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Contos do Norte, de João Marques de Carvalho

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Ergueu-se então Antonio, foi espreitar o rosto <strong>do</strong> naufrago, que <strong>do</strong>rmia sempre,<br />

mergulha<strong>do</strong> n'um gran<strong>de</strong> somno febril, com a perna assusta<strong>do</strong>ramente inchada.{29}<br />

Quan<strong>do</strong> levantava a cabeça, Antonio fixou o olhar n'um ponto da pare<strong>de</strong> e teve um<br />

calafrio: pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> um prego, estava a espingarda e este facto arredava a hypothese <strong>de</strong><br />

ter i<strong>do</strong> o pequeno á caça. Mas então, por on<strong>de</strong> andava elle?<br />

Terrivel suspeita ergueu-se-lhe ao fun<strong>do</strong> <strong>do</strong> espirito, confrangen<strong>do</strong>-lhe o coração. Se<br />

tivesse morri<strong>do</strong>?... Era impossivel! O rapaz ia voltar, com certeza. Entretanto, não ficou<br />

tranquillo, embora tratasse <strong>de</strong> distrair-se, preparan<strong>do</strong> um cigarro e apagan<strong>do</strong> a can<strong>de</strong>ia.<br />

Lá estava um pezar <strong>de</strong>sassocega<strong>do</strong>, agacha<strong>do</strong> no recondito <strong>do</strong> coração.<br />

Veiu apressa<strong>do</strong> para fóra. Seus olhos percorreram a praia, n'um relance: tu<strong>do</strong> <strong>de</strong>serto.<br />

Nas dunas mais proximas da floresta, a vegetação rasteira havia si<strong>do</strong> lavada e sorria na<br />

brandura <strong>do</strong> seu ver<strong>de</strong> tenro. Á beira <strong>do</strong> matto, as gran<strong>de</strong>s arvores retorciam immoveis<br />

os sombrios musculos no<strong>do</strong>sos, to<strong>do</strong>s{30} embebi<strong>do</strong>s d'agua. E no firmamento<br />

esfuma<strong>do</strong>, poucas nuvens se <strong>de</strong>stacavam, tingin<strong>do</strong>-se <strong>de</strong> côr <strong>de</strong> rosa.<br />

Voltou-se Antonio para o mar. As aguas tinham um espreguiçamento suave. Do barco<br />

que naufragara á vespera nada mais se via: ou fôra a pique, ou o temporal o arrastara a<br />

qualquer ponto longinquo da costa.<br />

Signal <strong>do</strong> rapaz absolutamente não havia. Na areia, banhada pela chuva até mui tar<strong>de</strong>,<br />

tinham-se <strong>de</strong>sfeito as pegadas <strong>de</strong> Antonio, recolhen<strong>do</strong> com o naufrago. Mas então, se o<br />

filho tivesse <strong>do</strong>rmi<strong>do</strong> na cabana e só pela manhã saísse, o chão pisa<strong>do</strong> <strong>de</strong> fresco havia<br />

<strong>de</strong> indicar a direcção por elle tomada. E a verificação <strong>de</strong> que o solo estava to<strong>do</strong> liso, por<br />

egual, foi conclu<strong>de</strong>nte para o caboclo.<br />

Duas lágrymas, ar<strong>de</strong>ntes quaes malaguetas, queimaram-lhe as palpebras e um soluço<br />

estrangulou-lhe na garganta a emissão <strong>de</strong> um improperio feroz.{31}<br />

Ainda appellan<strong>do</strong> para uma esperança fortuita, <strong>de</strong>itou o infeliz a correr ás tontas <strong>de</strong> um a<br />

outro la<strong>do</strong>, chaman<strong>do</strong> o filho em gran<strong>de</strong>s gritos. Respondiam-lhe os echos da floresta,<br />

<strong>de</strong>moradamente. E o oceano, sem perturbar-se, arrastava as ondas languidas, que<br />

formavam rendas espumosas, sobre a finissima areia da côr da madresylva morena.<br />

A subitas, estarreceu o caboclo. Além, junto á linha da agua, muito distante <strong>do</strong> sitio<br />

on<strong>de</strong> se achava, lobrigaram seus olhos <strong>de</strong> pae um vulto extranho e logo o coração<br />

bra<strong>do</strong>u-lhe que era o cadaver <strong>do</strong> curumim. Antonio poz-se a correr—a voar—para o<br />

sitio a que o presentimento o compellia.<br />

*<br />

* *<br />

Não é um pezar o que leva esse homem no coração: é um mun<strong>do</strong> <strong>de</strong> angustias, um<br />

turbilhão{32} <strong>de</strong> agonias. Ensopada, a areia facilita-lhe a carreira, pela resistencia que<br />

lhe offerece aos pés <strong>de</strong>scalços. E cada pegada, um instante calcada no solo, fórma, bem<br />

<strong>de</strong>pressa, uma pequena poça que reflecte na sua superficie, sobrepon<strong>do</strong>-os, o ver<strong>de</strong> claro<br />

da vegetação das dunas e o rosa<strong>do</strong> suavissimo das nuvens, tocadas <strong>de</strong> sol.

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