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Tradução de Marcelo Schild - Grupo Editorial Record

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<strong>Tradução</strong> <strong>de</strong><br />

<strong>Marcelo</strong> <strong>Schild</strong><br />

RIO DE JANEIRO • SÃO PAULO<br />

E D I T O R A R E C O R D<br />

2012


Parte<br />

UM<br />

“Sejamos pragmáticos quanto às nossas expectativas em<br />

relação ao Direito Penal.... [Pois] precisamos apenas imaginar,<br />

por alguma espécie <strong>de</strong> truque <strong>de</strong> viagem no tempo,<br />

um encontro com nosso ancestral hominí<strong>de</strong>o mais antigo,<br />

Adão, um proto-homem, <strong>de</strong> estatura baixa, coberto por<br />

uma abundância <strong>de</strong> folhas, bípe<strong>de</strong> recente, colhendo forragem<br />

aqui e ali na savana africana aproximadamente há<br />

três milhões <strong>de</strong> anos. Agora, concor<strong>de</strong>mos que po<strong>de</strong>mos promulgar<br />

toda e qualquer lei que nos agra<strong>de</strong> e atingir aquela<br />

criatura pequena e esperta; ainda assim, seria impru<strong>de</strong>nte<br />

afagá-la.”<br />

— REYNARD THOMPSON,<br />

A General Theory Of Human Violence (1921)


1 | Diante do gran<strong>de</strong> júri<br />

Sr. Logiudice: Diga seu nome, por favor.<br />

Testemunha: Andrew Barber.<br />

Sr. Logiudice: Qual é sua profi ssão, Sr. Barber?<br />

Testemunha: Fui promotor adjunto local <strong>de</strong>ste condado durante 22<br />

anos.<br />

Sr. Logiudice: “Fui.” Trabalha com o que agora?<br />

Testemunha: Suponho que se po<strong>de</strong>ria dizer que estou <strong>de</strong>sempregado.<br />

E m abril <strong>de</strong> 2008, Neal Logiudice fi nalmente me<br />

intimou a <strong>de</strong>por diante do gran<strong>de</strong> júri. Àquela<br />

altura, era tar<strong>de</strong> <strong>de</strong>mais. Tar<strong>de</strong> <strong>de</strong>mais para o caso <strong>de</strong>le, certamente, mas<br />

também para Logiudice. A reputação <strong>de</strong>le já estava avariada além da<br />

possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> reparo, e sua carreira a acompanhara. Um promotor<br />

po<strong>de</strong> seguir mancando com uma reputação avariada durante algum<br />

tempo, mas os colegas irão observá-lo como lobos, e ele vai acabar sendo<br />

forçado a abandonar o cargo, pelo bem da matilha. Já vi acontecer<br />

muitas vezes: um promotor adjunto local é insubstituível em um dia e<br />

esquecido no seguinte.<br />

7


Sempre tive uma simpatia por Neal Logiudice (pronuncia-se<br />

la-JU-dis). Ele ingressou na promotoria uns <strong>de</strong>z anos antes da atual<br />

gestão, logo após sair da faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> direito. Na época, aos 29 anos, era<br />

baixo, tinha cabelo ralo e uma pequena pança. Sua boca era entupida <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>ntes; precisava fechá-la à força, como uma mala abarrotada, o que o<br />

<strong>de</strong>ixava com uma expressão azeda, os lábios enrugados formando um<br />

bico. Eu costumava chamar a atenção <strong>de</strong>le para que não fi zesse aquela<br />

cara diante dos jurados — ninguém gosta <strong>de</strong> uma reprimenda —, mas<br />

ele a fazia inconscientemente. Levantava-se diante do júri balançando a<br />

cabeça e franzindo os lábios como uma professora do interior ou um<br />

padre, e em cada jurado contorcia-se um <strong>de</strong>sejo secreto <strong>de</strong> votar contra<br />

ele. Dentro do gabinete, Logiudice era um pouco manipulador e puxa-saco.<br />

Sofria muitas brinca<strong>de</strong>iras. Outros promotores adjuntos locais<br />

provocavam-no o tempo todo, mas ele recebia provocações <strong>de</strong> todos os<br />

lados, até mesmo por quem trabalhava indiretamente com o gabinete<br />

— policiais, escrivães, secretários, pessoas que normalmente não tornavam<br />

seu <strong>de</strong>sdém por um promotor assim tão óbvio. Chamavam-no <strong>de</strong><br />

Milhouse, por causa <strong>de</strong> um personagem abobalhado dos Simpsons, e<br />

inventavam mil variações em cima do nome <strong>de</strong>le: Lotolo, Lestúpido,<br />

Sid Vicious, Judicioso, e assim por diante. Mas, para mim, Logiudice<br />

era razoável. Era apenas inocente. Com as melhores intenções, arruinava<br />

as vidas das pessoas e jamais perdia um minuto <strong>de</strong> sono por causa<br />

disso. Afi nal <strong>de</strong> contas, só ia atrás dos vilões. Esta é a Falácia do Promotor<br />

— Eles são vilões porque os estou processando —, e Logiudice não era o<br />

primeiro a ser enganado por ela, <strong>de</strong> modo que eu o perdoava por ser<br />

virtuoso. Eu até gostava <strong>de</strong>le. Torcia por ele precisamente por causa <strong>de</strong><br />

suas estranhezas, do nome impronunciável, dos <strong>de</strong>ntes protuberantes<br />

— <strong>de</strong>ntes que qualquer colega <strong>de</strong>le teria endireitado com caros aparelhos,<br />

pagos por mamãe e papai — e até mesmo por causa <strong>de</strong> sua ambição<br />

explícita. Vi algo no sujeito. Um ar <strong>de</strong> tenacida<strong>de</strong> no modo como<br />

suportava tanta rejeição, como apenas aguentava e aguentava. Obviamente,<br />

era um rapaz da classe operária <strong>de</strong>terminado a conquistar para<br />

si próprio o que simplesmente fora entregue <strong>de</strong> mão beijada a muitos<br />

outros. Naquele aspecto, e somente naquele aspecto, suponho, ele era<br />

justamente como eu.<br />

8


Agora, muitos anos <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> chegar ao escritório, apesar <strong>de</strong> todas as<br />

peculiarida<strong>de</strong>s, ele atingira seu objetivo, ou quase. Neal Logiudice era<br />

o primeiro adjunto, o homem número dois no Ministério Público <strong>de</strong><br />

Middlesex, o braço direito da procuradora e principal promotor nos<br />

tribunais. Ele assumira o cargo que eu ocupava — aquele garoto que<br />

me dissera certa vez: “Andy, você é exatamente o que quero ser algum<br />

dia.” Eu <strong>de</strong>veria ter previsto o que aconteceria.<br />

Naquela manhã, no salão do gran<strong>de</strong> júri, os jurados estavam com um<br />

humor taciturno, <strong>de</strong>rrotado. Encontravam-se sentados, trinta e poucos<br />

homens e mulheres que não tinham sido sufi cientemente espertos para<br />

encontrar uma maneira <strong>de</strong> se livrar da obrigação <strong>de</strong> servir, todos espremidos<br />

naquelas carteiras escolares com mesinhas em forma <strong>de</strong> lágrima<br />

que serviam <strong>de</strong> braços para as ca<strong>de</strong>iras. Àquela altura, já compreendiam<br />

sufi cientemente bem o trabalho que lhes cabia realizar. Membros <strong>de</strong><br />

gran<strong>de</strong>s júris servem durante meses e <strong>de</strong>cifram bem rápido qual é a sua<br />

função: acusar, apontar o <strong>de</strong>do, indicar quem é o perverso.<br />

Um processo com um gran<strong>de</strong> júri não é um julgamento. Não há juiz<br />

no salão e tampouco um advogado <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa. O promotor conduz o<br />

espetáculo. É uma investigação e, teoricamente, um teste do po<strong>de</strong>r do<br />

promotor, já que o gran<strong>de</strong> júri <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> se o promotor possui provas sufi<br />

cientes para arrastar um suspeito até o tribunal a fi m <strong>de</strong> julgá-lo. Caso<br />

haja provas sufi cientes, o gran<strong>de</strong> júri conce<strong>de</strong> ao promotor uma acusação<br />

formal, o bilhete <strong>de</strong> entrada para o Tribunal <strong>de</strong> Justiça. Caso contrário,<br />

dizem haver “impronúncia”, e o caso termina antes <strong>de</strong> começar.<br />

Na prática, impronúncias são raras. A maioria dos gran<strong>de</strong>s júris conce<strong>de</strong>m<br />

as acusações formais. Por que não? Eles veem somente um lado<br />

do caso.<br />

Mas, naquela ocasião, suspeito que os jurados soubessem que Logiudice<br />

não tinha um caso. Não naquele dia. A verda<strong>de</strong> seria <strong>de</strong>scoberta, não<br />

com provas tão envelhecidas e comprometidas, não <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> tudo que<br />

ocorrera. Já se passara mais <strong>de</strong> um ano — mais <strong>de</strong> 12 meses <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que o<br />

corpo <strong>de</strong> um garoto <strong>de</strong> 14 anos fora encontrado na fl oresta com três<br />

perfurações dispostas em uma linha que cruzava o peito, como se tivesse<br />

sido garfado com um tri<strong>de</strong>nte. Mas não era bem o tempo que importava.<br />

Era todo o resto. Tar<strong>de</strong> <strong>de</strong>mais, e o gran<strong>de</strong> júri sabia disso.<br />

9


Eu também sabia.<br />

Apenas Logiudice permaneceu <strong>de</strong>stemido. Franziu os lábios daquela<br />

maneira estranha. Revisou as anotações que fi zera em um bloco com<br />

folhas amarelas, pon<strong>de</strong>rando a respeito da pergunta seguinte. Estava<br />

fazendo justamente o que eu lhe ensinara. A voz na cabeça <strong>de</strong>le era a<br />

minha: Não importa o quanto seu caso seja fraco. Mantenha-se fi el<br />

ao sistema. Jogue o jogo da mesma maneira que ele tem sido jogado ao<br />

longo dos últimos quinhentos e poucos anos, use a mesma tática sensacionalista<br />

que sempre <strong>de</strong>terminou um interrogatório — atrair, capturar<br />

na armadilha, fo<strong>de</strong>r.<br />

Ele disse:<br />

— Você se lembra da primeira vez em que ouviu algo a respeito do<br />

homicídio do fi lho <strong>de</strong> Rifkin?<br />

— Sim.<br />

— Descreva-a.<br />

— Recebi uma ligação, acredito, primeiro da CPAC... é a polícia estadual.<br />

Depois, outras duas vieram logo em seguida, uma da polícia <strong>de</strong><br />

Newton, outra do promotor que estava em serviço. Posso ter dito na<br />

or<strong>de</strong>m errada, mas basicamente o telefone começou a tocar sem parar.<br />

— Quando foi isso?<br />

— Quinta-feira, 12 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 2007, por volta das 9 da manhã, logo<br />

<strong>de</strong>pois que o corpo foi encontrado.<br />

— Por que foi chamado?<br />

— Eu era o primeiro adjunto. Eu era notifi cado <strong>de</strong> todos os homicídios<br />

no condado. Era o procedimento-padrão.<br />

— Mas você não assumia todos os casos, não é? Não investigava<br />

pessoalmente e levava a julgamento todo homicídio que era registrado?<br />

— Não, é claro que não. Eu não tinha tanto tempo assim. Eu assumia<br />

um número muito pequeno <strong>de</strong> homicídios. A maioria eu <strong>de</strong>signava<br />

a outros promotores adjuntos locais.<br />

— Mas você assumiu este.<br />

— Sim.<br />

— Você <strong>de</strong>cidiu <strong>de</strong> imediato que assumiria o caso ou só tomou a<br />

<strong>de</strong>cisão posteriormente?<br />

— Decidi quase imediatamente.<br />

10


— Por quê? Por que quis esse caso especifi camente?<br />

— Eu tinha um acordo com a procuradora <strong>de</strong> justiça local, Lynn<br />

Canavan: certos casos eu levaria pessoalmente a julgamento.<br />

— Quais tipos <strong>de</strong> caso?<br />

— Casos <strong>de</strong> alta priorida<strong>de</strong>.<br />

— Por que você?<br />

— Eu era o promotor mais antigo no gabinete. Ela queria ter<br />

certeza <strong>de</strong> que os casos importantes fossem tratados apropriadamente.<br />

— Quem <strong>de</strong>cidia quando um caso era <strong>de</strong> alta priorida<strong>de</strong>?<br />

— Eu, na primeira instância. Após consultar a procuradora, é claro,<br />

mas as coisas ten<strong>de</strong>m a caminhar mais rapidamente no começo. Geralmente,<br />

não há tempo para uma reunião.<br />

— Portanto, você <strong>de</strong>cidiu que o homicídio <strong>de</strong> Rifkin era um caso <strong>de</strong><br />

alta priorida<strong>de</strong>?<br />

— É claro.<br />

— Por quê?<br />

— Porque envolvia o assassinato <strong>de</strong> uma criança. Acho que também<br />

imaginamos que pu<strong>de</strong>sse explodir, chamar a atenção da mídia. Era esse<br />

tipo <strong>de</strong> caso. Aconteceu em uma cida<strong>de</strong> rica, com uma vítima rica. Já<br />

havíamos lidado com alguns casos parecidos. No começo, tampouco<br />

sabíamos exatamente do que se tratava. Em certos aspectos, parecia<br />

um assassinato escolar, algo como Columbine. Basicamente, não sabíamos<br />

que diabos era aquilo, mas cheirava a caso gran<strong>de</strong>. Se viesse a se<br />

tornar algo menor, eu passaria o caso adiante posteriormente, mas,<br />

naquelas primeiras horas, precisava ter certeza <strong>de</strong> que tudo seria feito<br />

corretamente.<br />

— Você informou à procuradora que tinha um confl ito <strong>de</strong> interesses?<br />

— Não.<br />

— Por que não?<br />

— Porque eu não tinha.<br />

— Jacob, seu fi lho, não era colega <strong>de</strong> turma do garoto que morreu?<br />

— Sim, mas eu não conhecia a vítima. Jacob também não, até on<strong>de</strong><br />

eu sabia. Eu jamais ouvira o nome do garoto morto.<br />

11


— Você não conhecia a vítima. Muito bem. Mas sabia que ele e seu<br />

fi lho estavam na mesma turma na mesma escola <strong>de</strong> ensino fundamental<br />

na mesma cida<strong>de</strong>?<br />

— Sim.<br />

— E ainda assim não achou que <strong>de</strong>vesse permanecer fora do caso<br />

<strong>de</strong>vido a um confl ito <strong>de</strong> interesses? Não achou que sua objetivida<strong>de</strong><br />

pu<strong>de</strong>sse ser questionada?<br />

— Não. É claro que não.<br />

— Nem mesmo em retrospecto? Você insiste, você... Mesmo em<br />

retrospecto, você ainda não sente que as circunstâncias apresentavam<br />

ao menos a aparência <strong>de</strong> um confl ito?<br />

— Não, não havia nada <strong>de</strong> impróprio a respeito. Não havia nada <strong>de</strong><br />

incomum. O fato <strong>de</strong> que eu morava na cida<strong>de</strong> on<strong>de</strong> ocorreu o homicídio?<br />

Aquela era uma coisa boa. Em condados menores, o promotor costuma<br />

morar na comunida<strong>de</strong> on<strong>de</strong> um crime é cometido e muitas vezes conhece<br />

as pessoas afetadas por ele. E daí? Então, com isso, ele tem ainda mais<br />

vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> capturar o assassino? Isso não é um confl ito <strong>de</strong> interesses.<br />

Veja bem, no fi nal das contas, tenho um confl ito com todos os assassinos.<br />

É o meu trabalho. Foi um crime horrível, horrível; era meu trabalho fazer<br />

algo a respeito. Eu estava <strong>de</strong>terminado a fazer justamente isso.<br />

— Certo. — Logiudice baixou os olhos para o bloco <strong>de</strong> notas. Não<br />

havia o menor sentido em atacar a testemunha tão cedo no interrogatório.<br />

Ele retornaria àquele ponto mais tar<strong>de</strong> no dia, sem dúvida, quando<br />

eu estivesse cansado. Por enquanto, era melhor manter a temperatura<br />

baixa.<br />

— Você compreen<strong>de</strong> seus direitos assegurados pela Quinta Emenda?<br />

— É claro.<br />

— E abriu mão <strong>de</strong>les?<br />

— Aparentemente. Estou aqui. Estou falando.<br />

Risos abafados no gran<strong>de</strong> júri.<br />

Logiudice pousou o bloco <strong>de</strong> notas na mesa e, junto com ele, pareceu<br />

<strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> lado por um momento seu plano <strong>de</strong> jogo.<br />

— Sr. Barber... Andy... Posso lhe perguntar apenas uma coisa? Por<br />

que não fazer uso <strong>de</strong>les? Por que não permanecer em silêncio? — A<br />

frase seguinte ele <strong>de</strong>ixou por dizer: É o que eu teria feito.<br />

12


Pensei por um instante que aquilo fosse uma tática, um pouco <strong>de</strong><br />

encenação. Mas Logiudice parecia estar falando sério. Estava preocupado,<br />

se perguntando se eu iria aprontar alguma. Ele não queria ser<br />

enganado, parecer um tolo.<br />

Eu disse:<br />

— Não tenho o menor <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> permanecer em silêncio. Quero<br />

que a verda<strong>de</strong> venha à tona.<br />

— A qualquer custo?<br />

— Acredito no sistema, assim como você, assim como todos aqui.<br />

Bem, aquilo não era exatamente verda<strong>de</strong>. Não acredito no sistema<br />

judicial, pelo menos não acho que seja especialmente efi caz em <strong>de</strong>scobrir<br />

a verda<strong>de</strong>. Nenhum advogado acha. Todos vimos erros <strong>de</strong>mais,<br />

resultados negativos <strong>de</strong>mais. Um veredito <strong>de</strong> um júri é apenas uma<br />

suposição — uma suposição bem-intencionada, em geral, mas você<br />

não po<strong>de</strong> simplesmente distinguir fato <strong>de</strong> fi cção por meio <strong>de</strong> um voto.<br />

Ainda assim, apesar <strong>de</strong> tudo isso, realmente acredito no po<strong>de</strong>r do ritual.<br />

Acredito no simbolismo religioso, nas togas negras, nos tribunais<br />

com colunas <strong>de</strong> mármore, iguais aos templos gregos. Quando<br />

realizamos um julgamento, estamos rezando uma missa. Rezamos<br />

juntos para fazermos o que é certo e para que fi quemos protegidos do<br />

perigo, e vale a pena fazer isso, sejam ou não nossas preces realmente<br />

ouvidas.<br />

Obviamente, Logiudice não engolia esse tipo <strong>de</strong> porcaria solene.<br />

Vivia no mundo binário do advogado, culpado ou inocente, e estava<br />

<strong>de</strong>terminado a me manter preso ali.<br />

— Você acredita no sistema, é mesmo? — <strong>de</strong>s<strong>de</strong>nhou ele. — Tudo<br />

bem, Andy, voltemos para on<strong>de</strong> estávamos, então. Vamos <strong>de</strong>ixar o sistema<br />

fazer seu trabalho. — Ele <strong>de</strong>u ao júri um olhar <strong>de</strong> espertalhão que<br />

sabe tudo.<br />

Bom garoto, Neal. Não <strong>de</strong>ixe a testemunha pular na cama com o júri<br />

— você pula na cama com o júri. Pule na cama e acomo<strong>de</strong>-se bem ao<br />

lado <strong>de</strong>les <strong>de</strong>baixo do cobertor e <strong>de</strong>ixe a testemunha lá fora, no frio.<br />

Abri um sorriso malicioso. Eu teria me levantado e aplaudido caso fosse<br />

permitido, pois o ensinara a fazer precisamente aquilo. Por que negar<br />

a mim mesmo um pouco <strong>de</strong> orgulho paterno? Não <strong>de</strong>vo ter ido <strong>de</strong><br />

13


todo mal — transformei Neal Logiudice em um advogado semi<strong>de</strong>cente,<br />

no fi nal das contas.<br />

— Então vá em frente — eu disse, acariciando o pescoço do júri. —<br />

Deixe <strong>de</strong> besteira e vamos logo com isso, Neal.<br />

Ele olhou para mim, <strong>de</strong>pois pegou <strong>de</strong> novo o bloco amarelo e correu<br />

os olhos por ele, procurando seu lugar. Eu praticamente conseguia ler<br />

o pensamento escrito em sua testa: atrair, capturar, fo<strong>de</strong>r.<br />

— Certo — <strong>de</strong>clarou. — Vamos retornar ao período logo após o<br />

homicídio.<br />

14


2 | Nosso pessoal<br />

Abril <strong>de</strong> 2007: 12 meses antes.<br />

Quando os Rifkin começaram em seu lar o shiva,<br />

o período judaico <strong>de</strong> luto, parecia que toda a<br />

cida<strong>de</strong> estava presente. A família não teria a permissão <strong>de</strong> guardar luto<br />

privadamente. O assassinato do garoto foi um evento público; a dor<br />

também seria. A casa estava tão cheia que, em momentos nos quais o<br />

murmúrio das conversas aumentava, tudo começava a parecer uma festa,<br />

<strong>de</strong> forma constrangedora, até que as pessoas baixavam a voz simultaneamente,<br />

como se um ajuste <strong>de</strong> volume invisível fosse girado.<br />

Desculpava-me ao atravessar a multidão, repetindo “com licença”,<br />

virando para um lado e para o outro, arrastando os pés a fi m <strong>de</strong> abrir<br />

caminho.<br />

Pessoas me encaravam com expressões curiosas. Alguém disse: “É<br />

ele, aquele é Andy Barber”, mas não parei. Haviam se passado quatro<br />

dias <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o homicídio e todos sabiam que eu assumira o caso. Queriam<br />

fazer perguntas, naturalmente, sobre suspeitos e pistas e tudo o mais,<br />

mas não ousavam. Por enquanto, os <strong>de</strong>talhes da investigação não importavam,<br />

somente o fato bruto <strong>de</strong> que um garoto inocente estava morto.<br />

Assassinado! A notícia os pegara <strong>de</strong>sprevenidos. Newton não tinha<br />

crimes sobre os quais comentar. O que os moradores locais sabiam so-<br />

15


e violência vinha necessariamente <strong>de</strong> noticiários e <strong>de</strong> programas <strong>de</strong><br />

TV. Eles supunham que crimes violentos estavam limitados ao centro<br />

metropolitano, a uma subclasse <strong>de</strong> caipiras urbanos. Estavam errados<br />

quanto a isso, é claro, mas não eram tolos e não fi cariam tão chocados<br />

com o assassinato <strong>de</strong> um adulto. O que tornava o homicídio <strong>de</strong> Rifkin<br />

tão profano era que envolvia uma das crianças da cida<strong>de</strong>. Era uma violação<br />

da autoimagem <strong>de</strong> Newton. Durante algum tempo, ergueram<br />

uma placa no Centro <strong>de</strong> Newton <strong>de</strong>clarando o lugar “Uma Comunida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> Famílias, Uma Família <strong>de</strong> Comunida<strong>de</strong>s”, e ouvia-se com<br />

fre quência repetirem que a localida<strong>de</strong> era “um bom lugar para criar os<br />

fi lhos”. E realmente era. A cida<strong>de</strong> era repleta <strong>de</strong> cursinhos preparatórios<br />

com aulas após o horário escolar, <strong>de</strong> dojos <strong>de</strong> caratê e campeonatos<br />

<strong>de</strong> futebol aos sábados. Os jovens pais da cida<strong>de</strong> valorizavam especialmente<br />

essa visão <strong>de</strong> Newton como um paraíso para as crianças. Muitos<br />

tinham <strong>de</strong>ixado a cida<strong>de</strong> sofi sticada e mo<strong>de</strong>rna para se mudar para cá.<br />

Aceitaram <strong>de</strong>spesas gigantescas, uma monotonia sem tamanho e a <strong>de</strong>cepção<br />

<strong>de</strong>sagradável <strong>de</strong> se acomodar em uma vida convencional. Para<br />

esses habitantes ambivalentes, todo o projeto suburbano só fazia sentido<br />

por ser “um bom lugar para criar os fi lhos”. Eles tinham apostado<br />

tudo nisso.<br />

Indo <strong>de</strong> cômodo em cômodo, passei por uma tribo após a outra. Os<br />

jovens, amigos do menino morto, haviam se reunido em um pequeno<br />

cômodo na parte da frente da casa. Falavam baixo e encaravam as pessoas.<br />

O rímel <strong>de</strong> uma das garotas estava borrado <strong>de</strong> lágrimas. Meu próprio<br />

fi lho, Jacob, encontrava-se sentado em uma ca<strong>de</strong>ira baixa, magrelo<br />

e <strong>de</strong>sengonçado, afastado dos outros. Olhava para a tela <strong>de</strong> seu celular,<br />

nada interessado nas conversas ao redor.<br />

A família enlutada e chocada estava ao lado, na sala <strong>de</strong> estar, velhas<br />

avós, primos bebês.<br />

Na cozinha, fi nalmente, estavam os pais dos garotos que estudaram<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> pequenos em Newton com Ben Rifkin. Aquele era o nosso pessoal.<br />

Conhecíamos uns aos outros <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que nossos fi lhos apareceram<br />

para o primeiro dia no jardim <strong>de</strong> infância, oito anos antes. Estivemos<br />

juntos mil vezes, <strong>de</strong>ixando as crianças na escola <strong>de</strong> manhã e pegando-as<br />

à tar<strong>de</strong>, em infi nitos jogos <strong>de</strong> futebol e eventos para arrecadar<br />

16


fundos para a instituição <strong>de</strong> ensino e em uma produção memorável <strong>de</strong><br />

Doze homens e uma sentença. Ainda assim, exceto por algumas poucas<br />

amiza<strong>de</strong>s íntimas, não nos conhecíamos tão bem. Havia uma camaradagem<br />

entre nós, certamente, mas nenhuma conexão verda<strong>de</strong>ira. A<br />

maioria das relações mantidas entre nós não sobreviveria à formatura<br />

<strong>de</strong> nossos fi lhos no ensino médio. Mas, naqueles primeiros poucos dias<br />

após o assassinato <strong>de</strong> Ben Rifkin, sentimos uma ilusão <strong>de</strong> proximida<strong>de</strong>.<br />

Era como se todos tivéssemos sido repentinamente revelados uns para<br />

os outros.<br />

Na ampla cozinha dos Rifkin — fogão horizontal Wolf, gela<strong>de</strong>ira<br />

Sub-Zero, balcões <strong>de</strong> granito, armários brancos —, os pais da escola<br />

espremiam-se em grupos <strong>de</strong> três ou quatro e faziam confi ssões íntimas<br />

sobre insônia, tristeza, um medo que nunca os <strong>de</strong>ixava. Falavam repetidamente<br />

sobre Columbine e o 11 <strong>de</strong> Setembro e sobre como a morte<br />

<strong>de</strong> Ben fez com que se agarrassem ainda mais aos próprios fi lhos, enquanto<br />

ainda era possível. As emoções extravagantes daquela noite foram<br />

ampliadas pela luz quente na cozinha, a qual emanava <strong>de</strong> luminárias<br />

pen<strong>de</strong>ntes com globos laranja-escuro. Sob aquela luz <strong>de</strong> fogo,<br />

quando entrei no cômodo, os pais permitiam-se uns aos outros o luxo<br />

<strong>de</strong> confessar segredos.<br />

No balcão central, uma das mães, Toby Lanzman, arrumava petiscos<br />

em uma travessa quando entrei na cozinha. Um pano <strong>de</strong> prato estava<br />

pendurado sobre seu ombro. Os tendões em seus antebraços saltavam<br />

enquanto ela trabalhava. Toby era a melhor amiga <strong>de</strong> minha esposa,<br />

Laurie, um dos poucos laços duradouros que fi zemos aqui. Ela me viu<br />

procurando minha esposa e apontou para o outro lado da sala.<br />

— Está fazendo o papel <strong>de</strong> mãe para as outras mães — disse Toby.<br />

— Estou vendo.<br />

— Bem, todos po<strong>de</strong>ríamos receber um pouco <strong>de</strong> apoio materno<br />

agora.<br />

Grunhi, olhei para ela confuso e parti. Toby provocava. Minha única<br />

<strong>de</strong>fesa contra ela foi uma retirada tática.<br />

Laurie estava <strong>de</strong> pé em um pequeno círculo <strong>de</strong> mães. O cabelo <strong>de</strong>la,<br />

que sempre fora tão volumoso e rebel<strong>de</strong>, estava enrolado em um coque<br />

frouxo atrás da cabeça, preso por um gran<strong>de</strong> pregador <strong>de</strong> cabelo <strong>de</strong><br />

17


casco <strong>de</strong> tartaruga. Ela acariciava <strong>de</strong> modo consolador o braço <strong>de</strong> uma<br />

amiga. Esta se inclinava visivelmente na direção <strong>de</strong> Laurie, como um<br />

gato sendo afagado.<br />

Quando a alcancei, Laurie colocou o braço esquerdo ao redor da<br />

minha cintura.<br />

— Olá, querido.<br />

— Está na hora <strong>de</strong> ir.<br />

— Andy, você está dizendo isso <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o instante em que chegamos.<br />

— Não é verda<strong>de</strong>. Estava pensando, não dizendo.<br />

— Bem, está escrito na sua cara. — Ela suspirou. — Eu sabia que<br />

<strong>de</strong>veríamos ter vindo em carros separados.<br />

Ela parou por um momento para me avaliar. Laurie não queria partir,<br />

mas compreendia que eu estava <strong>de</strong>sconfortável, que me sentia sob os<br />

holofotes ali, que para começar eu já não era muito <strong>de</strong> falar — jogar<br />

conversa fora em salas lotadas sempre me <strong>de</strong>ixou exausto — e que todas<br />

aquelas coisas <strong>de</strong>veriam ser levadas em consi<strong>de</strong>ração. Uma família precisava<br />

ser administrada, como qualquer outra organização.<br />

— Vá você — <strong>de</strong>cidiu ela. — Pegarei uma carona para casa com<br />

Toby.<br />

— É?<br />

— É. Por que não? Leve Jacob com você.<br />

— Tem certeza? — Inclinei-me para baixo. Laurie é quase 30<br />

centímetros mais baixa que eu. Sussurrei alto: — Porque eu adoraria<br />

ficar.<br />

Ela riu.<br />

— Vá. Antes que eu mu<strong>de</strong> <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ia.<br />

As mulheres funéreas fi caram nos encarando.<br />

— Vá logo. Seu casaco está no quarto do andar <strong>de</strong> cima.<br />

Subi as escadas e vi-me em um longo corredor. O barulho estava<br />

abafado ali, o que era um alívio. O eco da multidão ainda murmurava<br />

nos meus ouvidos. Comecei a procurar pelos casacos. Em um quarto,<br />

que aparentemente pertencia à irmã caçula do menino morto, havia<br />

uma pilha <strong>de</strong> casacos sobre a cama, mas o meu não estava lá.<br />

A porta do quarto ao lado estava fechada. Bati, abri-a e enfi ei a cabeça<br />

para <strong>de</strong>ntro a fi m <strong>de</strong> dar uma espiada.<br />

18


O quarto estava sombrio. A única luz vinha <strong>de</strong> um abajur <strong>de</strong> chão<br />

feito <strong>de</strong> estanho posicionado no canto oposto. O pai do garoto morto<br />

estava sentado em uma poltrona bergère sob a luminária. Dan Rifkin<br />

era pequeno, magro, <strong>de</strong>licado. Como sempre, usava spray fi xador no<br />

cabelo. Vestia um terno escuro que parecia caro. Havia um rasgo grosseiro<br />

<strong>de</strong> 5 centímetros na lapela para simbolizar seu coração partido<br />

— um <strong>de</strong>sperdício <strong>de</strong> um terno caro, pensei. Na luz fraca, os olhos <strong>de</strong>le<br />

estavam fundos, contornados por círculos azulados, como a máscara<br />

sobre os olhos <strong>de</strong> um guaxinim.<br />

— Olá, Andy — disse ele.<br />

— Desculpe-me. Estou apenas procurando meu casaco. Não queria<br />

incomodar.<br />

— Não, venha e sente-se aqui um minuto.<br />

— Não. Não quero me intrometer.<br />

— Por favor, sente-se, sente-se. Quero lhe perguntar uma coisa.<br />

Meu coração fi cou em frangalhos. Já vi o sofrimento <strong>de</strong> sobreviventes<br />

a vítimas <strong>de</strong> homicídios. Meu emprego me obriga a assistir. Pais <strong>de</strong> crianças<br />

assassinadas são os que mais sofrem, e para mim os pais sofrem ainda<br />

mais do que as mães, pois são ensinados a ser estoicos, a “agir como um<br />

homem”. Estudos <strong>de</strong>monstraram que pais <strong>de</strong> crianças assassinadas costumam<br />

morrer poucos anos <strong>de</strong>pois do crime, geralmente <strong>de</strong> enfarte. É verda<strong>de</strong>,<br />

morrem <strong>de</strong> tristeza. Em algum ponto, um promotor percebe que<br />

ele tampouco po<strong>de</strong> sobreviver a esse tipo <strong>de</strong> dor no coração. Ele não po<strong>de</strong><br />

acompanhar os pais e se <strong>de</strong>ixar entristecer. Portanto, concentra-se nos<br />

aspectos técnicos do trabalho. Transforma-o em um ofício como qualquer<br />

outro. O truque é manter o sofrimento a certa distância.<br />

Mas Dan Rifkin insistiu. Abanou o braço como um guarda orientando<br />

carros a seguirem em frente e, ao ver que não havia escolha, fechei a<br />

porta <strong>de</strong>licadamente e sentei-me na ca<strong>de</strong>ira ao lado da <strong>de</strong>le.<br />

— Bebida? — Ele ergueu um copo <strong>de</strong> uísque cor <strong>de</strong> cobre, puro.<br />

— Não.<br />

— Alguma novida<strong>de</strong>, Andy?<br />

— Não. Receio que não.<br />

Ele concordou com a cabeça, <strong>de</strong>sviou o olhar para um canto do<br />

quarto, <strong>de</strong>cepcionado.<br />

19


— Sempre amei este quarto. É para cá que venho pensar. Quando<br />

algo assim acontece, você passa muito tempo pensando.<br />

Ele <strong>de</strong>u um sorriso pequeno e apertado: Não se preocupe, estou bem.<br />

— Tenho certeza <strong>de</strong> que é verda<strong>de</strong>.<br />

— A parte que não consigo superar é: por que esse cara fez isso?<br />

— Dan, você realmente não <strong>de</strong>veria...<br />

— Não, escute. Apenas... Eu não... Não preciso <strong>de</strong> alguém para segurar<br />

a minha mão. Sou uma pessoa racional, é tudo. Tenho perguntas.<br />

Não sobre os <strong>de</strong>talhes. Quando conversamos, você e eu, sempre é sobre<br />

os <strong>de</strong>talhes: as provas, os procedimentos no tribunal. Mas sou uma pessoa<br />

racional, certo? Sou uma pessoa racional e tenho perguntas. Outras<br />

perguntas.<br />

Afun<strong>de</strong>i na ca<strong>de</strong>ira, senti meus ombros relaxando, aquiescendo.<br />

— Certo. É o seguinte: Ben era tão bom. Esta é a primeira coisa. É<br />

claro que nenhuma criança merece isso. Sei disso. Mas Ben era realmente<br />

um bom menino. Ele era tão bom. E apenas uma criança. Ele<br />

tinha 14 anos, por Deus! Nunca arrumou nenhum problema. Nunca.<br />

Nunca, nunca, nunca. Então, por quê? Qual é o motivo? Não falo <strong>de</strong><br />

raiva, ganância, inveja, esse tipo <strong>de</strong> motivo, porque não po<strong>de</strong> haver um<br />

motivo comum neste caso, não po<strong>de</strong>, simplesmente não faz sentido.<br />

Quem po<strong>de</strong>ria sentir tamanha raiva contra Ben, contra qualquer garoto<br />

pequeno? Simplesmente não faz sentido. Simplesmente não faz sentido.<br />

— Rifkin colocou as pontas <strong>de</strong> quatro <strong>de</strong>dos da mão direita sobre a<br />

testa e massageou a pele em pequenos círculos. — O que quero dizer é:<br />

o que separa essas pessoas? Porque já senti essas coisas, é claro, esses<br />

motivos... raiva, ganância, inveja... você sentiu isso, todo mundo sentiu.<br />

Mas nunca matamos ninguém. Enten<strong>de</strong>? Jamais seríamos capazes <strong>de</strong> matar<br />

alguém. Mas algumas pessoas o fazem, algumas conseguem. Por que<br />

é assim?<br />

— Não sei.<br />

— Você <strong>de</strong>ve ter alguma noção quanto a essas coisas.<br />

— Não. Não tenho, <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>.<br />

— Mas você conversa com eles, os conhece. O que eles dizem, os<br />

assassinos?<br />

— Não falam muita coisa, a maioria <strong>de</strong>les.<br />

20


— Você nunca pergunta? Não por que fi zeram o que fi zeram, mas o<br />

que os torna capazes disso em primeiro lugar.<br />

— Não.<br />

— Por que não?<br />

— Porque não respon<strong>de</strong>riam. Os advogados <strong>de</strong>les não permitiriam<br />

que respon<strong>de</strong>ssem.<br />

— Advogados! — Ele abanou a mão.<br />

— Eles não saberiam como respon<strong>de</strong>r, a maioria não saberia. Esses<br />

assassinatos fi losófi cos... Chianti e favas e tudo o mais... são uma bobagem.<br />

São apenas fi lmes. De qualquer maneira, esses caras são uns mentirosos<br />

<strong>de</strong> merda. Se precisassem respon<strong>de</strong>r, provavelmente contariam<br />

sobre a infância dura que tiveram ou algo do gênero. Fariam <strong>de</strong>les próprios<br />

as vítimas. Esta é a história habitual.<br />

Ele concordou uma vez com a cabeça, para me impelir a prosseguir.<br />

— Dan, o que importa é que você não po<strong>de</strong> se torturar procurando<br />

motivos. Não há nenhum motivo. Não é lógico. Não a parte sobre a<br />

qual está falando.<br />

Rifkin <strong>de</strong>slizou e afundou-se um pouco mais na poltrona, concentrando-se,<br />

como se precisasse refl etir mais a respeito daquilo tudo. Seus<br />

olhos reluziam mas sua voz era serena, controlada.<br />

— Outros pais perguntam coisas assim?<br />

— Fazem todo tipo <strong>de</strong> perguntas.<br />

— Você os vê <strong>de</strong>pois que o caso é encerrado? Os pais?<br />

— Às vezes.<br />

— Quero dizer muito tempo <strong>de</strong>pois, anos.<br />

— Às vezes.<br />

— E eles... como parecem estar? Estão bem?<br />

— Alguns estão bem.<br />

— Mas alguns não estão.<br />

— Alguns não estão.<br />

— O que fazem, aqueles que conseguem superar? Quais são os elementos<br />

fundamentais? Deve haver um padrão. Qual é a estratégia, quais<br />

são as melhores medidas? O que funcionou para eles?<br />

— Eles obtêm ajuda. Contam com o apoio das famílias, das pessoas<br />

ao redor <strong>de</strong>les. Há grupos para sobreviventes; eles recorrem aos grupos.<br />

21


Po<strong>de</strong>mos colocar vocês em contato. Vocês <strong>de</strong>veriam falar com a advogada<br />

das vítimas. Ela tomará providências para que participem <strong>de</strong> um<br />

grupo <strong>de</strong> apoio. Ajuda muito. Não conseguirão superar sozinhos, isto é<br />

o que importa. Você <strong>de</strong>ve se lembrar <strong>de</strong> que há outras pessoas lá fora<br />

que passaram por isso, que sabem o que você está enfrentando.<br />

— E os outros, os pais que não superam, o que acontece com eles?<br />

Os que nunca se recuperam?<br />

— Você não será um <strong>de</strong>les.<br />

— Mas e se eu for? E se acontecer comigo, conosco?<br />

— Não permitiremos que isso aconteça. Nem sequer pensaremos nisso.<br />

— Mas acontece. Acontece, não é mesmo? Acontece.<br />

— Não com você. Ben não gostaria que acontecesse com você.<br />

Silêncio.<br />

— Conheço seu fi lho — disse Rifkin. — Jacob.<br />

— Sim.<br />

— Eu o vi pela escola. Parece um bom garoto. É um rapaz gran<strong>de</strong> e<br />

bonito. Você <strong>de</strong>ve fi car orgulhoso.<br />

— Eu fi co.<br />

— Ele é parecido com você, eu acho.<br />

— É, já me disseram.<br />

Ele respirou fundo.<br />

— Você sabe, me pego pensando nas crianças da turma <strong>de</strong> Ben. Sinto-me<br />

ligado a elas. Quero vê-las crescidas e bem-sucedidas, enten<strong>de</strong>?<br />

Vi-as crescerem, sinto-me próximo a elas. Isso é incomum? Será que<br />

estou sentindo isso porque faz com que eu esteja mais próximo <strong>de</strong> Ben?<br />

É por isso que estou me apegando a esses outros garotos? É o que parece,<br />

não é? Parece estranho.<br />

— Dan, não se preocupe com o que as coisas se parecem. As pessoas<br />

po<strong>de</strong>m pensar o que quiserem. Para o inferno com elas. Você não <strong>de</strong>ve<br />

se preocupar com isso.<br />

Ele massageou um pouco mais a testa. A agonia que sentia não seria<br />

mais óbvia se estivesse sangrando estirado no chão. Eu queria ajudá-lo.<br />

Ao mesmo tempo, queria me livrar <strong>de</strong>le.<br />

— Ajudaria se eu soubesse, se, se o caso fosse resolvido. Irá me ajudar<br />

quando vocês resolverem o caso. Porque a incerteza... é exaustiva. Aju-<br />

22


dará quando o caso for resolvido, não é mesmo? Em outros casos que<br />

você viu, isso ajuda os pais, não ajuda?<br />

— Sim, creio que sim.<br />

— Não quero pressioná-lo. Não quero que soe <strong>de</strong>ssa maneira. Só<br />

que... imagino que me ajudará quando o caso estiver solucionado e eu<br />

souber que esse cara está... quando ele for preso e executado. Sei que fará<br />

isso. Tenho fé em você, é claro. Quero dizer, é claro. Não estou duvidando<br />

<strong>de</strong> você, Andy. Estou apenas dizendo que me ajudará. A mim, à minha<br />

esposa, a todos. É disso que precisamos, eu acho. Desfecho. É o que<br />

esperamos <strong>de</strong> você.<br />

Naquela noite Laurie e eu estávamos <strong>de</strong>itados na cama lendo.<br />

— Ainda acho que estão cometendo um erro abrindo a escola tão<br />

cedo.<br />

— Laurie, já discutimos tudo isso. — Minha voz tinha um tom entediado.<br />

Já passei por isso antes. — Jacob estará perfeitamente seguro.<br />

Nós mesmos vamos levá-lo para lá, caminharemos com ele até a porta<br />

da escola. Haverá policiais por toda parte. Ele estará mais seguro na<br />

escola do que em qualquer outro lugar.<br />

— Mais seguro. Você não tem como saber. Como po<strong>de</strong>ria saber?<br />

Ninguém tem a menor i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> quem é esse sujeito ou on<strong>de</strong> ele está ou<br />

o que preten<strong>de</strong> fazer a seguir.<br />

— Precisam abrir a escola em algum momento. A vida continua.<br />

— Você está errado, Andy.<br />

— Quanto tempo quer que esperem?<br />

— Até capturarem o cara.<br />

— Isto po<strong>de</strong> levar algum tempo.<br />

— E daí? Qual é a pior coisa que po<strong>de</strong>ria acontecer? As crianças<br />

per<strong>de</strong>riam alguns dias <strong>de</strong> aula. E daí? Pelo menos estariam seguras.<br />

— Não se po<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixá-las totalmente seguras. O mundo é gran<strong>de</strong> lá<br />

fora. Um mundo gran<strong>de</strong> e perigoso.<br />

— Certo, mais seguras.<br />

Pousei meu livro sobre a barriga, on<strong>de</strong> ele formou um pequeno telhado.<br />

23


— Laurie, se mantivermos a escola fechada, enviamos às crianças a<br />

mensagem errada. A escola não <strong>de</strong>ve ser perigosa. Não é um lugar do qual<br />

<strong>de</strong>vam ter medo. É o segundo lar <strong>de</strong>las. É on<strong>de</strong> passam a maior parte do<br />

dia. Elas querem estar lá. Elas querem estar com os amigos, e não presas em<br />

casa, escondidas <strong>de</strong>baixo da cama para que o bicho-papão não as pegue.<br />

— O bicho-papão já pegou uma <strong>de</strong>las. Isso faz com que não seja um<br />

bicho-papão.<br />

— Certo, mas você enten<strong>de</strong> o que estou dizendo.<br />

— Ah, entendo o que está dizendo, Andy. Estou apenas lhe dizendo<br />

que está errado. A priorida<strong>de</strong> número um é manter as crianças em segurança,<br />

fi sicamente. Depois elas po<strong>de</strong>m fi car com os amigos ou seja lá<br />

o que for. Até que o cara esteja preso, você não po<strong>de</strong> me prometer que<br />

as crianças estarão seguras.<br />

— Você precisa <strong>de</strong> uma garantia?<br />

— Sim.<br />

— Pegaremos o cara — eu disse. — Garanto.<br />

— Quando?<br />

— Logo.<br />

— Você sabe disso?<br />

— Espero por isso. Sempre os pegamos.<br />

— Nem sempre. Lembra o cara que matou a esposa e a enrolou em<br />

um cobertor na mala do carro?<br />

— Nós pegamos aquele cara. Apenas não conseguimos... Tudo bem,<br />

quase sempre. Nós quase sempre os pegamos. Vamos pegar esse cara,<br />

prometo a você.<br />

— E se você estiver errado?<br />

— Se estiver errado, tenho certeza <strong>de</strong> que você me contará tudo a<br />

respeito.<br />

— Não, quero dizer se você estiver errado e alguma pobre criança<br />

for ferida?<br />

— Isso não acontecerá, Laurie.<br />

Ela franziu a testa, <strong>de</strong>sistindo.<br />

— É impossível discutir com você. É como colidir repetidamente<br />

contra uma pare<strong>de</strong>.<br />

— Não estamos discutindo. Estamos conversando.<br />

24


— Você é advogado; não sabe a diferença. Eu estou discutindo.<br />

— Escute, o que você quer que eu diga, Laurie?<br />

— Não quero que diga nada. Quero que escute. Você sabe, ser confi<br />

ante não é o mesmo que estar certo. Pense: po<strong>de</strong>mos estar colocando<br />

nosso fi lho em perigo. — Ela pressionou a ponta do <strong>de</strong>do contra minha<br />

têmpora e empurrou, um gesto em parte brincalhão, em parte irritado.<br />

— Pense.<br />

Ela se virou para o outro lado, colocou seu livro no topo <strong>de</strong> uma<br />

pilha bamba <strong>de</strong> livros em sua mesa <strong>de</strong> cabeceira e <strong>de</strong>itou com as costas<br />

voltadas para mim, uma criança em um corpo <strong>de</strong> adulto.<br />

— Aqui — disse eu. — Chegue mais perto.<br />

Com uma série <strong>de</strong> pequenos saltos com o corpo, ela se moveu para<br />

trás até suas costas encostarem em mim. Até sentir um pouco do calor<br />

ou da fi rmeza ou do que quer que precisasse <strong>de</strong> mim naquele momento.<br />

Acariciei a parte superior <strong>de</strong> seu braço.<br />

— Vai fi car tudo bem.<br />

Ela grunhiu.<br />

Eu disse:<br />

— Suponho que sexo para fazer as pazes está fora <strong>de</strong> questão?<br />

— Achei que você não estivesse discutindo.<br />

— Não estava, mas você estava. E quero que saiba: está tudo bem,<br />

perdoo você.<br />

— Ha ha. Talvez, se você disser que sente muito.<br />

— Sinto muito.<br />

— Não parece.<br />

— Eu verda<strong>de</strong>iramente, profundamente sinto muito. De verda<strong>de</strong>.<br />

— Agora, diga que está errado.<br />

— Errado?<br />

— Diga que está errado. Você quer ou não?<br />

— Hum. Só para que fi que claro: tudo que preciso fazer é dizer que<br />

estou errado e uma linda mulher fará amor apaixonadamente comigo.<br />

— Eu não disse apaixonadamente. Apenas normal.<br />

— Certo, então: digo que estou errado e uma linda mulher fará<br />

amor comigo, completamente isenta <strong>de</strong> paixão mas com uma técnica<br />

bastante razoável. É essa a situação?<br />

25


— Técnica bastante razoável?<br />

— Técnica impressionante.<br />

— Sim, senhor advogado, essa é a situação.<br />

Coloquei o livro <strong>de</strong> lado, a biografi a <strong>de</strong> Truman por McCullough,<br />

no topo <strong>de</strong> uma pilha escorregadia <strong>de</strong> revistas lustrosas na minha própria<br />

mesa <strong>de</strong> cabeceira e apaguei a luz.<br />

— Esqueça. Não estou errado.<br />

— Não importa. Você já disse que sou linda. Ganhei.<br />

26

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