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Contos do Norte, de João Marques de Carvalho

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UM COMO TANTOS<br />

PARA O LICINIO SILVA, ESTA OBSERVAÇÃO.<br />

Haviam já passa<strong>do</strong> para Nazareth, <strong>de</strong> volta <strong>do</strong> Vero-peso, os <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>iros bonds <strong>do</strong><br />

espectaculo. A pouco e pouco, os peões tinham rarea<strong>do</strong> no cimento <strong>do</strong>s largos passeios<br />

das avenidas,—o transito fizera-se nullo, um ou outro noctivago impenitente andava<br />

errante á sombra propicia das folhudas mangueiras, investigan<strong>do</strong> a distancia com<br />

olhares incendi<strong>do</strong>s <strong>de</strong> uma ponta <strong>de</strong> lubricida<strong>de</strong> contida a contra-gosto. Nos renques da<br />

illuminação electrica{128} manifestavam-se eclipses intermittentes, contra os quaes<br />

praguejava, sem bem saber porquê, o cocheiro d'uma carruagem estacionada em frente<br />

ao Club Universal. Poucas mesas restavam no terraço <strong>do</strong> Café Riche. Entretanto, um<br />

crea<strong>do</strong> somnolento, não obstante a ausencia <strong>de</strong> frequenta<strong>do</strong>res, persistia, pelo habito, em<br />

dispôl-as em symetria, ro<strong>de</strong>an<strong>do</strong>-as <strong>de</strong> ca<strong>de</strong>iras. O chão estava zebra<strong>do</strong> <strong>de</strong> humida<strong>de</strong>s<br />

a<strong>do</strong>cicadas, escorri<strong>do</strong> <strong>de</strong> Apollinaris transbordante, coalha<strong>do</strong> <strong>de</strong> rolhas, aqui e acolá<br />

brilhante <strong>de</strong> pedaços <strong>de</strong> capsulas das garrafas <strong>de</strong> cerveja. Perto, gania um cão. Mas<br />

outro cachorro irrompêra <strong>do</strong> centro da enorme praça, viera em linha recta, cabeça baixa<br />

e cauda erguida, para junto d'aquelle e, após as rapidas saudações peculiares, fôram-se<br />

ambos, General Gurjão a baixo. Liberrimos animaes!<br />

Silverio, meio volta<strong>do</strong> para a esquerda, acompanhara-os com a vista, distrahidamente;<br />

até <strong>de</strong>sapparecerem{129} na silente escuridão da rua. Estava senta<strong>do</strong> n'um banco, havia<br />

muitas horas, <strong>de</strong>fronte da curva <strong>do</strong>s bonds. O olhar avistara um cartaz colla<strong>do</strong> á pare<strong>de</strong><br />

da Casa A<strong>do</strong>lpho: uma parisiense, com a saia batida pelo rijo vento <strong>de</strong> Montmartre,<br />

puxava um carro-annuncio, formoso preconicio <strong>do</strong> estabelecimento. Pareceu-lhe que a<br />

sua situação moral estava em analogia com o quadro, afora os matizes garri<strong>do</strong>s. Elle<br />

tambem andava atrela<strong>do</strong> ao carro da vida, fustiga<strong>do</strong> e zurzi<strong>do</strong> pelo tufão <strong>do</strong>s dissabores<br />

<strong>do</strong>mesticos. As tintas, porém, com que se <strong>de</strong>vêra pintar a sua existencia tinham <strong>de</strong> ser<br />

amassadas na palheta das <strong>de</strong>sditas,—toda a gamma sombria das cores carregadas, <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />

o roxo <strong>do</strong>s goivos ao negro da infelicida<strong>de</strong>.<br />

Desviou a vista <strong>do</strong> obsidiante cartaz, pois não fôra para atiçar tristes lembranças que<br />

saíra <strong>de</strong> casa. Bem ao contrario, necessitava <strong>de</strong> distrahir o espirito, refrescar{130} o<br />

cerebro na suave tranquillida<strong>de</strong> da noite, em plena praça. Tirou o chapéu, conservan<strong>do</strong>o<br />

na mão direita e exten<strong>de</strong>u os braços pelo espaldar <strong>do</strong> banco. A cabeça, <strong>de</strong> largas<br />

entradas, pen<strong>de</strong>u para traz: dir-se-ia um crucifica<strong>do</strong>; e o olhar foi ao alto, cravou-se na<br />

insondavel amplidão <strong>do</strong> espaço, ao fun<strong>do</strong> da qual phosphoresciam estrellas, aos<br />

milhares. Afun<strong>do</strong>u-se então na tremenda reviviscencia <strong>do</strong>s seus infortunios.<br />

—Lá vae ella outra vez, bra<strong>do</strong>u alguém, á direita.<br />

Silverio, com um estremeção, voltou á vida exterior, buscan<strong>do</strong> <strong>de</strong>scobrir quem falava.<br />

Era o cocheiro,—o Ca<strong>de</strong>te ou o Bruzegas,—á porta <strong>do</strong> Club, encarapita<strong>do</strong> na bolêa, a<br />

<strong>de</strong>nunciar em soliloquio cada intermissão na luz <strong>do</strong> foco electrico mais próximo.<br />

—Feliz mortal, murmurou Silverio, invejoso da <strong>de</strong>spreoccupação d'aquelle homem.

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