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<strong>Gláuks</strong><br />
que o leitor se questione sobre sua efetividade, posto que seu<br />
curso esteja pautado por uma sucessão de lapsos e interrupções.<br />
Tudo isso fica especialmente curioso quando se trata de um<br />
po<strong>em</strong>a <strong>em</strong> que há uma narrativa a ser contada e que se<br />
desenvolve tropegamente, como se o próprio narrador estivesse<br />
um tanto ébrio. A hipótese ganha especial relevo se<br />
considerarmos que o sujeito da assombração é um aprendiz de<br />
poeta que, voltando da noite boêmia, tenta sacar uns versos<br />
amarfanhados no bolso à procura de fogo para o Boca-de-Ouro,<br />
segundo a narração de Gilberto Freyre, ao passo que, na<br />
narração de João Cabral, é o seu sujeito qu<strong>em</strong> quer acender o<br />
cigarro, confundindo-se com a visag<strong>em</strong> descrita na primeira<br />
narração.<br />
Da figuração engendrada pelo poeta, destaque-se o<br />
caráter irônico de uma assombração, que, sendo Boca-de-ouro,<br />
aparece com um dente só. Se, desde t<strong>em</strong>pos im<strong>em</strong>oriais a<br />
dentição é marca distintiva de classe – inclusive para os<br />
cavalos, cuja arcada é índice de saúde –, no caso da<br />
assombração que compensa sua podridão pela dentadura de<br />
ouro, quando aparece com um dente apenas, é como se pudesse<br />
saldar não só a riqueza decaída, mas também a podridão que é<br />
encarnada na d<strong>em</strong>ência que se lhe afigura como possibilidade<br />
real. Trata-se, portanto, de uma atualização radical daquela<br />
circunstância histórica com a qual o poeta teve de lidar e que<br />
alimenta a contrapelo. Também, aqui, o poeta concretiza a<br />
podridão do passado – que possivelmente sua parentela viesse a<br />
ilustrar, encarnada <strong>em</strong> Boca-de-Ouro – na podridão do passado<br />
vivenciado por si mesmo, representado no d<strong>em</strong>ente de um dente<br />
só, que ele limita com a assombração de Boca-de-Ouro. Aquela<br />
visag<strong>em</strong> incógnita que lhe aparece sobre a Ponte Maurício de<br />
Nassau sob um escuro do cão r<strong>em</strong><strong>em</strong>ora também uma<br />
experiência concreta que o relega à condição humana mais<br />
fragilizada, ainda que sob o aparato familiar. O ponto obscuro