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Contos do Norte, de João Marques de Carvalho

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escorraçar os meninos com a mais leve sombra <strong>de</strong> censura, tomava-os ternamente pela<br />

cinta, sentava-os ao collo, um em{135} cada joelho, acariciava-os <strong>de</strong> manso, amimavaos,<br />

cobrin<strong>do</strong>-os <strong>de</strong> beijos e <strong>de</strong> silenciosas lágrymas.<br />

De tu<strong>do</strong> isto lembrava-se o <strong>de</strong>sditoso Silverio, inerte no banco da avenida, as pernas<br />

entorpecidas pela <strong>de</strong>morada immobilida<strong>de</strong>. Ainda ha pouco, ao anoitecer, houvera em<br />

casa uma terrivel scena. Persuadira-se Luiza estar o mari<strong>do</strong> auferin<strong>do</strong> gran<strong>de</strong>s lucros<br />

n'uma industria inaugurada mezes antes, lucros que <strong>de</strong>sviava ás occultas para a Europa.<br />

E <strong>de</strong>u para exigir-lhe «a sua parte no negocio». Sogro e sogra tinham acudi<strong>do</strong> com<br />

argumentos e gritos: «De certo, é preciso pintar já para aqui os cobres!» E,<br />

<strong>de</strong>senvolven<strong>do</strong> preceitos juridicos, explicava o velhote que «a não cohabitação material<br />

<strong>do</strong>s conjuges recolhi<strong>do</strong>s sob o mesmo tecto não impedia a co-participação na pecunia».<br />

Dispensou-se <strong>de</strong> se <strong>de</strong>sculpar, o Silverio; e, para não irem mais longe os bra<strong>do</strong>s, que<br />

estavam já a incommodar a vizinhança, tomou dissimuladamente{136} o chapéu, fugiu<br />

precipite rua a<strong>de</strong>ante, até á avenida. Ali, ao menos, estava fóra da socerina alçada. Safa!<br />

A vista da estatua suscitara-lhe a nostalgia da liberda<strong>de</strong>. Relanceou um olhar pelo<br />

passa<strong>do</strong>, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a sua chegada a Belém e pasmou <strong>de</strong> ainda sentir <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> si o que se<br />

chama um coração e uma alma, após soffrimentos tão longos e tamanhos. On<strong>de</strong> teria<br />

elle o bomsenso, já revela<strong>do</strong> <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a a<strong>do</strong>lescencia, quan<strong>do</strong> commetteu a levianda<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

casar com Luiza? Nada o libertaria agora, porque a sua inteireza <strong>de</strong> animo, a sua<br />

correcção nativa lhe vedavam o supremo recurso da fuga. Prendiam-n'o ao cepo<br />

abençoadas ca<strong>de</strong>ias: os filhos, que eram os <strong>do</strong>ces élos ligan<strong>do</strong> o seu alvedrio á <strong>de</strong>sdita.<br />

As creanças! Elle também fôra pequenito, <strong>de</strong>scui<strong>do</strong>so e travesso infante, nas amplas<br />

veigas lombardas, rescen<strong>de</strong>ntes a rosmaninho. Creara-o a inexgottavel ternura da velha<br />

mãe, e tinha si<strong>do</strong> ao som{137} <strong>do</strong>s ru<strong>de</strong>s osculos bonachões <strong>do</strong> pae que elle,<br />

apaparica<strong>do</strong> á porfia, encetara a solettração <strong>do</strong> singelo alphabeto das caricias familiares.<br />

Em casa, no antigo e pobre lar, tão areja<strong>do</strong> no verão e tão cheio <strong>de</strong> tepi<strong>do</strong>s brazeiros<br />

pelo inverno, quan<strong>do</strong> o norte inclemente bramia rispi<strong>do</strong> nos olivaes e carvalheiras, só<br />

recebera edificantes exemplos <strong>de</strong> tolerancia mutua entre esposos amantes, <strong>de</strong> respeito<br />

calmo, <strong>de</strong> intensissima affeição. E na dupla contemplação <strong>do</strong> carinho <strong>de</strong> seus<br />

progenitores e da forte paixão com que o ga<strong>do</strong> amava na pradaria, manhã ce<strong>do</strong>, ao<br />

abalar da arribana, iniciara Silverio, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> joven, o seu gran<strong>de</strong> sonho <strong>de</strong> um lar to<strong>do</strong><br />

meiguices, em férvida ventura conjugal. O sonho fôra <strong>de</strong>veras fugaz. Em pesa<strong>de</strong>lo<br />

tornara-se <strong>de</strong>pressa, n'estes ar<strong>de</strong>ntes paizes americanos, on<strong>de</strong> tu<strong>do</strong> parece crescer,<br />

<strong>de</strong>senvolver-se e passar vertiginosamente. Aquelles sau<strong>do</strong>sos tempos estavam longe,<br />

formavam um grupo separa<strong>do</strong>, distincto, na{138} vasta collecção <strong>de</strong> suas recordações<br />

<strong>de</strong> outróra. Presentemente, nada restava da tranquillida<strong>de</strong> em que se formara a sua<br />

a<strong>do</strong>lescencia, na Europa, nem <strong>do</strong>s esperançosos, dulcissimos sobresaltos que chegavam<br />

a tirar-lhe o somno, reten<strong>do</strong>-o até alta noite no sombrio tombadilho <strong>do</strong> vapor, quan<strong>do</strong><br />

fizera a travessia <strong>do</strong> Atlantico. Tu<strong>do</strong> fugira, na <strong>de</strong>finitiva liquidação da sua felicida<strong>de</strong>.<br />

Esta <strong>do</strong>lorosa introversão foi interrompida por um relinchar <strong>de</strong> cavallo. Olhou Silverio á<br />

direita, como voltan<strong>do</strong> <strong>de</strong> um sonho. Tinham-se afasta<strong>do</strong> os varre<strong>do</strong>res, andava ainda no<br />

ar, peneirada na luz <strong>do</strong>s focos electricos, a poeira levantada pelas compridas vassoiras.<br />

Sempre aberto, o Universal manchava <strong>de</strong> claro a ramaria das mangueiras com a<br />

projecção das salas illuminadas. Em frente á porta, o cocheiro falava manso aos animaes<br />

impacienta<strong>do</strong>s. E o crea<strong>do</strong> <strong>do</strong> Riche, <strong>de</strong>sperto pelo relincho, obtivera <strong>do</strong> patrão a<br />

ventura{139} <strong>de</strong> um gesto, or<strong>de</strong>m muda para fechar.

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