chegaram ao hospital sem que os pais soubessem do estado depressivo dos filhos 25 .<br />
Snicket indica que, mesmo anos depois do ponto em que termina a narração dos fatos da<br />
série, Klaus sofreria de depressão:<br />
Mas, anos depois, deitado na cama, Klaus amargava o pensamento de que talvez,(...) se<br />
houvesse agido a tempo, poderia ter salvado a vida do Tio Monty” (SNICKET, Vol. 2: 49)<br />
A própria curiosidade é um motivo de frustração, segundo as pesquisadoras<br />
Freud & Burlinghan.<br />
No caso em que os pais, embora não impondo restrições, não chegam a fornecer respostas<br />
satisfatórias, são as próprias condições do meio familiar que elucidam as crianças. Elas<br />
observam atentamente as reações entre os pais, suas fisionomias, anotam pedaços estranhos de<br />
frases, ruídos ouvidos à noite... (FREUD & BURLINGHAN, 1958: 114).<br />
23 U. S. Food and Drug Administration<br />
24 VEIGA, Aida & BURCKHARDT, Eduardo. O desafio da depressão. Revisa Época, ed. 259 (05/05/2003).<br />
25 Artigo publicado no endereço eletrônico http://www.psique.med.br/content/index.php?option=com_<br />
content&view=article&id=176:depressao-infantil&catid=64:disturbiosdepressivos&Itemid=89)<br />
99
É com este repertório de observações que a criança arquiteta suas próprias<br />
respostas. Os órfãos Baudelaire estão em busca de respostas. Quem foram seus pais na<br />
verdade? Eles estão mesmo mortos? Qual era a verdadeira função da sociedade secreta<br />
da qual seus pais faziam parte? Qual o grande mistério envolvendo o açucareiro que<br />
tantos adultos morreram para proteger? Que fim tiveram os trigêmeos Quagmire? Essas<br />
são algumas das muitas dúvidas que surgem para os protagonistas – e para o leitor – que<br />
em momento algum serão satisfatoriamente respondidas.<br />
Assim como na citação de Freud & Burlinghan (1958), o leitor terá que buscar<br />
suas próprias respostas, uma vez que – conforme já foi dito no capítulo 3 – a arte<br />
contemporânea não se importa em dar respostas. Assim como os textos de Platão, ela<br />
vem nos trazer mais indagações, fato que mexe com o fator psicológico do leitor.<br />
Snicket é competente em instigar o leitor, não importa qual seja a sua faixa etária.<br />
Os mergulhos psicanalíticos, a decifração da imagem pelos labirintos semiológicos, os<br />
reducionismos da obra de arte às questões históricas e sociais, os idealismos de que as imagens<br />
se originam de imagens e seguem indiferentes aos clamores humanos individuais e coletivos,<br />
enfim, todas essas leituras – e existem outras – o nome já as define bem, são leituras da obra de<br />
arte. Necessárias. Importantes. No entanto, são aproximações, camadas reveladoras da criação<br />
artística. (OLIVEIRA, Rui de, 2008: 30)<br />
Importante é ressaltar que não pretendo com estas afirmações ser determinista,<br />
uma vez que nem sempre a psicanálise enxerga os fatos da mesma forma. Devemos<br />
sempre levar em conta as singularidades dos casos analisados.<br />
Entre os polêmicos temas explorados na obra de Snicket, o que mais se destaca<br />
é, sem dúvida, o sentimento de abandono e descaso sentido pelos órfãos. O trauma<br />
infantil decorrente de abusos, agressões e sentimentos de culpa também se inclui neste<br />
assunto, bem como as frustrações originadas pela criação de expectativas vãs e da falta<br />
de atenção e respeito por parte dos adultos.<br />
As crianças Baudelaire estão sempre criando expectativas, a respeito de outras<br />
pessoas e do próprio destino, que se mostram enganosas poucas páginas depois. “O Dr.<br />
Montgomery seria uma pessoa legal? (...) Melhor que o Conde Olaf, pelo menos?”<br />
(SNICKET, Vol. 2: 16).<br />
É grave o sentimento de abandono, pois compromete o desenvolvimento<br />
saudável das crianças, uma vez que toda criança demanda atenção e apoio. Em relação<br />
ao abandono dos Baudelaire, Snicket diz: “a maioria de seus amigos, desde a morte de<br />
seus pais, pararam de telefonar ou escrever para eles, não apareceram nem uma vez para<br />
ver como estavam, deixando-os muito solitários” (SNICKET, Vol. 1: 37). Outro trecho<br />
100
que demonstra a enorme necessidade de apoio dos órfãos é quando o autor diz que “às<br />
vezes o simples fato de você dizer que detesta alguma coisa e ter alguém que concorda<br />
com você pode ajudá-lo a superar uma situação horrível” (SNICKET, Vol. 1: 35-36).<br />
"Bom dia, crianças", disse o Sr. Poe. "(...) encontrar um novo lar para vocês foi uma tarefa um<br />
tanto aborrecida. (...) Fiz telefonemas para uma porção de parentes distantes de vocês, mas<br />
todos eles ouviram falar das coisas terríveis que tendem a acontecer onde quer que vocês se<br />
encontrem. É compreensível, eles ficam desassossegados demais por causa do conde Olaf para<br />
concordar em tomar conta de vocês. 'Desassossegado', aliás, quer dizer 'nervoso'. Há mais<br />
uma..."<br />
Um dos três telefones em cima da mesa do Sr. Poe interrompeu-o com um toque estridente e<br />
feio. "Com licença", disse o banqueiro às crianças, e começou a falar ao telefone. "Aqui é Poe.<br />
OK. OK. OK. Foi o que eu pensei. OK. OK. Obrigado, Sr. Fagin." O Sr. Poe desligou o<br />
telefone e fez uma marca em um dos papéis sobre a sua escrivaninha. "Era um primo de vocês<br />
em décimo nono grau", disse o Sr. Poe, "e a minha última esperança. Achei que poderia<br />
persuadi-lo a ficar com vocês, só por uns poucos meses, mas ele recusou. Não posso culpá-lo.<br />
Receio que a reputação de vocês como encrenqueiros esteja arruinando até mesmo a reputação<br />
do meu banco.” (SNICKET, Vol. 7: 16-17)<br />
O descaso para com os Baudelaire não se trata apenas de uma falta de atenção ou<br />
afeto, uma vez que muitos dos adultos que deveriam ter um pouco mais de<br />
responsabilidade sobre suas vidas pouco parecem se importar, o que é notado quando<br />
Bruce diz: “Seja lá aonde quer que vocês sejam enviados” (SNICKET, Vol. 2: 174)<br />
após a morte do tio Montgomery (tutor dos Baudelaire no vol. 2), mas se trata também<br />
da própria recusa em dar ouvidos aos apelos das crianças, como o Sr. Poe, que não quer<br />
ouvir sua versão dos fatos envolvendo a morte de Montgomery (SNICKET, Vol. 2: 130-<br />
131) e menosprezando, portanto, sua opinião. Os Baudelaire, já no terceiro volume, se<br />
decepcionam ao constatar que sua segurança não era uma prioridade para os adultos<br />
(SNICKET, Vol. 3: 136), após testemunharem o ato covarde de sua tia Josephine.<br />
Lidar com a morte de alguém também é complicado, sobretudo para uma<br />
criança. E Snicket explora este assunto:<br />
É uma coisa curiosa, a morte de um ente querido. Todos nós sabemos que nosso tempo neste<br />
mundo é limitado, e que eventualmente todos nós acabaremos embaixo de algum lençol para<br />
nunca mais despertar. E no entanto é sempre uma surpresa quando isso acontece com alguém<br />
que conhecemos. É como subir as escadas para o nosso quarto no escuro e pensar que há um<br />
degrau a mais do que de fato existe. Seu pé cai pelo ar e há um momento doentio de sombria<br />
surpresa, enquanto você tenta reajustar o modo como pensa nas coisas. (SNICKET, 2009: 117)<br />
Em situações mais desagradáveis, as crianças têm que lidar com o alcoolismo<br />
dos adultos e a agressão oriunda destes. “O Conde Olaf pegara uma garrafa de vinho<br />
101
para se servir da bebida como café-da-manhã” (SNICKET, Vol.1: 89). Crianças em<br />
ambientes assim tendem a sentir culpa pelos problemas dos pais ou responsáveis, bem<br />
como o sentimento de culpa em relação à morte de seus genitores ou tutores, como o<br />
“peso” que sentem após o assassinato do tio Monty (SNICKET, Vol.2: 93-94). Por mais<br />
que saibam que não foram culpados diretamente pela morte, sentem culpa por sua<br />
impotência em evitar o crime.<br />
Quanto às agressões, podem ser citados os seguintes trechos:<br />
Em seguida, [Olaf] acertou o rosto de Klaus. O garoto caiu no chão (SNICKET, vol. 1: 54).<br />
Com um rápido movimento da perna de pau chutou Sunny para o outro extremo do barco<br />
(SNICKET, vol. 3: 163)<br />
O comportamento dissimulado é outra característica transformadora da<br />
personalidade dos Baudelaire. Violet explica aos irmãos sobre o “segredo do sucesso na<br />
espionagem” (SNICKET, Vol.2: 123-124) para mencionar vantagens de mentir e ser<br />
dissimulado.<br />
“Você é tão generosa em nos dar todas essas coisas”, disse Violet, porque era bem-educada,<br />
não acrescentou que aquelas coisas estavam bem longe do agrado deles. (SNICKET, Vol. 3:<br />
25)<br />
Sunny, mesmo sendo um bebê, já consegue dissimular – fato que, pelo menos na<br />
ficção, é possível. Ao se enroscar na Víbora Incrivelmente Mortífera, Sunny grita para<br />
fingir estar em perigo. Diz Snicket:<br />
Quando conhecemos muito bem uma pessoa, como nossa avó ou a babá, na mesma hora<br />
sabemos dizer se elas são reais ou se são impostoras. Por isso, quando Sunny começou a gritar,<br />
Violet e Klaus perceberam de imediato que o grito era absolutamente falso. (SNICKET, Vol. 2:<br />
137).<br />
Figura 28 - Ilustração de Brett Helquist (cap. 10, vol. 2)<br />
102
7. TEMATIZAÇÃO DO LEITOR<br />
Esta pesquisa não procura de modo algum em teorizar a tematização do leitor,<br />
mas apenas fazê-la entendida.<br />
A tematização ocorre quando o leitor passa juntamente com a personagem pelas<br />
mesmas sensações, no mesmo momento. As ordens, as interdições, as alegrias, os<br />
medos. Não se trata de sensibilizar o leitor após a leitura, i.e., fazer com que ele sinta<br />
pena, mas sim fazer com que ele vivencie o sentimento da personagem em “tempo real”<br />
ao longo de sua leitura. Assim como o leitor, as personagens não sabem o que (ou como<br />
o fato) vai acontecer e o leitor também fica na mesma expectativa por uma questão de<br />
elaboração.<br />
Snicket, em suas interrupções, faz o leitor ficar com uma sensação de medo e<br />
continuar com ela, para depois desfazer essa sensação. Ele controla o leitor. Ele<br />
conversa com o leitor como se ele (o autor) fosse uma personagem conversando com<br />
outra (o leitor) fora da história.<br />
O que Snicket tanto repete não é simplesmente um esquema de situações, o que<br />
o autor provavelmente quer dizer é algo a respeito da situação de crianças órfãs e<br />
abandonadas que têm que sobreviver. Mas a formulação discursiva distancia esses<br />
esquemas dos esquemas comuns. O esquema existente está no nível da história dos<br />
Baudelaire. No nível da história, o esquema é massificante. Agora, o grande barato é<br />
que isso foi intencionalmente esquematizado para enganar o leitor, tematizando-o com o<br />
mesmo tédio pelo qual passam as personagens. Snicket utilizou os esquemas previsíveis<br />
da cultura de massa para criticar esse próprio tipo de organização narrativa, de produção<br />
textual ficcional.<br />
A tematização do leitor é uma experiência estética diferenciada da experiência<br />
pós-leitura. É uma problematização. Não é necessário ter terminado de ler a obra para<br />
ter tido a experiência que dela deriva. A experiência do leitor está no interior da obra,<br />
junto com a experiência das personagens. A personagem apenas age, quem constrói o<br />
horizonte de expectativa e os sentimentos é o leitor.<br />
É possível ganhar uma experiência de vida através da estética. Se a leitura for<br />
capaz de tematizar o leitor, ele vai ser capaz de sentir na pele as sensações da<br />
personagem. Por exemplo, no livro As Horas de Michael Cunningham, há um trecho em<br />
que a personagem Clarissa vê Richard, seu melhor amigo de toda a vida, que é<br />
soropositivo e encontra-se em estágio terminal, sentado na janela com a intenção de se<br />
103
matar. A tematização é tão forte que, mesmo um leitor que nunca passou por esta<br />
experiência será capaz de vivenciar o drama de ver um amigo se matando, mesmo que<br />
isso nunca venha a acontecer na vida “real” do leitor. A experiência empírica também se<br />
adquire “por tabela”, i.e., é possível conhecer uma experiência ao ouvir alguém que<br />
passou pessoalmente por aquela experiência falando a respeito. O mesmo se dá com a<br />
leitura.<br />
Para mostrar exemplos de como isso acontece muito na literatura contemporânea<br />
(apesar de já ter ocorrido no realismo machadiano), escolhi citar trechos de João Ubaldo<br />
Ribeiro e Michael Cunningham, nos quais o leitor está recebendo aquilo que as<br />
personagens também estão recebendo (informação → expectativa → reação de<br />
sentimento). O primeiro trecho é o de Michael Cunningham, que foi mencionado acima:<br />
Ela chega para ajudar Richard a se aprontar para a festa, mas ele não responde às batidas na<br />
porta. Bate de novo, mais forte, depois rapidamente, com nervosismo, destranca-a com sua<br />
própria chave.<br />
O apartamento está inundado de luz. Da soleira, Clarissa sufoca uma exclamação de espanto.<br />
Todas as persianas estão erguidas, todas as janelas estão abertas. (...)<br />
Corre até o outro aposento e encontra Richard ainda de roupão, montado no parapeito da janela<br />
aberta, uma perna emaciada ainda dentro, a outra, invisível, pendurada no ar cinco andares<br />
acima do chão.<br />
“Richard”, ela diz, severa. “Desça daí.”<br />
“Está tão bonito lá fora. Que dia. (...) Eu tomei o Xanax e o Ritalin. Juntos eles funcionam que<br />
é uma maravilha. Me sinto ótimo. (...)”<br />
“Querido, por favor, ponha as pernas no chão. Você faz isso por mim?”<br />
“Acho que não vou conseguir ir à festa. Desculpe.”<br />
“Você não precisa ir. Você não precisa fazer nada.”<br />
“Que dia, este. Que dia mais lindo, lindo.” (...)<br />
[Mais três páginas de diálogo tematizam o leitor com toda a tensão possível]<br />
(Richard:) “Receio que eu não possa ir à festa.”<br />
“Por favor, eu lhe peço, não se preocupe com a festa. Nem pense na festa. Me dê sua mão.”<br />
“Você tem sido tão boa para mim, Mrs. Dalloway.”<br />
“Richard – ”<br />
“Eu amo você. Isso lhe soa banal?”<br />
“Não.”<br />
Richard sorri. Sacode a cabeça. Diz: “Acho que ninguém pode ter sido mais feliz do que nós<br />
fomos”.<br />
Inclina-se um pouco, escorrega delicadamente do parapeito e cai.<br />
Clarissa grita: “Não – ”<br />
104
Ele parece tão seguro, tão sereno, que por um instante Clarissa imagina que não tenha<br />
acontecido nada. Chega à janela a tempo de ver Richard ainda no ar, o roupão esvoaçando, e<br />
ainda nesse momento parece que talvez não passe de um acidente pequeno, algo passível de<br />
reparação. Ela vê quando ele atinge o chão, cinco andares abaixo, vê quando ele se ajoelha no<br />
concreto, vê quando a cabeça bate, ouve o som que ela faz e, ainda assim, acredita, pelo menos<br />
por mais um instante, debruçada no parapeito, que ele vai se levantar outra vez, meio zonzo,<br />
quem sabe, sem fôlego, mas ainda ele mesmo, ainda inteiro, ainda capaz de falar.<br />
Ela chama seu nome, uma vez. O som sai em forma de pergunta, bem mais baixo do que<br />
pretendia. Ele jaz onde caiu, de cara para o chão, o roupão atirado sobre a cabeça, as pernas<br />
nuas expostas, brancas contra o concreto escuro.<br />
Ela sai correndo do quarto, atravessa a porta, que deixa aberta. Desce correndo as escadas.<br />
Pensa em pedir ajuda, mas não pede. O próprio ar parece ter mudado, ter se separado um<br />
pouco; como se a atmosfera fosse feita, de modo palpável, de substância e de seu oposto.<br />
(CUNNINGHAM, 1999: 155-159)<br />
João Ubaldo Ribeiro articula o discurso de seu narrador-personagem, de modo<br />
que ele se reporte diretamente ao leitor e o insulte, provocando a ira deste:<br />
Faz dois dias, parei de escrever este livro, que, aliás, me tem saído bem menos dificultoso do<br />
que eu imaginava antes, no que desmistifico mais um pouco a suposta possessão dos escritores<br />
pelas musas, ou a necessidade de aptidões especialíssimas para escrever um livro. Além disso,<br />
aprende-se com a prática (...). Não vou corrigir nada, até porque não está mal escrito. (...)<br />
(...) Sei que, irremediavelmente, cada um que ler estas páginas vai fazer uma ideia individual,<br />
diversa das alheias, embora talvez semelhante nas linhas gerais. Mas compete a mim manter a<br />
disciplina narrativa sob controle racional, procurando evitar tanto quanto possível<br />
interpretações equivocadas, irritantes e enervantes. Se você acha que posso estar me referindo a<br />
você, tem toda a razão, porque a maioria lê através de filtros a que se apega de forma demente<br />
e não vejo motivo para você ser exceção. Há muita gente, gente demais, que lê nas entrelinhas,<br />
um perfeito exercício de imbecilidade, (...) aqui não são oferecidas entrelinhas, à merda o<br />
entrelinhador, pode largar este livro e ir gastar seu tempo ruminando o bolo alimentar de<br />
sempre. Melhor do que ler textos diretos querendo ser esperto e vendo nele coisas indiretas.<br />
(...) E algum idiota, inclusive possivelmente você, ao menos segundo meus critérios<br />
estatísticos, poderá ficar pensando em denúncias e outras tolices semipanfletárias, em sua<br />
maior parte cretinas. (...) não vou deixar o que venha de você atingir-me, mas exasperação<br />
contra a burrice geral, o que me leva a reiterar que leia se quiser; se não quiser, vá pastar com<br />
as outras alimárias. (RIBEIRO, 2002: 179-182)<br />
Diz Jauss sobre os ensaios no campo da experiência estética:<br />
(...) encontram sua limitação necessária na competência do especialista em literatura. Ainda<br />
quando estes ensaios incluam testemunhos da história de outras artes e se apóiem nos<br />
resultados da história da filosofia e da história dos conceitos, de modo algum desmentem que o<br />
autor adquiriu sua experiência, assim como que sua reflexão hermenêutica se formou na práxis<br />
da interpretação literária. (JAUSS, 2001: 45)<br />
105
Então, a questão da recepção não é uma vivência própria. Vive-se também a<br />
experiência do outro. Lemony Snicket, por exemplo, é leitor de Charles Baudelaire e<br />
passa a tematizar seus próprios leitores com a tematização de Baudelaire. A experiência<br />
estética é a experiência de quem leu, mesmo que essa “leitura” tenha sido por outras<br />
linguagens artísticas, como a leitura não-verbal de uma pintura ou a leitura sonora de<br />
uma música. (Stierle: “O sujeito da produção e o sujeito da recepção não são pensáveis<br />
como sujeitos isolados, mas apenas como social e culturalmente mediados, como<br />
sujeitos ‘transubjetivos’.”). Snicket, tematizado por Baudelaire, vai trazer em sua escrita<br />
uma nova leitura de Baudelaire, que não é o Baudelaire dos poemas, mas sim o das<br />
tragédias, representado por um nome de família, nem que seja apenas uma parcela da<br />
biografia de Charles Baudelaire. Eu fui tematizado por Snicket e, por consequência, por<br />
Charles Baudelaire.<br />
Uma obra de arte perdura. E para entender como a posteridade a recebe, isto é,<br />
quando uma geração posterior à do autor tem acesso à obra, faço novamente uso de<br />
Jauss para explicar o que ocorre neste caso:<br />
Quando o leitor contemporâneo ou as gerações posteriores receberem o texto, revelar-se-á o<br />
hiato quanto à poiesis, pois o autor não pode subordinar a recepção ao propósito com que<br />
compusera a obra: a obra realizada desdobra, na aisthesis e na interpretação sucessivas, uma<br />
multiplicidade de significados que, de muito, ultrapassa o horizonte de sua origem. A relação<br />
entre poiesis e katharsis tanto pode se dirigir ao destinatário, que deve ser persuadido ou<br />
ensinado pela retórica do texto, quando remeter ao próprio produtor: o autor pode tematizar<br />
expressamente o “poetar do poetar”, como se a liberação d sua psique fosse um efeito da<br />
poiesis – cantando Il duol si disacerba (“com o canto, a dor se abranda”), como diz o famoso<br />
verso de Petrarca, verso em que a ficção extinguiu o hiato entre a emoção e a distância própria<br />
à escrita. (JAUSS, 2001: 81)<br />
De acordo com Jauss, a catarse liberta o expectador dos interesses práticos e das<br />
implicações de seu cotidiano, a fim de levá-lo, através do prazer de si no prazer no<br />
outro, para a liberdade estética de sua capacidade de julgar.<br />
A distância estética não pode ser compreendida apenas como uma relação unilateral e solidária,<br />
apenas contemplativa e desinteressada quanto ao objeto “distanciado”. Na reação de prazer<br />
ante o objeto estético, realiza-se, ao invés, uma reciprocidade entre sujeito e objeto, em que<br />
“ganhamos interesse em nossa ausência de interesse”. Este interesse estético se explica de<br />
forma mais simples pelo fato de que o sujeito, enquanto utiliza sua liberdade de tomada de<br />
posição perante o objeto estético irreal, é capaz de gozar tanto o objeto, cada vez mais<br />
explorado por seu próprio prazer, quanto seu próprio eu, que, nesta atividade, se sente liberado<br />
de sua existência cotidiana. (JAUSS, 2001: 76)<br />
106
Lemony Snicket consegue, ao longo de treze volumes, encadear uma série de<br />
sentimentos no leitor que abrange desde o tédio da repetição até a frustração pelo<br />
desenlace insatisfatório, e o faz com maestria, planejando a construção desta<br />
tematização em consonância com a narrativa que constitui seu tecido textual.<br />
Figura 29 - Ilustração de Brett Helquist (Vol. 3, cap. 2)<br />
Figura 30 - Ilustração de Brett Helquist (Vol. 3, cap. 9)<br />
107
8. SUNNY E A AQUISIÇÃO DA LINGUAGEM<br />
Dos três irmãos Baudelaire, Sunny é a personagem mais intrigante e menos<br />
inverossímil da história. Entretanto, é a única que mostra alguma modificação de<br />
comportamento, pois nela ocorrem transformações.<br />
Por ser ainda um bebê, sua fala não é desenvolvida, mas esta evolução da<br />
linguagem vai ocorrer a partir da metade da série. Sunny é pura, a linguagem nasce<br />
nela, pois ela ainda não foi contaminada por outros sentidos pré-determinados.<br />
Semiologicamente, ela representa o grande desafio à expressão: seu esforço para<br />
comunicar-se, assemelha-se ao esforço do poeta, do artista que elabora sua linguagem,<br />
no sentido de surpreender, provocar o assombro, sendo na temática, a partir de um<br />
ponto de vista inusitado, ou na construção do discurso, a partir de associações originais<br />
de palavras, de recursos expressivos singulares. Sua fala apresenta incertezas e<br />
indecisões, podendo simbolizar a dificuldade de expressão do autor.<br />
“Eu simplesmente não entendo”, disse Klaus, o que não era algo que ele dissesse com muita<br />
freqüência. Violet concordou com a cabeça e depois disse alguma coisa que também ela não<br />
dizia com muita freqüência:<br />
“É um quebra-cabeça que não tenho certeza se somos capazes de resolver.”<br />
“Pietrisycamollaviadelrechiotemexity”, disse Sunny, o que era algo que ela só tinha dito uma<br />
vez antes daquela. Significava alguma coisa na linha de: “Devo admitir que não tenho a mais<br />
pálida idéia do que está acontecendo”, e na primeira vez em que a mais jovem dos Baudelaire<br />
dissera isso, ela acabara de ser trazida para casa do hospital onde nascera e estava olhando para<br />
os irmãos quando eles se debruçaram sobre o berço para saudá-la. (SNICKET, vol. 8: 68-69)<br />
Retomando a observação da psicanálise, o que mais chama a atenção no trabalho<br />
das duas psicanalistas para os objetivos desta pesquisa é a seguinte observação: “Certas<br />
crianças reservam para sua mãe uma linguagem ou uma série de sons especiais.”<br />
Segundo Anne Freud & Dorothy Burlinghan (1958), a criança adota uma espécie de<br />
grunhido para indicar que não gosta de algo e um grasnar para indicar o que gosta, de<br />
modo que apenas quem está familiarizado com ela – geralmente a mãe – consiga<br />
entender suas necessidades.<br />
Com Sunny não é diferente. Apesar do seu tatibitate habitual, que nunca é<br />
entendido pelos adultos, apenas seus irmãos – e o narrador – sabem exatamente o que<br />
ela quer dizer. Esta característica, além de curiosa, cria todo um sentido irônico, uma<br />
vez que, na narrativa, são de Sunny as idéias e comentários mais brilhantes – como no<br />
108
trecho a seguir –, embora seus interlocutores não entendam mais do que grunhidos –<br />
Olaf chega a comparar sua fala à de um macaco no primeiro livro.<br />
Disse Klaus melancolicamente, “nem sequer sabemos o que o conde Olaf pretende fazer.”<br />
“Bem, vamos tentar tirar isso a limpo”, disse Violet, usando uma expressão que aqui significa<br />
“esmiuçar uma questão, discutindo-a e analisando-a até compreendê-la inteiramente”. “O<br />
conde Olaf, sob o falso nome de Stephano, veio para essa casa disfarçado e é evidente que está<br />
atrás da fortuna dos Baudelaire.”<br />
“E”, continuou Klaus, “uma vez que se apodere dela, planeja matar-nos.”<br />
“Tadu”, murmurou Sunny solenemente, com a provável intenção de significar algo como<br />
“Estamos metidos numa encrenca dos diabos.” (SNICKET, Vol. 2: 83)<br />
É a própria fala de Sunny que ajuda o autor a fazer referências simbólicas à<br />
cultura da tradição ocidental, ao referir-se a contos tradicionais infantis. Na segunda<br />
metade da série, por exemplo, quando Sunny está separada de seus irmãos por ter sido<br />
raptada pela gangue de Olaf, a caçula dos Baudelaire torna-se mão-de-obra escrava para<br />
seus malfeitores. Tão logo é encontrada pelos irmãos, que lhe perguntam como tem<br />
passado, ela – que a essa altura da série já possui um vocabulário mais lógico, apesar de<br />
não formar frases – resume tudo o que passou com uma única palavra: “Cinderela!”. No<br />
trecho a seguir, Violet e Quigley acabam de encontrar Sunny na montanha:<br />
"Arigatô”, disse Sunny, o que queria dizer alguma coisa parecida com: “Apreciamos a sua<br />
ajuda, Quigley”.<br />
“Foi você quem enviou um sinal para nós?”, perguntou ele.<br />
“Eu”, disse Sunny. “Lox”<br />
“O conde Olaf andou obrigando você a preparar a comida?”, perguntou Violet, perplexa.<br />
“Carmiga sopratudo”, disse Sunny.<br />
“Olaf a obrigou até a limpar as migalhas do carro”, traduziu Violet para Quigley.<br />
“Isso é ridículo!”, disse Quigley.<br />
“Cinderela”, disse Sunny. Ela queria dizer algo do gênero de: “Tive de fazer todas as tarefas<br />
domésticas e fui humilhada o tempo todo”, mas Violet não teve tempo de traduzir, pois a voz<br />
rascante do conde Olaf soou.<br />
“Onde está você, Bebelaire?”, perguntou ele, somando um apelido absurdo à sua lista de<br />
insultos. “Tenho tarefas para você.”<br />
As três crianças se entreolharam em pânico. “Escondesconde”, sussurrou Sunny, e nem foi<br />
preciso traduzir. (SNICKET, Vol. 10: 184)<br />
Cinderela, mais do que personagem da cultura oral popular anglo-saxã na Idade<br />
Média – e depois da cultura escrita, por ter sido imortalizada pelo texto dos irmãos<br />
Grimm –, faz parte do imaginário coletivo ocidental, devido à universalização dos<br />
contos de Grimm, e é um dos itens da cultura de massa. Por “Cinderela”, mesmo que<br />
109
não seja pela boca de Sunny, entende-se o sentido de “trabalhos forçados e maus tratos<br />
por parte de um adulto”. Por que o nome da personagem clássica torna-se um símbolo<br />
de sua atitude, comportamento ou destino? Inconscientemente, cada leitor faz uma<br />
leitura semiológica ao ler o nome de Cinderela. Um nome próprio que adquire valor de<br />
símbolo, quando seu sentido corresponde às funções de um adjetivo.<br />
Apesar da dificuldade de comunicação com os adultos, e, pode-se dizer, de<br />
provocar um grau considerável de entropia no curso de sua mensagem, (uma vez que<br />
não foi prevista pelo narrador nenhuma chave decodificadora dos signos que emprega<br />
para elaborar seu discurso, e assim eliminando a chance de o leitor compreender suas<br />
intenções comunicativas), Sunny demonstra ter inteligência de níveis superiores aos de<br />
sua fala. Ela ainda não sabe pronunciar e nomear corretamente o que tem para dizer,<br />
mas tem de fato algo a dizer. Chomsky (CHOMSKY apud LUFT) diz que “Uma criança<br />
que adquire a língua (...) sabe evidentemente muito mais do que aquilo que ‘aprendeu’.<br />
O seu conhecimento da língua vai muito além dos dados lingüísticos primários que lhe<br />
foram apresentados” (CHOMSKY apud LUFT, 2006: 54). Para Luft “o ser humano<br />
nasce provido de uma gramática genérica”. É a tese do inatismo. É o que Dubois<br />
(DUBOIS apud LUFT) explica no seguinte trecho: “A linguagem repousa sobre uma<br />
estrutura inata, ativada pelo meio [social] num processo que é o da aquisição da<br />
linguagem. A linguagem aparece, com efeito, como aptidão própria da espécie humana”<br />
(DUBOIS apud LUFT, 2006: 52).<br />
Luft afirma também que “algumas expressões infantis são verdadeiras criações<br />
artísticas, com metáforas, sinestesias, imagens variadas – coisa de fazer inveja a<br />
calejados poetas”. Não seria a poesia dadaísta de certa forma inspirada nesta raiz<br />
lingüística, que é a fala dos bebês? Sobre o fato de Sunny aprender a pronunciar<br />
palavras próximas do nome correto, como carmiga (= migalhas do carro) no trecho<br />
acima, o teórico da linguagem continua explicando:<br />
Esse domínio restrito de palavras-nomes se comprova no estágio da ‘fala telegráfica’, no qual a<br />
criança se expressa e se comunica com essa classe de vocábulos, sem recorrer a elementos<br />
gramaticais de encadeamento frasal ou estruturação sintática. A criança simplesmente aponta o<br />
objeto e diz seu nome, sem construir frases (orações ou fragmentos de oração). (LUFT, p. 60)<br />
O autor menciona como exemplo seu próprio filho, que até aprender<br />
corretamente a pronunciar a palavra travesseiro, seguiu um processo no qual foi<br />
desmontando e reconstruindo a palavra até acertar: *sevelo → *tassevelo →*tavesselo<br />
→ *travesseiro.<br />
110
Portanto, existem exemplos de situações em que mesmo uma pessoa que sabe o<br />
uso correto da língua não sabe se comunicar. Sunny é, entre outras coisas, a metáfora<br />
que explica por que saber a língua não se confunde com saber se comunicar.<br />
"Quem irá tomar conta de nós?", disse Klaus, o olhar perdido no horizonte.<br />
"Ninguém", disse Violet. "Teremos de tomar conta de nós mesmos. Teremos de ser auto-<br />
sustentáveis."<br />
"Como a casa móvel auto-sustentável a ar quente", disse Klaus, "que pode viajar e sobreviver<br />
sozinha."<br />
"Como eu", disse Sunny e, de repente, pôs-se em pé. Violet e Klaus soltaram um gritinho<br />
abafado de surpresa quando a sua irmã bebê deu os seus primeiros passos cambaleantes, e<br />
depois foram andar bem perto ao lado dela, prontos para segurá-la se caísse.<br />
Mas ela não caiu. Sunny deu mais alguns passos auto-sustentados, e então os três Baudelaire<br />
ficaram em pé juntos, lançando longas sombras na direção do horizonte à luz moribunda do<br />
ocaso. (SNICKET, Vol. 7: 225-226)<br />
Figura 31 - Ilustração de Brett Helquist ao fim do livro 7<br />
111
9. A ADAPTAÇÃO PARA O CINEMA<br />
O filme Desventuras em Série foi dirigido por Brad Silberling e consiste na<br />
adaptação de um corte da obra correspondente aos três primeiros volumes, Mau<br />
começo, A sala dos répteis e O lago das sanguessugas.<br />
A direção de arte mostrou-se impecável na criação de ambientes fiéis ao<br />
universo proposto pelo texto literário. Os tons em cinza e sépia predominam tanto nos<br />
cenários e figurinos quanto na iluminação e na fotografia.<br />
Não é só o aspecto visual retratando as ilustrações de Helquist que cumpre a função de<br />
recontar a história dos Baudelaire, o roteiro também foi elaborado de acordo com a<br />
estética narrativa de Snicket. O filme, diversas vezes, é interrompido pelo narrador –<br />
Jude Law interpretando Lemony Snicket –, que sugere ao espectador que saia<br />
imediatamente da sala de cinema, sala de estar ou avião (!) em que este filme estiver<br />
sendo exibido. E sugere outro filme que, segundo ele, está em cartaz e é bem mais<br />
agradável: O menorzinho dos elfos.<br />
O papel de Jude Law, além de narrar a história, consiste em fortalecer o caráter<br />
maldito da identidade do escritor. O Lemony do filme datilografa suas estórias numa<br />
sala escura, secreta e com vista para um cemitério, tal qual o narrador dos 13 volumes.<br />
O rosto do ator em nenhum momento aparece claramente, está sempre na penumbra.<br />
Outro arranjo criativo feito no roteiro para abordar a comunicação de Sunny foi<br />
inserir legendas durante suas falas (que são falas de bebê mesmo, pronunciadas pelas<br />
gêmeas bebês que se revezam no papel da caçula dos Baudelaire). Diferentemente da<br />
obra literária, Sunny é uma personagem plana, e não esférica, uma vez que ela não sofre<br />
transformações (no filme ela já sabe andar desde o começo e sua fala não se desenvolve<br />
como nos livros).<br />
O papel de Conde Olaf coube ao ator Jim Carrey, que soube utilizar sua<br />
experiência com atuações em filmes de comédia para construir uma personalidade<br />
caricata (Carrey é especialista em fazer caretas) para Olaf. Os exageros do ator costroem<br />
um personagem mais desagradável e chato do que ele já era nos livros. Entretanto,<br />
suponho que esta era a intenção do diretor, por isso Carrey está no elenco.<br />
Outros grandes nomes da interpretação compõem o elenco do filme: Billy<br />
Connolly, Timothy Spall, Catherine O’Hara e Meryl Streep – chamando muita atenção<br />
no papel da paranóica tia Josephine.<br />
112
Isto poderia prejudicar a construção das personagens, se levarmos em<br />
consideração o seguinte trecho de Paulo Emílio Salles Gomes:<br />
As indicações a respeito de personagens, que se encontram anotadas no papel ou na cabeça de<br />
um argumentista-roteirista-diretor, constituem apenas uma fase preliminar de trabalho. A<br />
personagem de ficção cinematográfica, por mais fortes que sejam suas raízes na realidade ou<br />
em ficções pré-existentes, só começa a viver quando encarnada numa pessoa, num ator.<br />
Chegados a este ponto, está prestes a revelar-se a profunda ambiguidade da personagem<br />
cinematográfica. Se a encarnação se processa através de uma pessoa, de um ator que nos é<br />
desconhecido, (...) ele fica sendo a personagem e não há maiores problemas. (GOMES: 1976,<br />
p. 114)<br />
Contudo, os atores cumprem muito bem seus papéis, trazendo, inclusive, uma<br />
riqueza maior para a cena com os improvisos e diálogos criados durante os ensaios. Há<br />
cenas que, de tão improvisadas, parecem reel gags, ou seja, os erros durante as<br />
filmagens, o que só tornou o filme mais divertido e autêntico. O material bônus do DVD<br />
inclui cenas de ensaios e maquiagem nas quais pode ser vista a contribuição de Jim<br />
Carrey para a versatilidade de Olaf e seus disfarces. Nestas cenas Jim aparece testando<br />
sotaques e posturas e criando falas improvisadas.<br />
A passagem de um volume do livro para o próximo se dá de maneira rápida e<br />
ágil. Poucas cenas foram criadas sem ter uma equivalência nos livros (como a cena em<br />
que Olaf prende as crianças num carro estacionado em cima da linha férrea e Violet tem<br />
de inventar um artefato para salvar a si e aos irmãos de serem atingidos pelo trem). A<br />
abertura do filme é uma enganação – mais um dos truques de Snicket – mas o narrador<br />
logo informa que aquele filme bonitinho e florido não é o que será exibido a seguir.<br />
Corta então para os Baudelaire na Praia do Sal recebendo do Sr. Poe a notícia da<br />
morte de seus pais. Daí em diante Olaf entra na história e os maus tratos começam, até<br />
que a cena do trem interrompe a sequência do livro 01 e o Sr. Poe logo leva os órfãos<br />
para a casa do tio Monty, que também não demora a ser morto. A passagem do livro 02<br />
é muito dinâmica e ele chega ao fim depressa. A parte referente ao volume 03 também é<br />
contada depressa, tendo o maior clímax na cena em que a casa da tia Josephine cai aos<br />
pedaços por causa do furacão.<br />
Depois da morte da tia, o roteiro retoma a metade final do primeiro livro, que<br />
consiste na cena da peça/casamento envolvendo Violet e Olaf. O final do filme é, na<br />
verdade, o final do primeiro livro, e, assim como nos livros, o desenlace não é de todo<br />
satisfatório. O filme não consegue responder a todas as perguntas que surgem no<br />
espectador.<br />
113
O mais importante desta adaptação é que com ela não se deturpou a diegese da<br />
obra de Snicket. Cada característica da narrativa do escritor está presente no decorrer<br />
das cenas.<br />
Figura 32 - Papel de parede para computador, distribuído na internet, com foto de Sunny<br />
Figura 33 - Papel de parede para computador, distribuído na internet, com foto de Violet, Olaf e Klaus<br />
114
Figura 34 – Pôster norte-americano de divulgação do filme<br />
115
10. CONCLUSÃO<br />
Há possibilidade de enganar-se hoje quem define se uma obra literária está<br />
direcionada para jovens ou para adultos. Corre um risco de não estar sendo rigoroso. Ou<br />
isto não precisa estar sendo encarado com rigor hoje? Na obra de Lemony Snicket há<br />
uma interpenetração do imaginário da criança, do adolescente e do adulto. Os esquemas<br />
do imaginário infantil são formados com base numa estrutura familiar convencional.<br />
Com isto, se a existência de uma madrasta é negativa ela se torna a “bruxa”. Lemony<br />
Snicket trabalha com esses elementos, agregando a eles a problematização e o deboche<br />
próprio do adolescente, além da ironia fina que atende ao leitor adulto.<br />
Geralmente, na maior parte das obras, há um predomínio de um desses<br />
elementos do imaginário (infantil, juvenil ou adulto), enquanto em Snicket eles se<br />
interpenetram em todos os capítulos: o jogo, que está mais presente na produção para<br />
crianças; a dúvida e o questionamento dessas questões já postas, sobre o maravilhoso,<br />
no qual a criança acredita, mas o jovem desconfia e quer desconstruir; e as duas coisas<br />
juntas sob uma perspectiva irônica e simbólica que é o adulto quem vai absorver. Para o<br />
adulto, tudo isto se torna simbólico, devido ao fato de seu repertório contemplar mais<br />
convenções, ou talvez até mesmo por causa do caráter dialógico da obra.<br />
O complexo entendimento disso está em um nível analítico. O engendramento<br />
do tecido textual pra se contar essas historias é complexo. Snicket assumiu os esquemas<br />
de mercado atuais próprios da divulgação de massa (divisão em 13 volumes, gancho de<br />
um livro para outro, ingredientes da história na contracapa), mas sua obra não pode ser<br />
considerada exclusivamente literatura de massa por seu caráter estético como arte.<br />
Portanto, trabalhou-se nesta monografia o potencial narrativo da obra e o valor artístico<br />
de sua elaboração.<br />
É possível afirmar que a forma de divulgação é para iludir o leitor desavisado,<br />
que só quer ler estórias. O leitor de Snicket não apenas “lê estórias”, pois sua narrativa<br />
não se trata apenas de uma história bem contada. É uma história elaborada com<br />
intenções de entretecer situações que povoam o imaginário do leitor de qualquer idade.<br />
Há prazer estético em sua leitura, e sobre esta forma de prazer, Hans Robert Jauss<br />
(2001) comenta sobre a teoria do prazer estético de Agostinho:<br />
[O trabalho de Agostinho] distingue entre o uso dos sentidos para o prazer e para a curiosidade:<br />
o primeiro refere-se ao belo, ao harmonioso, ao perfumado, ao gostoso, ao agradável de tocar,<br />
em suma, às sensações positivas dos cinco sentidos, o segundo é esclarecido também por seu<br />
116
oposto, como pela fascinação por um cadáver mutilado ou ainda apenas pela lagartixa que caça<br />
moscas. (...) A curiosidade, que paradoxalmente pode-se deleitar ante fenômenos<br />
desagradáveis e até mesmo repugnantes, é vista e condenada por Agostinho como o avesso do<br />
deleite estético, pois “ela não ‘goza’ de seus objetos como tais, mas goza de si mesma, pelo<br />
poder de conhecimento confirmado por eles”. (JAUSS, 2001: 65)<br />
Quanto ao fato de a obra não possuir um desenlace previsível, já foi exposto e<br />
argumentado que a contemporaneidade não requer tantas explicações. Nesta primeira<br />
década do século XXI, o pensamento universal, de certo modo, é povoado mais pelas<br />
suposições do que pelas verdades absolutas, e o autor zomba do leitor com isso.<br />
Suposições são coisas perigosas de fazer e, como em todas as coisas perigosas de fazer —<br />
bombas, por exemplo, ou certas sobremesas complicadas —, basta cometer um pequeno<br />
engano para dar um problema dos diabos. Fazer suposições consiste simplesmente em acreditar<br />
que as coisas são desta ou daquela maneira, sem haver prova alguma ou prova suficiente de<br />
que a crença esteja correta, e você bem pode imaginar como isso é capaz de causar um<br />
problema dos diabos. Por exemplo: certa manhã você poderia acordar e supor que sua cama<br />
está no mesmo lugar em que sempre esteve, embora você não tivesse nenhuma prova real.<br />
Mas, quando saísse da cama, poderia descobrir que ela havia sido levada pelas águas e<br />
transportada para o mar, e imagine só o problema dos diabos em que estaria metido, tudo por<br />
causa de uma suposição incorreta. Dá para ver que é melhor não fazer muitas suposições,<br />
especialmente pela manhã. (SNICKET, Vol. 5: cap. 12)<br />
Não restam dúvidas, obviamente após o que foi discutido neste trabalho, sobre a<br />
riqueza de figuras de linguagem, principalmente a ironia, mesmo que esta, por diversas<br />
vezes, dê à obra um caráter non-sense.<br />
Se alguém é alérgico a alguma coisa, o melhor que tem a fazer é jamais colocar essa coisa na<br />
boca, especialmente se se tratar de gatos. (SNICKET, Vol. 3: 91)<br />
Roubar, não resta dúvida, é um crime, e é próprio de quem não tem nenhuma educação. Mas<br />
como a maioria das coisas que faz quem não tem nenhuma educação, é desculpável<br />
dependendo das circunstâncias. Roubar não é desculpável, por exemplo, se a pessoa está num<br />
museu, resolve que um determinado quadro ficaria melhor em sua casa e simplesmente leva o<br />
quadro para casa. Mas se a pessoa está morrendo de fome e não tem outro meio de conseguir<br />
dinheiro, é desculpável que ela leve o quadro para casa e o coma. (SNICKET, Vol. 3: 118-119)<br />
Com relação ao efeito produzido, e com base na teoria da recepção e do efeito,<br />
conclui-se que Lemony Snicket teve uma atitude totalmente intencional ao frustrar o<br />
leitor e deixá-lo com dúvidas e mistérios não resolvidos. Contudo, ele mesmo encerra<br />
sua obra afirmando que, na vida, é melhor não ficar sabendo de algumas coisas. Tal<br />
qual como a vida, de fato, é.<br />
A bebê parou e olhou para a parte de trás do barco, onde tinha sido afixada a placa com o<br />
nome. Ela não tinha como saber isso, é claro, mas a placa tinha sido pregada na popa do barco<br />
117
por uma pessoa que estava exatamente no mesmo lugar onde ela estava agora — pelo menos,<br />
até onde minha pesquisa revelou. A criancinha estava em pé em um ponto na história de outra<br />
pessoa, durante um momento que era seu, porém ela não estava pensando nem na história<br />
distante no passado nem na sua própria, que se estendia futuro adentro como o mar aberto. Ela<br />
estava olhando para a placa, e sua testa estava franzida de concentração. Finalmente, ela<br />
pronunciou uma palavra. Os órfãos Baudelaire perderam o fôlego ao ouvi-la, mas não podiam<br />
dizer com certeza se ela estava lendo a palavra em voz alta ou apenas declarando o seu próprio<br />
nome, e certamente jamais ficariam sabendo. Talvez essa última palavra tenha sido o primeiro<br />
segredo da bebê, juntando-se aos segredos que os Baudelaire estavam guardando dela, e todos<br />
os outros segredos imersos no mundo. Talvez seja melhor não saber precisamente o que ela<br />
queria dizer com essa palavra, pois algumas coisas é melhor deixar no grande desconhecido.<br />
Algumas palavras, é claro, seria melhor deixar impronunciadas — mas não, acredito que não a<br />
palavra pronunciada pela minha sobrinha, uma palavra que aqui significa que a história acabou.<br />
Beatrice. (SNICKET, Vol. 13, Livro Último – Capítulo Catorze: 9-10)<br />
Figura 35 - Ilustração de Brett Helquist (Vol. 2, cap. 13)<br />
118
Conclui-se, portanto, que as surpresas da arte literária infanto-juvenil são<br />
elaborações estéticas que se realizam por meio de um complexo padrão narrativo<br />
permeado por polifonias, referências culturais, recursos retóricos e linguísticos, além de<br />
incontáveis formas de associação de idéias e palavras que ativam o leitor em sua<br />
capacidade de construir imagens e de fazer correspondências de situações, de acordo<br />
com sua vivência e seu repertório geral.<br />
Desse modo, o prazer estético despertado pela arte literária, integra o<br />
desenvolvimento emocional, sensível e social do homem. A criança, o adolescente, o<br />
jovem, o adulto tecem, cada um deles, seu próprio texto, quando tomados pelo encanto<br />
de um bem elaborado texto literário, independentemente de esquemas previsíveis e<br />
direcionados a qualquer grande quantidade de público, salvo, obviamente, intenções<br />
estéticas dignas de se considerar exemplares por se constituírem, conforme referido<br />
anteriormente, referências culturais, polifonias, experimentações dialógicas.<br />
Figura 36 - Ilustração de Brett Helquist (vol. 13, cap. 12)<br />
119
11. REFERÊNCIAS:<br />
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Portal Lemony Snicket (Endereço eletrônico: http://www.lemonysnicket.com/)<br />
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VEIGA, Aida & BURCKHARDT, Eduardo. O desafio da depressão. In: Revisa Época,<br />
ed. 259, 05 de maio de 2003. (Endereço eletrônico: http://revistaepoca.globo.com/<br />
Epoca/0,6993, EPT530938- 1653,00. html)<br />
Video “The Miserable Mill”, direção de Stephen Horn e produção de Dayakar<br />
Padayachee (produzido pela Bouncing Biscuit Studios e apresentado por Stikel Media<br />
& Entertainment e Dayakar Productions), disponível no link http://www.youtube.com/<br />
watch?v=Tk4RLKUhAn4<br />
Video “12 books in 120 seconds”. Disponível no link http://www.youtube.com/watch?<br />
v=ej3hAZ1QnqA<br />
11.3 – Filmes:<br />
A HISTÓRIA SEM FIM (Die unendliche Geschichte), 1984. Direção: Wolfgang<br />
Petersen. Produção: Bernd Eichinger, Dieter Geissler e Bernd Schaefers. Roteiro:<br />
Wolfgang Petersen e Herman Weigel. Intérpretes: Barret Oliver e outros.<br />
125
A NOVIÇA REBELDE (The Sound of Music), 1965. Direção: Robert Wise. Produção:<br />
Robert Wise. Roteiro: Ernest Lehman. Intérpretes: Julie Andres Christopher Plummer e<br />
outros.<br />
DESVENTURAS EM SÉRIE (Lemony Snicket’s A Series of Unfortunate Events),<br />
2004. Direção: Brad Silberling. Produção: Laurie MacDonald, Walter E. Parkes e Jim<br />
Van Wyck. Roteiro: Rober Gordon. Intérpretes: Jim Carrey; Jude Law; Liam Aiken;<br />
Emily Browning; Meryl Streep e outros. [Manaus: Videolar S.A.], 2006. 1 DVD (108<br />
min).<br />
E.T.: O EXTRA-TERRESTRE (E.T.: The Extra-Terrestrial), 1982. Direção: Steven<br />
Spielberg. Produção: Steven Spielberg e Kathleen Kennedy. Roteiro: Melissa Mathison.<br />
Intérpretes: Henry Thomas, Drew Barrimore, Pat Welsh, Peter Coyote, Dee Wallace e<br />
outros.<br />
LASSIE, VOLTE PARA CASA (Lassie come home), 1943. Direção: Fred M. Wilcox.<br />
Produção: Samuel Marx e Dore Schary. Roteiro: Hugo Butler. Intérpretes: Elizabeth<br />
Taylor, Roddy McDowall, Elsa Lanchester, Pal e outros.<br />
OS PÁSSAROS (The Birds), 1963. Direção: Alfred Hitchcock. Produção: Alfred<br />
Hitchcock. Roteiro: Evan Hunter. Intérpretes: Jessica Tandy, Tippi Hedren, Rod Taylor<br />
e outros.<br />
SHREK (idem), 2001. Direção: Andrew Adamson e Vicky Jenson. Produção: Jeffrey<br />
Katzenberg, Aron Warner e John H. Williams. Roteiro: William Steig, Ted Elliott,<br />
Terry Rossio, Joe Stillman e Roger S. H. Schulman. Intérpretes: Mike Meyers, Eddie<br />
Murphy, Cameron Diaz e outros.<br />
126
ANEXOS<br />
Aqui o mundo silencia.<br />
127