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O Malho e o <strong>cinzel</strong><br />
Temas maçônicos<br />
Luiz Caramaschi<br />
Luiz Caramaschi<br />
Editora Sociedade Filosófica Luiz Caramaschi<br />
Praça Arruda, 54 - Caixa Postal 44 - 18800-000 - Piraju - SP<br />
Fone (14) 3351.1900<br />
1
O Malho e o Cinzel<br />
Temas maçônicos<br />
"O túmulo vazio de Jesus não é a interpretação<br />
sacerdotal da ressurreição do corpo;<br />
é o símbolo da ressurreição do pensamento e do Espírito"<br />
"Trata, pois, de <strong>cinzel</strong>ar teu caráter, abrilhantando<br />
de virtudes essa alma que deverá refletir, em algum<br />
dia da eternidade, a imagem e semelhança do seu Criador"<br />
PIRAJU - SP<br />
- 2006 -<br />
2
PREFÁCIO<br />
Luiz Caramaschi é considerado pela comunidade maçônica de Piraju como uma fonte poderosa<br />
de luz que, por uma graça do Grande Arquiteto do Universo, por aqui transitou, espargindo seus raios de<br />
luz e sabedoria. Foi iniciado na Loja Maçônica "Cavalheiros do Sul", de Piraju, em 29 de novembro de 1947,<br />
tendo sido elevado ao Grau 33 em 7 de outubro de 1982. Permaneceu na Maçonaria toda a sua vida e,<br />
enquanto habitava entre nós, espargiu sua sabedoria através de palestras pronunciadas em diversas Lojas<br />
Maçônicase e em trabalhos publicados na imprensa e em livros. Sua temática, com pequenas exceções, é a<br />
filosofia, onde, com grande erudição e laborioso trabalho de pesquisa, procura demonstrar a natureza do<br />
nosso Criador e o comportamento dos seres humanos entre si e em face do mesmo Criador.<br />
Todavia, a maior parte da obra de Caramaschi foi deixada em manuscrito. Para tornar possível a<br />
edição e difusão das obras foi fundada a Associação Filosófica Luiz Caramaschi que, embora Entidade<br />
autônoma, funciona em anexo à Loja Maçônica Cavalheiros do Sul, de Piraju. E dois membros dessa Loja,<br />
os irmãos Antonio Arruda e Caleb Caramaschi, este, irmão carnal do filósofo, tomaram para si a árdua<br />
tarefa de editar as obras, aí incluindo desde a transposição dos manuscritos, trabalho difícil e demorado,<br />
pois além da caligrafia, que praticamente tem de ser decifrada, há diversos asteriscos indicando que no<br />
lugar deve entrar um texto escrito posteriormente. Nessas condições, era impossível digitar os escritos,<br />
diretamente dos originais, sendo necessário transcrevê-los primeiro. Esse trabalho era feito unicamente por<br />
D. Odila Prestes Caramaschi, esposa de Luiz Caramaschi. Após o falecimento de D. Odila esse serviço<br />
continuou sendo feito por Caleb Caramaschi. A feliz idéia de reunir em um livro os artigos de Caramaschi<br />
versando especificamente sobre a maçonaria foi dos abnegados irmãos acima mencionados.<br />
Como foi dito, a obra é extensa e o tema, sempre Filosofia. Considera Caramaschi que a Maçonaria<br />
é, no seio da humanidade, uma das poucas instituições que, pela pregação do amor e da fraternidade,<br />
contribui de maneira decisiva, para frear a degenerescência por que passa a humanidade, bem como ser<br />
capaz de leva-la a um porvir de paz e concórdia. Toda a sua obra é embasada por sólidos argumentos e por<br />
princípios universalmente aceitos e debatidos por intelectuais de diversas tendências e opções. Nesta obra<br />
os artigos selecionados têm por foco especificamente a Maçonaria que é esmiuçada sob uma ótica inédita,<br />
revelando aspectos impensados, só visíveis a uma inteligência arguta e preparada como a de Luiz<br />
Caramaschi.<br />
A Coletânea é composta por treze artigos que analisam a Maçonaria nos aspectos mais profundos e<br />
humanos, focalizando-a sob ângulos novos e surpreendentes, enriquecendo-a com as luzes do seu saber,<br />
com a riqueza e originalidade poucas vezes encontradas na literatura maçônica. Assim, no decorrer da<br />
leitura aprendemos que nem todas as pedras brutas são trabalháveis; sentimos um certo desalento quando<br />
discorre sobre a unificação da maçonaria, afirmando ser um problema simples, mas de solução complexa;<br />
ficamos surpresos ao depararmos com a lógica irretocável de que o enunciado do ternário maçônico<br />
Liberdade, Igualdade, Fraternidade deve ser corretamente enunciado como Fraternidade, Igualdade,<br />
Liberdade; sentimos a verdadeira dimensão do pavimento de mosaico ao vê-lo relacionado com o homem<br />
unitivo, qualidade inerente ao homem maçom, em contraposição ao homem sectário; aprendemos novos e<br />
profundos significados do salmo 133; descobrimos que podemos ter toda a ciência sem contudo, sermos<br />
sábios; vemos a variada gama de ensinamentos advindos de um instrumento chamado compasso e sua<br />
colocação sobre o coração durante os rituais; conscientizamo-nos de que devemos “nos <strong>cinzel</strong>armos a nós<br />
mesmos para que possamos entrar como parte no edifício social da humanidade"; concordamos que o<br />
passado, ao contrário do que pregam os manuais de auto ajuda, “não desaparece, e antes, pervive em cada<br />
momento do presente”; ficamos convencidos do acerto do aforismo “não há penas nem recompensas, e sim<br />
conseqüências”; tomamos ciência da síntese entre o Criacionismo e o Evolucionismo e, finalmente, nos<br />
leva a um mergulho profundo sobre a nossa existência ao expor sua filosofia sobre o grau 18.<br />
Embora versando sobre altos graus da Maçonaria em alguns dos seus escritos, podem eles, e até<br />
seria conveniente, que fossem analisados pelos profanos. Caramaschi não desce aos assuntos privativos da<br />
Ordem, mas trata tão somente do seu pensamento filosófico, onde o tema principal não é a Maçonaria em<br />
si, mas a angústia da humanidade em seu caminhar atribulado. O autor procura mostrar o caminho ideal a<br />
ser seguido pelo ser humano, perante si mesmo, perante Deus e perante os seus semelhantes. Com a<br />
presente obra está a Ordem Maçônica cumprindo com um de seus postulados mais importantes: o de ser<br />
uma instituição filosófica, que prima pela investigação constante da Verdade, conforme preceitua o artigo<br />
primeiro de nossa Lei maior.<br />
Mário Felipe<br />
3
Índice<br />
I - O que é a Maçonaria?<br />
II - Unificação da Maçonaria<br />
III - Inversão da Ordem do Ternário<br />
IV - Unitivos e facciosos<br />
V - Fraternidade<br />
VI - Sabedoria e ciência<br />
<strong>VII</strong> - As pontas do compasso sobre o coração<br />
<strong>VII</strong> - O <strong>malho</strong> e o <strong>cinzel</strong><br />
<strong>VII</strong>I - Ampulheta<br />
IX - Aforismo<br />
X - Grandes pontífices<br />
XI - Minha filosofia e a linha do Grau 18<br />
XII - Faça-se a luz<br />
XIII <strong>–</strong> Religiões e Crença<br />
XIV <strong>–</strong> Homem, Mundo e Deus<br />
XV <strong>–</strong> O que é o Espírito<br />
XVI <strong>–</strong> Conflito de Gerações<br />
4
I - O que é a Maçonaria?<br />
A Maçonaria é uma instituição iniciática, como as muitas que existiram no passado. Sua<br />
simbologia e liturgia remontam-se a eras sem quantia. Quando, a partir do século 19, a<br />
arqu<strong>eo</strong>logia começou a fazer descobertas de civilizações desaparecidas das quais os homens<br />
haviam perdido todo o contato, foram desenterrados objetos em que figuravam símbolos<br />
maçônicos.<br />
A imutabilidade dos símbolos torna possível guardarem-se puros os preceitos e as<br />
práticas maçônicos que seriam deturpados se fossem expostos em longas dissertações. Além disso,<br />
a linguagem simbólica é uma linguagem sintética que condensa toda uma longa narrativa num<br />
simples símbolo. Pretendendo a Maçonaria ser a síntese de todo o progresso humano, não teve<br />
outro recurso senão condensar todo esse desenvolvimento na concisão dos símbolos. Eis, pois que<br />
a simbologia e a liturgia maçônicas são antiguíssimos, embora a forma moderna em que a<br />
Maçonaria se apresenta, date apenas de uns dois séculos ou seja, a partir de 1717.<br />
No entanto, recuando mais no tempo, podemos deparar com uma Maçonaria medieval,<br />
formada por pedreiros livres, isto é, não escravos, sendo esta uma corporação como as muitas<br />
outras vigentes então. Pode dizer-se franco-maçons ao invés de maçons, e a palavra "franco"<br />
vem de franquia, ou seja, do maçon que tinha trânsito livre, franco, para viajar de uma cidade<br />
para outra a serviço da sua Arte Real, isto é, a arte dignificada pelos reis, em virtude de, por ela,<br />
se construírem palácios, catedrais, obeliscos e túmulos. Já no Egito antigo os arquitetos eram<br />
agraciados com o título de nobreza, passando a pertencer à casa do faraó. Este prestígio não<br />
declinou, visto como sempre houve palácios, catedrais, monumentos comemorativos e mausoléus<br />
por construir.<br />
Todavia, quando todas as corporações medievais principiaram a declinar, igualmente as<br />
agremiações de pedreiros livres deram sinal de enfraquecimento. Por causa disto, essas<br />
agremiações começaram a admitir nobres e pessoas prestigiosas em seus quadros, fazendo que<br />
surgissem duas ordens de maçons que eram os operativos e os aceitos. Com o correr do tempo, o<br />
número dos aceitos sobrepujou o dos operativos, até que estes cessaram de existir, ficando só os<br />
aceitos.<br />
Os maçons aceitos, então, fizeram a transposição de significado dos objetos ou utensílios<br />
dos pedreiros para o plano moral e social, nascendo, deste modo, a Maçonaria moderna. Maçom,<br />
logo, é sinônimo de pedreiro, ou seja aquele que trabalha com o maço e com o <strong>cinzel</strong> ou escopro<br />
sobre pedras. Do maço saiu o ofício de mação ou maçom.<br />
Hoje a Maçonaria deixou de ser operativa no sentido de construções materiais, para ser<br />
construtora do edifício social. Para conseguir este objetivo, ela precisa congregar, como sempre o<br />
fez, homens unitivos. Já escrevemos sobre estes homens, mas é preciso insistir um pouco mais<br />
sobre este assunto, porque é só com tais homens que se pode construir o edifício social. Antes de<br />
encetar a edificação do social é preciso edificar o próprio homem fazendo-o passar de pedra<br />
bruta a pedra trabalhada, o que se faz com o maço e com o <strong>cinzel</strong>. Nem todas as pedras brutas se<br />
prestam ao trabalho do maço e do <strong>cinzel</strong>; umas porque moles (caráter humano frouxo, mole,<br />
acomodado, moluscóide), outras porque excessivamente duras (caráter obstinado, insubmisso,<br />
intransigente, com tendência ao fanatismo irracional). Quais, logo, são as pedras brutas<br />
trabalháveis? Ei-los:<br />
Todo homem unitivo é um pensador, porque, como diz Gusdorf, "o filósofo é o homem<br />
da totalidade, da composição global onde todas as significações são retomadas e arbitradas em<br />
5
função da pessoa" 1 . "Tal como o rei Midas, que ao simples contato transformava em ouro os<br />
objetos mais vulgares, o metafísico (que é o mesmo que filósofo) eleva ao absoluto tudo aquilo em<br />
que toca" 2 . O parentese é nosso. Huberto Rohden afirma que "a inteligência humana é filosófica<br />
por natureza" 3 , e é certo isto, porque ela busca o nexo que tudo interliga na unidade até o<br />
absoluto.<br />
Falando de Smuts, diz Toynbee que "a «totalidade» era a chave de sua grandeza, assim<br />
como o era a da de Einstein. Einstein fez suas descobertas que marcaram época reunindo coisas<br />
que espíritos menores tinham deixado separadas. Sir Winston Churchill é outro grande homem do<br />
mesmo filão não-moderno. A amplidão de vistas destes três grandes homens é um elo entre si que<br />
transcende as diferenças de suas personalidades e suas carreiras. Todos três ter-se-iam sentido à<br />
vontade se tivessem nascido no mundo de Políbio, Catão, o Censor, e Arquimedes" 4 . Mais: "Tal<br />
como o filósofo da história islâmica do século XIV Ibn Khaldum e o filósofo ocidental da história<br />
do século X<strong>VII</strong>I Vico, Freeman tinha o dom de «ver o mundo em um grão de areia»" 5 . Sem esta<br />
característica de homem da totalidade, de homem unitivo a Maçonaria se enche de nulos com os<br />
quais nada se poderá construir.<br />
Em contrapartida, o homem só de fé, não de razão, abdica de sua inteligência para se pôr<br />
no cabresto daquele que o sugestionou. Como, voluntariamente, se fez destituído de razão, nem<br />
usa sua inteligência, está impedido de pensar, de argumentar; daí porque suas reações são<br />
desabafos emocionais agressivos, próprios dos fanáticos, exclusivistas, separatistas e irracionais.<br />
Ora, a Maçonaria não poderá contar com homens desta espécie para construir o edifício social.<br />
Já os que usam a razão acabam concluindo que todos possuem a verdade e que apenas<br />
estiveram falando da mesma coisa por palavras diferentes. Então, que é a verdade? Pois não pode<br />
ela ser senão aquilo que há de comum em todas as diferentes afirmações. Mas fica isto para o<br />
próximo artigo.<br />
simples<br />
II - Unificação da Maçonaria<br />
Solução complexa para um problema<br />
O problema é muito simples. É só unificar. Não há óbices grandes a vencer. A Doutrina é<br />
a mesma. O patrimônio é de todos os maçons que se amam, que se respeitam, que se visitam, que<br />
se consideram irmãos. A ritualística e a liturgia são meios, e, não, um fim, sendo, portanto, de<br />
somenos importância.<br />
Embora, como se vê, o problema seja simples, sua resolução se faz dificílima, porque os<br />
maçons agem como quase a maioria dos seguidores de Cristo, os quais se abstinham em<br />
questionar, por exemplo, sobre se o batismo deve ser por imersão, ou se apenas se deve pôr água<br />
sobre a cabeça. Esta e outras questiúnculas foram condenadas pelo próprio Cristo ao dizer: "pagais<br />
o dízimo da hortelã, do endro e do cominho, e desprezais os pontos mais importantes da lei" 6 . Por<br />
causa de os maçons, em sua maioria, serem misólogos, tal qual os divisionistas de Cristo, ficam<br />
ocupados com miuçalhas farisaicas que separam. Portanto, a solução do problema vai só depender<br />
de os maçons se tornarem em homens unitivos, de mentes abrangentes, capazes, por conseguinte,<br />
de grandes idéias, as só que unificam.<br />
1 G<strong>eo</strong>rges Gusdorf, Tratado de Metafísica, 122<br />
2 G<strong>eo</strong>rges Gusdorf, Tratado de Metafísica, 123<br />
3 Huberto Rohden, Filosofia Universal, 1, 21<br />
4 Arnold J. Toynbee, Experiências, 125<br />
5 Arnold J. Toynbee, Experiências, 125<br />
6 Mat 23, 23<br />
6
Deste modo, o problema é muito simples, visto como, o que une é o ideal maior; pela<br />
recíproca, o que separa são as questiúnculas que são o regalo da gente filosoficamente miúda, quer<br />
dizer, sem nenhuma ofensa, não possuidoras de mentes abrangentes. O problema da unificação<br />
fica na dependência de os maçons serem homens de mentes abertas, totalizantes, que só nisto se<br />
resume o ser filósofo.<br />
Ora, isto só pode acontecer ao longo do tempo, e tem que começar na Loja de Aprendiz,<br />
pela aquisição de candidatos, seguindo-se um critério de seleção não só na base de livres e de<br />
bons costumes, mas também, e sobretudo, levando-se em conta a CAPACIDADE DE<br />
ABRANGÊNCIA MENTAL dos candidatos. Se os filósofos não entrarem pela porta dos<br />
Aprendizes, ninguém se admire de os maçons continuarem misóssofos, mesmo tendo chegado ao<br />
grau 33.<br />
Não se trata de encher as Lojas de doutores, porque um doutor, qualquer que seja sua<br />
especialidade, pode não ser filósofo, e, no entanto, um operário, sim, pode. Espinosa era polidor<br />
de lentes. Como a filosofia não dá de comer a ninguém, segue-se que todo o filósofo tem de<br />
ocupar-se com algo para ganhar o seu pão. E o doutor?<br />
Qualquer doutor pode ser um filósofo também; não raro, porém, ele não vai além de um<br />
homem de ciência, o qual, no dizer de Ortega, é um "sábio-ignorante". Não pode ele ser<br />
classificado como ignorante, porque é um homem de ciência, e conhece muito bem sua<br />
"porciúncula de universo"; não obstante, é um ignorante, porque "se comportará em todas as<br />
questões que ignora, não como um ignorante, mas com toda a petulância de quem na sua questão<br />
especial é um sábio" 7 . Tais doutores não servem para a Maçonaria, embora sejam, como se exige,<br />
livres e de bons costumes, porque, como não são filósofos, e são doutores em alguma coisa, suas<br />
doutorices serão postas no lugar da filosofia, pelo que farão realçar as bagatelas que esses homensmassas,<br />
apesar de doutores, têm nas cabeças.<br />
Eis, pois, que não se pode perder de vista o dito por John Dewey: "A memória é a grande<br />
simuladora da inteligência", e o maçom tem que ser inteligente para não ficar ocupado com nadas<br />
como: forma de administração, observância meticulosa deste ou daquele ritual havido por<br />
verdadeiro, dando azo a infindáveis discussões como as medievais em que os escolásticos se<br />
propunham questões quais esta: quantos espíritos caberiam numa cabeça de alfinete?<br />
Modernamente: como fazer com o patrimônio?, se as Constituições não autorizam fundi-los num<br />
único? Quem vai aceitar o ritual e liturgia de quem?, e quais vão depor seus malhetes nas mãos de<br />
um único homem? E visto que se propõe haja um único mandante, como sofrerei eu não ser esse<br />
único? Tudo isto são o que chamamos miuçalhas! Sabedoria, portanto, não há de ser erudição,<br />
nem maçônica, nem profana, nem ambas juntas, mas capacidade de ver em globo, só indo para os<br />
pormenores, depois de apreendida a totalidade.<br />
Todo o mal, por conseguinte, consiste em querermos fazer grandes coisas, por exemplo:<br />
salvar a Maçonaria do divisionismo que a matará, como já matou outras instituições; salvar a<br />
civilização da sua queda iminente; fazer a Maçonaria constituir-se na CRISÁLIDA de que surgirá<br />
a nova civilização, a Jerusalem Celeste antevista nos graus 19 e 29, que, espera-se, estará<br />
acontecendo no terceiro milênio, a exemplo do que foi o Cristianismo em relação à nossa atual<br />
civilização ocidental, depois que a civilização greco-romana se esboroou nas mãos dos bárbaros;<br />
etc. Todo o mal consiste em ter pela frente tais grandes projetos, e contar, apenas, com homens<br />
pequenos quanto à abrangência mental. Serão homens boníssimos, amáveis, adoráveis, dignos de<br />
todo o respeito, e, por azar, ardorosos defensores de sua idéias miúdas, mas não serão filósofos<br />
capazes de integrar uma sociedade que é, primeiro que tudo, "essencialmente filosófica"<br />
(Const.) ...<br />
Por causa de não serem naturalmente, isto é, por natureza, filósofos, suas reuniões são<br />
monótonas, descoloridas, apartadas dos grandes problemas que o nosso tempo colocou, e que<br />
afligem, hoje, a humanidade inteira. Apesar disto, eles não se darão por achados, continuando a<br />
considerar-se como "líderes da sociedade", ou então, farão coro com um escritor que afirma ser a<br />
7 J. Ortega y Gasset, A Rebelião das Massas, 174<br />
7
Maçonaria uma escola de líderes, esquecendo-se, ou não sabendo que o líder não se faz: ele é, do<br />
berço. Qualquer bando de moleques, assim como uma tropa de macacos, de zebras, ou de outros<br />
mamíferos quaisquer de grande porte, tem um líder; pois bem: pegue-se um liderado qualquer,<br />
animal ou homem, e faça-se dele um líder!<br />
Isto só se torna exeqüível, se banalizarmos o termo líder, fazendo-o confundir-se com<br />
chefia, como ocorre com os líderes das assembléias legislativas, eleitos por votos, pelo que, de<br />
cambulhada, também, se escolhe qualquer um para ser o vice-líder. Igualmente, numa "escola de<br />
líderes" qual se diz ser a Maçonaria, poder-se-ia forjicar líderes de nada como os das assembléias,<br />
que ora lideram, ora não lideram, como se isto fosse possível in natura; uma espécie de Moisés<br />
que ora é Moisés, ora é outro qualquer que lhe ocupa o cargo, assumindo-lhe a missão de ser o<br />
"libertador do povo"(?!), e isto, por eleição duma maioria embaída por politicalhos. Datã, Coré e<br />
Abirão tiveram o topete, a insolência, o descaramento de pretender ocupar o posto de Moisés.<br />
Cuidaram fosse viável fazerem-se líderes eleitos por maioria, antecipando o que agora se faz nas<br />
assembléias. E que lhes sucedeu a eles? Foram todos mortos com seus familiares e sequazes, e<br />
tudo, deles, tendas, pertences, enterrados nas areias do deserto, exceto os sequazes, duzentos e<br />
cinqüenta, que foram queimados com fogo 8 . Tal é o líder, e ele não se forja em escolas!<br />
Tudo, então, tem que começar na Loja de Aprendiz pela seleção de candidatos, não<br />
servindo para a Maçonaria os bonacheirões, os pacíficos de gênio 9 , os amodorrados, os que não se<br />
exaltam por nada, os que não brigam por um ideal distante que não enxergam, mas que sempre<br />
estão atentos à execução cuidadosa das liturgias e rituais... Não serão estes que formarão a<br />
Maçonaria do futuro, porque, se houver Maçonaria no futuro, tais homens não estarão nela, e, se<br />
estiverem, ela já não será mais Maçonaria.<br />
Escreve Bertrand Russell: "A maioria dos homens prefere deixar-se matar a pensar. A<br />
história o atesta". Pois a Maçonaria do futuro, se ela existir no futuro, não será constituída de tais<br />
misóssofos. O Ir∴ Th<strong>eo</strong>baldo Varoli está equivocado quando escreve: "Não se pretenda, com isso,<br />
fazer da Maçonaria um presunçoso cenáculo de sábios. Não, pois a Instituição se firma em três<br />
colunas: SABEDORIA, FORÇA E BELEZA. O que está faltando à Ordem é mais sabedoria e<br />
mais ação ou força, pois a Maçonaria jamais perdeu a própria beleza" 10 . Varoli não disse o que<br />
entende por sábios, e bem pode ser que, os dele, sejam os mesmos sábios-ignorantes de Ortega,<br />
visto que tais, sim, são sábios presumidos, ou que têm a pretensão de sábios. Todavia, se ser sábio<br />
é possuir mente abrangente, totalizante, então, sim senhor!, as Lojas devem ser cenáculos de<br />
sábios!<br />
Se ocorrer o contrário disto, ninguém se admire de que a unificação possa ser tão<br />
impossível como a resolução matemática da quadratura do círculo, ou, a mecânica, do moto<br />
contínuo. Se o enchermos as Lojas de misóssofos continuar sendo a regra, para o futuro será<br />
assim: um Grão Mestre fará a unificação, em parte; depois dele, as coisas correrão, algum tempo,<br />
mais ou menos bem, até que tudo retorna ao estado anterior. Aí, então, outro Grão Mestre fará<br />
nova unificação, em parte ainda menor, e assim por diante, até que a Sublime Instituição que,<br />
como disse o Ir∴Varoli, já perdeu muito da sua força e da sua sabedoria, se esfacele por<br />
crescentes divisões, a exemplo do Protestantismo fragmentário, até que se extinga para sempre,<br />
como se extinguiram outras respeitáveis instituições iniciáticas do passado, como o Baquismo, o<br />
Orfismo, o Pitagorismo, sem lhes valer de nada quanto tinham em si de Belas!<br />
E não se trata de "presunçoso cenáculo de sábios", como o afirma o Ir∴Varoli, porque o<br />
presunçoso é o que presume, que supõe, que imagina, e o caso é de ser, de fato, de possuir, por<br />
8 Num 16 a 35<br />
9 O pacifismo tem que ser uma opção voluntária, e ser adquirido às duras penas, semelhante ao que disse Cristo do<br />
reino de Deus. "Desde os dias de João Batista até agora, o reino dos céus adquire-se à força, e são os violentos que o<br />
arrebatam" (Mat 11, 12). Quer dizer: Não há lugar para os frouxos. "Eu sei as tuas obras, que nem és frio nem quente:<br />
oxalá foras frio ou quente! Assim, porque és morno, e não é frio nem quente, vomitar-te-ei da minha boca" (Apc 3, 15<br />
e 16).<br />
10 Th<strong>eo</strong>baldo Varoli Filho, Curso de Maçonaria Simbólica, Grau de Aprendiz, 45<br />
8
natureza, mente abrangente, totalizante, o que é uma característica do homem filosófico o qual,<br />
como o poeta, nasce, e não se faz.<br />
O filósofo está transitando por aí, angustiado e confuso, afligido por mil questões que não<br />
existem para o povoléu, e precisa ser despertado pela Maçonaria, como foi despertado Descartes<br />
pelo sábio holandês Beeckman, ocorrendo este despertar como um "Pentecostes da razão" como<br />
escreve Maritain. Daí a necessidade das Sessões Brancas de estudos mensais, para o fim destes<br />
despertamentos. Outros despertam-se sozinhos, tal como ocorreu com Nietzsche, com Pascal, com<br />
Kierkegaard, com Rousseau, com Malebranche. Este último "folheia, numa livraria, o Tratado do<br />
homem de Descartes, e exclama: «tambem eu sou filósofo...»" 11 .<br />
Tudo isto nada tem a ver com a presunção de sábio, de que fala Varoli; trata-se de um<br />
como batismo filosófico, de uma visitação, de um relâmpago fugacíssimo, de uma iluminação<br />
subtânea que os gregos chamavam de alétheia, antes de Pitágoras trocar este termo por filosofia,<br />
e que pode acontecer a qualquer homem, e a qualquer momento. "Kierkegaard e Nietzsche,<br />
querendo caracterizar esse momento, falaram também do «sismo» que faz vacilar em suas bases<br />
mais profundas o universo pessoal" 12 . De tais homens filosóficos é que se hão de encher as Lojas,<br />
uns de maior, outros de menos alcance, e é certo que eles jamais se embriagarão com os fumos do<br />
poder, se este, um dia, lhes cair nas mãos. Pelo contrário, a aceitação do mando por tais homens, é<br />
um ato de obediência, de renúncia, de humildade, imposto pela consciência de que alguém tem<br />
que mandar. O cargo ser-lhes-á encargo e carga, e, não motivo gratificante de fúteis honrarias e<br />
incensamentos. Por causa disto estariam em condições de jogar tudo, TUDO!, para manter a<br />
UNIDADE, vindo, como agora, a UNIFICAÇÃO em primeiríssimo lugar, pela imediata eleição<br />
de um só mandante, vindo o resto, porque é resto mesmo, em segundo lugar.<br />
Portanto, como devia ter sido conduzida a UNIFICAÇÃO que ainda está, em parte, por<br />
fazer-se? Muito simplesmente, UNINDO-SE AS CÚPULAS, do mesmo modo como lá se deu a<br />
DESUNIÃO. Tinha-se (agora se sabe claramente) de ter agido como Alexandre Magno: cortando<br />
o nó górdio. Por acaso, quando foi para separar, alguém foi consultar o Povo Maçônico? Não! E<br />
não se fez tudo ao arrepio da vontade soberana desse Povo? Sim! Não é fato que, apesar das<br />
recomendações de que os de ambas alas não se deviam visitar, cada maçom mandou essas<br />
recomendações às urtigas? É verdade também isso! Pois, então, o que manda é o Povo Maçônico,<br />
o único que está acima da Lei, e tanto, que se esta o atrapalhar, ele a muda. Coerente com esta<br />
verdade inexpugnável que a história atesta em todo o seu curso, a UNIFICAÇÃO havia-se de ter<br />
sido feita pelos dois Grãos Mestres, entre si somente, sem mais aquelas. Eles, sozinhos, haveriam<br />
feito aquilo para o que foram eleitos por vontade do Povo. Haviam de ter deposto seus malhetes<br />
nas mãos de um terceiro, e se postarem ao lado deste para o ajudar nas reformas, assessorados por<br />
aqueles só que, intransigentemente, desejassem essa UNIFICAÇÃO. Nada de unificar ouvindo as<br />
bases... que foram alguns, os das comissões, dando azo a que estes micrólogos ficassem<br />
interpondo nadas, como, reforma da Constituição, Mútua Maçônica e outras mais coisas que não<br />
diziam com o caso. Tais miudeiros nunca quiseram unificação nenhuma, mas apenas evidenciar<br />
suas minuscularias separatistas.<br />
Eis aí: uma solução complexa, dificílima, impossível até, para o momento, para um<br />
problema simples! Contudo, este é o caminho e única saída para uma sociedade que se diz, entre<br />
outras coisas, "essencialmente filosófica". Daqui não há fugir: a Maçonaria tem que ser o que<br />
promete ser: uma associação de filósofos... de fato, e não isto para ser entendido só<br />
"ritualisticamente"... como soem ser outras coisas dela.<br />
11 G<strong>eo</strong>rges Gusdorf, Tratado de Metafísica, 44<br />
12 G<strong>eo</strong>rges Gusdorf, Tratado de Metafísica, 44<br />
III - Inversão da Ordem do Ternário<br />
9
Em nossa obra "Grandes Pontífices", defendemos a tese de que o Ternário Maçônico<br />
Liberdade, Igualdade e Fraternidade (dado que são os FINS SUPREMOS da Maçonaria <strong>–</strong><br />
Constituição) deve ter sua ordem invertida, ficando a Fraternidade em primeiro lugar, e, em<br />
último, a Liberdade.<br />
O princípio de razão suficiente alegado por nós, é o da existência de Deus... o qual, como<br />
tem que ser, como não pode ser de outro jeito, fundamenta e hierarquiza tudo, estando Ele no<br />
tope supremo de todas as hierarquias, e para cuja UNIDADE se convergem todas as<br />
perspectivas. Não são permissíveis quaisquer violações a estes princípios preliminares de que tudo<br />
vai depender, e é deles que emana a autoridade com que falamos e escrevemos.<br />
O princípio de hierarquia rege todo o Universo, subpondo-se (quer dizer, pondo-se por<br />
debaixo, como fundamento) ao outro princípio imediato que é o de decorrência.<br />
Não há isso de se dizer que os três enunciados do Ternário se igualam entre si, e que a<br />
ordem não altera, sendo cada um deles um enunciado à parte, sem interdependência entre os três.<br />
Foi exatamente assim que pensaram os industrialistas do século XIX, para ficarem só com a<br />
Liberdade, mandando às urtigas tanto a Igualdade como a Fraternidade. A mesma Liberdade do<br />
Ternário que andou encabeçando as flâmulas revolucionárias do maçom Maximiliano<br />
Robespierre, apareceu, depois, no nefando Liberalismo Econômico do século XIX do qual saiu o<br />
slogan laissez-faire (deixar fazer)...<br />
Existe, pois, nos enunciados, uma ordem de importância, uma ordem de valor, uma<br />
hierarquia, pelo que não se pode inverter a seqüência nas fórmulas sacramentais e dizer: em nome<br />
do Espírito Santo, do Filho e do Pai. Quem diz: Deus, Pátria, Família, Indivíduo, declara<br />
exatamente o oposto do que dá primazia ao indivíduo, e afirma: Indivíduo, Família, Pátria, Deus!<br />
Isto posto, vem a primeira pergunta que é: que base tem dizer-se que todos somos<br />
irmãos?<br />
Todos somos irmãos porque Fraternidade se baseia num Criador que é o Pai comum de<br />
todos os homens, ao qual, maçônicamente, se dá o nome de G∴A∴D∴U∴. Quem negar a<br />
existência e a essência desse Pai comum, não tem no que se alicerçar para dizer que todos os<br />
homens são irmãos. Logo, na hierarquia de valores, vem primeiro a Fraternidade.<br />
Certa feita um Ir∴ nosso escreveu que deveríamos nos tratar por "amigos", em vez de por<br />
"irmãos", porque a palavra amigo é mais autêntica que irmão, dado que até entre irmãos de sangue<br />
há inimizades. Pondo de lado a constatação indubitável de que a palavra amigo 13 se acha tão<br />
deturpada quanto a de irmão, queremos propor um problema filosófico ao Ir∴ que sustentou essa<br />
tese; perguntamo-lhe: de que base o Ir∴ deduziu a Amizade, supondo-a superior à Fraternidade?<br />
Acaso do dado empírico? Acaso, do fato de que Caim matou Abel, seu irmão? E desde quando,<br />
um dado empírico serve de base a conclusões filosóficas, que, por sua natureza são abrangentes?<br />
O que?, a experiência pode ocupar o lugar de Deus? Por desventura, tornou-se, então, o Deus-Pai<br />
numa "hipótese desnecessária", como o declarou a Napoleão o maçom Laplace?<br />
Embora Aristóteles tenha dito que o amigo é o outro eu (alter ego), Aristóteles não é<br />
Deus. Afora isto, nem sempre um homem se mostra amigo de si mesmo; os suicidas são exemplos<br />
dos que se querem anular para sempre, pelo que desejariam ser outros. Cristo propõe ao pecador<br />
que "se negue a si mesmo", antes de o seguir. Quem se nega, deixa com o si negado as amizades<br />
perniciosas que tinha. Por causa disto é que o Diabo tem muitos amigos, mas não tem nenhum<br />
irmão, dado que nega a paternidade de Deus.<br />
Aceita, portanto, a Grande Premissa de que Deus é nosso Pai, vem a primeira<br />
decorrência de que todos somos irmãos, tirando-se disto, que todos somos iguais. A Igualdade,<br />
por conseguinte, deflui da Fraternidade. Aos olhos onividentes de nosso Pai 14 , todos somos<br />
livres, porque todos somos irmãos.<br />
13 Cristo disse a Judas, depois do beijo de traição: "amigo a que viestes?" - Mat 26, 50<br />
14 E não há outros olhos além dos d ' Ele autorizados e indiscutíveis para este julgamento.<br />
10
Pois é muito claro que entre filhos iguais, entre irmãos iguais, uns não podem exaltar-se<br />
sobre outros, estabelecendo-se a divisão dragontina, satânica, de senhores e de servos. Se o Pai<br />
não tolera isto, quem outro pode autorizar? Não havendo servidão autorizada pelo ÚNICO que o<br />
poderia fazer, todos, então, somos livres. Eis de onde nasce, emana, a Liberdade.<br />
Quando aconteceu "A Declaração dos Direitos do Homem", a Assembléia, antes de<br />
afirmar que "os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos", havia declarado no<br />
preâmbulo: "a Assembléia Nacional reconhece e declara diante e sob os auspícios do Ser<br />
Supremo, os seguintes direitos do homem e do cidadão". Já se vê, então, que os homens não<br />
nascem livres porque sim, sem mais aquela; nascem-no, porque Deus fundamentou essa<br />
afirmação.<br />
Portanto, se esta é a verdade incontestável, esta tem que prevalecer numa Instituição que,<br />
entre outras coisas, tem isto de Sublime: "a investigação constante da verdade"(Constituição); e é<br />
por esta razão que "a Maçonaria não impõe limite à investigação da verdade e é para garantir a<br />
todos a amplitude desse liberdade, que ela exige a tolerância"(Doutrina do grau 33).<br />
A Liberdade, pois, só pode existir, se apoiada sobre a Igualdade que, por sua vez, se<br />
fundamenta (e não há mais nada em que se fundamentar) na Fraternidade que decorre de ser Deus<br />
o Pai comum de todos os homens.<br />
Esta ordem hierárquica do Ternário é moralmente fecunda, no passo que a outra, a<br />
tradicional, não o é; provemos esta conseqüência:<br />
Estando a Liberdade na cabeça do Ternário, ela, como primaz, não decorre de nada,<br />
tornando-se num postulado, completamente apartado e independente de Deus. Esta é a primeira<br />
imoralidade.<br />
Não dependendo de nada, esse postulado se torna num absoluto..., pelo que substitui<br />
Deus o qual, portanto, se torna numa "hipótese desnecessária", como já o disse Laplace. Se isto<br />
não é uma segunda imoralidade, alguém apareça para nos dizer por que o não é?<br />
E foi como absoluta que tal Liberdade nort<strong>eo</strong>u o execrável Industrialismo do século<br />
XIX na Inglaterra, Alemanha, Itália, etc. Essa Liberdade, em se fazendo absoluta, pariu um filho<br />
abominável, o Liberalismo Econômico, cujas garras de Satanás se evidencia no aforismo<br />
"laissez-faire"<strong>–</strong> deixa fazer. Deixa o homem livre para satisfazer o seu egoísmo que, em o<br />
satisfazendo, trabalha para o bem geral. E daí?<br />
Daí que contra a peste do Industrialismo capitalista do século XIX, surgiu, por reação,<br />
outra peste igual e oposta que é o Comunismo antiliberal, ditatorialista e ateu. Por que aconteceu<br />
isto? Aconteceu, simplesmente, porque a Liberdade era livre e autônoma em si mesma, não<br />
decorria de nada e não precisava prestar contas a ninguém.<br />
A Maçonaria, então, precisa evitar futuros desastres, não permitindo que seu dístico saia<br />
de novo nas bandeiras e estandartes de outras revoluções, como saiu na francesa, antes de ir-se<br />
enrodilhar, como serpente, nas fábricas desumanas da época do Industrialismo. É tempo de<br />
alguém acordar, sacudindo, a todos os <strong>Irmãos</strong>, para que exijam a correção do Ternário, não mais<br />
permitindo a que Lúcifer se aproprie dele, como já aconteceu, pelo que se massacrou crianças de<br />
dez anos para cima, sobretudo dos asilos, que viveram em pocilgas, alimentando-se do lixo dos<br />
poderosos, e trabalhando dezesseis horas por dia, sem direito a nada, e sem NENHUM status de<br />
pessoa humana! Esta é a terceira imoralidade.<br />
Se ninguém, NINGUÉM !, pode demonstrar o contrário disto que afirmamos, e isto é um<br />
desafio, perguntamos: por que não se põe de lado a tradição bissecular, e não se muda a ordem do<br />
Ternário? Ou então, para que serve a "investigação constante da verdade", e em que sentido a<br />
Maçonaria, entre outras coisas, é essencialmente progressista?<br />
Esta é a nossa posição da qual só arredaremos o pé, se alguém, com a mesma<br />
proficiência, nos demonstrar que o Ternário, como está, deve ser mantido. Do contrário, teimamos<br />
na nossa... de que ele deve ser mudado, ficando: Fraternidade, Igualdade e Liberdade.<br />
11
IV - Unitivos e facciosos<br />
Os homens podem classificar-se em unitivos e sectários. Enquanto que estes últimos são<br />
intransigentes, sempre prontos a apegar-se a um fragmento da verdade geral, os unitivos têm<br />
sempre as vistas voltadas para a totalidade. Os grandes mestres da humanidade são todos, sem<br />
nenhuma exceção, unitivos, entendendo-se todos eles muito bem entre si. Já a maioria dos adeptos<br />
desses mesmos mestres são intransigentes, faccionários, dispostos a criar seitas que tomam a parte<br />
pelo todo, isto é, elevam o fragmento à categoria de absoluto. Por que há tantas seitas cristãs a se<br />
hostilizarem entre si dentro do cristianismo? Que sentido tem as recentes lutas fratricidas entre<br />
irlandeses católicos e protestantes? Quantas seitas há do budismo? Por que são os homens<br />
propensos a fragmentar a verdade única, quando os próprios mestres se mostram unitivos<br />
formando todos eles uma fraternidade que não conhece tempo nem espaço?<br />
Ia, Cristo, um dia, de um lugar para outro, quando vieram os discípulos dizer-lhe que<br />
haviam proibido a um homem de expulsar demônios em seu nome, porque, como afirmavam, ele<br />
"não nos segue" 15 . Aí está o espírito de intolerância, de separatismo, de exclusivismo. Porém,<br />
Cristo, que era unitivo, advertiu: "Não lho proibais; porque ninguém há que faça milagres em meu<br />
nome e possa logo falar mal de mim". E acrescentou: "Porque quem não é contra nós é por nós". E<br />
noutro lugar: "Quem não é comigo é contra mim; e quem comigo não ajunta espalha" 16 . Eis aí as<br />
duas classes: a dos que se ajuntam na unidade, e a dos que se espalham pela diversidade; a dos<br />
homens cósmicos e a dos acósmicos.<br />
Pondo Cristo o ato caridoso do samaritano por modelo de conduta para com o próximo 17 ,<br />
não declarou qual fosse a religião ou a fé do samaritano. Igualmente, no Juízo Final 18 , a separação<br />
entre bodes e ovelhas 19 , não diz Cristo que há de ser feita tendo em vista as fés, as crenças, os<br />
sectarismos intransigentemente separatistas. A estes, que sempre existiam no mundo, brada Cristo:<br />
"Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas! Pois que dizimais a hortelã, o endro e o cominho, e<br />
desprezais o mais importante da lei, o juízo, a misericórdia e a fé; deveis, porém, fazer estas<br />
coisas, e não omitir aquelas. Condutores cegos! Que coais um mosquito e engolis um camelo" 20 .<br />
"Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas! Pois que edificais os sepulcros dos profetas e adornais<br />
os monumentos dos justos, e dizeis: Se existíssemos no tempo de nossos pais, nunca nos<br />
associaríamos com eles para derramar o sangue dos profetas. Assim, vós mesmos testificais que<br />
sois filhos dos que mataram os profetas. Enchei vós pois a medida de vossos pais" 21 .<br />
Tendo de ir Jesus a Jerusalém, resolveu pernoitar em Samária, para o que mandou alguns<br />
irem adiante arranjar-lhe pousada. Os enviados foram e vieram com a notícia de que os<br />
samaritanos se recusavam receber o Mestre. Afrontados com isto, Tiago e João já queriam, a<br />
exemplo de Elias, fazer cair fogo do céu sobre os samaritanos 22 . É sempre assim com o<br />
faccionário: ou crê ou morre pela espada ou pelo fogo (Elias, Maomé, Tiago e João e a "Santa" (!)<br />
Inquisição).<br />
Aí está que os homens se dividem em unitivos e sectários, em justos e injustos, em<br />
ovelhas e cabritos, em homens que trazem em si o princípio de integração (amor, sabedoria), e em<br />
15 Marc 9, 38<br />
16 Luc 11, 23<br />
17 Luc 10, 30 a 37<br />
18 Seleção planetária a fim de ver quais os que hão de continuar habitando a Terra que mudará de categoria: passará<br />
de planeta de expiação, como agora é, para planeta regenerador.<br />
19 Mat 25, 34 a 46<br />
20 Mat 23, 24 e 26<br />
21 Mat 23, 29 a 32<br />
22 Luc 9, 54<br />
12
homens cujo princípio interno é o do egoísmo ignorante separatista que desintegra produzindo o<br />
espalhamento. E nada terá que se fazer com estes últimos, e sim só poderá contar com o unitivos.<br />
Todavia, se houve sempre, por parte dos involuídos egoístas e desamorosos, um esforço<br />
para dividir e separar até o ponto máximo de cada um se ver sozinho, por outro lado, igualmente,<br />
sempre existiram aqueles cujo trabalho é de ajuntar, de reunir, de conectar as partes divididas,<br />
fazendo do caos um mundo. E isto se torna, então, o ponto de convergência de todos os unitivos<br />
que já pertencem às instituições já, de si, unitivas tais como: a Sociedade Brasileira de Eubiose, a<br />
Igreja Seicho-no-ie, a Associação Rosa-Cruz (Amorc), a Fundação Alvorada, o Espiritismo<br />
Kardequiano, as várias sub- divisões da Yoga, a Maçonaria, fora outras que ainda virão.<br />
O chão da Loja de Aprendiz moçom é um mosaico axadrezado, feito de quadrados<br />
brancos e negros. Esse "pavimento mosaico" simboliza a união de todas as crenças e id<strong>eo</strong>logias<br />
religiosas, filosóficas e políticas. A argamassa que prende as consciências é o reconhecimento,<br />
primeiro, de que ninguém é dono da verdade em regime de exclusividade; segundo,<br />
consequentemente, de que há uma parcela de verdade em toda a afirmação ou negação; e terceiro:<br />
destas duas verdades axiomáticas resulta o enunciado de que a VERDADE TOTAL só pode ser<br />
achada no ponto de convergência de todas as linhas, ou no ponto em que todas as varetas do<br />
leque universal se reúnem na unidade do cabo. Daí que a tolerância ou indulgência é a virtude<br />
suprema que se identifica com a sabedoria-amor. Este é o fundamento precípuo da Maçonaria.<br />
Segue-se disto que a Loja de Aprendiz (que é por onde se começa na Maçonaria) aspira<br />
ser um modelo da futura sociedade humana em que reinará a irrestrita fraternidade. Esta é a razão<br />
por que a Loja de Aprendiz é dedicada à fraternidade universal simbolizada no "pavimento<br />
mosaico" que possui, nos seus bordos, uma "orla denteada" que representa a irradiação daquela<br />
fraternidade. Por tais motivos a Loja de Aprendiz se chama "Fortaleza do Silêncio e da Paz" ou<br />
"Reino da Harmonia". Aí os maçons trabalham pela futura comunhão (comum + união)<br />
universal.<br />
Como se vê, a Maçonaria já é um ponto de encontro dos homens unitivos de todas as<br />
religiões, filosofias e partidos políticos; por tal motivo é vedado aos obreiros discutirem, quer em<br />
Loja, quer nas dependências do Templo, quaisquer assuntos capazes de promover a desunião tais<br />
como sectarismo religioso e filosófico, e política partidária.<br />
V <strong>–</strong> Fraternidade<br />
Hoje encerro o primeiro ternário maçônico composto pelas três palavras: liberdade,<br />
igualdade e fraternidade. Não é que ele seja só isso; há vários grupos de três palavras sempre<br />
representando os três lados do triângulo em cujo centro se acha o olho onividente da Divindade.<br />
O tema de hoje é de quantos o mais importante, e tanto que se acha expresso na oração,<br />
no Salmo 133, lido sempre no início dos trabalhos, ao ser aberto o Livro da Lei.<br />
"Oh! Quão bom e quão suave é que os irmãos vivam em união! É como o ól<strong>eo</strong> precioso<br />
sobre a cabeça, que desce sobre a barba, a barba de Aarão, e que desce à orla dos seus vestidos.<br />
Como o orvalho de Hermom, que desce sobre os montes de Sião; porque ali o Senhor ordena a<br />
benção e a vida para sempre".<br />
Oh! Quão bom e quão suave que os irmãos vivam em fraternidade, em amorosa<br />
confiança! É como o ól<strong>eo</strong> precioso que, à ordem de Deus, ungiu e sagrou o primeiro sacerdote<br />
hebreu, Arão, irmão de Moisés.<br />
Estava Moisés no monte; e apareceu-lhe um fogo envolvendo umas salsas, de modo que<br />
as salsas não se consumiam. Quero gozar esta vista monologou Moisés. E qual não foi seu espanto<br />
quando, ao chegar perto, uma voz de trovão lhe disse: <strong>–</strong> "tira tuas sandálias, porque o chão que<br />
pisas é santo. Quem me fala? Interrogou Moisés, e veio-lhe do meio do fogo a resposta: <strong>–</strong> Eu sou<br />
o que sou! E prosseguiu: <strong>–</strong> Vá ter com o povo meu, e liberta-o do jugo de Faraó. Mas como,<br />
13
Senhor, posso falar ao povo, se sou gago? E do meio da salsa ardente veio-lhe a ordem: <strong>–</strong> Fala<br />
pela boca de Aarão, teu irmão! Dize ao povo que o que é, te envia!<br />
Então desceu Moisés do monte, assustado da visão, mas disposto a cumprir a ordem<br />
divina, e logo pega da ânfora de ól<strong>eo</strong> e unge Arão, em nome de Deus, e o constitui seu auxiliar<br />
imediato. E a benção de Deus, no ól<strong>eo</strong> precioso, derramou-se sobre a cabeça de Arão, pingou-lhe<br />
da barba, ensopou-lhe os vestidos, escorreu por todo seu corpo gotejando pelas orlas das vestes<br />
sobre a terra. Tal é a benção de Deus! Tal, a suavidade e a bondade de viverem os irmãos em<br />
união, em amorosa fraternidade!<br />
E quando já o povo de Israel estava em sua terra, tão portentosamente tirado por Deus dos<br />
barreiros egípcios, o orvalho de Hermom descia sobre todos os montes de Sião e também pelas<br />
campinas e valados, abençoando a vida vegetal que crescia como uma exalação. E rebanhos<br />
pululantes de ovelhas se viam pelas encostas, pastando ao som mavioso da flauta do pastor. A<br />
natureza em festa, as árvores engalanadas de flores perfumosas, o balido das greis ao longe se<br />
ouvia, porque ali Deus, com sua benção, ordenava a vida para sempre.<br />
Vendo esta maravilha, o cantor de Deus, Davi, escreveu o seu verso: <strong>–</strong> Oh! Quão bom e<br />
quão suave é que vivam os irmãos em amorosa fraternidade! É como o ól<strong>eo</strong> precioso sobre a<br />
cabeça de Arão, ou como o orvalho bendito sobre frondes vegetais!<br />
Deus é amor, diz São João Evangelista, e onde houver amor, aí Deus está presente. Os<br />
gregos divinizavam o amor em Eros, e o mestre Esíodo dizia que o amor é o princípio de<br />
integração dos elementos. Onde houver união aí está Eros, e Platão já dizia que o universo está<br />
cheio de Eros. O universo está cheio de amor, foi criado por um ato de amor, e onde houver união<br />
aí está Deus, porque Deus é amor.<br />
Os elétrons e prótons se buscam e, amorosamente se unem no átomo, e o amor, no nível<br />
atômico, se chama eletromagnetismo. Os átomos contrariamente polarizados se procuram numa<br />
ânsia de união, e esse amor unitivo, no nível atômico se chama afinidade. As moléculas se<br />
irmanam, se fundem num amplexo amoroso, e o amor nesse nível se chama coesão. Assim nasce a<br />
molécula, o cristal, os amontoados siderais, o universo. As estrelas, planetas e satélites se<br />
entrosam, e o amor, nesse nível se chama gravitação.<br />
As moléculas de compostos protéicos se unem nas células, nos tecidos, nos órgãos, e<br />
surgem então os seres vivos que se amam, que se irmanam, que se confraternizam na família, na<br />
sociedade, na humanidade inteira.<br />
A própria palavra inteligência vem de inter-legere que quer dizer ler entre as coisas o<br />
nexo que as liga. A inteligência busca o nexo unitivo, e por esta razão, como diz Ortega, ela vai<br />
conduzida por Eros donde vem que a inteligência é de natureza erosóide ou erótica. Quem cuidara<br />
que na própria inteligência tão fria e discursiva está imperando o amor? a união?<br />
A inteligência em que falta o nexo unitivo de Eros, a inteligência que não pode ou não<br />
sabe ler entre, não é inteligência, é loucura, estupidez. A sociedade que não vai conduzida por<br />
Eros, pelo amor, se desfaz. A família onde não impera o amor se desintegra, se reduz a nada.<br />
Quando cessa a integração harmoniosa e amorosa dos órgãos, nós ficamos doentes. Quando as<br />
células do nosso corpo trocam o amor colaboracionista pelo egoísmo destruidor, então chamamos<br />
a essa rebelião celular câncer. Se as moléculas reciprocamente não se buscassem numa loucura de<br />
amor, de eros, não haveria a coesão do aço de vídia que corta o aço mais duro, não haveria a<br />
coesão do diamante, do carborundo que desgastam e comem o mesmo aço de vídia. Se os átomos<br />
eletricamente contrários não estivessem ansiosos por união, não se formariam as moléculas, não<br />
haveria a afinidade química. Se os elétrons não buscassem os prótons, ou se os prótons não<br />
procurassem os elétrons para amorosamente se unirem, não haveria o eletromagnetismo. Se não<br />
houvesse a gravitação que enlaça o universo num amplexo de amor, tudo reverteria ao caos<br />
primeiro donde tudo veio. É por isso que Aristóteles primeiro, e depois, Santo Agostinho e Dante<br />
disseram "que o amor de Deus move o Sol!".<br />
É do nosso conhecimento que há alguns irmãos maçons que não se afinam. Pois saibam<br />
esses irmãos que sem o amor nada se constrói; que Cristo disse: <strong>–</strong> vá, e reconcilia-te com teu<br />
14
adversário enquanto estás em caminho com ele, para que ele não te entregue ao juiz que te<br />
encerrará na prisão, até que pagues o último ceitil, o último centavo. Esquecei as vossas<br />
desavenças, enchei-vos de tolerância, de perdão, de amor, que se não, a ordem que vos congrega<br />
alijará para longe, e estareis fora da benção do Altíssimo, porque é da sua vontade que os irmãos<br />
vivam em união.<br />
Oh! Quão bom e quão suave é que os irmãos se unam pelo amor fraterno. Isso é como a<br />
benção derramada com o ól<strong>eo</strong> sobre a cabeça de Arão, ou como o orvalho bendito com que o<br />
Grande Arquiteto do Universo afaga e vivifica a natureza toda. Viam os gregos esta benção do<br />
Alto Deus, e daí lhe deram a ela o nome de Pã. Então o Pã era imaginado como um fauno, metade<br />
homem, metade bode, que nada mais era do que a natureza bruta unida à racional. E toda a beleza<br />
e harmonia da natureza era supostamente ouvida na extasiante flauta de Pã.<br />
"Oh! Quão bom e quão suave é que os irmãos vivam em união! É como o ól<strong>eo</strong> precioso<br />
sobre a cabeça, que desce sobre a barba, a barba de Arão, e que desce à orla dos seus vestidos;<br />
como o orvalho de Hermom, que desce sobre os montes de Sião; porque ali o Senhor ordena a<br />
benção e a vida para sempre".<br />
VI <strong>–</strong> Sabedoria e ciência<br />
Apareceu Deus em sonho a Salomão, e lhe perguntou: <strong>–</strong> que queres que te dê? 23<br />
Então lhe respondeu Salomão: <strong>–</strong> Senhor! eu sou ainda um menino, e no entanto já me<br />
acho sentado no trono do meu pai, o teu grande servo Davi. Dá-me, então, um coração reto e justo,<br />
para que possa eu julgar este teu grande povo.<br />
Deus, contente da resposta, assim lhe fala: já que me não pediste para aniquilar os teus<br />
inimigos, nem me pediste riqueza, nem honra, dar-te-ei o que me pedes, e serás o mais sábio de<br />
quantos homens houve no mundo, e no futuro não haverá outro que te iguale.<br />
Ora, Salomão pediu um coração reto e justo; e disse Deus que lhe ia atender o pedido, e<br />
lhe deu sabedoria. Segue-se, logo, que sabedoria é ter coração reto e justo. A sabedoria, por<br />
conseguinte, é uma dádiva de Deus. Não é uma conquista do homem. A cultura pode ser<br />
adquirida, a erudição pode ser alcançada, mas a sabedoria tem de vir do Alto.<br />
A sabedoria é a consciência de retidão, cujo símbolo é o fio de prumo; é mais que a<br />
retidão da régua, porque é retidão vertical, orientada para Deus, o Oriente de todas as coisas, do<br />
qual todas derivam, todas dependem, e sem o qual nenhuma é ser. Eu disse orientar, e não,<br />
nortear, porque o guiar-se pelo norte é posterior ao guiar-se pelo oriente. A bússola é de ontem,<br />
no passo que a orientação pelo Sol, é de todos os tempos. As abelhas (dizem os apicultores) se<br />
orientam pelo Sol. E se acontece de as aprisionarmos nos seus destinos, durante algumas horas,<br />
elas, ao se verem livres, voam para a colmeia, guiadas pela posição do Sol; mas como o Sol<br />
andou, elas se transviam. Vendo-se perdidas, elas voltam ao ponto de origem, ao lugar em que<br />
estiveram presas, e de aí, principiam a fazer giros circulares cada vez maiores, até que uma das<br />
circunferências passe por sobre sua colmeia.<br />
Eis aqui sabedoria e ciência: primeiro o vôo reto, orientado, da colmeia ao objetivo;<br />
depois, por causa da desorientação, vôos circulares. Ora, a circunferência se traça com o compasso<br />
que serve, também, para aquilatar distâncias, avaliar espaços. Assim, se o fio de prumo representa<br />
a sabedoria que avança para Deus, o Ser, em altura, e também desce em profundidade rumo ao<br />
não-ser, no extremo oposto de Deus, o compasso não sai da superfície da razão, onde traça<br />
círculos do pensamento, das definições, medindo, avaliando, perquirindo como faz a ciência.<br />
23 I Reis 3, 9<br />
15
Deste modo, o compasso simboliza o pensamento discursivo, a razão analítica próprios da ciência.<br />
Fio de prumo e compasso, eis simbolicamente representados sabedoria e ciência.<br />
Sabedoria não é ciência; por isso é que se fala da sabedoria da Natureza, da sabedoria que<br />
Deus pôs nos átomos, nas moléculas, nos cristais, nas flores, nas abelhas, nas formigas. E o<br />
próprio Salomão, em Provérbios diz: "vai ter com a formiga, ó preguiçoso, olha para os seus<br />
caminhos, e sê sábio" 24 . Se, pois, o preguiçoso pode ir ter com a formiga a fim de aprender, seguese<br />
que a formiga é a mestra, e ele, o aprendiz. Porque a formiga mostra, ao preguiçoso, uma lição<br />
de sabedoria, não de ciência. Por isto, sabedoria não é ciência. A formiga nos ensina a lição do<br />
trabalho! A abelha, além de nos ensinar a ser laboriosos, ainda nos dá lições de civismo,<br />
mostrando-nos como devemos lutar pela nossa Pátria, assim como ela morre pela sua colméia.<br />
Vieira, que também procurava aprender da Natureza, assim escreve num sermão: "as abelhas em<br />
picando, morrem, e maior é o dano que sofrem que o que causam". A sabedoria está, aí, no grande<br />
livro do Universo, e o cientista, o estudioso vai investigar, a fim de aprender, porque a Natureza é<br />
a mestra, e ele, o discípulo.<br />
A diferença entre sabedoria e ciência está em que a primeira vê o geral, o universal, o<br />
todo em que quaisquer partes se encaixam. Já a ciência olha o pormenor, a minudência, o<br />
fragmento que cada vez mais se pulveriza no particular. A sabedoria contempla o Ser, no passo<br />
que a ciência volta as vistas para o extremo oposto ao Ser, no rumo do não-ser. Esta diferença<br />
entre sabedoria e ciência, podemos observar na fala de Sócrates, escrita por Platão.<br />
Na Apologia, diz Sócrates que o Oráculo de Delfos revelava ser ele, Sócrates, o homem<br />
mais sábio da Grécia. No entanto, Sócrates sabia que não sabia; eu só sei que não sei, dizia ele.<br />
Por ventura, em saber que não se sabe, nisto reside a sabedoria? Sim. Porque sábio é o homem que<br />
chegou a ter idéia do quanto ignora. Saber que ignora, e quanto ignora, é já saber, porque o<br />
verdadeiro ignorante nem que não sabe não sabe. Um animal inferior desconhece que haja<br />
medicina, engenharia, direito; já qualquer homem comum sabe que ignora estas disciplinas. Pois<br />
Sócrates declarava saber que conhecia a extensão da sua ignorância, e esta consciência o fazia o<br />
mais sábio da Grécia, porque o resto dos gregos do seu tempo, nem que não sabia não sabia. Mas<br />
Sócrates quis por a limpo a sentença do Oráculo, e por isso saiu a verificar se havia, na Grécia,<br />
algum homem que soubesse mais que ele. E assim, entra em discussão com os poetas, e em<br />
disputa com os artesãos; depois de tudo, chega a este resultado: os artesãos padeciam do mesmo<br />
defeito dos poetas: porque são peritos em seus ofícios, por isso cuidam que tudo sabem, e com<br />
isto mostram-se ignorantes. Assim, um especialista em qualquer disciplina, porque conhece bem<br />
sua profissão, sente-se autorizado a opinar sobre aquilo de que não entende.<br />
Esta mesma fala de Sócrates, temos em Ortega y Gasset que diz assim: antigamente os<br />
homens podiam-se classificar em sábios e ignorantes, em mais ou menos sábios, e mais ou menos<br />
ignorantes. Mas hoje apareceu uma classe de homens que não podem ser enquadrados nem como<br />
sábios, nem como ignorantes, e estes são os cientistas. O cientista é um senhor que conhece muito<br />
bem sua porciúncula do universo, e sua especialidade; por conseguinte não pode ser considerado<br />
um ignorante. No entanto, ele opina sobre as questões que ignora, não como um ignorante, mas<br />
com toda a petulância de quem, na sua especialidade é um sábio. Então Ortega dá para estes<br />
cientistas a designação de sábios-ignorantes; sábios, porque conhecem bem a sua matéria; e<br />
ignorantes, porque se saem dela para aventurar-se em campos que eles não conhecem, e assim,<br />
mostram-se ignorantes.<br />
A mesma coisa diz Garcia Morentes com outras palavras: diz que nada há tão<br />
desanimador do que o que se tem verificado nestes trinta ou quarenta anos, quando homens sem<br />
nenhum preparo de filosofia, se põem, de repente, a filosofar. Só porque o indivíduo adquiriu<br />
cultura, erudição, conhecimentos técnicos, científicos, só porque descobriu uma nova estrela no<br />
firmamento, ou uma nova t<strong>eo</strong>ria da gravitação, só por isso, sem nenhuma preparação e exercitação<br />
prévias, se põe a fazer filosofia, e por isto, de maneira pueril e quase selvagem. Um matemático de<br />
sempre, um físico de toda a vida, diz ele, sem mais delongas, se põem a fazer filosofia.<br />
24 Provérbios 6, 6<br />
16
Por que acontece isso? Pois acontece porque ciência não é sabedoria, ou sabedoria não é<br />
ciência. A ciência pode ser haurida nos livros; pode ser adquirida pela observação e pela<br />
experimentação. Porém, a sabedoria é uma dádiva de Deus a quem busca andar nos seus<br />
caminhos. Como Salomão pediu a Deus que lhe desse sabedoria, então podemos saber que Deus<br />
lhe deu um coração reto e justo, e assim pode muito acontecer de um homem não possuir ciência,<br />
e ser até iletrado, e no entanto, possuir sabedoria; pode sim, porque ela existe na Natureza, como<br />
nos casos da formiga e da abelha já referidos. E é muito preferível que se tenha só sabedoria, a ter<br />
somente ciência. Por que? Porque a ciência pode inchar e envaidecer o homem; mas a sabedoria o<br />
torna humilde. A ciência pode fazer que o homem cuide que sabe; a sabedoria faz que ele saiba<br />
que não sabe. A ciência pode fazer que o homem se volte contra Deus, como fez Lusbel no<br />
empír<strong>eo</strong>; a sabedoria, jamais, faria o homem afrontar Deus, porque o sábio sabe que sua mesma<br />
sabedoria emana de Deus, e sabe ainda que, mantendo-se fiel a Deus, terá de luz ondas sobre<br />
ondas, e, de sábio, passará a sapientíssimo. O sábio sabe que a ciência luciferina torna o homem<br />
cego e que sua cegueira se faz cada vez mais cega, na proporção em que se afasta da Fonte única<br />
de todo saber que é Deus.<br />
Quereis exemplos? Ei-los:<br />
Quando Laplace estava expondo a Napoleão Bonaparte sua t<strong>eo</strong>ria da formação do<br />
universo, perguntou-lhe o imperador onde ficava Deus no seu sistema, ao que Laplace respondeu:<br />
"Sir, essa hipótese se tornou desnecessária" 25 . Assim, inflamado da vaidade científica, o cientista<br />
Laplace julga Deus, primeiro, como mera hipótese, e segundo, como desnecessária.<br />
Quando Yuri Gagarin, primeiro astronauta soviético que deu voltas à Terra em sua nave<br />
espacial, foi interrogado pelo centro de controle terrestre, se ele, lá nas alturas, tinha encontrado<br />
Deus, ele respondeu que não, que não tinha achado Deus.<br />
Deste modo, fica evidenciado que não adianta o progresso técnico-científico, porque tal<br />
progresso, se não acompanhado pela sabedoria, leva ao rumo oposto ao em que Deus está. A<br />
ciência e a técnica fizeram do alemão o maior povo do mundo; no entanto, é de ontem que<br />
Mengele, "o anjo da morte", fazia criminosas experiências científicas, usando os prisioneiros do<br />
campo de concentração de Auschwitz, como cobaias! É de ontem que Irma, "a mulher monstro",<br />
amarrava as pernas ambas das mulheres que iam parir, para que morressem de um parto<br />
impossível.<br />
Nietzsche dizia assim: "Se existe Deus, como posso suportar não ser Deus? "... Com<br />
muito mais razão poder-se-ia gritar a Nietzsche o que Festo disse a Paulo: "Estás louco, Paulo; as<br />
muitas letras te fazem delirar" 26 . Estás louco, Nietzsche! a muita ciência encheu-te o coração de<br />
orgulhosa rebeldia, e, como Lúcifer, não te conformas com menos que com ser Deus!<br />
Quem, pois, tem coração reto e justo, quem tem sabedoria, quem tem amor, esse pode ser<br />
um sábio; todavia, aquele que só possui ciência, erudição, cultura, esse não pode ser considerado<br />
sábio, pelo menos no conceito maçônico. Lá fora, no mundo profano, pode ser que haja confusão,<br />
e a um cientista especializado em ramificação que se vai cada vez mais filamentando em capilares<br />
cada vez mais finos, esse homem pode, no mundo, ser considerado um sábio; não aqui! Porque o<br />
nosso conceito de sabedoria é o de Salomão: a sabedoria promana do coração, e é uma dádiva de<br />
Deus.<br />
Cultivemos as virtudes da sabedoria; sejamos sábios. E depois, em segundo plano,<br />
porfiemos por ser cultos, eruditos, capazes.<br />
Oxalá todos nos compenetremos desta consciência para a glória da nossa Ordem<br />
Venerável, para a grandeza da nossa Pátria, para o bem da Humanidade, para que, em vivendo no<br />
agrado do Grande Arquiteto do Universo, possamos ter nossos nomes anotados pelo escriba do<br />
universo, no Grande Livro da Vida.<br />
25 Politzer, Princípios Fundamentais de Filosofia, 114<br />
26 Atos 26 e 24<br />
17
<strong>VII</strong> <strong>–</strong> As pontas do compasso sobre o coração<br />
No decorrer da iniciação ao grau de Aprendiz, sobretudo no momento em que vai<br />
pronunciar o juramento, e também na elevação de grau de Aprendiz a Companheiro, o iniciando<br />
coloca as pontas de um compasso sobre o próprio coração. Este é o nosso tema de hoje: as pontas<br />
do compasso sobre o coração.<br />
A noção do círculo nasceu, no homem, da simples observação, da simples experiência<br />
visual, daquilo que os filósofos modernos chamam de intuição sensível.<br />
O seccionamento transversal do tronco de uma árvore, mostrou-se ao homem como um<br />
círculo. As flores e os frutos seguem, mais ou menos, um plano circular. Olhando para o Sol e<br />
para a Lua, o homem os vê como círculos. Nos eclipses da Lua, a Terra aparece nela projetada<br />
numa sombra circular, o mesmo ocorrendo com os eclipses do Sol, quando a Lua, interposta entre<br />
a Terra e o Sol, encobre a este, em parte, como um disco preto. Os trajetos, no céu, do Sol, da Lua<br />
e das estrelas são metades de um grande círculo, e não foi difícil conceber que a outra metade se<br />
achava na parte oculta aos olhos. Daí a idéia primeira de que as trajetórias de todos os astros são<br />
circulares.<br />
Da observação destes círculos, das evidências espontâneas, o homem chegou a<br />
compreender que o sistema planetário solar é curvo, circular, e que o mesmo Sol gira, com sua<br />
família planetária, em círculo, ao redor de um ponto, no centro da Via-Láctea, donde vem que esta<br />
é também circular, como todas as demais que compõem o Universo, e que o próprio Universo é<br />
curvo e finito, como o demonstrou Einstein. Se, de um salto, passarmos do macro ao microuniverso,<br />
verificaremos que é circular a molécula, circular o átomo, circular o elétron.<br />
Há o ciclo das chuvas: em caindo elas do céu, fazem os rios que se encaminham ao mar<br />
donde se evaporam para formar outras nuvens das quais decorrem novas chuvas. Há o ciclo do<br />
carbono: os vegetais absorvem o gás carbônico do ar, decompõem-no em carbono e oxigênio,<br />
fixam o carbono na celulose do tronco e das folhas; com parte deste carbono formam os frutos. Na<br />
outra metade do ciclo, os animais comem as folhas e os frutos, transformam-nos em açúcares que<br />
se queimam no interior das células, e o carbono havido da alimentação se combina ao oxigênio,<br />
recompondo o gás carbônico que é expelido na atmosfera, pela respiração. Animais e plantas,<br />
deste modo, são máquinas vivas entre si invertidas, e o gás carbônico que o vegetal decompõe,<br />
recompõem-no os animais. A luz solar fixada na fotossintese, vai para o alimento que produz o<br />
calor animal. Assim, todos os animais e plantas vivem da luz, são lucífagos. E a mesma luz é<br />
onda, e as ondas todas são círculos desdobrados, e assim, quando não podemos enxergar os ciclos<br />
diminutos que rápidos se formam, podemos vê-los na luz, e ouvi-los no som, na música.<br />
A idéia do círculo, pois, faz parte da nossa vida espontânea, da nossa vida pré-racional,<br />
da nossa intuição sensível, e ainda de nossas últimas concepções científicas do universo, da<br />
molécula, do átomo, do elétron e de toda a mecânica ondulatória. O círculo, portanto, está no<br />
começo e no fim da nossa vida racional, e a mesma vida física é um meio ciclo do berço ao<br />
túmulo, e se completa com nosso retorno, pela morte, ao lugar de onde viemos a este mundo.<br />
*<br />
* *<br />
Quis, então, o homem, desenhar o círculo, e, para tanto, inventou o compasso. Do círculo<br />
traçado com o compasso surgiram as relações matemáticas da circunferência e seu diâmetro, o pi,<br />
já conhecido dos egípcios. Reparou o homem que, com o compasso, podia traçar círculos maiores<br />
e menores, e ainda comparar distâncias. Verificou que a capacidade do compasso se esgota<br />
18
quando atinge 90°, que é quando ele se transforma num esquadro, por isso chamado,<br />
maçônicamente, de "esquadro justo e perfeito". Pois bem:<br />
Que representa o compasso, na Maçonaria? Pois representa o pensamento. E por que?<br />
Porque o pensamento é circular, gira em torno de um centro que é o tema, e o círculo pode ser<br />
menor, se o assunto é pequeno, ou maior, se o assunto é mais largo. Todavia, em chegando o<br />
compasso do pensamento a 90°, esgota-se a capacidade racional, e tentar ir por diante, é cair nas<br />
antinomias de Kant. Deste modo, a razão não é infinita; ela atinge o seu limite a 90° do compasso<br />
mental, e simboliza, tal abertura, os graus maçônicos que vão do 14 ao 18. No grau de Mestre, o<br />
compasso simbólico se abre a 45°, e no grau 5 sua abertura vai para 60°. A 90° o compasso se<br />
torna num esquadro, como ficou dito, e por isso chamado "esquadro justo e perfeito".<br />
O compasso lembra ainda a pessoa humana que também possui cabeça e duas pernas,<br />
estas que se movem, que dão passos, e estes passos, em Loja, são dados pelo Aprendiz de modo a<br />
formarem um esquadro, o "esquadro justo e perfeito", que também o Companheiro executa, com<br />
passos, se bem que de modo diferente do Aprendiz.<br />
*<br />
* *<br />
Do que ficou dito já podemos tirar uma lição prática: se cada assunto é um círculo que se<br />
abre e se fecha ao redor de um ponto que é o tema, anda muito errado quem não encerra cada<br />
assunto, para se passar a outro. Deste vício intelectual padecem todas as pessoas dentre as quais<br />
algumas de cultura. Alguém nos formula uma questão, ou faz uma pergunta e quando estamos<br />
desenvolvendo o círculo do nosso pensamento em torno do tema proposto, eis que nosso<br />
interlocutor, em certo ponto, faz outra pergunta, embora do assunto, mas que nos obriga a fazer<br />
outro círculo. Assim, de pergunta em pergunta nenhum círculo se fecha. É o caso da briga de<br />
lavadeiras: sai, na discussão, o diabo; porém nada se resolve. As digressões infindas não levam a<br />
resultado nenhum. Muitos oradores prolixos padecem deste vício. Como não se mantêm no<br />
assunto, como fogem ao tema básico, como que numa conversa que um tema puxa outro, podem<br />
falar o dia inteiro. Por que? Porque nenhum círculo se fecha. Nossas conversas ao pé do fogo são<br />
assim: começamos por uma coisa, e no fim estamos a falar de outras muito diferentes.<br />
Ora, quem não obedece à lei do círculo, ao tratar de um assunto, é porque pensa por esse<br />
modo caótico. E aí vai a diferença entre um pensador e um homem comum. Todos pensamos sem<br />
interrupção o dia inteiro; quando não é um pensamento, é outro que ocupa a nossa mente. Logo,<br />
como todos pensamos sem parar, somos todos pensadores? Não. O pensador ou filósofo se fixa<br />
num tema, e traça completamente seu círculo; nós, em nossas imaginações, abrimos mil e um<br />
círculos, e não fechamos nenhum. Quem muda mais de idéia que de roupas, não pode fazer nada,<br />
não pode realizar coisa nenhuma na vida. Aqui também se aplica a lição já estudada da vigilância<br />
e da perseverança. Vigiar para não fugir ao círculo; perseverar na construção dele até o fim.<br />
Vede que abrimos e fechamos um círculo, explicando a significação do compasso na<br />
Maçonaria. Agora vamos abrir outro círculo, e depois mais outro, e fechar os três dentro de um<br />
outro círculo maior; vede:<br />
Dado que o compasso significa o pensamento, o raciocínio discursivo, como nasce este<br />
no homem? No começo da nossa vida mental, quando ainda somos crianças tenras, nosso<br />
compasso mental é zero; ele é ainda apenas cabeça (cabeça do compasso) sem os ramos ou pernas.<br />
Com as primeiras experiências da vida, os ramos começam a crescer, e já podemos traçar<br />
pequeninos círculos, e tratar de assuntos muito simples. As experiências vão-se acumulando, os<br />
ramos do compasso, crescendo, e os círculos já podem ser maiores, abarcando assuntos mais<br />
complexos. Quem, pelo crescimento de seu compasso mental, pode abarcar círculos imensos,<br />
chegou a ser um sábio. Aqui, outra vez, a diferença entre um sábio e um ignorante; o ignorante<br />
possui compasso mental diminuto, no passo que o sábio o possui grande. É assim que os homens<br />
se classificam em sábios e ignorantes, mais ou menos sábios, e mais ou menos ignorantes; quem<br />
possui compasso mental grande, pode traçar círculos grandes; quem o possui de ramos curtos, só<br />
19
pode traçar círculos pequenos. Sócrates, Platão, Aristóteles, Einstein, porque possuem compassos<br />
mentais de ramos longos, puderam traçar os círculos do Universo. Já os círculos traçados pelo<br />
compasso mental de uma pobre lavadeira, não vão além de sua casinha, de seus filhos, de seus<br />
netinhos. Eis que a soma de conhecimentos amplia os ramos do compasso, e é assim que, de<br />
ignorantes, nos tornamos sábios. Está fechado este outro círculo; vamos agora a outro, porque<br />
nosso tema é o compasso posto sobre o coração.<br />
O coração é, figurativamente, a sede dos sentimentos bons e maus. O homem não age<br />
segundo razões, e sim, de acordo com os pendores sentimentais e emocionais. O homem sente<br />
primeiro, e depois é que vai forjar razões para seus atos. Por isso é que Pascal já dizia que "o<br />
coração tem razões que a razão não alcança". O avarento, o cobiçoso, o adulador, o glutão, o<br />
beberrão, o fumante, todos apresentam suas justificativas, todos racionalizam suas ações, todos<br />
possuem suas razões. O homem chega ao cúmulo de pensar de um modo e agir de outro, como os<br />
exemplos, aqui já citados, num de nossos estudos, de Bernard Shaw e Schopenhauer. O homem é<br />
um esquizoide, um ser contraditório, que pensa uma coisa e faz outra. Por isso é que São Paulo a<br />
si mesmo se chamava miserável e dá o porquê: porque, como dizia, o bem que quero fazer, não<br />
faço; mas o mal que não quero, esse eu faço!<br />
Eis, aí, a força do sentimento sobre o raciocínio, a força do coração sobre o pensamento,<br />
sobre o compasso que devia traçar círculos ao coração, e, no entanto, é o coração que impõem<br />
seus círculos ao compasso. A razão dita isto; mas o sentimento arrasta a fazer aquilo. Eu quero<br />
fazer o bem, porque minha razão, meu raciocínio, meu compasso traçou tal círculo; todavia, de<br />
repente, dou comigo fazendo aquilo que minha consciência reprova. Vigilância e perseverança,<br />
pois, sobre nossas impulsões egoísticas, animalescas, sobre nossos pendores e atrações baixas.<br />
Está fechado este outro círculo cujo centro ou tema é o coração. Agora o círculo maior que<br />
envolve os três anteriores e menores.<br />
Que nos ensina a Sublime Instituição? Pois ensina-nos que o compasso deve estar com<br />
suas pontas sobre o coração; que o compasso é que deve medir e delimitar os sentimentos, e não, o<br />
coração impor suas normas à razão. Quem vive só ao sabor dos sentimentos, como estes são vários<br />
e discordantes, se mostra contraditório, apresentando sempre atitudes dúbias, confusas, medindo<br />
sempre tudo com dois pesos e duas medidas. Tal sujeito apresenta-nos reações imprevisíveis,<br />
porque caóticas. Como, em tal sujeito, a razão é desnecessária às ações, o compasso do seu<br />
entendimento se atrofia, os ramos dele, em vez de se estenderem, encurtam-se, até que tal homem<br />
cai na irracionalidade animal. O compasso, então, passa ser guiado pelo coração, pelos<br />
sentimentos; e que estes fossem bons, ainda bem; mas ocorre sempre que os piores sentimentos, os<br />
de egoísmo, de avareza, de luxúria são os que passam a guiar o compasso, forçando-o a traçar<br />
círculos e a apresentar razões que são sofismas, que são sem-razões, que são absurdos.<br />
Eis que temos desenvolvido nosso tema com quatro círculos, sendo que este último mais<br />
geral e maior, envolve os três primeiros.<br />
<strong>VII</strong> <strong>–</strong> O <strong>malho</strong> e o <strong>cinzel</strong><br />
Por ocasião da realização de uma sessão de iniciação na minha Loja, fiquei incumbido de<br />
discorrer sobre assuntos que dizem respeito ao Grau de Aprendiz.<br />
Os instrumentos do Aprendiz são o <strong>malho</strong> e o <strong>cinzel</strong>, o avental e o par de luvas brancas.<br />
O <strong>malho</strong> simboliza a vontade; o <strong>cinzel</strong>, o julgamento; o avental, o trabalho; o par de luvas<br />
brancas a pureza; uma luva é para o Aprendiz, e a outra, para a mulher eleita do seu coração.<br />
Mas nem porque o assunto é particular e nosso, é pequeno. Eu pretendo hoje discorrer<br />
somente sobre o <strong>malho</strong> e sobre o <strong>cinzel</strong>.<br />
O <strong>malho</strong>, como já vos disse, representa a vontade. E que é a vontade? Na esperança de<br />
colher informações sobre nosso tema, andei folheando aqui e ali livros sobre o poder da vontade,<br />
20
um da Editora do Pensamento e outro da autoria de Orison Swett Marden. Todavia, nem uma nem<br />
outra obra me satisfizeram; a do Pensamento, porque pretende que a vontade se desenvolva pela<br />
auto-sugestão, e a de Marden porque se atém quase só a biografia de homens célebres.<br />
Então resolvi andar com minhas próprias pernas, ou voar com minhas asas próprias. Ora<br />
vede:<br />
O <strong>malho</strong> da vontade se aplica sobre a cabeça do <strong>cinzel</strong> que tem sua ponta assentada<br />
contra a matéria bruta que se tem a desbastar. O <strong>cinzel</strong> é o julgamento, e por isso é ele que<br />
determina o momento da pancada, e ainda se deve ela ser forte ou fraca. Não há vontade potencial<br />
ou inativa, porque ela pela sua própria natureza é cinética, ativa, executiva.<br />
Eu já disse nestes nossos estudos que há uma virtude e um vício maiores dos quais<br />
nascem todos os outros. A virtude mor é o amor, e, o vício, tronco de que nascem todos os galhos,<br />
é o egoísmo. Pois bem: o amor concentrado a uma coisa move o amante à ação. E<br />
proporcionalmente ao seu amor será sua vontade em atender ao objeto do seu amor. Eu, que vos<br />
falo, passei a maior parte da vida estudando. E quando eu era estudante muitos me consideravam<br />
como um sujeito possuidor de força de vontade. Pois minha força de vontade era galho do amor<br />
que sempre tive pelo saber. Meu juízo, meu julgamento, escolhia qual matéria a me aplicar, e<br />
depois o <strong>malho</strong> da vontade não cessava de golpear até à saciedade.<br />
Como a vontade é energia moral, por isso ela não se gasta nem se cansa, e antes, pelo<br />
contrário, quanto mais se aplica mais se reforça. O cansaço vinha e vem sempre pelo lado do<br />
físico, e é com desgosto que deixamos o trabalho vencidos pela exaustão.<br />
Edison, inventor destas lâmpadas que nos iluminam, resolveu, certo dia, tirar umas férias.<br />
Perguntado sobre onde iria gozá-las, respondeu que no lugar do seu maior agrado. E no outro dia,<br />
Edison, em férias, foi achado trabalhando na sua oficina de todos os dias. Sua vontade poderosa<br />
nascia do amor que tinha pelo seu trabalho de inventor.<br />
Quem quiser ter vontade forte que arranje alguma grande coisa a fazer, e depois poderá<br />
verificar que Santo Agostinho tinha razão quando dizia: "meu amor é meu peso; por ele vou a toda<br />
parte que vou".<br />
Reparai que os fracos da vontade são sempre aqueles que mudam mais de idéias do que<br />
de roupas. Pedro Chagas já dizia que "só vencerão na vida, os que forem fanáticos por um ideal".<br />
A decisão inabalável em fazer alguma coisa determina a vontade de gigante, e a decisão nasce do<br />
juízo que julga, que decide, e assim o <strong>cinzel</strong> dirige o <strong>malho</strong>.<br />
Assim, a vontade-<strong>malho</strong> tem de estar guiada pelo julgamento-<strong>cinzel</strong>, e nada há pior do<br />
que uma vontade bruta desorientada. Acaso imaginais que um Lampião, um Al Capone não<br />
tinham vontade poderosa? Pois que cada um considere o que eles fizeram no mal, e verão que suas<br />
vontades tinham a mesma força das vontades dos mártires, seja os da Pátria, seja os de alguma<br />
idéia.<br />
Salomão, o grande Salomão que edificou o templo do qual este nosso templo é cópia<br />
grosseira, disse "que o amor é mais forte que a morte". E como vos tenho demonstrado, a vontade<br />
nasce do amor, donde vem que a vontade é mais forte que a morte. Cristo, embora sabendo que ia<br />
morrer numa Cruz, quis, e foi a Jerusalém, porque sua vontade, com ser mais forte que a morte, o<br />
impeliu a ela, e nela teve o seu fim terreno.<br />
Sócrates é outro que teve morte linda, ei-la:<br />
"... Já se avizinhava então a hora do pôr do sol... Em pouco entrou o servidor dos Onze...<br />
e se postou junto dele, dizendo: <strong>–</strong> A vós, Sócrates, que reconheço ser o mais delicado e o melhor<br />
de todos os que têm estado neste lugar, não atribuirei os sentimentos de outros homens, que se<br />
encolerizam e praguejam contra mim, quando, em obediência às autoridades, mando-os beber o<br />
veneno; tenho a certeza de que não vos enraivecereis, já que cabe a outros, não a mim, a culpa<br />
deste ato... Este homem é cativante <strong>–</strong> disse Sócrates <strong>–</strong> , desde que estou preso vem sempre ver-me<br />
e agora mostra-se generosamente condoído de minha sorte... Que tragam logo a taça de veneno.<br />
21
... Criton respondeu: <strong>–</strong> Mas os raios do sol ainda iluminam os cimos dos montes e muitos<br />
houve que tomaram a bebida mais tarde; e, depois de a mandarem tomar, ainda os deixaram comer<br />
e beber e entregar-se aos prazeres do amor; não vos apresseis, portanto; ainda não chegou a hora.<br />
Replicou-lhe Sócrates: <strong>–</strong> Sim, Criton; esses a quem vos referis andaram bem procedendo<br />
assim, já que achavam proveitosa a demora; quanto a mim, tenho razão de não me portar desse<br />
modo, pois não julgo que lucre alguma coisa bebendo um pouco mais tarde o veneno; estaria a<br />
preservar uma vida que já perdi; com isso, apenas me enganaria a mim próprio. Peço-vos, pois,<br />
que façais o que digo.<br />
Ouvindo estas palavras, Criton fez sinal a um carrasco que se achava perto; o escravo<br />
afastou-se; em seguida voltou com o carcereiro a trazer a taça de veneno. <strong>–</strong> Disse-lhe Sócrates <strong>–</strong><br />
meu bom amigo, como tendes experiência destas coisas, dizei-me como devo proceder, <strong>–</strong> o<br />
carcereiro respondeu <strong>–</strong> ponde-vos a andar até sentirdes as pernas fracas; deitai-vos após e o<br />
veneno produzirá seu efeito. Ao mesmo tempo oferecia a taça a Sócrates, que, do modo mais<br />
natural e gentil, sem o menor medo, nem mudança de cor ou de expressão, olhando fixamente o<br />
carcereiro conforme era seu costume olhar os homens, tomou a taça e disse: Que achais da idéia<br />
duma libação a algum deus, derramando um pouco desta bebida? Poço ou não fazê-la. O<br />
carcereiro respondeu: Nós, Sócrates, preparamos apenas a quantidade que julgamos necessária.<br />
Compreendo, volveu o filósofo: mesmo assim devo pedir aos deuses que favoreçam minha viagem<br />
deste mundo para o outro <strong>–</strong> e possa este meu desejo, que será minha prece, ser atendido por eles.<br />
Então, levando a taça aos lábios, bebeu rápida e corajosamente a cicuta" 27<br />
Todos vós, ó respeitáveis aprendizes, tendes vontades poderosas. Mas sobre que matéria<br />
deveis aplicar vossos cinzéis? Pois deveis aplicar sobre as pedras brutas de vós mesmos,<br />
desbastando-as aqui e ali nos defeitos e vícios, até que ela possa ser utilizada no edifício social E<br />
nós outros que aqui estamos, conquanto mestres, também possuímos arestas a desbastar, pelo que<br />
nossa mestria é só simbólica. Em verdade, seremos eternos aprendizes, visto que sempre temos o<br />
que fazer sobre nós mesmos com o <strong>malho</strong> e com o <strong>cinzel</strong>.<br />
E para que serve o nosso trabalho em desbastar a pedra bruta que somos? Para que isto?<br />
Para que, proximamente possamos ajudar, com nossas pessoas, a construir o edifício social<br />
simbolizado neste templo que Deus mandou Salomão construir. Se as pedras não forem<br />
trabalhadas uma a uma, o edifício arquitetônico não se levantará da terra. Deus mandou Salomão<br />
edificar o templo, vede bem! Por isto a Maçonaria, conquanto obra humana, tem suas origens nos<br />
Céus. Daqui decorre o porque remoto, o porque devemos nos desbastar das pétreas asperezas! Isto<br />
nos cumpre a nós fazer, para que possamos, após a morte física, sermos recebidos no Oriente<br />
Eterno, na Maçonaria extra-terrena. Lembrai-vos de que numa de nossas sessões, um boletim nos<br />
informava que certo poderoso Irmão se tinha passado para o Oriente Eterno. É esta mística que<br />
deve ser o primeiro objetivo do Maçonaria, e deste decorre o outro, o secundário e próximo, que é<br />
nos <strong>cinzel</strong>armos a nós mesmos para que possamos entrar como parte no edifício social da<br />
humanidade.<br />
Que o Grande Arquiteto do Universo nos abençoe o propósito de sermos dignos<br />
aprendizes.<br />
<strong>VII</strong>I <strong>–</strong> A ampulheta<br />
A ciência antropológica nos demonstra, hoje, por seis tipos de provas, que houve<br />
evolução; são as provas pal<strong>eo</strong>ntológicas, as embriológicas, as dos órgãos residuais as anatômicas,<br />
as sorológicas, e as g<strong>eo</strong>gráficas. Como se deu a evolução, ainda é uma incógnita. E t<strong>eo</strong>rias várias<br />
27 Extraído parcialmente do livro História da Filosofia de Will Durant, da pág. 31 a 32<br />
22
têm surgido, sem que o fato tenha sido explicado cabalmente. Nem Darwin, com sua luta pela<br />
vida, nem Lamarck, com sua transmissão dos caracteres adquiridos, nem Hugo de Vries, com o<br />
seu mutacionismo esclarecem como a evolução se deu. Assim, refutar t<strong>eo</strong>rias da evolução, t<strong>eo</strong>rias<br />
evolucionistas, é fácil; o impossível é negar os fatos, documentos e provas que atulham os museus<br />
antropológicos.<br />
Antes, se procurava o elo que faltava; hoje foram descobertas séries inteiras deles.<br />
O Homo Habilis viveu há dois milhões de anos; sua pele era escura, depilada, e tinha<br />
l,30m. de estatura. Mas esse macacóide se distinguia já de todos os demais símios: falava,<br />
fabricava instrumentos e era antropófago.<br />
Assim, desde que o primata superior se equilibrou nas patas traseiras, libertou as mãos<br />
para prender e segurar, coisa que antes era feita com os dentes, do modo como o fazem os animais<br />
nossos conhecidos. A ociosidade dos maxilares produziu o seu atrofiamento e o esforço das mãos<br />
e da língua provocou o aumento da massa encefálica, e a conseqüente expansão da caixa craniana.<br />
Com o surgir do pensamento, da razão, apareceu a necessidade da comunicação por meio<br />
da linguagem.<br />
Então, a linguagem que era antes feita só de interjeições, começou a complicar-se. Desde<br />
que o primitivo descobriu que tinha voz, nasceu o canto, e, com este, o ritmo, a dança. Por meio da<br />
dança se representavam cenas de caça, ou era ela usada no culto dos deuses. Então, a dança e os<br />
gestos eram liturgia, e os petrechos empregados durante a liturgia eram símbolos. Eis a origem<br />
remota dos símbolos e da liturgia.<br />
A própria linguagem musical se grafa com símbolos, e a linguagem literária nasceu dos<br />
desenhos simplificados de animais e coisas. O homem desenhava, e os desenhos foram-se, aos<br />
poucos, esquematizando nos símbolos gráficos que ainda hoje usamos.<br />
Todos os eventos históricos sempre foram relembrados num ritual, os das caçadas, os das<br />
guerras, os das lendas do aparecimento dos deuses. Nós estamos rodeados de símbolos, e nos<br />
comunicamos por linguagem feita de símbolos.<br />
Compelidos pela necessidade de se comunicar, os homens criaram várias formas de<br />
linguagem que são, para citar as mais importantes, a pictórica, a escultural, a musical, a literária e<br />
a simbólica.<br />
Porque sempre se usou a liturgia e o simbolismo; porque desde sempre se empregou os<br />
ritos místicos, iniciáticos, nos vários mistérios, por isso supõem alguns que a origem da Maçonaria<br />
se perde na noite dos tempos. Ela é, de fato, a revivescência dos métodos e processos iniciáticos<br />
que sempre existiram, e é neste ponto que se perdem em fantasias os maçons chamados místicos.<br />
Todavia, os maçons autênticos sabem que a Sublime Instituição nasceu de corporações de<br />
pedreiros livres da Idade Média.<br />
Contudo, porque a Maçonaria é o repositório de todas as conquistas da humanidade, tanto<br />
intelectuais, como espirituais, como morais, para poder abarcar toda a vastidão do progresso, teve<br />
de sintetizar tudo na sua simbologia. A linguagem simbólica, pois, é a da síntese.<br />
E para que vós, Poderoso Irmão, possais saber quanta coisa se oculta sob um símbolo, eu<br />
vos hei de falar hoje sobre a ampulheta:<br />
Quando o neófito começa sua iniciação maçônica, é levado à Câmara das Reflexões.<br />
Esta é um cômodo pintado de preto, lúgubre, macabro; lágrimas, pingando, aparecem desenhadas<br />
sobre as paredes; uma foice ou alfanje adverte: lembra-te que te hei de ceifar para que sejas pó; e<br />
uma caveira o alerta: és mortal; aplica-te a conquistar a virtude; há o dístico vigilância e<br />
perseverança de que hei falado no outro estudo; lá está o galo a anunciar: eu sou o que desperta o<br />
dia; cuida de ser perfeito. Depois vem a ampulheta que nos sugere: o tempo passa com o passar da<br />
minha areia; sê perseverante em tua ação; acaso sabes quanto tempo tens para concluir tua tarefa?<br />
Mas, que é a ampulheta? É um relógio de areia que substituiu o mais antigo ainda de água<br />
e o de sol. E que é um relógio? É um dispositivo que nos permite contar o tempo. E que é o<br />
tempo?<br />
23
Já dizia Santo Agostinho: "Se ninguém me pergunta o que é o tempo, eu sei o que é o<br />
tempo; mas se alguém me pergunta o que é o tempo, eu não sei o que é o tempo!"<br />
Assim o tempo é uma das grandes dificuldades da filosofia. Aqui divido meu estudo em<br />
tempo cronológico e tempo vital. Hoje vos falarei sobre o tempo vital; e se os Poderosos <strong>Irmãos</strong> o<br />
desejarem, falarei, da próxima vez, sobre o tempo cronológico.<br />
O tempo vital é o da duração da nossa vida, a da vida da sociedade, o da civilização. Esse<br />
tempo contamos como passado, presente e futuro.<br />
O homem vive a partir do futuro, vive em função do futuro, vive tendo em vista o futuro.<br />
Todas as nossas ações, todos os nossos esforços são feitos para realizar uma programação que<br />
pertence ao futuro.<br />
Mas, como será o futuro? Será ele do modo como o desejarmos? Não: porque ele<br />
depende do passado; a vontade quer, mas o passado resiste. Por isso o futuro será uma resultante<br />
do passado mais a nossa ideação. O passado têmo-lo na história; e o futuro, na nossa programação.<br />
É ainda Santo Agostinho o que dizia: "Se queres conhecer o futuro, olhai o passado!".<br />
O homem, pois, tem de olhar para o passado e para o futuro juntamente, para orientar sua<br />
ação presente. Por isso o homem se assemelha ao deus jano de duas caras. Um rosto fita o futuro<br />
onde está o ideal a ser realizado; o outro encara o passado que já foi, no qual se gravaram as<br />
impulsões que determinam, em parte, o presente.<br />
Foi Numa Pompílio, segundo rei de Roma, sucessor de Rômulo, o que, entre outras<br />
grandes coisas que fez, decretou o calendário de doze meses, que ainda hoje usamos. O primeiro<br />
mês recebeu o nome de "januarius", donde o nosso janeiro, em homenagem ao deus Janus, deus da<br />
paz, e que por isto mesmo seu templo ficava fechado em tempo de guerra. No começo do ano está<br />
"januarius" ou Jano, com suas duas faces, uma a olhar para o passado, a contar pelo ano que se<br />
findou, e a outra a encarar o futuro, no ano que se inicia.<br />
O passado não desaparece, e antes pervive em cada minuto do presente. Um homem que<br />
sofre um acidente grave, fica com uma neurose do desastre! Se o passado não persistisse, seria<br />
impossível educar-nos. Um homem sem passado, é um indivíduo que perdeu a memória, ficou<br />
amnésico, e tem de reaprender tudo de novo como uma criança.<br />
Vieira escreveu um sermão em que dizia que "tudo passa e nada passa; tudo passa para a<br />
vida, e nada passa para a conta". Nenhum minuto se perde, porque se acha assegurado no minuto<br />
seguinte, na hora, no dia, no mês, no ano, na década, no século, no milênio, na eternidade. Todo o<br />
minuto se eterniza como antecedente de que decorre o futuro. O passado se sedimenta, se cristaliza<br />
em nossa vida. Nós somos filhos do tempo.<br />
São Tomás de Aquino, em sua filosofia concreta, querendo saber em que consiste a<br />
eternidade, chegou à conclusão de que ela é o momento, ou a menor porção possível do tempo.<br />
Hoje ele teria dito que a eternidade é o que a ciência chama de tempo mínimo, ou seja, o raio do<br />
elétron percorrido com a velocidade da luz. Fundado nesta doutrina de São Tomás, o escritor<br />
Arnaldo da Silva Ramos fez, para um advogado novato, a defesa de um réu que era já recidivo<br />
numa mesma culpa por três vezes. Fora condenado as três vezes com penas cada vez maiores. Mas<br />
na última vez, o argumento do escritor convenceu os juizes que absolveram o réu por<br />
unanimidade. Eu tive a prazerosa oportunidade de ler essa peça de defesa. Tratava-se do seguinte:<br />
A mulher de um homem o traiu. Ele ficou, então, traumatizado pela ofensa e pela<br />
vergonha. Abandonou sua mulher, e mudou-se de sua cidade, levando, consigo, um filho. E<br />
aconteceu, daí por diante, que cada vez que seu filho era xingado de "filho da p...", o trauma do<br />
pai aflorava-se, ele perdia o uso da razão, e ia direto à desforra, ao desagravo pela violência. Não<br />
havia premeditação, como alegou a Promotoria, mas sim, verdadeira suspensão dos processos<br />
racionais. O nome afrontoso desencadeava no pai o trauma, ele revivia toda a cena de vergonha e<br />
humilhação,... porque o passado se eterniza, e nenhum minuto se perde.<br />
Assim, todo o momento é eterno como dizia São Tomás. O réu, como o demonstrou<br />
Arnaldo, precisava de tratamento psiquiátrico, e não, de cadeia. Por que assim? Porque o passado<br />
não morre nem desaparece, e antes, pervive no presente, e, até certo ponto, determina o futuro.<br />
24
Deste modo, porque cada segundo se eterniza, cada movimento passado se mostra atuante<br />
no presente, donde vem que "tudo passa e nada passa; tudo passa para a vida, e nada passa para a<br />
conta", conforme o disse Vieira. Como numa máquina de calcular, cada momento é como cada<br />
pressão que fazemos na tecla de um número, e tudo vai sendo levado para o somador.<br />
Não obstante, a outra cara do deus Jano fita o futuro do que queremos ser; e se<br />
planejarmos bem esse futuro, se formos persistentes, perseverantes na ação, ainda que o passado<br />
nos atrapalhe em parte, acabamos por vencer.<br />
Tudo o que disse, e também o que não disse, está resumido num simples símbolo que é a<br />
ampulheta.<br />
Ninguém se iluda: cada símbolo, cada gesto litúrgico, representa a síntese de uma lição<br />
profunda. Sobre cada um deles eu posso discorrer um pouco; porém, muito mais ainda é o que fica<br />
por dizer...<br />
No entanto, muitos há que entram para a Sublime Instituição, e acabam saindo dela, por<br />
julgar, ainda que o não declarem, que isto aqui é uma palhaçada. Esses tais não podem ser<br />
maçons; precisam ser adormecidos. Porém, aqui vão permanecendo selecionados, os que podem<br />
compreender: esses são os verdadeiros maçons.<br />
conseqüências.<br />
IX <strong>–</strong> Aforismo<br />
Não há penas nem recompensas, e sim,<br />
O aforismo é uma sentença moral breve e conceituosa; é o mesmo que máxima. É como o<br />
"slogan", correspondente, em português, a divisa. Os "slogans" ou divisas são frases<br />
freqüentemente usadas pelos partidos políticos e pelas escolas doutrinárias de cariz político. Na<br />
moral, os "slogans", as divisas, são aforismos ou máximas. E até na ciência há destas palavras<br />
chaves que são repetidas para fechar a porta ao pesquisador. "A natureza não dá saltos" é um<br />
"slogan" científico, que muito emperrou o andar do pensamento, e hoje se sabe que a natureza dá<br />
saltos: dá saltos quânticos no átomo, e dá saltos mutacionais na evolução.<br />
Assim também com os aforismos que podem ser uma ajuda para a moral, ou podem ser<br />
para ela um emperro.<br />
A máxima em estudo hoje nos diz que não há nem recompensas nem penas, e sim<br />
conseqüências. Havendo leis morais rígidas no universo, cada um colhe o que sem<strong>eo</strong>u. Quem é<br />
que não entende, de pronto, que recompensas e castigos são conseqüências? Quem faz o bem<br />
recebe o bem; quem pratica o mal colhe o mal; quem semeia ventos colhe tempestades, diz um<br />
provérbio, um aforismo, uma máxima de Salomão.<br />
Pois esta frase axiomática, evidente por si mesma, não carente de demonstração, quando<br />
submetida à perquirição do filósofo, mostra-se falha ou imperfeita. Assim, a filosofia mostra-se<br />
eivada de dificuldades, e aquilo que é inteligível para todos, aquilo que soa como se fora um<br />
axioma que não precisa de demonstração, quando cai debaixo da meditação do filósofo, já se<br />
mostra não muito verdadeiro. Senão dizei-me: quem semeia o bem colhe o bem?<br />
Pois Cristo passou sua vida a semear o bem, e só o bem; contudo teve por conseqüência<br />
ser pregado numa Cruz. Sócrates passou sua vida num apostolado moral; antes de Cristo, suas<br />
verdades se assemelhavam às de Cristo; no entanto sua vida de apóstolo do bem, da retidão e da<br />
justiça, teve uma conseqüência: a condenação à morte pela cicuta. João Batista do qual disse<br />
Cristo: dentre os nascidos de mulher, João Batista é o maior; pois este maior dos nascidos teve sua<br />
cabeça decepada, posta num prato, e apresentada aos convivas num macabro e nojento festim de<br />
Herodes... Quem espalha o mal recebe o mal?<br />
25
Pois Herodes, o porco, viveu no trono o resto de seus dias em honra e glória, nada lhe<br />
sobrevindo de mal como conseqüência de seus atos criminosos. Pilatos lavou as mãos, ao entregar<br />
Cristo à sanha do povo desvairado, e aquela água, em vez de lavar-lhe as mãos, sujou-as do<br />
sangue daquele a quem o próprio Pilatos considerava inocente e justo. Enodoou ele, para sempre,<br />
sua toga de juiz, e no entanto, permaneceu no poder, tendo até sido elogiado por César por sua<br />
habilidade em contornar e impedir levantes. Viveu no fausto, na grandeza, e quando se recolheu a<br />
Roma, ninguém, senão sua consciência, lhe pediu contas de seus crimes e injustiças.<br />
Estaria, logo, errada a máxima? Pode, neste mundo, o bem ter por conseqüência o mal, e<br />
o mal ter por resultado o bem de quem o pratica? Está provado que, neste mundo, sim. Daí a idéia<br />
de um outro mundo e de uma outra vida, para se corrigirem lá os erros e desatinos desta.<br />
Assim pensava o padre Vieira, quando escreve isto num sermão:<br />
"O Batista em prisões! Logo há de haver outro juízo e outro mundo. Provo a<br />
conseqüência. Porque, se há Deus, é justo; se é justo, há de dar prêmios a bons, e castigo a maus:<br />
no juízo deste mundo vemos os maus, como Herodes, levantados, e os bons, como o Batista,<br />
oprimidos: segue-se logo que há de haver outro juízo e outro mundo: outro juízo, em que se<br />
emendem estas desigualdades e injustiças; outro mundo, em que os bons tenham prêmios de seus<br />
merecimentos, e os maus castigo de suas culpas" 28 . E acrescenta o padre pouco mais adiante:<br />
"Um dos principais fundamentos da nossa fé é a imortalidade das almas, e a nossa<br />
injustiça é a mais evidente prova da nossa imortalidade. Se os homens não foram injustos, puderase<br />
duvidar se eram imortais; mas permite Deus que haja injustiças no mundo para que a inocência<br />
tenha coroa e a imortalidade prova. Quem pode duvidar da imortalidade, da outra vida, se vê nesta<br />
a maldade de Herodes levantada ao trono e a inocência do Batista posta em prisões?" 29<br />
Tal, também, é o parecer do pensador Emmanuel Kant; não podendo ele chegar a Deus<br />
em sua "Crítica da Razão Pura", a ele chega pelos caminhos do padre Vieira, em sua "Crítica da<br />
Razão Prática", isto é, faz derivar a imortalidade da necessidade de recompensa.<br />
Tenho demonstrado que o bem, proximamente, pode ter por recompensa o mal, e viceversa,<br />
o mal pode redundar no bem imediato de quem o pratica. Mas, nem sempre o perverso<br />
colhe frutos bons de sua maldade. Dimas e Gestas eram ladrões e salteadores, e tiveram por<br />
conseqüência serem pregados nas cruzes. Contudo, no meio de ambos se elevava a Cruz de Cristo<br />
que era o sumo bem. O bem e o mal crucificados no mesmo local e mesma hora, provam que bem<br />
e mal podem ter por conseqüência o martírio e a morte. Não importa se é Cristo ou Gestas: se<br />
estão neste nosso mundo injusto e mau, haverá cruzes para ambos.<br />
Segue-se, de tudo isto, que o sofrimento decorre do meio em que nos encontramos.<br />
Cumpre-nos, portanto, para não sofrer, fazer duas coisas: a primeira, e mais importante, é<br />
melhorar-nos intelectual e moralmente; a segunda, é lutar pela melhoria do meio social. Pela<br />
primeira, elevamo-nos de nível espiritual, e com isto, nos candidatamos aos mundos felizes que<br />
são as Grandes Oficinas extra- terrenas (na casa de meu Pai há muitas moradas <strong>–</strong> Jesus), todas<br />
recebendo a inefável Luz do Oriente Eterno. Pela segunda (e esta é a missão da Maçonaria<br />
terrena), procurarmos transformar a grande oficina deste nosso mundo numa das Grandes Lojas do<br />
Infinito, expulsando dele, para sempre, a injustiça e o mal, repondo, em seus lugares, a justiça e o<br />
bem.<br />
De maneira que está correta a máxima: não há punições nem recompensas, mas<br />
conseqüências; só que estas conseqüências são o meio social a que somos compelidos a habitar<br />
pela nossa densidade espiritual. Os bons sobem para mundos felizes, leves e luminosos; os maus,<br />
por sua grande densidade, caem para os planos trevosos de ignorância, de injustiças, de lágrimas,<br />
de dores. O que vale é a densidade espiritual: e está exclusivamente em nós tornarmo-nos leves ou<br />
densos.<br />
Gestas era denso, inferior, por sua natureza animalesca, cultivada no sentido de aumentar<br />
seu satanismo, e a conseqüência disso foi sua cruz. Cristo era leve, diáfano, divino; mas por amor<br />
28 Vieira, Sermões, Ed. das Américas 11, 355<br />
29 Vieira, Sermões, Ed. das Américas, 11, 356<br />
26
de nós, fez-se a si mesmo denso, fez-se carne, e por isso teve também como resultado ser pregado<br />
numa Cruz. Cristo era missionário do bem, era a mesma luz, e sua Cruz foi o resultado do seu<br />
imenso amor. Gestas era um demônio perverso e mau, era a mesma treva, e sua cruz foi a<br />
conseqüência do seu egoísmo, do seu ódio pela humanidade.<br />
No entanto, parece que estou a ouvir as vossas objeções, primeiro, que tomei exemplos<br />
extremos, e se é verdade que os expoentes extremos, sejam do mal, sejam do bem, podem ter por<br />
resultados o martírio e a morte, contudo a maioria dos medíocres não padecem horrores tais. A<br />
segunda objeção é que nem todas as dores resultam de punições impostas pelos homens, e a massa<br />
enorme de sofrimentos que todos padecemos são conseqüências de causas desconhecidas.<br />
A primeira objeção nos leva a concluir, que a moral verdadeira é a da áurea mediania de<br />
Aristóteles: in medio virtus, isto é, no meio está a virtude. Nem maus, como Gestas, nem bons,<br />
como Cristo, visto que tais extremos podem nos levar à cruz. Logo, sejamos como somos, nem<br />
bons, nem maus. Sejamos medíocres nas virtudes, que nesta mediocridade está toda a virtude.<br />
Consequentemente, cada um deve cuidar-se de não ser mais do que é, pois que somos perfeitos,<br />
acabados, porque medíocres.<br />
Esta moralidade se contrasta com a extrema virtude pregada por Cristo que dizia: ou sejas<br />
frio ou quente, porque se fores morno, vomitar-te-ei da minha boca. Assim aquilo que para<br />
Aristóteles era o ideal, para Cristo é repelente vômito. Cada um de vós que escolha qual dos dois<br />
seguir: mas se vos decidir por Aristóteles, já não tendes o que fazer na Maçonaria, desligai-vos<br />
dela, porque aqui curamos de nos aperfeiçoar objetivando a virtude extrema de Cristo, ainda que<br />
isso nos custe a vida.<br />
Quanto à segunda objeção, que é a dos males sofridos sem culpa aparente ou conhecida,<br />
dessa não vos posso falar, porque minha convicção me levaria a defender uma tese sectária, e<br />
estou disso proibido pela nossa Constituição.<br />
O que só vos posso adiantar é que creio deva existir uma Maçonaria extraterrena, e<br />
estarão fora do Oriente Eterno todos os que praticarem a iniquidade; em lugar de irem para o<br />
Oriente que é a sede da luz, irão para o lado oposto, para o ocidente, para o ocaso do Sol, para<br />
onde morre o dia e a luz se apaga, e, nas trevas densas duma noite infinita, todos os passos estarão<br />
perdidos, porque não se aproveitam, porque não conduzem a lugar nenhum. Perdido o sentido de<br />
orientação, sem o Oriente, andar e desandar é como estar parado.<br />
Além daquela porta que ali está, ali no poente, situa-se a sala dos perdidos passos; de lá<br />
viemos, e para lá retornaremos, se nos descurarmos do cultivo das virtudes e do saber.<br />
X - Grandes Pontífices<br />
A Constituição Maçônica do GOB, em seu Cap. I item I, afirma, entre outras coisas, que<br />
ela é "essencialmente filosófica", e que um dos modos de ela pugnar pelo "aperfeiçoamento<br />
moral, intelectual e social da humanidade", é, entre outras, "a investigação constante da<br />
verdade". Assente que ela se propõe a investigar constantemente a verdade, ipso facto, ela não se<br />
tem como detentora da verdade, e, antes, sua verdade se mostra progressivamente em aberto, e<br />
isso, ainda, tendo em vista a humanidade. Disto é que decorre o ser ela essencialmente filosófica.<br />
Conseqüentemente, todas as questões filosóficas que a Maçonaria põe, podem e devem<br />
ser discutidas exaustivamente. Tal, o fundamento inquestionável que nos propiciou fazer a crítica<br />
da filosofia do grau 19, a qual permaneceu intocável faz duzentos anos. Ao mesmo tempo que<br />
fazemos essa crítica, assentamos os alicerces da filosofia que vigorará no mundo (tal, a nossa<br />
crença) a partir do século XXI.<br />
Como a verdade não é privativa de ninguém, nem de nenhuma instituição, esta filosofia<br />
deve ser para todos, para todos os graus, e também para o público profano, ministrada em sessões<br />
27
livres ao público, mensais, conforme tais sessões de estudo foram aconselhadas pelo GOSP. Feito<br />
este preâmbulo, vamos ao assunto:<br />
Contra o que pensava Spengler, Toynbee demonstrou, em vinte civilizações que se foram,<br />
que as civilizações não morrem pelos mesmos motivos pelos quais se finam os organismos<br />
biológicos, dado que, em nada, elas se parecem a estes organismos. As civilizações entram em<br />
colapso quando deixam de responder a um dado repto, o último, que continua reptando, sem<br />
resposta. Tudo vai indo relativamente bem, até que a civilização sofre um repto, um desafio, ou<br />
lhe surge uma antítese. É preciso, então, dar a resposta ao repto, ao desafio, ou seja, fazer a<br />
síntese.<br />
Pois bem: nossa civilização ocidental desenvolvia-se segundo a tese criacionista;<br />
vigorava, até há pouco, o Criacionismo bíblico. E todas as filosofias, exceto a de Spencer-<br />
Nietzsche, trazem o Criacionismo como subentendido, como substrato, como terreno sobre o qual<br />
se assentam seus primeiros princípios.<br />
De meados do século XIX para cá, nossa civilização sofreu o repto da Doutrina da<br />
Evolução, ou foi-lhe imposta a antítese do Evolucionismo. Por causa de não se haver achado<br />
ainda a síntese entre essas duas posições contraditórias; por causa de se não haver harmonizado a<br />
tese Criacionismo com a antítese Evolucionismo na SÍNTESE de um pensamento mais<br />
abrangente que abarque essas oposições em nova unidade id<strong>eo</strong>lógica; por causa de não se haver<br />
feito ainda isso, nossa civilização começa a declinar para o seu ocaso.<br />
É exatamente essa SÍNTESE que a obra "Grandes Pontífices" faz. À meia verdade do<br />
Criacionismo temos de juntar a outra meia verdade do Evolucionismo para obtermos a verdade<br />
inteira, mais completa, até que novos tempos futuros imponham novos reptos, novos desafios,<br />
para os quais, como agora, serão necessárias novas respostas, novas sínteses.<br />
O Ritual do grau 19 foi composto e redigido segundo os ideais imperantes no século<br />
X<strong>VII</strong>I, que são os do Iluminismo o qual fazia da razão uma deusa. Era crença, então, que o<br />
Racionalismo, sobretudo, o da linha Bacon-Locke, era tudo, e que a ciência e a tecnologia eram<br />
suficientes para transformar o inferno terrestre num paraíso. O "paraíso" proposto é o no qual<br />
estamos vivendo hoje, submetidos ao medo e ao horror de todos os matizes.<br />
Ora, a Maçonaria não tem isso de ficar de braços cruzados, como está fazendo hoje, não<br />
indiferente, mas impotente, face ao inevitável de um mundo que soçobra no abismo. Ela tem que<br />
reagir. E para reagir é-lhe indispensável um pensamento novo. E um pensamento novo, norteador<br />
da grande renovação, só pode provir de seus Obreiros. Não há outro caminho a seguir, a não ser<br />
este.<br />
Assim, esse pensamento novo se impõe como uma questão de vida ou de morte para a<br />
civilização a qual, se cair, arrastará na queda, a própria Sublime Instituição. Deste modo, cumpre à<br />
Maçonaria salvar-se a si mesma, e, em se salvando, salvar a própria civilização. Se isto não<br />
acontecer, nada mais terá a mínima importância.<br />
Nosso mundo atual se acha sob o repto do Evolucionismo antitético em relação à tese do<br />
Criacionismo. Ou agora vem a SÍNTESE, ou sobrevirá a morte da civilização, após uma agonia<br />
longa à qual Toynbee chama de "interregno", e Gustavo Corção, na sua irreverência contumaz,<br />
chama de "diarréia". Essa agonia vivemos hoje, em todos os setores: no da moral, no do social,<br />
no da economia, no da política, no das religiões, estas, já, de há muito, esvaziadas de seu conteúdo<br />
espiritual.<br />
A obra que damos ao prelo, agora, é filosófico-científica, não mística, embora leve em<br />
conta o que há no Evangelho, sobretudo, no "Apocalipse" de São João, em que se fundamenta o<br />
grau 19. Mesmo nesta abordagem, com base no Evangelho, nosso pensamento mostra-se rigoroso<br />
quanto à lógica. Quando São João diz que "Deus é Amor" (I Jo 4, 8), e que "Deus é Luz" (I Jo 1,<br />
5), assente que, na linguagem filosófica, Deus é o mesmo que SER, podemos emparelhar São João<br />
com os filósofos substancialistas de Mileto: Tales, Anaximandro, Anaxímenes, Empédocles,<br />
Heráclito. Moisés, também, tira tudo da luz, inclusive a própria matéria, haja vista o próprio Sol<br />
que foi criado da sua luz, ao dia quarto, enquanto que a luz surgiu no dia primeiro. Deste modo,<br />
28
Heráclito, com o seu fogo primordial, não distancia quase nada de Moisés com sua "luz que era no<br />
princípio", nem de São João para quem, além de o Ser consistir-se de Luz, ainda é o AMOR. Daí<br />
que podemos construir o filosofema de São João, trocando a palavra Verbo pela palavra Amor, e<br />
teremos isto:<br />
"NO PRINCÍPIO era o Amor, e o Amor estava com Deus, e o Amor era Deus. (...) Todas<br />
as coisas foram feitas por ele, e sem ele nada do que foi feito se fez" (Jo 1, 1 a 3). Coerente com<br />
isto, o texto lido ao serem abertos os trabalhos do grau 19, pode, também, servir de ponto de<br />
partida para a construção de toda a filosofia do terceiro milênio.<br />
Cristo, em dizendo, "Eu sou o Alfa e o Ômega, o princípio e o fim, o primeiro e o<br />
derradeiro" (Apoc 22, 13), simplesmente assenta, para a reflexão filosófica, que ele, como Amor<br />
que é, é o ponto de partida e de chegada COINCIDENTES de um grande círculo que começa no<br />
Mundo Celeste e lá termina, havendo passado pelo caos que ficou no meio da circunferência, caos<br />
esse do qual saiu este nosso universo, este nosso mundo. Assim sendo, a fórmula maçônica ORDO<br />
AB CHAO, subentende uma fase inversa, já vencida em que a Ordem empírea caiu no caos, ou<br />
seja, CHAO AB ORDO. Existe hoje, portanto, a Evolução, porque houve uma fase anterior de<br />
Involução. A Evolução que, começada pela matéria, acaba no amor, implica uma fase inversa em<br />
que o Amor que é Deus, tornando-se autônomo (livre para fazer sua lei) nos Espíritos celestes,<br />
inverteu-se no seu oposto que é o Egoísmo desintegrador, disto resultando a queda e dissociação<br />
de parte do que "era no princípio" no Caos de que, depois, surgiu este nosso universo evolutivo.<br />
XI - Minha filosofia e a linha do grau 18<br />
Deus criou os filhos, os anjos, da sua Substância, visto como não havia outra; não podia<br />
Deus lançar mão de nada exterior a si, porque, sendo infinito, não possui exteriores, nem limites.<br />
Sendo substancial o Amor, por isso mesmo possui polaridade, podendo, porque livre, esfriar-se e<br />
inverter-se no seu contrário. "Deus é Amor" (I João 4, 16), e desse Pai-Amor saíram os filhos;<br />
"Deus é Luz" (I João 1, 5), e dessa incriada luz inacessível se criaram os anjos qual Pai, todos<br />
luminosos, todos santos, todos amorosos.<br />
E aconteceu esfriar-se o amor num terço dos espíritos celestes, e o impulso, como o de<br />
um pêndulo que oscila, inverteu-se no seu contrário, no egoísmo.<br />
Se o amor cria, o egoísmo descria, dissolve, desintegra, e assim os anjos caídos do amor<br />
se escureceram, sendo arrojados no Orco profundo, no centro do universo primevo, e em se<br />
fechando cada um cada vez mais sobre si mesmos, todos os dragões se desintegraram no que se<br />
chamou, então, depois, medonho e turbulento caos. Daqui principiou a fase inversa à da queda,<br />
que é a evolução, e quando pôde o homem ser recriado na subida, viu, atônito, perplexo, que a<br />
ignorância e a dor são a sua sorte. Porque se perdeu o amor, por isso erra o homem pelo mundo;<br />
procura o enigma do Universo, e não o encontra; sente a morte lançar-lhe a descarnada mão, e<br />
se toma de horror do Nada.<br />
Acaso conheceu o homem o amor? Sim, conheceu-o antes da queda, e o conhece agora,<br />
porém, na sua forma invertida de egoísmo. A Natureza toda é egoísta, e o homem, nela, não teve<br />
outra sorte que não ser egoísta também. Que, pois, fizeram, os primeiros homens?<br />
Ignorantes e fracos, a noite os enlouquecia de horror. Adoravam coisas de todas as<br />
espécies chamando-as deuses. O egoísmo engendrou a tirania, e esta criou o trabalho escravo,<br />
impedindo, ao mesmo tempo, o esforço da pesquisa da verdade. Por causa da inversão do amor em<br />
egoísmo, o mundo todo se mostrou invertido também, e, como num negativo fotográfico ou numa<br />
fôrma, tudo tem de ser entendido pelo avesso; daí que onde nos diz, a fôrma, saliência, é para<br />
entender-se reentrância ou depressão; onde o negativo nos diz luz, é para entender-se escuridão, e<br />
29
onde, negro, é para entender-se branco. Porque tudo se mostrou invertido, o Mal foi tomado pelo<br />
Bem e o Bem pelo Mal.<br />
Todavia, os anjos que, lá no empír<strong>eo</strong>, se tiveram na virtude, inflamados do sacrossanto<br />
amor, varando as trevas do Orco, sempre levaram socorros mil a todos os que quiseram salvar-se,<br />
os que, de dragões, desejaram negar-se, na reconquista do perdido amor.<br />
Que estrela, pois, esta que brilha nas trevas? É a Nova Lei que reaparece, a Lei do Amor<br />
que exsurge, desponta e esplende fulgurante, negando o estulto egoísmo, clareando a escuridão do<br />
mundo, derretendo os ferros, as algemas, as gargalheiras com que a negra tirania agrilhoou a<br />
Liberdade do humano corpo e da consciência humana. O homem dragontino, egoísta e mau,<br />
escravo da ignorância e do vício, só pode achar a liberdade na nova Lei do Amor, e a Grande<br />
Estrela Fulgurante diz: <strong>–</strong> "Conhecereis a Verdade, e ela vos libertará!"<br />
A Verdade? Mas o que é a Verdade? Movido pelo anseio de ser livre, passou o pensador<br />
a joeirar todas as vozes, e andando pelo mundo, foi interrogando as gentes: <strong>–</strong> em que crês tu? <strong>–</strong><br />
Creio na existência de dois deuses: um claro e luminoso como a luz do Sol, e bom como a mesma<br />
bondade, e outro, negro, peçonhento e cheio de maldade. Interrogado outro, este assim responde: <strong>–</strong><br />
Creio em Brahama que gerou Trimurti; Brahama, o criador; Wishnu, o conservador; e Shiva, o<br />
destruidor. <strong>–</strong> Eu aqui budista, esse ai brahamanista, aqueloutro lá discípulo de Platão, todos<br />
cremos na transmigração das almas por corpos sucessivos.<br />
Vagando o pensador pelos confins da Terra, por terras ignotas, ouviu ainda dos<br />
selvagens a primitiva fala: <strong>–</strong> Adoremos o Sol, a Lua e as Estrelas, porque deuses são.<br />
Desesperado de achar a verdade na escuridão dos tempos, dirige os passos para Roma, a<br />
cabeça da Igreja, e ouve que o recém-nascido, morto sem batismo, para sempre está perdido.<br />
Ouvindo a um tirano, desejoso de forjar uma mística que lhe sustente o despotismo, esse,<br />
em proveito próprio e arrogante, diz: <strong>–</strong> O rei é Deus, e nós outros, todos somos seus escravos. <strong>–</strong><br />
Mahomet é infalível, diz o muçulmano, ao que retruca o católico romano: não, o Papa é que o é.<br />
Ainda ecoou na lembrança do viajor do mundo, a fala primitiva, ouvida quando andara<br />
por ignotas terras: <strong>–</strong> É deus o fogo. Estátuas lhe façamos, de pau, e pedra, e bronze; curvemo-nos<br />
ante elas, em adoração, humildes; cultos lhes prestemos!<br />
Todavia, insistindo, repete a Estrela Flamejante: <strong>–</strong> conhecereis a Verdade, e ela vos<br />
libertará! Mas, que é a Verdade? Feita esta pergunta por Pilatos, Cristo emudeceu... porque se via<br />
à frente dum filosofastro, céptico, descrente de que a Verdade possa ser achada. Contudo, sem o<br />
conhecimento dela, jamais seremos livres.<br />
Sedento de saber, estudou o pensador as filosofias, as antigas todas, todas as modernas;<br />
atormentado pelo enigma do Ser, seu espírito esteve mergulhado nos problemas metafísicos, os da<br />
origem, os do fim da natureza, origem e fim das coisas. Até que se instala a dúvida terrível, e com<br />
ela, desesperada dor. Noites indormidas, o cérebro em fogo, passa e repassa o fio da mente sua, na<br />
pedra milenar que é o enigma do Ser. E Fausto, encarando a caveira, diz-lhe:<br />
"Que me estás tu daí zombeteando,<br />
caveira despejada? Entendo a mofa:<br />
dizes que os teus miolos, quando os tinhas,<br />
também como hoje os meus, esfervilhavam;<br />
tudo era afadigarem-se às escuras<br />
em demanda da luz, que vivifica;<br />
por gosto erravas, mísero, qual erro,<br />
trás a verdade e em vão" 30<br />
e, noutro lugar:<br />
"Ao cabo de escrutar co'o mais ansioso estudo<br />
30 Goethe, Fausto, Clássicos Jackson, XV, 44<br />
30
filosofia, e foro, e medicina, e tudo<br />
até a t<strong>eo</strong>logia... encontro-me qual dantes;<br />
em nada me risquei do rol dos ignorantes.<br />
"Mestre em artes me chamo; inculco-me Doutor;<br />
e em dez anos vai já que, intrépido impostor,<br />
aí trago em roda viva um bando de crendeiros,<br />
meus alunos... de nada, e ignaros verdadeiros.<br />
"O que só liquidei depois de tanta lida,<br />
foi que a humana insciência é lei nunca infringida.<br />
"Que frenesi! Sei mais, sei mais, isso é verdade,<br />
do que toda essa récua inchada de vaidade:<br />
lentes e bacharéis, padres e escrevedores.<br />
Já me não fazem mossa escrúpulos, terrores<br />
De diabos e inferno, atribulados sonhos<br />
E martírio sem fim dos ânimos bisonhos.<br />
"Mas, com te suplantar, fatal credulidade,<br />
que bens reais lucrei? Gozo eu felicidade?<br />
Ah! nem a de iludir-me e crer-me sábio.<br />
Sei que finjo espalhar luz, e nunca a espalhei<br />
Que dos maus faça bons, ou torne os bons melhores;<br />
Antes faço os bons maus, e os maus ainda piores.<br />
Lucro, sequer, eu próprio? Ambiciono opulência,<br />
E vivi pobre, quase à beira da indigência.<br />
Cobiço distinguir-me, enobrecer-me, e vou-me<br />
Coa vil plebe confuso, à espera em vão de um nome.<br />
"E chama-se isto vida! Os próprios cães da rua<br />
não quereriam dar em troco desta a sua" 31 .<br />
Perguntando o rei Midas ao capro e calvo semideus Sileno, qual o melhor destino de um<br />
homem, este frígio semideus, inventor da flauta, gorducho, baixo e de orelhas suínas, lhe reponde:<br />
"Miserável raça de um dia, filhos do acidente e da aflição, por que me forçais a dizer o que bom<br />
fora não fosse dito? O melhor dos fados é inacessível <strong>–</strong> não nascer, não ser. Depois, o melhor fado<br />
é morrer cedo" 32 .<br />
E o sábio Salomão concluiu ser melhor o dia da morte que o do nascimento (Ecl 7, 1)...<br />
Deste modo, todas as pretensas revelações sobre que os homens fundamentaram suas<br />
crenças, sofrem abalos terríveis, terríveis metamorfoses... O pensador desolado, em cujo rosto a<br />
reflexão arou profundos sulcos, sente-se tremer. Viu o pai, a mãe, a mulher amada ou o filho<br />
morrerem; assistiu-lhes a agonia longa, penosa, e por fim, o último suspiro; depois a algidez das<br />
pernas, dos braços e das mãos com os dedos entrelaçados sobre o peito. A vida se quedou no<br />
Nada. Qual é, logo, a realidade de sua esperança? Acaso a morte é o fim? Ó dúvida terrível!<br />
E sacudindo a cabeça pendente, murmura o pensador: verdadeiramente, a ignorância e a<br />
dor são as companheiras inseparáveis do homem!...<br />
Curvado ao peso da dor, de alma arrasada, vê desfilar por sua memória toda a<br />
humanidade no espaço e no tempo. Escuta, como ao vivo, a voz da despótica intolerância: <strong>–</strong> Que<br />
todo inimigo seja sacrificado ao altar de Baal! Que todo budista seja queimado vivo! Matemos os<br />
muçulmanos! tal o manda, tal o quer Deus! Os negros foram criados para servir aos brancos;<br />
sejam eles, pois, escravos! Trucidemos os brancos, dizem os de cor! Morte a Sócrates, sentenciam<br />
os juizes gregos! Morte a Cristo! crucifica-o, brada a turba enfurecida, açulada pelos sacerdotes, e<br />
31 Goethe, Fausto, Clássicos Jackson, XV, 27 - 28<br />
32 Will Durant, História da Filosofia, 389<br />
31
sequiosa de sangue! Aquele que não crer em Cristo, seja anatematizado, exclama o jesuíta! ao<br />
fogo com ele! Anátema sobre todo o que acreditar em Deus, diz, por fim, o comunismo<br />
materialista e ateu.<br />
Onde, pois, a verdade, aquela que me libertará? Exclama o pensador, à meia voz, como a<br />
pensar alto. Não quero o cristianismo que é a verdade de Cristo posta ao serviço e interesses dos<br />
homens, mas a verdade pura, do modo como, em palavras, lhe saiu dos lábios.<br />
Ora bem: o enigma do Ser, tal como me atormenta agora, azucrinou também os grandes<br />
do passado. No entanto eles, em vez de, como eu, perderem tempo com lamúrias, lançaram-se ao<br />
trabalho, aos estudos, pelo que se tornaram intrépidos naturalistas e, sob as aparências mais ou<br />
menos sinceras da alquimia, promoveram pesquisas científicas por meio da observação. Sob o<br />
pretexto da medicina, percorreram, durante dois séculos, todo o ocidente da Europa,<br />
recolhendo elementos que outros deveriam fazer frutificar, para refundir o método científico.<br />
Inúmeros livros foram escritos pró e contra eles. É um episódio da história que me cumpre<br />
cuidadosamente conhecer, pois o que busca a liberdade, tem de, primeiro, descobrir a verdade,<br />
uma vez que só ela me libertará. A exemplo deles, cumpre-me ser livre-pensador, como o foram<br />
eles nos séculos XV e XVI, eles, os audaciosos defensores da ciência natural, tal qual como<br />
Jesus foi o livre pensador da moral. Ninguém, como ele, pregou resolutamente a moral ideal,<br />
fundada sobre o sentimento, a única possível naqueles tempos; ninguém feriu com mais rigor e<br />
sucesso a hipocrisia e a tirania sacerdotais.<br />
A doutrina toda sentimental de Jesus repousa na intuição de Deus, como Providência, e<br />
na alma humana imortal! A antiga "Associação de Pedreiros" sempre proclamou os mesmos<br />
princípios, mas com o corretivo <strong>–</strong> LIBERDADE DE ESPÍRITO e OBRIGAÇÃO DO<br />
TRABALHO, isto é, com a indagação da VERDADE. Identificando-se à obra "dos Bons<br />
Pastores", a "Associação de Pedreiros" proclamou o estudo da Natureza, como base de todo o<br />
progresso, porém, com este aditivo: A Natureza não está somente na matéria, mas também nas<br />
leis morais, cuja sede é nossa consciência e cuja realidade está demonstrada pela formação da<br />
sociedade humana, tal como as leis físicas são demonstradas pela existência dos fenômenos<br />
físicos. A "Associação de Pedreiros", como Jesus, empenha-se em aproveitar o homem em seus<br />
sentimentos, agindo sobre sua conduta, seus costumes, predispondo-os às boas ações e à<br />
Virtude.<br />
Não adotando para si mesma, determinada crença, a "Associação" considera todas elas<br />
como transitórias e subordinadas aos lentos progressos da razão humana. Fiel ao único<br />
princípio da liberdade e do trabalho, a "Associação" pode tirar de determinada época da<br />
história, verdades parcialmente descobertas; pode conservar-lhes o sentido exato, repudiando<br />
seus maus elementos ou, melhor, seus abusos, por verdades mais completas.<br />
É assim que a "Associação" tem glorificado a Fé, a Esperança e a Caridade. Sem<br />
prejuízo, porém, tem repelido a Fé pela Ciência; tem repudiado quimeras com as quais o<br />
homem infante embalava sua imaginação, e, até a Caridade, quando orgulhosamente revestida<br />
da forma de esmola. Jesus falava, de acordo com as idéias de seu tempo, da Fé e da Esperança<br />
que ele pregou. Sua mais importante obra resume-se em um vocábulo: Amor. Para ele a<br />
Bondade, a Tolerância e o Amor tornavam os homens iguais. Não poucas vezes sua palavra fez<br />
entrever essa igualdade, como correspondente ao direito, pois a Justiça de não fazer aos outros o<br />
que não queremos que se nos façam, deveria transformar-se em Caridade, que é a sentença na sua<br />
forma positiva de fazer aos outros o que queremos que nos façam, tal, sua única finalidade.<br />
Cumpre, pois, ao obreiro procurar a Verdade em sua sombra profunda! Esta é a voz do<br />
Trabalho e da Liberdade. Assim se conhecerá a Lei que governa o mundo!<br />
Que motivo leva os pedreiros-pastores a se reunirem? A pedra angular, a pedra de<br />
esquina do edifício social foi levantada num madeiro, e a lançada de Longuinhos abriu-lhe o lado<br />
de que saíram sangue e água. A Pedra Cúbica verte sangue e água! Por que aconteceu isso?<br />
Porque se perdeu a Verdade no prístino passado! Como, pois, se poderá reencontrá-la? Pela<br />
32
Paciência, pela Coragem e pelo Amor. Não só por estas virtudes, senão também pela Fé, pela<br />
Esperança e pela Caridade.<br />
Armados da prudência, saíram os pedreiros-pastores pelo mundo de norte a sul, de oriente<br />
a ocidente! Interroguem os homens, todas as religiões, as filosofias todas, todos os monumentos;<br />
percorram a Terra inteira; interroguem homens e coisas. Que a prudência os guie.<br />
E saindo eles, aconteceu verificarem estar extinta a Fé, a Caridade extinta. Notaram que<br />
os que se propuseram a reerguer a Humanidade foram mortos pelos homens cegos pela<br />
ignorância. Aquele que disse: "Sede uma Família de <strong>Irmãos</strong>", não foi compreendido pelos<br />
homens que o mataram. Aquele que disse: "Não há mais escravos", os homens, sem o<br />
compreenderem, mataram! Aquele que disse: "Procurai e encontrareis", não foi compreendido<br />
pelos homens que o condenaram à morte! Aquele que expulsou os mercadores do Templo, foi<br />
privado da existência pelos homens! Aquele que denunciou a mentira dos Fariseus, os homens<br />
não o escutaram e o condenaram à morte! Aquele, em fim, que afrontou a tirania dos grandes e<br />
o fanatismo das multidões, foi insultado e morto pelos homens! Só resta a Esperança, e<br />
desgraçado de aquele que a extinguir!<br />
Poder-se-ia percorrer as Câmaras dos Suplícios, dos castigos que, em várias épocas, a<br />
sociedade tem imposto aos que se mostraram esquecidos ou indiferentes às leis supremas do<br />
Amor; aos que, sem escrúpulo, lançaram sobre outrem as torturas dos sofrimentos físicos e as<br />
angústias do desespero moral e material, como os espantosos tormentos das prisões, das pocilgas<br />
dos escravos, dos antros sombrios, úmidos e infectos das masmorras sobre que os poderosos<br />
edificaram seus imponentes castelos; aos que, olvidados dos eflúvios da Fraternidade, asfixiaram<br />
os mais nobres sentimentos altruístas e da caridade, como o arcebispo Rogério Ubaldini que<br />
trancafiou na Torre da Fome o conde Ugolino com seus dois filhos e dois netos, fazendo-os<br />
perecer. Assim, embora não se tenha diante dos olhos as tristes conseqüências do esquecimento<br />
criminoso da solidariedade humana, alimente sempre o pedreiro-pastor a Esperança, que sua Fé e<br />
sua Esperança sejam as suas mais puras alegrias.<br />
E neste momento, depois de os pedreiros-pastores terem ouvido a maldade dos homens,<br />
façam a si mesmos a promessa de jamais se esquecer desses sublimes sentimentos, dizendo, cada<br />
um, em sincero e profundo recolhimento espiritual: "Eu hei de ser bom, caridoso e justo. Jamais<br />
causarei mal a meu semelhante"!<br />
Depois de tantas privações, tantas dores, de interrogar os homens e as coisas, acaso se<br />
encontrou a Verdade? Acaso a encontrou quem veio a Judéia, Nazaré, Rafael e Judá? Sim, que<br />
Judéia, Nazaré, Rafael e Judá formam a sigla INRI que, posto no tope da Cruz, também<br />
significava, para os antigos: Igne Natura Renovatur Integra! (O fogo renova a Natureza inteira).<br />
Na origem do movimento, da vida e do pensamento, isto é, de todos os fenômenos<br />
naturais, os Árias, nossos antepassados, colocavam uma substância que não era uma abstração,<br />
mas uma força real e visível <strong>–</strong> o Fogo. Primitivamente, o fogo terrestre, o Agni do sacrifício;<br />
depois, o fogo atmosférico ou o relâmpago, e por fim, o fogo celeste, representado pelo Sol. O<br />
fogo concebido, a princípio, como personalidade divina, somente diferençando do homem pela<br />
extensão maravilhosa de suas faculdades, tornou-se o símbolo do Ser Único, a fonte e cúpula do<br />
Universo.<br />
Pois que quando todas as virtudes foram extintas, e todas as luzes se apagaram, restou<br />
ainda uma <strong>–</strong> a Esperança. Que, logo, esperança pode acalentar o viajor obscuro perdido nas<br />
trevas? Não outra, senão a de produzir a centelha que fará renascer a Luz, o Calor e a Vida. E onde<br />
se oculta essa centelha? No começo dos tempos ela esteve na floresta sombria, onde um raio<br />
elétrico, caído do céu, incendiou um tronco seco. Hoje ela está noutro bosque, o das acácias, onde<br />
se ergue uma Cruz com uma Rosa nela.<br />
Uns disseram que a centelha gerou-se a si mesma pelo atrito primordial, que este foi o<br />
modo também de o primitivo produzir o fogo. Mas, que gerou o movimento inicial para que se<br />
produzisse o atrito? Outros chamam-na Agni ou Indra ou Varuna; outros, ainda, a denominam<br />
33
Ormuzd, Odin, Osiris, Iahved. Nada, porém, sobre ela se poderá saber, porque temerária é a<br />
interpretação do mortal que pretenda impor um nome ao Grande Arquiteto do Universo!<br />
Vinde, ó vós, primeira e segunda linha do Ternário! Vinde! Reavivemos a antiga Idéia!<br />
Salve, ó tu, filho celeste, no tríplice nascimento que Prometeu trouxe aos homens no oco dum<br />
cajado! Filho do homem, tu, a quem os antigos, nossos antepassados, adoravam sob o nome de<br />
Agni, e veneravam sob a figura dum cordeiro, aquele que pôs termo às impurezas do mundo!<br />
Salve, ó tu, revelador do céu e da terra! Vencedor dos monstros da tempestade, da noite antiga e<br />
do desolado inverno! Ó tu que desvendas as maravilhas do Templo, porque, no momento mesmo<br />
em que expiravas num madeiro infame, o véu do Templo rasgou-se de alto abaixo! Ó tu que<br />
acendes, por sobre as nossas cabeças, os lampadários das estrelas! Ó tu que nos ofuscas nos<br />
ziguezagueantes coriscos, nos relâmpagos, e que nos aqueces no aconchego do lar com os doces<br />
eflúvios do calor! Ó tu que dás aos homens o meio de dominar a natureza, fazendo-os, guardadas<br />
as devidas proporções, semelhantes a Deus! Tais filhos, ó Pai, procurando compreender-te, deramte<br />
o atributo de Criador supremo, estando, desde toda a eternidade como germe e potência de tudo<br />
o que criaste! Teu símbolo, ante nossos olhos, o Atarvan da antiga raça ariana, o princípio de todas<br />
as combinações que na Natureza se operam, na essência do movimento, na vital essência,<br />
fundamento do princípio de Razão que esclarece os homens. Aumenta, ante nós, o teu vigor e<br />
brilho! Derrama ao longe, ao largo, teus raios fulgurantes! Sobe ao céu, ao Céu dos céus donde<br />
partiste um dia, ó mediador dos mundos, para purificar as consciências nossas! E quando<br />
terminado estiver nosso dever na Terra, queiras tu acolher o que de nós subir como sutil porção<br />
imorredoura, levando-a daqui, pondo-a a coberto da corrupção que é o termo final das coisas neste<br />
mundo!<br />
Ó Jesus Nazareno Rei dos Judeus! Ou, de outro modo: Igne Natura Renovatur Integra!<br />
Que esta chama ilumine o mundo como o esplendor da ciência! Que ela envolva a Humanidade<br />
inteira! Que o Amor engendre fecundas energias!<br />
Agora conservai, vós que andais pelo mundo, conservai para a Grande Obra, este<br />
candelabro doravante fecundo. Igne Natura Renovatur Integra!<br />
Deste modo se emprega a sigla INRI em seu duplo sentido: referindo-se a Jesus e à<br />
máxima hermética; à doutrina moral e democrática de Jesus, combinada com a obra especial do<br />
que procura a ciência real.<br />
Introduzidos todos neste tabernáculo iluminado, é hora de ser enunciado que foi achada a<br />
Verdade perdida no prístino do tempo, quando o puro Amor se transmudou no egoísmo. Esta<br />
Congregação de pedreiros-pastores não quer afirmar que a Verdade está achada na sua totalidade e<br />
inteireza. Não. A Verdade inteira ainda não foi descoberta. Depois de termos andado errantes no<br />
meio dos homens, e de haver consultado os monumentos todos, todas as tradições, os livros, as<br />
crenças, as opiniões de todos, continuamos a ignorar a Verdade Eterna. Todavia, achamos o<br />
caminho que dela mais nos aproxima, até o ponto em que a humana inteligência pode<br />
compreendê-la. Foi achado o método; é a direta observação da natureza, o princípio científico; é<br />
autoridade da consciência fundamentada na moral de Jesus. Se, para Francis Bacon e outros, a<br />
observação exata cria a ciência, para Cristo, a consciência executa, sobre si mesma, um trabalho<br />
de revelação, embora lento, seguro. Imprudentemente a ignorância sacerdotal fez mau uso do<br />
nome de Jesus. Depois da sua morte, não lhe faltaram defensores. Em todos os tempos os cristãos<br />
proclamaram, em nome de Jesus, que entre a Consciência e a Verdade não há ponto intermediário,<br />
que ninguém tem o direito de sentenciar: creia nisto! ou não creia naquilo! Liberdade de<br />
consciência, eis o que se perdeu outrora e hoje está achada. Até onde tal preceito conduzirá o<br />
mundo? Ninguém o sabe!<br />
O túmulo vazio de Jesus não é a interpretação sacerdotal da ressurreição do corpo; é o<br />
símbolo da ressurreição do pensamento e do espírito. Assim, a vida renasce sem parar, e a ciência<br />
aliada à liberdade deve despertar o nosso ardor mais vivo; elas nos fazem gozar a única felicidade<br />
deixada ao homem nas agonias de sua ignorância sobre seu próprio destino.<br />
34
<strong>Entre</strong> nós há quem afirme ser desnecessária a Esperança, enquanto outros atendem, por<br />
diversos modos, sua sede de imortalidade. O primeiro caminho seguem-no os jovens, enquanto<br />
dentre os velhos, muitos há que não se resignam ao ver-se exaustos pela obra da morte que,<br />
lentamente, lhes vem enfraquecendo as forças, antes do golpe derradeiro e fatal; tais velhos, em<br />
vez de renunciarem, sentem aumentar em si os atrativos da vida. No entanto, feliz de aquele que,<br />
fiel ao dever sincero a si mesmo, espera com serenidade.<br />
<strong>Entre</strong>tanto, há ainda um outro ensinamento que é a defesa do direito, até pelas armas, se<br />
necessário. Durante os sombrios anos da Idade Média, a Cavalaria representou a reivindicação do<br />
direito individual, a defesa do fraco e desvalido, o justo orgulho da justiça, o protesto frontal<br />
contra a arbitrariedade.<br />
Nesses tempos, em que tantos preceitos predominaram, pareceu ao homem que tinha de<br />
fazer a divisão do trabalho, e apareceram as corporações. Fora esta divisão, ainda a uns incumbia a<br />
idéia científica, a outros, corrigir os costumes, e ainda a outros cumpria conservar a energia moral.<br />
Assim, o homem devia estar munido de três valores: ciência, coragem e amor, e isto, para trazer o<br />
inimigo à razão, e chegar a uma solução pacífica sempre que possível, e violenta, quando<br />
necessária. Deste modo, ao naturalista laborioso, ao meigo apóstolo da tolerância, a maçonaria<br />
supriu de recursos, armando-lhe o braço com a espada.<br />
Armado dos recursos intelectuais da ciência, e dos morais da coragem e do amor, e ainda<br />
da espada representativa da justiça, o homem viu cair dos próprios olhos o véu negro, deixando-o,<br />
para sempre, ver a luz. Assim se fez a aliança dos bons, todos ligados pela fraternidade. Desde<br />
então, o fraco e o oprimido encontraram nesse homem iluminado o mais resoluto defensor.<br />
A inteligência, então, se pôs a aprender as leis que governam o mundo, e a coragem e o<br />
amor se colocaram ao serviço da pátria livrando-a da tirania. Para impedir a extinção das luzes que<br />
mais de uma vez se apagaram na história, ao sopro da tirania, o homem bom teve, desde então, a<br />
ciência e o direito e, se preciso, a sua espada.<br />
Há uma virtude, certamente, o ponto de partida de todas as demais, e sem a qual a<br />
felicidade e a justiça seriam bem difíceis, e que se encontra no fundo de todas as máximas: a<br />
bondade. Mais que o gênio, a bondade mede a elevação da alma; mais que a beleza, dá ao rosto<br />
um encanto indizível. Ela, a bondade, ilumina e se erradia do rosto do justo. É através dela que<br />
contribuímos para a felicidade da família, esposa e filhos; é por ela que podemos levar ao infeliz,<br />
ao desgraçado, um socorro eficaz. Sem ela, estaríamos entregues a sentimentos tristes, pessimistas<br />
e odiosos, que, em tantos homens, explicam suas atitudes de intolerância e de hostilidade à<br />
instituições sociais. Toda a doutrina de Jesus ressumbra bondade. Na cordialidade para com os<br />
outros, fica suposto o contentamento interior. É por isso que a Congregação dos Bons exerce uma<br />
influência tão eficaz sobre os que a freqüentam com amor. Encontram eles, aí, nutrição para a<br />
inteligência, ocasião de trabalho para o pensamento, instrumento de progresso moral, e, como<br />
conseqüência, a satisfação do dever cumprido. Aí também se encontra a amizade que vai até o<br />
sacrifício.<br />
Há congregados para os quais são estranhos esses sentimentos. Para muitos, a<br />
Congregação é instrumento utilizável para fins ambiciosos e, daí, abandonarem-na,<br />
imediatamente, preferindo esmolarem favores em outras esferas, a serem os primeiros entre<br />
amigos fiéis. Outros há que se desencorajam porque não compreendem a organização cujos<br />
princípios não se dão ao trabalho de estudar; ou porque desejam coisas impossíveis; ou porque não<br />
encontram a quimera que sonharam; ou porque pensam que os outros fazem muito pouco, quando,<br />
na verdade, eles próprios nada fazem. Esses ambiciosos, não encontrando guarida para suas<br />
ambições, afastam-se, ou são expulsos.<br />
Os verdadeiros congregados são os que amam a Congregação dos Obreiros do Bem; os<br />
que gostam de manejar a trolha da tolerância, fornecendo sua quota de trabalho na construção do<br />
edifício social. Estes encontram nos irmãos o que de melhor eles têm. Esses dão a bondade de seus<br />
corações, e sentem o prazer inefável de um sincero aperto de mão, de um olhar de afeto, e vê em<br />
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cada rosto o seu próprio a irradiar simpatia, cálida amizade cujo valor só se conhece quando, nos<br />
dias maus, se lembra de haver gozado.<br />
Animados destes sublimes sentimentos vão-se à ceia que é de pão e vinho como a de<br />
Jesus. Ao menos uma vez por ano, hão de reunir-se, vindos de todos os quadrantes da Terra. Ali<br />
cada um dá a conta de seus trabalhos, ouve e aprende o que outros hajam aprendido, tomam parte<br />
no repasto, e retornam às suas origens.<br />
O Grande Chefe da Congregação então diz:<br />
<strong>–</strong> A nutrição que vamos tomar é o corpo e o sangue de nós mesmos, em que tais<br />
alimentos se hão de converter. Que ela, pois, aumente em todos nós as forças vitais; que sustente,<br />
em nosso cérebro, a nossa inteligência para que seja sã e sincera, a fim de que possamos discernir<br />
a verdade do erro, e esclarecer nossas aspirações diante de Deus. Comamos e demos de comer aos<br />
famintos; amemo-nos e frutifiquemos. Bebamos e demos de beber aos sedentos; aprendamos e<br />
ensinemos.<br />
E feita a coleta, e recolhidos os cajados, cada um retorna ao seu assento, para ouvir a<br />
eloqüência do Grande Orador que, em se levantando no seu lugar, principiou assim:<br />
*<br />
* *<br />
Grande Pastor, chefe desta augusta assembléia, meus pares.<br />
Depois de percorrer o mundo todo, de repensar os pensamentos de quantos nos<br />
antecederam, aqui nos reunimos para, pela discussão fraterna, acharmos a Verdade perdida no<br />
prístino do tempo, quando o amor, em se fechando sobre si mesmo, se transformou no egoísmo.<br />
A Natureza toda, todo o Universo, teve sua gênese no Caos; e cuidando nós que tudo se<br />
nos mostrava em positivo, não podíamos atinar que um Deus Bondoso tivesse criado tanto mal,<br />
feiura tanta, tanta miséria e dor. O mundo primitivo que cuidáramos fosse o real e verdadeiro, hoje<br />
se nos mostra como num negativo fotográfico, em que tudo tem de ser interpretado pelo avesso.<br />
Onde, no negativo, se nos diz claridade, é para entendermos escuridão, e onde, trevas, é para<br />
entendermos luz. Tal, também numa fôrma: onde ele nos diz reentrância, é para entendermos<br />
saliência, e vice-versa.<br />
Interpretando assim o mundo pelo seu reverso, onde ele nos diz tirania, escravidão, temos<br />
de pôr, no lugar, democracia, liberdade; onde, prepotência arbitrária, temos de substituir por<br />
liberalismo, por igualdade, por justiça. Em lugar da obediência à vontade caprichosa e absoluta de<br />
um chefe, cumpre-nos lutar para que se imponha o Direito, a Lei. Onde a intolerância fez jorrar o<br />
sangue dos justos, nós, tendo na mão a trolha, havemos de conciliar as mais contrárias opiniões.<br />
Daí que nossa confraria é o mosaico da fraternidade universal, com orlas denteadas a significar a<br />
irradiação dessa igualdade. Onde a Inquisição intolerante acendeu suas fogueiras, nós pusemos<br />
archotes cujos fogos não são para destruir, mas para que as luzes deles sirvam para nos clarear os<br />
caminhos.<br />
Não somos ainda detentores da Verdade inteira, porém, uma certeza nos anima o coração,<br />
e nos encoraja a prosseguir: essa certeza é a liberdade. Sem a liberdade de pensamento, não<br />
podemos especular sobre a natureza, estudá-la, e descobrir-lhe as leis. Sem a liberdade de ação<br />
estaremos impedidos de fazer as experiências necessárias ao aprendizado da ciência, pelo que<br />
provocamos a natureza, fazendo-a repetir mil vezes seus fenômenos diante de nós. Sem a<br />
liberdade, jamais escaparemos da roda perpétua que nos mói sempre, e nos faz dizer: a ignorância<br />
e a dor são as companheiras do homem. A liberdade, pois, é o instrumento que nos permitirá<br />
inverter a ignorância no saber, e a dor na alegria. Graças a ela, desvirados, nós, de egoístas em<br />
amorosos, nossa ação benfazeja se espalhará pela Terra, o nosso exemplo será seguido, e o mundo,<br />
então, ir-se-á, pouco a pouco, se negando de feio e mau, até se cumprir o que sempre pedimos a<br />
Deus no Pai-Nosso: Venha o teu Reino! Venha o teu Reino à Terra que habitamos, e que Cristo<br />
não tenha mais de dizer que seu Reino não é deste mundo.<br />
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Pois que é, ó Grande Pastor, ó pares, o que é a Verdade? Hei-la! Cristo no-la deu nos<br />
exemplos da sua vida, e no-la declarou no seu Evangelho: a Verdade é o Amor. Porém, o amor<br />
coexiste com a liberdade, daí que não pode haver amor forçado, amor escravo; logo, a liberdade é<br />
o instrumento do amor, e é por ela que ele se efetiva. No entanto, para que haja liberdade, faz-se<br />
preciso a tolerância, pois como pode haver liberdade onde a intolerância tirânica acende fogueiras<br />
ou prende com grilhões? Logo, a tolerância é instrumento da liberdade. Amor, Liberdade,<br />
Tolerância, eis os três lados do Triângulo em cujo centro se vê escrita, com letras de ouro, a<br />
palavra VERDADE. Mas Cristo prometeu: conhecereis a Verdade; donde vem que a Verdade é<br />
objeto de conhecimento pelo qual se chega à sabedoria. E que é a sabedoria? Ora, vede:<br />
Aparecendo Deus a Salomão, disse-lhe: <strong>–</strong> Que queres que te dê? <strong>–</strong> Dá-me, Senhor, um<br />
coração reto e justo, para que eu possa julgar este teu grande povo. (II Cron 1, 7 a 12). Então lhe<br />
torna Deus: <strong>–</strong> já que me não pediste riqueza, nem honra, nem glória, nem muitos anos de vida,<br />
nem que te ponha nas mãos teus inimigos, dar-te-ei o que me pedes, e serás o mais sábio dos<br />
homens, como nunca houve outro antes, nem outro haverá depois de ti.<br />
Salomão pediu um coração reto e justo, e Deus lhe promete conceder o que almeja,<br />
fazendo-o sábio. Logo, ter coração reto e justo é ser sábio. Ora, ser reto e justo de coração é ser<br />
virtuoso; segue-se, portanto, que sabedoria é virtude; mas a virtude suprema é o amor de que<br />
todas as demais virtudes decorrem. Consequentemente, sabedoria é amor.<br />
Como? Acaso a virtude não é o sentimento que nos induz ao bem? E sendo sentimento,<br />
não é próprio do coração? Sim, é; que o coração amoroso é sábio e justo. No próprio pedido de<br />
Salomão vai o que o pr<strong>eo</strong>cupa: "para que eu possa julgar este teu grande povo". Para o povo se<br />
dirigia o afeto de Salomão, e em favor desse povo quer ter coração reto e justo. Não pediu riqueza,<br />
porque o povo vale mais que todas as riquezas, e é a fonte delas; não pediu honras, porque o bem<br />
público vale mais que todas as honras. Não pediu glória, porque a glória é fumo, ilusão, vaidade, e<br />
o bem-estar do povo é a realidade. Não pediu longos anos de vida, porque o mesmo Salomão<br />
havia de dizer que melhor é o dia da morte que o do nascimento. Não pediu que lhe pusesse Deus<br />
nas mãos os inimigos, porque o coração reto e justo pode converter os mais ferrenhos inimigos em<br />
amigos fiéis, como, de fato, sucedeu durante todo o governo do rei sábio. E realizando o bem-estar<br />
do povo, veio a Salomão a glória, veio a honra, veio a riqueza para todos, veio a paz, e até os dias<br />
longos vieram para si.<br />
E que tudo isto promane dum coração reto e justo? De um coração sábio? Acaso a<br />
sabedoria não é própria da cabeça? Acompanhai-me neste raciocínio:<br />
Todo o amor quer realizar-se. Este querer do amor impele o amante à ação. A ação<br />
encontra obstáculos, resistências, dificuldades, e, para vencê-los, o indivíduo se lança ao estudo<br />
que traz o saber que vence as dificuldades que realiza a vontade que satisfaz o amor. Eis que o<br />
amor está na raiz do conhecimento, ou, que o próprio conhecimento nasce do amor. Quem a nada<br />
ama, por nada se esforça e nada aprende. Se não houver o amor que quer algo, no começo, não<br />
haverá o conhecimento, no fim.<br />
E quando o homem, já por isto sábio, descobre que o conhecimento é a chave que lhe<br />
propicia a realização de todos os seus bons propósitos, então se lança, sequioso, a adquirir<br />
conhecimentos, ainda que não para aplicá-lo no momento, do mesmo modo como o homem<br />
prudente se põe a economizar o dinheiro, para tê-lo mais tarde, quando as precisões surgirem. De<br />
igual modo, o homem sábio cura de adquirir conhecimentos que lhe permitam a solução de<br />
problemas futuros, problemas próprios ou alheios. Este procurar o conhecimento se torna num<br />
hábito que é como uma segunda natureza, e o sábio sente indizível gozo nesta conquista do saber.<br />
O amor quer, então, diretamente, o conhecimento, por puro diletantismo, e não mais por força,<br />
como fora no começo. Este amor do conhecimento, este amor pelo saber, é o que se chama<br />
filosofia. O filósofo é o que ama o saber, e eis que o princípio e o fim da cadeia se unem no<br />
circuito de auto-crescimento. O amor quer, então, o saber, para iluminar-se; e este querer move a<br />
ação diletante de buscar o saber. Amor no começo, e sabedoria no fim, porque o amor é sabedoria,<br />
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ou a sabedoria é amor. Daí que, tendo pedido Salomão um coração reto e justo, Deus lhe promete<br />
satisfazer o anseio, fazendo-o o mais sábio dos homens que quantos vieram antes, e viriam depois.<br />
E pondo o homem sua mente a serviço do saber, observando a natureza em torno,<br />
olhando o mundo, descobre que, neste, o amor primeiro se mostra no negativo, no egoísmo pai da<br />
ignorância de que todos os demais vícios decorrem. Endireitar-se a si mesmo primeiro, corrigindo<br />
os erros, os vícios, eis o primeiro passo no trabalho de quem busca o saber; depois, quando estiver<br />
no seu alcance, tem de lutar pela melhoria dos demais, no seu contorno, porque o amor implica<br />
sempre na existência de um objeto para o qual se dirige, sobre o qual recai, e o próprio saber que<br />
se ama, ama-se, para o aplicar, sendo ele, o amor do saber, um meio, e não um fim. O que<br />
amealha conhecimentos sem cessar, sem os distribuir, assemelha-se ao avarento que sempre se vê<br />
pobre, padecendo insaciáveis sede e fome; sede de Tântalo, e fome de Ugolino. O fim é o outro, é<br />
o objeto amado, pelo que Salomão estava certo ao pedir: <strong>–</strong> Dá-me, Senhor, a sabedoria, ou seja,<br />
um coração reto e justo... para que fim? <strong>–</strong> para que possa julgar este teu grande povo.<br />
Todavia, cuido que estais vós, aí, a discorrer: de começo esse orador declarou que nosso<br />
mundo é invertido e mau, por efeito do egoísmo em que se inverteu o amor sábio e bom. Como,<br />
agora, só nos fala do amor, silenciando o egoísmo que é sobre que repousa a natureza e o mundo?<br />
Grave é a vossa ponderação, e para respondê-la, peço continueis a honrar-me com vossa<br />
preciosa atenção:<br />
O egoísmo é o amor pelo avesso; e como o mundo primitivo se fundava nele, no<br />
egoísmo, a natureza se nos mostrava toda egoísta, toda invertida no contrário daquele mundo de<br />
Cristo, que não é o nosso. O egoísmo, com sede nos indivíduos, do vegetal ao homem, também<br />
quer, com uma vontade que se lança à ação; a ação da vontade também encontra obstáculos,<br />
resistências, obrigando o agente a conhecer. Quer-se, então, saber, para vencer as resistências,<br />
realizando a vontade com sede no egoísta. O egoísta logo descobre que, para ser forte, precisa<br />
associar-se a outros. Descobre que, para viver em sociedade, precisa reconhecer e respeitar o<br />
limite do egoísmo alheio. Nasce o direito, a justiça que é o respeito pelo limite, não o transpondo,<br />
como nunca transpõe o Sol o trópicos, e como a circunferência é eqüidistante do centro. Transpor<br />
esse limite para tirar um proveito do outro, contra a vontade desse outro, nisso se cifra a injustiça e<br />
o mal. A sociedade, então, aceita esta verdade meridiana, e a impõe pela força aos recalcitrantes.<br />
Assim nasce o Estado que é o órgão aparelhado a executar a justiça. Deste modo, todo o mal que o<br />
recalcitrante fizer aos outros, reverte-se, de imediato, em prejuízo do próprio infrator da lei. Pela<br />
recíproca, onde não alcança a lei, a sabedoria ética ensina que todo o bem que se fizer aos outros,<br />
enriquece o meio social em que se vive, redundando em proveito para todos. Forte desta<br />
consciência, passa o sábio a fazer o bem que pode ao próximo, porque, a longo prazo, fazer aos<br />
outros, é fazer a si.<br />
E há mais isto: quando nos ocupamos de distinguir a diferença entre o eu e o meu,<br />
verificamos que o eu e o meu se confundem, e tanto que costumamos dizer meu corpo, meu<br />
cérebro, meus pensamentos, meu espírito, minha alma, e até meu eu. Ora, se tudo é o meu, onde<br />
se situa o eu? Pois o eu e o meu se confundem. Tire-se a um homem tudo o que ele chama seu,<br />
até seu corpo pela morte, até seu espírito, sua alma, pelo hipotético aniquilamento, e ver-se-á que<br />
se reduz a nada.<br />
Então o egoísmo se dilata por uma zona de meus cada vez maior, a começar pelo corpo,<br />
estendendo-se, depois, pela esposa, pelos filhos, pelos pais, pela família, pelos amigos, pela<br />
confraria, pela sociedade, pela pátria, pela humanidade inteira. O pai dá o que pode à<br />
companheira, ao filho, à família, porque eles são seus, e dá aos seus. A abelha que morre pela<br />
colmeia, o herói pela pátria e o santo pela humanidade, morre cada um pelo seu. Neste egoísmo<br />
dilatado consiste a sabedoria que é também amor. Tal, o amor que em nosso mundo vemos,<br />
diferente daquele outro dos celículas, feito de puro altruísmo que, conforme a etimologia da<br />
palavra, vem de alter <strong>–</strong> outro, ou seja, o amor a partir do outro, e não, como o nosso, que é a partir<br />
do eu. Já se disse até do amigo íntimo, fiel, verdadeiro, que é o alter ego, o outro eu, porque a<br />
excelência da amizade não poderia ir além do máximo que consiste em considerar o outro como a<br />
38
si, e a partir de si. No céu há o altruísmo puro, amor sem metas, que é o sistema do outro, com a<br />
máxima super-evangélica, sentida e vivida, mas não expressa em código: ama ao próximo mais<br />
do que a ti mesmo. Em nosso mundo, podemos chegar ao egoísmo dilatado, ao sistema do eu que<br />
se expande, e a máxima é: ama ao próximo como a ti mesmo.<br />
O preceito de amar a Deus sobre todas as coisas, pressupõe que o próximo está entre elas,<br />
e é coisa. Isto é perfeitamente inteligível, mas não sensível, a menos que, se de entre as coisas, for<br />
excluído o sujeito para quem o mandamento é endereçado. Por que? Porque sendo o eu o ponto de<br />
partida e padrão de quaisquer amores, não pode o homem amar nem mesmo a Deus mais que a si.<br />
Amar a Deus mais do que a si mesmo, é preceito compreensível pela razão, e fácil de dizer,<br />
porém, inexecutável, visto como ninguém pode sentir tal amor por Deus... a menos que seja anjo,<br />
e viva o altruísmo puro, porque aí, então, o ponto de partida é o outro, e o maior Outro que existe<br />
é Deus. Esta impossibilidade se reforça com se saber que o amor tem um sujeito e um objeto.<br />
Quando o sujeito se ama a si mesmo, o amor é reflexivo; quando o amor recai sobre um objeto<br />
fora do sujeito, então é transitivo. O objeto do amor sempre existe: ou é o próprio sujeito que a si<br />
se ama, ou é um objeto amado exterior ao sujeito. Ora bem: quando este Objeto é Deus, o amor se<br />
dirige a um Ser indefinível, e se exaure na procura deste Objeto sem o alcançar. Então, se o amor<br />
se frustra por não atingir nunca o Objeto seu, porque infinito e vago, porque inacessível, como<br />
pode tal Objeto polarizar o amor do sujeito ao ponto de este sentir... não apenas dizer, mas,<br />
sentir... que ama a Deus mais do que a si mesmo? Se o ponto de partida do amor é o eu, nenhum<br />
amor pode ser maior do que aquele que o eu tem por si mesmo. Por esta razão, Deus não pode ser<br />
diretamente amado nem odiado, e a prece do santo e a maldição de Satanás, conquanto<br />
endereçadas a Deus, são interceptadas pelas mais altas criaturas. Quando o anjo mau se rebelou lá<br />
no empír<strong>eo</strong> contra Deus, foi contra as criaturas, contra o próximo, que moveu a sua ação. E<br />
atingindo seus irmãos, neles, ofendeu a Deus. Quando, pela recíproca, o santo espalha benefícios<br />
por amor entre seus irmãos, é a Deus que ama, neles, que outra forma não há de o homem amar a<br />
Deus. São João, também, é deste parecer, e por isso disse: "quem não ama a seu irmão a quem vê,<br />
como pode amar a Deus a quem não vê?" (I João 4, 20). Deste modo, o primeiro mandamento de<br />
Cristo, se aplicado ao homem, ao segundo se reduz.<br />
Conquanto o altruísmo puro dos celículas, e o egoísmo sábio ou dilatado tenham sentidos<br />
opostos, porque um se abre para a direita, e outro, para a esquerda, como ambos são abrir, o<br />
resultado é o mesmo que é o de promover a integração. E para provar minha tese, valho-me do<br />
Evangelho em que Jesus expôs sua doutrina vazando-a na linguagem do egoísta que é a que só<br />
entendemos. Diz ele ao moço rico: "vai, vende tudo o que tens, dá aos pobres, e terás um tesouro<br />
no céu". Quem dá aqui, para ter lá, não abre mão de nada: muda apenas a posse de lugar. Diz<br />
mais: "se perdoardes aos vossos inimigos, amontoareis brasas vivas sobre as cabeças deles". Deste<br />
modo, troca-se uma vingança ativa, próxima e iminente, por outra passiva e remota, qual seja a de<br />
esperar que o inimigo esteja, um dia, sob o fogo de brasas vivas. Quando deres, diz Cristo, faça-o,<br />
em segredo, de modo que não saiba tua mão esquerda o que fez a direita. E acrescenta: Esses que<br />
dão a toques de trombeta, com alarde, já receberam sua recompensa na fama que adquirem, no<br />
aplauso que compram com a esmola. E os que dão em segredo, em silêncio, como não recebem<br />
galardão nenhum aqui na Terra, fica subentendido: recebê-lo-ão no céu, que é o que interessa<br />
mais. Egoísta um, egoísta outro; apenas que o egoísmo dilatado age a longo prazo, pelo que fica<br />
tendo razão La Mettrie que dizia ser "a virtude o egoísmo munido de óculos de alcance". E<br />
Espinosa: "Ninguém jamais rejeitou o que julga bom, exceto se tem esperança de, com a rejeição,<br />
alcançar bem maior".<br />
A frase dar desinteressadamente significa apenas que não se espera retribuição nenhuma<br />
do beneficiado, nem mesmo a sua gratidão, nem outra qualquer vantagem terrena pela ação<br />
praticada. Mas isto não significa que não se tem esperança de receber recompensa nenhuma,<br />
alhures, pelo ato. Dar desinteressadamente, pode levar, também, oculto, o interesse de desenvolver<br />
a renúncia, a piedade; será, então, um exercício ascético que tem em vista tornar mais brando o<br />
coração, sufocando nele a desagradável sensação de perda que sofre todo aquele que distribui o<br />
39
seu, fora da sua zona de domínio. Age-se, então, como se houvera perdido algum bem, e, para o<br />
não sofrer, se o esquece. Que faça esta experiência fácil quem o desejar: pegue uma porção de<br />
dinheiro que doaria prazerosamente a um filho, e a dê para o primeiro mendigo que encontrar.<br />
Nem o "Deus lhe pague" do necessitado, ainda que sincero, será suficiente para desfazer, na alma<br />
do esmoler, a insofrível sensação de perda.<br />
Finalmente, diz Cristo: ama ao próximo como a ti mesmo, e, dizendo-o, faz o amor do<br />
próximo derivar-se do amor próprio que é o que cada um tem por si mesmo; e se houvesse um<br />
homem que a si não ame, esse homem hipotético, porque não existe, ficaria desobrigado de amar a<br />
outrem. Se Cristo pregara a anjos em exílio voluntário aqui na Terra, e com o propósito de<br />
preservá-los do aniquilamento certo... a que se acham expostos os desprendidos neste mundo<br />
egoísta e mau, teria de fundar sua doutrina no altruísmo puro, e, a partir do outro, e não, do eu,<br />
sentenciar: ama-te a ti, como a teu próximo. O próximo, neste caso, seria o ponto de partida,<br />
padrão, medida e referência do amor que cada anjo havia de ter por si mesmo. Porém, como<br />
pregava a homens dragontinos que só a si se amam, teve que alicerçar sua máxima no egoísmo,<br />
pondo o amor próprio de cada um, por fundamento do amor ao próximo.<br />
E quando Cristo manda Pedro meter a espada na bainha, acrescenta que quem com ferro<br />
fere, com ferro será ferido, e esta lei ética da reversibilidade do dano, se completa com a outra, a<br />
da responsabilidade proporcional que diz: a quem muito é dado, muito será exigido. A primeira<br />
lei ética, aqui considerada, é extensão da que vigora no mundo físico: toda ação corresponde a<br />
uma reação igual e contrária; a segunda lei ética encontra igualmente apoio na mecânica: em toda<br />
máquina, o trabalho produzido é proporcional à energia consumida. Se a máquina tem consumo<br />
interno muito grande, pelo que rende pouco, é substituída por outra que produza o máximo<br />
possível. Assim é que ninguém é inteligente e culto ou rico para si somente, pois tem contas a<br />
prestar; e se usufruir do bem próprio, olvidando os demais, é máquina improdutiva que precisa ser<br />
alijada do serviço. Negadas as condições que propiciaram ser o que se é, tudo pára, tudo se<br />
embota, tudo se apouca, tudo tende para nada. Era inteligente, e culto, e rico, e tudo isto empregou<br />
para saciar o egoísmo próprio, fechado sobre si mesmo? Sofra a sentença, renasça idiota e viva na<br />
indigência. Ora, o egoísta bem que pode fazer tudo isto funcionar em seu proveito, que nisto reside<br />
a sabedoria, e se Cristo fora crido, o mundo deveria ser já um paraíso.<br />
São Francisco de Assis que foi havido como sendo a sombra de Cristo, também não<br />
achou outro meio de falar que não fosse na linguagem do egoísta. Dirigindo sua prece a Cristo,<br />
diz: " <strong>–</strong> Fazei que procure eu mais consolar, que ser consolado". Por que? Porque o consolador,<br />
para consolar, precisa possuir primeiro a consolação, que do contrário, não poderia dá-la aos que a<br />
não têm. " <strong>–</strong> Fazei que procure eu mais amar, que ser amado". Por que? Porque quem ama é rico, e<br />
possui, para dar; no passo que o só amado, se não ama, é pobre; e é melhor possuir que ser<br />
necessitado. Paulo já dissera: melhor é dar que receber, porque quem dá, possui; e o que recebe,<br />
se acha na carência. Se o objeto amado não retribuir ao amante, em dose igual, amor por amor,<br />
fica sendo mera posse do amante, e, vazio do amor, não sentirá compensação nem gozo algum de<br />
ser amada. Quem a nada ama, sente-se flutuar no vazio da vida, e não é muito até que passe a<br />
aborrecer-se de si mesmo, pelo que busca o próprio aniquilamento pela morte. " <strong>–</strong> Possa eu mais<br />
compreender, que ser compreendido". Por que? Pois porque melhor é ser sábio do que ignorante,<br />
visto como só quem está em cima, pode compreender ao que se acha embaixo, nunca, jamais, se<br />
dando o contrário. Ser incompreendido é um tal gênero de desgraça, que é mil vezes preferível<br />
sofrê-la, do que gozar a ventura de a não ter. Ser incompreendido é a infelicidade do gênio, do<br />
santo e do sábio; porém, é preferível ter esta sorte, que ser agraciado com a mediocridade de<br />
todos. E prossegue o santo: " <strong>–</strong> É perdoando, que se é perdoado". E para sermos perdoados,<br />
perdoamos. " <strong>–</strong> É dando, que se recebe"; e para recebermos, damos. " <strong>–</strong> É morrendo, que se<br />
renasce para a vida eterna"; e para renascerem para a vida eterna, os cristãos da primitiva Igreja<br />
morriam, felizes, cantando, na arena de Roma. Mais uma vez La Mettrie tem razão: "a virtude é o<br />
egoísmo munido de óculos de alcance".<br />
40
Ora bem: se tal é a virtude, o que é, então, o vício? É o egoísmo retrativo, míope, que,<br />
como a toupeira, mais se guia pelo olfato, pelo faro, do que pela vista. Ao fechar-se sobre si<br />
mesmo, o ignaro egoísta perde o que quer e o que tem. Cristo tem razão: a quem tem, dar-se-lhe-á,<br />
e terá em abundância, e ao que não tem, até o que tem ser-lhe-á tirado (Luc 19, 26). Esta é a sorte<br />
do egoísta ignorante: quanto mais se fecha, quanto mais se aferra à posse do que cuida só seu, e<br />
não, de todos, mais se apouca, mais se empobrece, e, em caso extremo, aniquila-se no não-ser,<br />
quando, de fora, todo o auxilio lhe é negado. Quanto mais fechado o egoísta, mais frustrado, mais<br />
violento, mais destrutivo, mais exposto ao auto-aniquilamento, até o não-ser.<br />
Já o egoísmo expansivo leva o homem sábio a compreender que nem ele próprio se<br />
pertence, pois que é parcela e posse do todo em que se acha alojado, e esta consciência o faz ser<br />
uma benção para o coletivo em que viver. Conquanto seja esta a verdade última a que pode alçarse<br />
pela inteligência clara e fria, seu sentimento, cálido, obscuro, abscôndito, profundo, lá no<br />
íntimo da alma lhe segreda outra coisa: diz-lhe que o todo lhe pertence, que o todo é seu, e para<br />
esse todo que ama e sente como seu, faz todos os sacrifícios, até que, por fim, se entrega à morte<br />
como herói. A vida já nos demonstrou vezes sem conta, que não agimos por razões luminosas,<br />
insofismáveis, mas por sentimentos que são, depois, justificados com razões.<br />
Schopenhauer escreveu de maneira incomparável sobre como triunfar das paixões; no<br />
entanto, era impiedoso na cobrança dos aluguéis, e, irritado com uma inquilina, deu-lhe um<br />
arremessão, jogando-a, desastradamente, escada abaixo, tendo, por isto, de pagar-lhe uma<br />
indenização. Era avarento, mesquinho, orgulhoso, quase como Nietzsche, e possuído da mania de<br />
perseguição, pelo que trazia sempre um revolver carregado na mesa próxima à cabeceira da cama<br />
em que dormia. Bernard Shaw também era sovina, miserável, vivendo como um monge, apesar da<br />
riqueza que possuía. Ocupava-se de escrever contra a exploração do homem, mas era o último no<br />
mundo a lembrar-se de seus empregados aos quais pagava salário de fome. São Paulo, ao menos,<br />
teve a coragem e a sinceridade de confessar; disse: " <strong>–</strong> Miserável homem que eu sou, pois o bem<br />
que quero fazer, não faço; mas o mal, que não quero, esse eu faço". Por que assim? Porque, uma<br />
coisa é o que se pensa, e outra o que se faz, arrastado pelos sentimentos, contra todas as razões<br />
claras, insofismáveis.<br />
Uma coisa, pois, é o sentir, e outra, o pensar. Do mesmo modo que sabemos todos, por<br />
princípio de razão, que a morte é inevitavelmente certa, e, no entanto, despr<strong>eo</strong>cupados, não a<br />
sentimos longe ou perto, assim também o sábio entende que é posse do todo a que pertence,<br />
porém, seu coração lhe diz, em contrário, que esse todo é seu, e por esse todo vive, e sofre, e<br />
deixa-se matar como fez Sócrates, como fez Jesus. Eis, aí, duas razões opostas: a natural do<br />
coração, e a formal da cabeça, ambas coligadas para o bem comum. A sabedoria não está no<br />
pensar, mas no sentir justo e reto, e até dizemos que a natureza é sábia, conquanto irracional.<br />
Acabei meu discurso; e com ele tenho demonstrado minha tese: o egoísmo dilatado ou<br />
sábio é o que chamamos amor, e amor e sabedoria são termos sinônimos. Agora fecho meu<br />
assunto: para que o egoísmo se dilate, dadivosamente, ampliando sua zona de domínio, é preciso a<br />
liberdade; para que haja liberdade, é necessária a indulgência ou tolerância. Como no Triângulo<br />
anterior, podemos construir outro agora com os lados: Liberdade, Indulgência e Egoísmo dilatado.<br />
O anterior e este são semelhantes entre si, e se poderia encerrar tudo com o Triângulo da síntese<br />
que generaliza e engloba os dois primeiros na unidade; eis-lhe os lados: Verdade, Sabedoria,<br />
Amor.<br />
XII - Faça-se a luz<br />
Se Moisés fora materialista, certamente Deus ter-lhe-ia falado à intuição: <strong>–</strong> Faça-se a<br />
matéria!, porque todas as luzes que conhecemos nascem de materiais. No archote queima a<br />
41
esina, na candeia, o ól<strong>eo</strong>, no fogão, a lenha. De tal modo está o fogo ligado a seu suporte material<br />
que, segundo Vieira, os antigos fizeram a Vulcano, deus do fogo, arrimado a um bordão. Porém,<br />
Moisés escreveu que a primeira coisa que houve foi a luz.<br />
E isto se confirma com os resultados da ciência moderna para a qual energia e matéria<br />
são termos reversíveis entre si. O nosso universo nasceu da condensação da energia; há mais ou<br />
menos cinco ou seis bilhões de anos, a matéria do universo era apenas um ponto... em torno do<br />
qual as energias se foram condensando, e surgiu o "Colosso Primitivo de Alpher, Beth e Gamow".<br />
Esse Colosso, esse Ovo primitivo do universo, teria dez mil anos luz de diâmetro. Depois é que o<br />
Colosso se expandiu, tornando-se no universo que é hoje.<br />
Parafraseando o Apóstolo São João que disse:<strong>–</strong> "No Princípio era o Verbo, e o Verbo<br />
estava com Deus, e o Verbo era Deus; e todas as coisas foram feitas por Ele, e sem Ele, nada do<br />
que foi feito se fez" 33 . Mas como São João diz que "Deus é luz" 34 , podemos afirmar: no princípio<br />
era a luz, e a luz estava com Deus, e a luz era Deus; e sem ela, nada do que foi feito, se fez...<br />
Como a luz é energia, então, no princípio era a energia, e a energia estava com Deus, e a energia<br />
era Deus; e todas as coisas foram feitas por ela, e, sem ela, nada do que foi feito se fez. Eis a<br />
perfeita concordância do Gênesis com a ciência moderna, contra os materialistas que teimam em<br />
fazer tudo se derivar da matéria.<br />
A matéria nasceu da energia, e o Sol, da sua luz. São Tomás, e com ele o sentir mais<br />
comum de todos os teólogos, afirma o que escreve Vieira: "No primeiro dia foi criado o sol<br />
informe; no quarto dia foi criado o sol formado" 35 . O Sol nasceu da sua luz, ao tempo em que o<br />
universo surgiu da energia. Tudo, pois, o que existe é luz modificada, donde, como bem acertou<br />
em dizer Huberto Rohden, nós somos lucigênitos e lucífagos. Lucigênitos, porque, como tudo,<br />
somos nascidos da luz; e lucífagos, porque, nos alimentamos de luz. Sentimos o calor do nosso<br />
corpo, sem o qual não há vida; pois bem: donde vem esse calor? Dos alimentos ingeridos. E o<br />
calor aprisionado nos alimentos, donde vem? Vem da função clorofiliana, pela qual os vegetais<br />
transformam a energia luminosa em energia química da fotossintese. Aqueles raios solares que a<br />
planta aprisionou, é agora este calor que nos anima o corpo, e por isto somos todos lucífagos, isto<br />
é, comedores de luz...<br />
Olhai para esta luz que nos ilumina neste instante! Também ela vem do Sol que, sem este,<br />
não haveria o trabalho da evaporação das águas, que formam as nuvens, que dão as chuvas que<br />
alimentam os rios que tocam as rodas d'água. Toda essa dança da vida é ocasionada pelo Sol.<br />
No princípio era a luz, e a luz estava com Deus, e a luz era Deus. Pois essa luz e esse<br />
Deus seja dado ao neófito.<br />
E como a luz é o Verbo, o Verbo seja dado ao neófito. Mas que é o Verbo? O mesmo São<br />
João diz, no cap. 1, 14, que o Verbo se fez carne e habitou entre nós, sendo esse Verbo encarnado<br />
Jesus Cristo.<br />
Ora bem: Jesus disse ser o caminho, a verdade e a vida; então, o caminho, a verdade e a<br />
vida sejam dados ao neófito. Jesus é o Amor vivo, e São João diz que "Deus é Amor" 36 ; portanto,<br />
o amor seja dado ao neófito. O Amor, o caminho, a verdade, a vida, o Verbo, o movimento, a<br />
ação, a energia, o calor, a luz sejam dados ao neófito. O calor humano, o Amor, sejam dados ao<br />
neófito.<br />
Eis quanta sabedoria está contida na frase tão simples: "A luz seja dada ao neófito"...<br />
33 Jo l, l<br />
34 I Jo l, 5<br />
35 Vieira, Sermões Ed. das Américas, l, l82<br />
36 I Jo 4, 7<br />
42
XIII - Religião e Crença<br />
_ "Esta crença que honra e enobrece<br />
o vosso coração não é exclusivo<br />
patrimônio do filósofo; também o é<br />
do selvagem.<br />
<strong>–</strong> Desde que o selvagem percebe que<br />
não existe por si mesmo, interroga a<br />
natureza e faz render tosco, mas<br />
sincero culto a um Ente Supremo que é<br />
o Criador do Mundo".<br />
Já hoje não padece dúvida que o homem evoluiu de uma ordem inferior de animais<br />
não muito dissemelhante dos chimpanzés e dos gorilas. Egresso, assim, do mundo animal, o<br />
homem traz em si e consigo enorme acervo de animalidade que lhe cumpre superar, a fim de que<br />
possa conviver com os demais homens, ou seja, viver em sociedade. Ora, isto é impossível sem<br />
um regramento ético-legal... com fundamento em Deus, visto como a Natureza é impotente para<br />
fundamentar a moral. Por este motivo a antropologia, indo procurar os começos da sociedade<br />
humana, deparou-se, sempre, com o xamã, com o feiticeiro, com o sacerdote, com o fautor de<br />
religião, este que é o "primo-irmão” do filósofo" (Gusdorf).<br />
Face a isto, qual é o padrão de medida para se saber, dentre tantas, aquela que seria a<br />
religião melhor?, superior? O padrão é a ANTIANIMALIDADE. Deus revelou-se,<br />
progressivamente, através dos tempos, como ANTIANIMAL. Superar a animalidade, e mais<br />
ainda, dominar a subanimalidade, nisto consiste o tornar-se ético.<br />
Todavia, a animalidade é recalcitrante, desnorteadora, traiçoeira, despistadora dos<br />
objetivos, fazendo os homens pensarem que avançam, rompendo caminho, quando estão<br />
estacionados, não indo a abertura de seus egoísmos além de suas famílias.<br />
Ocorre que a Vida é Egoísmo desde os seus fundamentos mais remotos, e isto, pela<br />
observação de que cada ente vivo é um egoísta. A partir deste egoísmo, o homem age, e age,<br />
porque a mesma Vida é Ação. Nos níveis mais inferiores, a vida é só movimento. Um animal, para<br />
resolver o seu problema de evadir-se de uma jaula ou gaiola, emprega o movimento, tentando,<br />
pelo ensaio-e-erro, achar a solução do problema. Já um chimpanzé, após algumas tentativas<br />
desassisadas, pára, e reflete, como o demonstrou o Prof. W. Köehler. Este refletir do chimpanzé é<br />
feito de um ensaio-e-erro subjetivo, no qual o antropóide se imagina, como se estivera fazendo<br />
todos os movimentos que faria um rato ou galinha, quando submetidos ao mesmo desafio de fugir<br />
da prisão.<br />
E o homem, num nível mais alto, ao resolver seus problemas, faz o mesmo que o<br />
chimpanzé, com esta diferença: o primata usa imagens para pensar, ou pensa por imagens, no<br />
passo que o homem, usando conceitos, pensa abstratamente.<br />
Como o pensamento teve suas raízes evolutivas no movimento, no agir corporal, por<br />
isto os filósofos chamam a ação de uma contemplação enfraquecida, o que nos dá a recíproca: o<br />
pensamento é uma ação reforçada.<br />
Conseqüentemente, há quatro níveis de realidade superpostos que se erguem do lastro<br />
primário da VIDA, VIDA que, por sua natureza, é EGOÍSTA. O primeiro nível da realidade que<br />
43
se confunde com a própria vida, diz-nos que a vida é ação, ação que se mostra como uma forma<br />
enfraquecida de pensamento no ensaio-e-erro dos animais inferiores, vida que, num nível mais<br />
alto, alcança sua plenitude de ação reforçada no pensamento abstrato do homem. Portanto, se a<br />
ação é o primeiro nível, o pensar abstrato é o segundo... que se sobrepõe ao primeiro. O terceiro<br />
diz-nos que, sendo o homem obrigado a agir e a pensar, tem de fazê-lo segundo uma direção, e<br />
não mais que uma, escolhendo-a no leque de opções que as contingências lhe oferecem. O que dá<br />
essa direção é a CRENÇA. Esta crença (terceiro nível) é uma como sedimentação das experiências<br />
da vida, uma como decantação daquilo que o homem tem para si como sendo a verdade. A crença<br />
é o seu conjunto-verdade. Por conseguinte, a crença foi criada pelo pensador que todo homem é, a<br />
partir da meditação ao longo do tempo, e é a que, agora, lhe orienta a escolha a ser feita. Ora, só<br />
escolhe quem é livre, sendo a LIBERDADE o quarto nível que se sobrepõe a todos os demais, e só<br />
existe para quem, como o homem, chegou ao uso da razão. Disto se infere que quanto mais pleno<br />
é o uso da razão, tanto mais livre é o homem na escolha do seu quefazer, sendo esse o motivo<br />
pelo qual sentenciou Jesus: "Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará" (Jo 8, 32). E o<br />
sentido desta liberdade se acha expresso no versículo seguinte, 34, quando Cristo remata seu<br />
pensamento ao dizer: "... todo aquele que comete pecado é servo do pecado". E, como diz<br />
Gusdorf, "os cativos mais dignos de lástima são os que nem sequer têm consciência de seu<br />
cativeiro". Quem nem chega a ter consciência do próprio cativeiro é sumamente ignorante; ora a<br />
ignorância é o oposto da sabedoria: disto se tira que quem não erra nunca, e só faz o certo, é sábio,<br />
que é o mesmo que santo. Só são, pois, livres, o sábio e o santo. Assim, o último nível da<br />
realidade, o da liberdade plena, só é atingido com a sabedoria e com a santidade.<br />
Estes quatro níveis da realidade não são estanques, mas decorrentes, desenvolvendo-se<br />
do simples para o complexo, da ação pura para a liberdade plena, não havendo linha divisória<br />
nítida entre eles. Pela ordem de construção: Ação, Pensamento, Crença, Liberdade, eis a<br />
superposição de níveis da realidade a partir do fundamento que é a VIDA.<br />
A vida, portanto, é ação que se manifesta como uma meditação enfraquecida, um<br />
pensar insipiente, no ensaio-e-erro animal, no passo que, também, se manifesta como uma ação<br />
reforçada, potencializada, no pensamento abstrato do homem. Meditar, portanto, é uma forma<br />
plena de agir, como a ação ensaio-e-erro dos animais é uma forma insipiente de pensar.<br />
E quem age tem de tomar por um caminho dentre vários, tem de decidir. A vida<br />
impõe-nos como diz Ortega, não uma, mas várias trajetórias. E temos de escolher. Daí o dizer<br />
Ortega que "viver é sentir-se fatalmente forçado a exercitar a liberdade, a decidir o que vamos ser<br />
neste mundo. Nem um só instante se deixa descansar nossa atividade de decisão. Inclusive quando<br />
desesperados nos abandonamos ao que queira vir, decidimos não decidir" 37 . O homem tem de<br />
decidir-se por um caminho, por uma direção, sendo que o que lhe impõe este caminho, esta<br />
direção é sua CRENÇA.<br />
A crença é o homem, não se separando ela dele um só instante. "Nós somos as nossas<br />
crenças", diz Ortega. Assim sendo, a crença (que somos, e porque a somos) não pode ser posta<br />
como objeto de discussão. A crença que somos forma o nosso substrato mais profundo, do qual<br />
nascem TODOS os atos de nossa vida, sem nenhuma exceção. Atos são ações; e ações implicam<br />
escolhas direcionadas pela crença. Não podemos discutir ou permitir discussão sobre ou a respeito<br />
da crença que somos, porque, como a somos, ela é o fundamento; e fundamento nenhum é<br />
passível de discussão, porque, se o fosse, não seria o fundamento.<br />
Eis por que a crença num Ente Supremo ("Credes num Ente Supremo?") "honra e<br />
enobrece" o coração do homem, uma vez que essa crença lhe norteia não só a conduta moral,<br />
como ainda todas as obras da sua vida. Só que a resposta do neófito: "Sim, creio", raramente é<br />
sincera, por causa da confusão que se faz entre crença e religião.<br />
Como vimos, a crença, sendo o substrato profundo do homem, donde lhe nascem<br />
TODOS os atos da vida, sem nenhuma exceção para ninguém, segue-se que este fundamento não<br />
37 Ortega y Gasset, A Rebelião das Massas, 102<br />
44
pode ser posto como objeto de discussão. No entanto, as religiões, com serem exteriores ao<br />
homem, são discutíveis. Deste modo, a crença que somos nada tem a ver com nossa religião,<br />
porque a religião que seguimos pode ser discutida, enquanto que a crença que somos, não. Bem<br />
pode ser, portanto, que o neófito haja confundido religião com crença, donde se segue que ele<br />
aceita a existência de um Ente Supremo como um primado intelectual, distante, como puro Ente<br />
de Razão, nada tendo isto a ver com suas vivências cotidianas, com seus atos nascidos de sua<br />
verdadeira crença da qual Deus não participa.<br />
Conseqüentemente, para sabermos qual é a crença de um homem, não nos devemos<br />
ater à sua profissão de fé, que é intelectual, mas sim, às suas obras. As ações de um homem são o<br />
aspecto exterior de sua crença, no mesmo passo que, pela recíproca, sua crença é o aspecto interior<br />
das sua obras. Como tudo no mundo tem o fora e o dentro, podemos conhecer o dentro de cada<br />
um por suas obras. Ponhamos esta doutrina em sentença:<br />
Mostra-me as obras de tua vida, e dir-te-ei qual é tua crença. Isto eqüivale a: Mostrame<br />
as obras de tua vida, e dir-te-ei quem és. Pois claro: a crença é o homem. Agora, pela<br />
recíproca: Revela-me tua crença, teu substrato profundo, e dir-te-ei quais serão as obras de tua<br />
vida.<br />
S. Paulo, o grande Apóstolo de Cristo, tinha uma CRENÇA... que era sobre si mesmo,<br />
e por isto dizia: "Viver para mim é Cristo, e morrer é lucro" (Epístola aos Filipenses, 1, 21). "Sede<br />
meus imitadores, assim como eu sou de Cristo" (Cor 11,1; Filip 3, 17). "Estou crucificado com<br />
Cristo; logo já não sou eu o que vivo, mas Cristo que vive em mim" (Gal 2, 20-21). Esta<br />
identificação de Paulo com Cristo formava a mentalidade de Paulo, e a mentalidade não se<br />
constitui só de conceitos vazios, puramente intelectuais, e sim, por conceitos cheios de conteúdo<br />
vivencial, emocional. Cristo em Paulo, se tornou vivência, CRENÇA, consorciada às obras de sua<br />
vida. Essa sua Crença-Cristo se tornou, como sói acontecer, o aspecto interior das sua obras,<br />
como estas eram o aspecto exterior de sua Crença-Cristo.<br />
Por causa disto, Paulo sentia-se crucificado com Cristo no mundo, como todo aquele<br />
que se diz ser de Cristo deveria estar, e o não está. Todo mundo que se diz ser de Cristo está,<br />
também, em paz com o mundo... mundo que, como diz São João, "está todo, inteiro, posto no<br />
maligno" (I Jo 5, 19). Donde se tira, como inferiu S. Tiago, que quem é "amigo do mundo<br />
constitui-se inimigo de Deus" (Tgo 4, 4). Mundo que, por estar posto no maligno, não é o mundo<br />
de Cristo que disse expressamente: "Meu reino não é deste mundo" (Jo 18, 36).<br />
Por causa desta crucificação de Paulo com Cristo... que consistia em estar num mundo<br />
invertido no negativo, sendo este mundo a contradição do mundo celeste; mundo este dragontino...<br />
em que todos os valores são a contraditória dos valores imperantes nos planos celestiais; por causa<br />
de estar o Apóstolo no mundo dos dragões no qual impera a subanimalidade, ou seja, a<br />
animalidade requintada pela inteligência; por causa disto Paulo mostrava-se dividido, como<br />
aquele que, tendo visto a luz, tem de retornar à caverna de Platão, a fim de ensinar seus<br />
companheiros. A seu modo diz Paulo o mesmo que propõe Platão ao filósofo, ou seja: "Tenho<br />
desejo de partir deste mundo e estar com Cristo, porque isto me é melhor. Mas julgo mais<br />
necessário, por amor de vós, ficar na carne" (Filip 1, 23-24).<br />
Este nosso mundo não é ilusório, mas real; só que de uma realidade invertida e<br />
mostrada pelo avesso, desde quando ocorreu a queda dos Espíritos celestes, parte dos quais, em se<br />
desintegrando no atro abismo, produziu o Caos do qual nasceu nosso universo evolutivo. Por<br />
causa disto, nosso mundo ainda é, em parte, a "Caverna de Platão", reino das trevas em que<br />
pontificam os dragões, mundo que tem de ser desinvertido do seu negativo... pelo trabalho dos<br />
bons, dos de Cristo, dos de Deus, aos quais, por isto mesmo, se pode dizer: "Essa crença que honra<br />
e enobrece o vosso coração não é só patrimônio do filósofo. Também o é do selvagem, etc.",<br />
porque ser selvagem não significa ser dragão, se o selvícola pauta seus atos pelo Deus que pôde<br />
intuir. Ser dragão, as mais das vezes, é ser só intelectual, vazio de princípios morais, isto é, sem<br />
Deus, e, por isto mesmo, perfeitamente identificado com o mundo, e ainda disfarçado de homem<br />
de fé, pelo fato de seguir uma religião qualquer.<br />
45
O objetivo da religião seria incutir crença, deixar de ser extrínseca, passar para o<br />
substrato profundo, recriar o homem, re-li-gá-lo com a Divindade, fazê-lo nascer de novo, isto que<br />
é simbolizado no batismo. Mas que nada; tudo não passa de ritualismo vazio de conteúdo: o tal<br />
muda, às vezes, de religião, mas não muda de vida, tal qual como diz Sócrates, e, Vieira escreve,<br />
do forasteiro: "O peregrino sempre anda mudando de lugar em lugar, e nunca melhora, porque<br />
sempre se leva a si consigo" 38 .<br />
<strong>Entre</strong> os dois termos, religião e crença, aparece um terceiro que é a FÉ, capaz,<br />
sozinho, de produzir toda a confusão reinante no mundo hoje, e que fez nada menos que falirem as<br />
religiões. Quando, onde e por quem teve origem esse grande mal-entendido?<br />
O Apóstolo S. Paulo recebeu de Cristo a incumbência de levar o Evangelho aos<br />
gentios 39 , e para isto organizou um programa com base na fé, FÉ que, para esse Apóstolo, é o<br />
mesmo que CRENÇA. Um homem, como S. Paulo, para quem "viver é Cristo e morrer é lucro",<br />
que dizia: "faço penitência, para que me não suceda que, havendo salvo os outros, venha eu<br />
mesmo a me perder"; que recomendava: "sede meus imitadores, assim como eu sou de Cristo";<br />
que dizia de si: eu e Cristo somos um, visto como "já não sou eu o que vivo, mas Cristo que vive<br />
em mim"; um tal homem para quem CRENÇA e FÉ são uma e mesma coisa, podia, com toda a<br />
verdade afirmar: "o justo vive da fé", isto é, da crença; "as obras nascem da fé", ou seja, da crença.<br />
Toda sua vida de apostolado, de sacrifícios, de martírios, e, finalmente, sua morte por decapitação,<br />
provam que, de fato, suas obras nasciam de sua crença... que ele chamava fé, exatamente como<br />
acontece com qualquer homem da rua que, metido só consigo, vai indo executar muitos quefazeres<br />
nascidos todos de sua convicção mais profunda, indiscutível para ele, que é sua crença. Só que a<br />
crença de qualquer um é qualquer crença 40 , no passo que a de S. Paulo era Cristo. Ele não pregava<br />
uma religião exterior, sempre discutível, e que, por isto, não é o homem; ele pregava Cristo com o<br />
qual se identificava tanto, ao ponto de ser um com ele.<br />
Em face destas evidências irrecusáveis, indiscutíveis, move-nos a riso a polêmica dos<br />
espíritas e protestantes, cada um teimando na sua, os primeiros enfatizando as obras (salvação<br />
pelas obras), e os segundos pondo em destaque a fé, pelo que a salvação se faz pela fé. Fé ou<br />
obras? Ora, que fé e que obras? Pois separe alguém as obras da vida de qualquer um de sua crença,<br />
que é ele mesmo, e verá que é o mesmo que pretender separar o ser pesado do chumbo, do próprio<br />
chumbo, ou o ser carnívoro do leão, do mesmo leão. A crença forma uma como que natureza de<br />
cada um, e desta como que natureza, nascem, espontaneamente, ainda que se não queira, as obras<br />
da vida. E tudo isto não tem nada a ver com a religião exterior à qual, também, se costuma chamar<br />
de fé.<br />
A crença-Cristo de S. Paulo, que ditava as obras de sua vida, ele chamava FÉ. E é<br />
aqui ou nisto que, repetimos, os religiosos de todos os credos fizeram a enorme confusão, porque a<br />
fé-crença de S. Paulo não tem nada a ver com a fé-religião, com o entusiasmo religioso de uma<br />
religião discutível, porque exterior ao homem, e por isto mesmo separada das obras de sua vida.<br />
Partindo da máxima que diz: mostra-me as obras de tua vida, e dir-te-ei qual é tua<br />
crença, podemos perguntar: qual era a crença de Torquemada (1420-1498) que o levou a praticar,<br />
durante catorze anos, todos os horrores do Santo Ofício espanhol, perecendo sob sua crueldade<br />
sem limites nada menos que oito mil pessoas? No entanto, perguntado a ele qual era a sua féreligião,<br />
diria não só que era católico, como, por cima, religioso dominicano. Sua ganância, sua<br />
crença no dinheiro, crença no poder o fez conivente com os exploradores espanhóis que<br />
destruíram os índios bolivianos. Estes eram obrigados a meter-se nos rios, com a água pela<br />
cintura, para minerar o ouro de aluvião. Desesperados, os infelizes abreviavam a morte certa pelo<br />
suicídio, não sem primeiro matarem os próprios filhos. Que fez Francisco Pizarro (1475-1541)<br />
contra os incas peruanos ao dar vazão a sua cupidez, orgulho e crueldade? E acaso Pizarro não<br />
38 Vieira, Sermões, 12, 123 <strong>–</strong> Ed. das Américas<br />
39 Gentios, para os judeus, tinha a mesma conotação de bárbaros para os gregos e romanos.<br />
40 Como a crença na riqueza material, donde a máxima: "Ser é ter"; ou então, a crença no poder: "Ser é poder"; ou<br />
ainda a crença nos sentidos, e daí o dizer: "Gozar de todos os deleites dos sentidos, nisto consiste o viver" etc., etc.<br />
46
tinha uma religião que era a católica? Que fez Fernão Cortês (1485-1547) no México contra os<br />
naturais da terra, contra todo o império asteca, sobretudo, contra o imperador Guatimozin? De que<br />
lhe valeu, então, a sua religião católica?<br />
A polêmica nascida já no tempo de S. Tiago, e ainda hoje acesa entre as duas facções<br />
religiosas, uma, a espírita, que dá excelência às obras, e outra, a protestante, que dá primazia à fé,<br />
não tem nenhuma razão de ser, porque crença e obras são dois aspectos de uma mesma coisa.<br />
Crença e obras fazem a vida de cada homem, do mesmo modo que núcl<strong>eo</strong> e citoplasma formam a<br />
célula, que prótons e camadas eletrônicas fazem o átomo, que homem e mulher constituem a<br />
família.<br />
São Tiago diz que "a fé sem obras é morta" (Tgo 2, 26). Mas se a fé é igual à crença, a<br />
frase fica sem sentido, porque não há crença morta, ou seja, crença sem obras, assim como<br />
também, pela recíproca, não há obras sem crença. Ora, se uma não há sem a outra, falar de fé<br />
morta é supor que a fé pode existir independente de sua contraparte? Se a fé é morta por faltar-lhe<br />
sua contraparte obras, segue-se que ela jamais nasceu; e porventura poder-se-á falar a respeito do<br />
que jamais existiu?<br />
Ocorre que S. Tiago, quando se referiu à fé sem obras, estava pensando em religião<br />
que, de fato, pode existir sem obras, e não, em crença que não pode. Este absurdo foi possível por<br />
causa de se confundir crença com religião, tomando-se esta como sinônimo de fé. Para S. Paulo,<br />
crença e fé eram uma mesma coisa, porque ele e Cristo eram um, e todas as obras da vida do<br />
Apóstolo nasciam do Cristo interior, do Cristo que vivenciava nele. Agora, os religiosos cristãos<br />
de todos os credos vivem suas vidas e praticam seus atos os quais nada tem a ver com Cristo, mas<br />
se dão como pessoas de fé... só porque trinam lindos hinos, fazem extensas orações, emocionamse,<br />
entusiasmam-se, nunca se esquecendo de curvar-se à frente de Cristo e de fazer-lhe mesuras.<br />
Esta é a causa por que diz Vieira que somos cristãos de meias: "temos uma parte da fé,<br />
e falta-nos outra; cremos em Cristo, mas não cremos a Cristo" 41 . Mais: "Quando Cristo saiu ao<br />
mundo com a primeira prova da sua onipotência e divindade, convertendo uma coisa em outra nas<br />
bodas de Caná de Galiléia, conclui o evangelista S. João a narração do milagre com esta notável<br />
advertência: Este foi o primeiro milagre que fez o Senhor Jesus, e creram nele seus discípulos. Já<br />
vejo que reparais em uma e outra conseqüência. Se depois do milagre creram nele seus discípulos,<br />
segue-se que antes do milagre não criam nele; e se ainda não criam nele, como eram já seus<br />
discípulos? Eram já seus discípulos, porque criam a sua doutrina, mas ainda não criam nele,<br />
porque não conheciam a sua divindade. Criam-no a ele, mas não criam nele: criam-no a ele como<br />
mestre, mas não criam nele como Deus. De sorte que crer em Cristo e crer a Cristo não são<br />
crenças que andem sempre juntas. Os discípulos naquele tempo, e naquele estado, criam a Cristo,<br />
mas não criam em Cristo; e nós agora, às avessas deles, cremos em Cristo, mas não cremos a<br />
Cristo: cremos em Cristo, porque cremos o que é; não cremos a Cristo, porque não cremos o que<br />
diz" 42 .<br />
Cristo disse expressamente: "Vós sois meus amigos se fizerdes o que vos mando" (Jo<br />
15, 14). Perante isto, perguntamos: quem é que ama a seu próximo como a seus próprios filhos?<br />
Quem é que perdoa ao inimigo, e faz o bem a quem o persegue e calunia? Quem é que dá a capa a<br />
quem lhe está querendo furtar a túnica? Quem é que vê em cada mendigo andrajoso o próprio<br />
Cristo? Que disse: todas as vezes que amparastes a um destes pequeninos, é a mim que o fizestes.<br />
Quem é, pois, que toma os mendigos por Cristo, e os trata como se tratara o próprio Cristo?<br />
Somos, logo, meio cristãos, ou cristãos de meias, porque cremos em Cristo mas não cremos a<br />
Cristo.<br />
Se um homem passa o tempo todo correndo atrás do dinheiro, sendo este o objeto<br />
constante, supremo, de suas meditações, ainda que vá à igreja, e seja "crente fervoroso", dando-se<br />
por homem de muito fé, sua verdadeira crença, a que lhe forma o substrato profundo, é a de que o<br />
dinheiro é tudo. Pela recíproca, se um homem tem a crença de que o dinheiro é tudo, andará<br />
41 Vieira, Sermões, 3, 183 <strong>–</strong> Ed. das Américas<br />
42 Vieira, Sermões, 3, 183-184 <strong>–</strong> Ed. das Américas<br />
47
correndo atrás do dinheiro. Cremos no dinheiro, porque ele torna o homem forte e respeitado.<br />
Cremos na força porque ela vence e esmaga, e duvidamos da justiça porque pode ser enganada<br />
com mentiras, e, astuciosamente, mentimos sempre nos negócios e no tribunal, só falando a<br />
verdade, quando ela nos é indiferente ou nos convém. O advogado é um perito nisto, e, portanto,<br />
sabe aconselhar a seu constituinte o que deve e o que não convém dizer. E a verdade? Ora, a<br />
verdade!...<br />
Eis, pois, que, como o afirma S. João, "o mundo todo está posto no maligno", em<br />
razão do que o Reino de Deus não é o deste mundo. Conseqüentemente, este nosso mundo é um<br />
inferno, e nós todos somos diabos; uns piores, outros melhores, mas todos somos dragões que<br />
precisam ser desvirados do avesso, desinvertidos desse negativo no positivo, no sábio e no santo<br />
que ainda haveremos de ser. Como será isto? Pela compreensão e esforço própros, ou então pela<br />
dor.<br />
Se somos passíveis de sofrer mudanças segue-se que a crença que somos, embora<br />
indiscutível, não é imutável. O esforço próprio, o estudo meditado, e, sobretudo, a dor, podem<br />
mudá-la. Quando, na vida, nos sai algo errado, entramos em DÚVIDA, donde vem que, segundo<br />
Ortega, "a dúvida pertence ao mesmo estrato das crenças". Todavia, como não podemos<br />
permanecer em dúvida, porque ela nos inibe de agir, porque ela nos impediria os atos, o único<br />
recurso que nos resta é metermo-nos em solidão, pensar, meditar, e, com isto, criar nova crença.<br />
Moisés, o príncipe culto, genial, da casa do faraó, provavelmente teve a sua alétheia 43<br />
quando ainda estava no Egito de onde saiu para os desertos de Midiã, pretextando estar fugindo<br />
por ter matado um homem. Retirou-se para o deserto para estar só consigo a fim de recompor suas<br />
idéias, visto como suas antigas crenças egípcias lhe ruíram por terra deixando-o em dúvida. Saulo<br />
de Tarso, o culto judeu-romano, educado aos pés de Gamaliel, em pedindo cartas ao sinédrio para<br />
ir caçar os cristãos, certamente que sabia o que pregava o "inimigo". E teve sua alétheia, sua hora<br />
de verdade, na estrada de Damasco. Para recompor seu universo de crenças, retirou-se para um<br />
deserto entre tecelões de tapetes, fazendo-se ele também tecelão por três anos. Esta "hora de<br />
verdade", todos os filósofos a tiveram, e todos concordam em que são impotentes para explicar<br />
suas experiências supra-racionais, intuitivas.<br />
Ao que crer num Ente Supremo, com uma crença que identifica o homem com Deus,<br />
pelo que o homem assume um aspecto divino de antianimalidade, no sentido com que S. Paulo<br />
escreve: "Mas o que esta unido ao Senhor é um mesmo espírito com ele" (I Cor 6,17); ao que crer<br />
deste modo vital, não apenas intelectual e religioso, mas vital, num Ente Supremo, a esse, com<br />
toda verdade se pode dizer "Essa crença que honra e enobrece o vosso coração não é exclusivo<br />
patrimônio do filósofo; também o é do selvagem".<br />
Eis a filosofia implícita no grau de Aprendiz, pela qual ficamos cientes de que crença<br />
não é religião, dado que esta nós discutimos, analisamos, expomos, aduzimos razões, exatamente<br />
como procedemos com qualquer matéria de estudo. Podemos nos entusiasmar com nossa religião,<br />
irmos aos templos onde se reúne a igreja, e aí fazermos sentidas orações, trinar lindos hinos,<br />
derramar lágrimas de alegria, e sairmos, depois, confortados espiritualmente. No entanto, todo<br />
esse fervor religioso não é a crença que somos, a única que, verdadeiramente, norteia nossa<br />
conduta moral e todos os demais atos de nossa vida, sem nenhuma exceção. É assim que, diferente<br />
da crença que somos, a religião acaba não sendo a vida, havendo total divórcio entre uma e outra,<br />
entre religião e vida. Daí que há até o aforismo popular que diz: primeiro a obrigação, depois a<br />
devoção. Obrigação são as obras da vida, e devoção é diletantismo, devaneio, gosto, qual o que<br />
sentimos ao ouvir música, ao assistir a uma peça teatral ou filme.<br />
A este respeito, o jornal "O Estado de S. Paulo”, em sua edição de 30 de agosto de<br />
1984, trouxe um artigo de G<strong>eo</strong>rge Cornell com o título: «Religião nos EUA, segundo as<br />
pesquisas». Eis parte do que escreve Cornell:<br />
43 Alétheia: primitivo nome da filosofia e que quer dizer: desnudamento, patentização, desvelação, apocalipse. É como<br />
"um tremor de terra" (Gusdorf) que abala toda a estrutura do homem. Desfeito seu universo de crença, ele tem de<br />
construir outro.<br />
48
"NOVA IORK <strong>–</strong> Os norte-americanos mostram-se firmes em matéria de religião, mas<br />
fracos na moralidade, segundo indicam os resultados de uma pesquisa sobre esse aspecto da vida<br />
nos Estados Unidos.<br />
"A pesquisa demonstra a existência de um «gigantesco paradoxo» conforme expressão<br />
do veterano pesquisador G<strong>eo</strong>rge Gallup, cuja organização fez vários estudos sobre esse tema no<br />
decorrer do último ano.<br />
"Em um relatório condensado, de cem páginas, intitulado «A religião em 1984 nos<br />
Estados Unidos», Gallup afirma que «a importância da religião está aumentando entre os norteamericanos,<br />
mas a moralidade está perdendo terreno».<br />
"Embora os níveis de participação religiosa sejam altos, e a maioria dos entrevistados<br />
tenha afirmado ter maior interesse pela religião hoje do que há cinco anos, «o ato de enganar está<br />
generalizado, em todos os níveis da sociedade» <strong>–</strong> diz o relatório Gallup.<br />
Duas terças partes dos norte-americanos sustentam que o nível de ética nos Estados<br />
Unidos declinou no último decênio <strong>–</strong> afirma ainda o documento.<br />
"O aspecto paradoxal <strong>–</strong> segundo o estudo <strong>–</strong> consiste no fato de «haver muito pouca<br />
diferença» entre o comportamento das pessoas que vão à igreja e o das que não vão, no que diz<br />
respeito a uma ampla série de assuntos, como a mentira, o engano e o furto".<br />
O artigo prossegue, mas o transcrito dele basta para documentar nossa afirmação de<br />
que o homem vive de sua crença e age segundo ela, e não, de sua religião que lhe é exterior.<br />
Todavia, apesar do acima exposto referente aos Estados Unidos... que é só uma<br />
mostragem do que igualmente ocorre nas demais nações, não devemos menosprezar as religiões:<br />
elas são um chamamento constante para o que há de superior no homem. E pode suceder de ela se<br />
tornar crença verdadeira nalguns que, por isso mesmo, se hão de santificar, de se desanimalizar, de<br />
se voltar para Deus substancialmente, como tem que ser, em vez de só de maneira formal, como<br />
geralmente é.<br />
Temos visto a primeira parte do enunciado da filosofia do grau de Aprendiz; vem,<br />
agora, a segunda na qual se afirma que o selvagem, em observando a Natureza, intui Deus.<br />
XIV - Homem, Mundo, Deus<br />
No capítulo anteiror, “Religião e Crença”, ficou assente que a Vida é Egoísmo, dado que<br />
todos os entes vivos são egoístas, e agem a partir de si mesmos. Dir-se-á que existe impulsos<br />
altruísticos, e temos a prova na mãe, já no nível animal, que se sacrifica pela prole, e, pelo menos<br />
por certo tempo, vive em função dos filhos. <strong>Entre</strong> os insetos gregários como a abelha e a térmita,<br />
há os que sacrificam suas vidas: as abelhas, pela colméia, e as térmitas guerreiras, pelo termiteiro.<br />
Quando o herói morre por sua pátria, e o mártir, por sua idéia, um e outro repete o impulso vital<br />
que já existe lá embaixo no mundo invertebrado. A Vida, logo, dá-nos provas de existir o<br />
altruísmo, termo criado por Augusto Comte para significar o oposto do egoísmo, ou seja, agir a<br />
partir do outro, alter, o que daria alter + ismo, sendo que o sufixo ismo, neste caso, que dizer<br />
doutrina ou sistema. Os romanos já chamavam ao amigo íntimo, em quem se pode confiar, de<br />
alter ego, e que significa outro eu. Portanto, há isso de se poder agir a partir do outro.<br />
Não obstante, se repararmos bem, notaremos que a ação invariavelmente tem sua geratriz<br />
no sujeito, e não, no objeto. Este objeto da ação excita o interesse no e do sujeito, porém, em si<br />
mesmo, o objeto é sempre passivo. No sujeito da ação é que está a atividade. É o sujeito que<br />
expandiu sua intenção egoística, pondo o amigo dentro de sua esfera de domínio; daí o dizer: meu<br />
amigo, minha pátria, minha id<strong>eo</strong>logia, e, para a abelha e para a térmita, minha colméia, meu<br />
49
termiteiro. Ninguém lutaria senão para o que considera seu; e este seu pode ser qualquer coisa,<br />
donde se tira que o alter ou outro nem sempre é o amigo, alter ego. Se um rei não sobreviveria à<br />
perda do seu trono, este trono é o seu outro eu; se um político não pode viver sem o seu cargo,<br />
sem o poder, ele e o poder são um; se o argentário não pode suportar viver sem sua riqueza, esta é<br />
o seu outro eu.<br />
Disto se conclui que eu e o meu se confundem, e o altruísmo é uma invenção artificial de<br />
Augusto Comte, sem base na realidade. Qualquer um tem provas vivenciais de que o egoísmo<br />
pode expandir-se e abarcar o outro em sua zona de domínio. Altruísmo é egoísmo dilatado, e<br />
quem diz dilatado ou expandido, deixa subentendido para o que vai, e até que ponto vai essa<br />
dilatação ou expansão.<br />
Com a palavra altruísmo Comte pretendeu superar o Evangelho de Cristo com a criação<br />
de um conceito sem conteúdo ontológico, sem base na realidade deste mundo. No seu<br />
superevangelho sem Cristo, a máxima seria: "ama ao próximo, mais do que a ti mesmo". Meu<br />
outro eu (alter ego), seja o amigo, seja o próximo, seja uma coisa qualquer como um trono ou a<br />
riqueza, subentende a existência, em primeiro lugar, do eu, do eu 1.º... Não pode haver eu 2.º, para<br />
o eu 1.º, se não houver, primeiro, o próprio eu 1.º... que é o sujeito da ação de desejar, de querer,<br />
de amar. Logo, real é o egoísmo, não passando o altruísmo de artificiosa criação intelectual de<br />
Comte.<br />
A fórmula da filosofia de Ortega se resume nesta frase: "Eu sou eu e a minha<br />
circunstância". Por que não põe Ortega "a minha circunstância" em primeiro lugar, para depois<br />
dela derivar a outra realidade, a realidade segunda, “eu sou eu"? Porque esta é que é a realidade<br />
primeira; o alter, seja lá o que for ou quem for, em relação ao "eu sou eu", vem depois.<br />
E há mais isto: a palavra altruísmo não dá a idéia de demarcação, de limite; o conceito de<br />
egoísmo dilatado sim, dá: dilatado até onde? E abarcando o quê?<br />
Repetimos que o egoísmo do sujeito se dilata até o outro (alter), passando esse outro a ser<br />
posse do sujeito, a fazer parte daquilo que o sujeito chama de seu, isto é, o meu dele. Todavia, o<br />
sujeito pode sentir que o outro é seu, em dois sentidos: pode ser no sentido de tirar proveito desse<br />
outro, ou pode ser no sentido de dar alguma coisa para esse outro, e até de dar-se a ele. Podemos<br />
explorar o próximo, tirando dele para nós o que pudermos, e isto é egoísmo fechado, egoísmo<br />
puro; e podemos amar ao próximo, e aí darmos de nós para ele, e isto é o que se chama egoísmo<br />
dilatado. Daí que egoísmo dilatado, é o mesmo que amor. Ora, se egoísmo dilatado e amor são<br />
uma e mesma coisa, por que dar outro nome ao amor? Este nome novo dado ao amor nasceu do<br />
desenvolvimento da premissa inicial que diz ser a Vida egoísmo, antes que seja qualquer outra<br />
coisa.<br />
No entanto, poderia aparecer um outro pensador, de linha comteana, que partisse doutra<br />
premissa, e seria a que diz: a Vida é altruísmo. Assim sendo, o outro vem antes do eu, do ego. O<br />
sujeito, que ainda não tem consciência de si mesmo, tem já de haver-se com um meio, com o<br />
mundo. Nenhum animal se reconhece no espelho, e quando se vê no espelho cuida que sua<br />
imagem é o outro com o qual se defronta. A criança humana, em tenra idade, também não se<br />
reconhece no espelho. O reconhecer-se no espelho marca o limite de sua integração de<br />
personalidade, de sua constituição como pessoa para si. Já pode dizer eu, em oposição a algo que<br />
é o outro.<br />
Pois, então, se o sujeito, animal ou criança tenra, não têm consciência de si, e a têm do<br />
mundo, o outro, para eles, vem em primeiro lugar. Como outro é alter, então, o altruísmo precede<br />
ao egoísmo, e a Vida, que, de princípio, é altruísta, só se torna egoísta, quando o sujeito pode<br />
dizer: eu. Daí que o eu é odioso, e, para suavizar essa odiosidade, os homens inventaram o plural<br />
majestático, pondo o nós com valor de eu. Todo o mal no mundo, portanto, surgiu quando<br />
apareceu um animal, o homem, que pôde ter consciência de si mesmo, e dizer eu. O ego é mau, e<br />
egoísmo vem de ego <strong>–</strong> eu. Se não houvesse o homem... que pode dizer: eu, o mundo seria bom, e a<br />
Vida seria só puro altruísmo. Favoravelmente a isto, diz Ortega:<br />
50
"O mundo humano precede, em nossa vida, o mundo animal, vegetal e mineral. Vemos<br />
todo o resto do mundo como através das grades de uma prisão, através do mundo de homens em<br />
que nascemos e em que vivemos. E, como uma das coisas que mais intensas e freqüentemente<br />
fazem esses homens, em nosso imediato contorno, em sua atividade reciprocamente, é falarem uns<br />
com os outros e comigo, com o seu falar injetam em mim as suas idéias sobre todas as coisas e eu<br />
vejo, em princípio, o mundo todo através dessas idéias recebidas" 44 . Disto conclui Ortega:<br />
"Isso nos leva a formular este primeiro t<strong>eo</strong>rema social: o homem está a nativitate aberto<br />
ao outro que não é ele, ao ser estranho; ou, com outras palavras: antes de que cada um de nós<br />
percebesse a si mesmo, já havia tido a experiência básica de que existem aqueles que não são<br />
«eu», os Outros; isto é, o Homem ao estar a nativitate aberto ao outro ao alter que não é ele, é, a<br />
nativitate, queira ou não, goste ou não, altruísta" 45 .<br />
O homem está, assim, aberto ao outro do seu meio social, desde o nascimento, mas em<br />
que sentido? Será para dar algo a esse outro?, ou para tomar algo dele? Perguntado isto a Ortega,<br />
eis o que ele diz:<br />
"Quando se afirma que o homem está a nativitate e, portanto, sempre aberto ao Outro, a<br />
saber, disposto no seu fazer, a contar com o Outro, enquanto estranho e diferente dele, não se<br />
determina se está aberto favorável ou desfavoravelmente. Trata-se de algo prévio ao bom ou mau<br />
talante em relação ao outro. O roubar ou assassinar o outro implica estar previamente aberto a ele,<br />
não mais nem menos do que para beijá-lo ou por ele sacrificar-se" 46 .<br />
Que teria pensado Augusto Comte ao ver o seu altruísmo, assim, reduzido a nada, por<br />
Ortega para o qual é ser aberto ao outro ou altruísta, tanto o que assassina e rouba, quanto o que<br />
beija e se sacrifica? Desse jeito, concordamos em que a Vida seja altruísta. Neste sentido, o<br />
primeiro t<strong>eo</strong>rema social de Ortega, referido há pouco, tem validade para toda natureza animal,<br />
conforme o explica o próprio Ortega:<br />
"O animal não rege a sua existência, não vive a partir de si mesmo, mas está sempre<br />
atento ao que se passa fora dele, a esse outro diferente dele. Nosso vocábulo outro não é senão o<br />
latino alter. Dizer, portanto, que o animal não vive a partir de si mesmo, mas do outro, trazido e<br />
levado e tiranizado por seu outro, eqüivale a dizer que o animal vive sempre alterado, alienado,<br />
que a sua vida é constitutiva alteração" 47 .<br />
Se, pelo primeiro t<strong>eo</strong>rema do social, diz Ortega que, desde seu nascimento, "a nativitate",<br />
o Homem está "aberto ao outro, ao alter que não é ele", donde concluiu que o Homem é, "queira<br />
ou não, goste ou não goste, altruísta"; e sendo alteração a ação de centrar-se no outro, de estar<br />
fora de si e voltado para esse outro, segue-se que alteração é o mesmo que altruísmo. Diz-nos a<br />
lógica que, se duas coisas forem iguais a uma terceira, são iguais entre si. Pois alteração e<br />
altruísmo são "estar aberto ao outro"; são ser "trazido e levado e tiranizado por seu outro"; são<br />
viver a partir do outro.<br />
Logo, o que se mostrar altruísta não "vive a partir de si mesmo, mas do outro", seja o<br />
animal e a criança tenra, seja um primitivo em fase mítica, seja um homem-massa... que vive a<br />
crédito da sociedade e, por isto, não é si mesmo. Dado que nenhum destes "vive a partir de si<br />
mesmo, mas do outro", todos são trazidos e levados por seu outro, que é o mesmo que viverem<br />
alterados, alienados, fora de si.<br />
Eis a que fica reduzido o tão decantado altruísmo, palavra cara a Augusto Comte.<br />
Altruísta é o que não tem consciência de si, e, embora exista, não pode reconhecer-se e dizer: eu<br />
existo; eu sou eu, e ajo a partir de mim mesmo pelo que sou responsável por meus atos bons e<br />
maus. Muito pelo contrário, sou irresponsável, visto que meus atos são maquinal ou automático<br />
cumprimento dos rituais impostos pela sociedade. Não sou eu quem vive, mas a sociedade que<br />
vive em mim. Dado que minha vida é o puro reflexo do social, e que vivo a partir do meu<br />
44 Ortega y Gasset, O Homem e a Gente, 142<br />
45 Ortega y Gasset, O Homem e a Gente, 142<br />
46 Ortega y Gasset, O Homem e a Gente, 142<br />
47 Ortega y Gasset, O Homem e a Gente, 56<br />
51
contorno social, nunca sou eu mesmo, mas o social em mim. Como não sou eu mesmo, vivo<br />
alter-ado, ou seja, vivo sendo o outro. Sou, por isto mesmo, altruísta, pois o Outro é o centro a<br />
cujo redor gravito; o Outro é a minha referência, e, por esta razão, sou como todo mundo, sem<br />
nenhuma autenticidade...<br />
Ninguém reparou, no entanto, que a ação do sujeito parte do sujeito, tenha ou não ele<br />
consciência de si mesmo. E não há outro modo de agir senão no e sobre o contorno. E mesmo<br />
quando o homem-massa, que não é si mesmo mas o social nele, reage, refletindo o social, essa<br />
reação e reflexo nasce de um núcl<strong>eo</strong> vital que tem de ter um nome, e este será re-agente, sujeito<br />
da re-ação. Mesmo aqui, como se vê, o sujeito, embora inconsciente de si, devolve a ação a qual<br />
vem pejada das características egoístas do sujeito. O alter, para o ego, só pode vir depois. Não<br />
importa que quando nasci, já houvesse a sociedade; eu só tive acesso a ela, depois que me<br />
constituí como centro vital de ação e de reação, e esse centro não é senão o ego, donde se tira que<br />
não há altruísmo, sem que primeiro tenha havido o egoísmo.<br />
Demonstrada a nossa tese de que o altruísmo é uma ilusão, simples jogo de palavras, por<br />
causa de a ATIVIDADE ter sede no sujeito da AÇÃO, e não, no objeto, seja ele qual for,<br />
voltamos à nossa sentença inicial: A Vida é Egoísmo, e este egoísmo manifesta-se através da<br />
AÇÃO dos sujeitos ou agentes que são todos os entes vivos. Goethe, no seu Fausto, diz: "No<br />
princípio era o Verbo. No princípio era o Senso... No princípio era a Potência... Agora é que<br />
atinei: No princípio era a Ação" 48 .<br />
Há, pois, de uma parte, o sujeito da ação que é o agente; da outra parte, o objeto da<br />
ação, o paciente. A atividade está da parte do sujeito que atua sobre seu meio; este meio é passivo,<br />
e, por isto, sofre, padece, a ação do sujeito. O sujeito, porque agente, porque ativo, é a pessoa, em<br />
oposição ao objeto que vem de ob-jacere 49 que significa jazer contra. De um lado temos a pessoa<br />
e, em sua oposição frontal, temos todos os objetos que compõem o mundo.<br />
Pessoa vem de persona, e esta era uma máscara de cera que os atores usavam no teatro<br />
grego. O ator, sendo um só, podia representar muitas personagens. Então, estas personagens eram<br />
únicas, específicas, inconfundíveis, não podendo haver duas iguais. Do mesmo modo como São<br />
Tomás diz que "cada anjo é uma espécie", cada persona é uma espécie. Como não há, também,<br />
dois homens iguais, cada homem é uma espécie, uma persona. O simples agente, que pode ser um<br />
animal, ganha a dignidade de pessoa, quando o agente é um homem.<br />
Como é que o selvagem descobriu Deus? Descobriu-o por extensão de si mesmo<br />
como pessoa que age sobre o mundo. O homem age sobre o mundo, sobre o meio, modificando o<br />
existente. Então é que se pergunta: quem me criou a mim? Quem agiu sobre algo, modificando-o,<br />
e desta modificação eu surgi? Se eu não sou o agente da minha própria modificação que me criou,<br />
quem foi? Ora, se eu, por inconfundível, sou uma pessoa, o que me criou a mim é a Pessoa por<br />
excelência, e essa Pessoa que existe por si mesma, Agente primeiro de toda transformação, é o<br />
Ente Supremo, a Pessoa plena ou, de outro modo, a plenitude da Pessoa, ou ainda, o Grande<br />
Sujeito <strong>–</strong> Subjectum <strong>–</strong> subjacente e sustentador de tudo, que é Deus.<br />
Aqui temos as três entidades inconfundíveis: homem, mundo, Deus. O homem sabe, de si<br />
mesmo, que é pessoa e agente; sabe do mundo que é objeto e paciente da ação não só dele,<br />
homem, mas sobretudo, paciente da ação do Grande Sujeito que é Deus. Dissemos que o homem<br />
sabe de si, e também que ele sabe do mundo. E de Deus o homem sabe? De si o homem sabe,<br />
porque tem uma experiência radical de si, e pode dizer: eu existo. Do mundo ele tem uma vivência<br />
quotidiana, e pode dizer: o mundo existe, está aí, à mão, ao perto e ao longe, a perder de vista,<br />
mesmo estando esta vista armada do mais que potente telescópio. E de Deus, o homem tem uma<br />
experiência sensível também, pela qual pudesse, igualmente, dizer: Deus existe?<br />
48 Goethe, Fausto, Clássicos Jackson XV, 79-80<br />
49 "Sujeito, do latim subjectum, derivado de sub-jacere (jazer debaixo), que quer dizer, aquilo que está por debaixo,<br />
como base, substrato e sustentáculo de todas as coisas; aquilo que causa efeitos, mas não é causado. Objeto, do latim<br />
objectum, derivado de ob-jacere (jazer contra), é aquilo que está contra ou defronte, algo que é oposto ao sujeito, algo<br />
que foi emitido ou individualizado pelo sujeito subjacente" <strong>–</strong> Huberto Rohden, Filosofia Universal, 1, 164.<br />
52
O existir ou o ser de Deus não é um dado da experiência sensível, nem da inteligência<br />
racional, mas, da intuição.<br />
A razão trabalha com conceitos. Conceito é uma definição, e definir é traçar os confins de<br />
alguma coisa; é recortá-la num todo maior. Cada coisa é limitada, recortada, destacada de um todo<br />
maior, e esse destaque é a definição da coisa, ou seu conceito. Assim, há coisas maiores e<br />
menores, mas todas delimitadas. Até que, em chegando a uma coisa única em si mesma, sem nada<br />
além de si, que por isto mesmo, não pode ser recortada sobre um todo maior, aí temos uma<br />
intuição. Deste modo, a intuição é uma visão total, ou visão em todo, toda sem recortes, por isto<br />
mesmo indefinível. Se é indefinível, não podemos dizer que é, não podemos conceituar. Então,<br />
neste caso, só podemos falar a respeito dessa coisa ou dar nosso testemunho dela, assinalá-la, mas<br />
sem dizer o que é. É assim que ninguém define o Espaço, a Eternidade, Causa primeira, os<br />
Postulados todos de qualquer espécie, Deus.<br />
Este é um aspecto pelo qual podemos saber o que é a intuição. Mas há outro, correlato,<br />
que é a visão em globo na qual o todo é um conjunto, ou conjuntura, ou situação, e, embora esse<br />
conjunto esteja limitado por um contorno, esse limite não nos interessa. Quando um mecânico vai<br />
consertar um carro, ele olha o veículo como um todo, e procura enxergar com os olhos da<br />
inteligência (daí intuição), onde está o defeito no conjunto de peças articuladas. Ao mecânico não<br />
interessa o carro relacionado com nada. Todas as implicações que o veículo possa apresentar em<br />
relação ao dono, à família, ao social, ao econômico, ao tecnológico, ao científico, ao artístico, ao<br />
bem-estar humano, etc., nada disto interessa ao mecânico. Para ele, naquele momento, o carro se<br />
lhe apresenta como em globo, como um todo, como um conjunto que lhe cumpre analisar ou<br />
estudar mas só desse todo para baixo. As relações que procura entre as peças, o nexo que busca<br />
entre elas, é relação e nexo vistos do todo para as partes. Trata-se de visão analítica, dedutiva, que,<br />
idealmente, decompõe o todo em partes, para intuir o defeito, visão intuitiva esta, diametralmente<br />
oposta à outra visão, a indutiva ou sintética que relaciona o carro com tudo o mais que a ele se<br />
refere: o dono, a família, a sociedade, a economia, a política,<br />
Donde vem que há dois modos de ver uma coisa: a visão intuitiva ou em totalidade, que<br />
apreende o todo, e vai para as partes, e visão associativa, indutiva, sintética, que vai das partes<br />
para o todo. Na visão do mecânico, o carro é um todo enxergado dele abaixo. Para o dono do carro<br />
este é apenas uma parte de quantas outras há enchendo a sua vida. O mecânico olha o carro, e<br />
procura ver a situação como em globo. Para o dono do carro a situação é a sua vida da qual seu<br />
carro faz parte.<br />
Este modo de ver do mecânico é o próprio do filósofo que é o homem que considera<br />
qualquer matéria ou problema à luz ou em função da totalidade. O filósofo sempre está na<br />
totalidade, de onde parte para qualquer estudo, em razão do que, para ele, nada é desconexo. Fale<br />
Toynbee:<br />
"Recusei-me a ser encurralado dentro de um campo de conhecimentos arbitrariamente<br />
delimitado. O Sr. Haselfoot salvou-me disso, ensinando-me, uma vez por todas, a considerar um<br />
problema em totalidade" 50 .<br />
Falando, Toynbee, do general Smuts, diz:<br />
"A «totalidade» era a chave de sua grandeza, assim como o era a da de Einstein. Einstein<br />
fez descobertas que marcaram época reunindo coisas que espíritos menores tinham deixado<br />
separadas. Sir Winston Churchill é outro grande homem do mesmo filão não-moderno. A<br />
ampliação de vistas destes três grandes homens é um elo entre si que transcende as diferenças de<br />
suas personalidades e de suas carreiras. Todos três ter-se-iam sentido à vontade se tivessem<br />
nascido no mundo de Políbio, Catão, o Censor e Arquimedes" 51 . Mais: "Tal como o filósofo da<br />
história islâmica do século XIV Ibn Khaldum, o filósofo ocidental da história do século X<strong>VII</strong>I<br />
50 Arnold J. Toynbee, Experiências, 109<br />
51 Arnold J. Toynbee, Experiências, 125<br />
53
Vico Freeman tinha o dom de «ver o mundo em um grão de areia»" 52 . O mesmo que Toynbee,<br />
afirma Gusdorf:<br />
"O filósofo é o homem da totalidade, da composição global onde todas as significações<br />
são retomadas e arbitradas em função da pessoa" 53 . Ainda isto: "Tal como o rei Midas, que ao<br />
simples contato transformava em ouro os objetos mais vulgares, o metafísico eleva ao absoluto<br />
tudo aquilo em que toca" 54 .<br />
A diferença existente entre um professor de filosofia, ainda que com pós graduação e<br />
doutoramento nesta matéria, e um filósofo, está em que o professor conhece todas as filosofias que<br />
se foram, mas não segue nenhuma, nem tem uma própria, no passo que o filósofo, ou está na<br />
cabeça duma escola, ainda que por se formar, ou tem uma filosofia para si, tomada de outrem,<br />
filosofia que lhe forma a mentalidade como um absoluto, de onde parte para, por dedução,<br />
entender o mundo e enfrentar a solução de todos os problemas.<br />
E do mesmo modo como procedemos o estudo do pensamento como ação reforçada,<br />
tendo em vista o ensaio-e-erro animal como uma meditação muscular, uma contemplação<br />
enfraquecida, agora iremos ver como procede o pensar intuitivo.<br />
Wells e Huxley recomendam fazer uma experiência para verificar a capacidade de uma<br />
criança, de um cão e de uma galinha, para resolver um problema, usando a intuição; escrevem<br />
eles:<br />
"Armemos uma pequena cerca de arame assim disposta: um lado encosta na parede do<br />
quintal, formando com a mesma ângulo reto: o outro lado, perpendicular ao primeiro, corre<br />
paralelamente à parede, a uma distância de dois ou três metros e tendo ele próprio dois ou três<br />
metros de comprimento; formamos, desse modo, uma área de uns nove metros quadrados, limitada<br />
por duas cercas de arame, mas aberta na outra extremidade. Para experimentar com esse<br />
simplicíssimo «labirinto» escolhamos três animais <strong>–</strong> uma galinha, um cão, e uma criança de três<br />
anos. Levemo-los, um de cada vez, para um dos lados da cerca, e atiremos por cima da mesma<br />
uma iguaria qualquer (escolhida conforme os gostos de cada um). O problema será resolvido com<br />
sucesso, se o sujeito, sem hesitar, perceber a situação e fizer imediatamente a volta à cerca, para<br />
colher a presa. O leitor poderá pensar que o problema é tão estupidamente simples, que nem<br />
constitui um problema. Mas não é tal. A galinha nunca o resolverá satisfatoriamente; enquanto ver<br />
e desejar o alimento, mostrar-se-á irrequieta, investindo debalde contra a cerca; e se conseguir<br />
fazer a volta e apanhar a iguaria, será porque, tendo desistido de vencer a dificuldade e tendo<br />
seguido seu caminho, casualmente se voltou e viu o alimento numa posição mais acessível. A<br />
criança, porém, nunca falhará: contornará a cerca imediatamente. O cão fica entre os dois: se o<br />
alimento, atirado por sobre a cerca, cair muito longe, ele fará algumas tentativas ineficazes para<br />
alcançá-lo através do arame, mas, de repente, perceberá a situação e, num só ímpeto, fará a volta à<br />
cerca; mas se o alimento caiu muito perto do lado da cerca onde ele está, ficando a poucos<br />
centímetros do seu nariz, o cão se mostrará tão estúpido como a galinha <strong>–</strong> porque, dessa vez, o<br />
estímulo é muito poderoso e o animal, magnetizado por este, não pode ter a liberdade de<br />
movimentos necessários para contornar a dificuldade, entregando-se então a tentativas infrutíferas<br />
e desesperadas para segurar o inacessível alimento. Maier estudou detalhadamente essa espécie de<br />
comportamento e verificou que ocorre também noutros mamíferos, como o rato, dependendo de<br />
uma capacidade algo semelhante à razão e inteiramente distinta da simples habilidade de<br />
aprender os caminhos de um labirinto" 55 .<br />
O destaque posto acima é nosso, e o fizemos para sublinhar que essa "capacidade algo<br />
semelhante à razão" chama-se intuição. Koehler fez experiências com macacos um dos quais<br />
teve a idéia de embutir uma vara no oco de outra a fim de fazê-la suficientemente longa para<br />
52 Arnold J. Toynbee, Experiências, 125<br />
53 G<strong>eo</strong>rges Gusdorf, Tratado de Metafísica, 122<br />
54 G<strong>eo</strong>rges Gusdorf, Tratado de Metafísica, 123<br />
55 H. G. Wells, Julian Huxley e G. P. Wells, "Como Vivem e Sentem os Animais"<strong>–</strong> A Ciência da Vida, 7, 274-275<br />
54
alcançar umas bananas fora do alcance de uma vara mais curta. Este "ver a situação" chama-se<br />
intuição sensível, dado que a situação foi enxergada com os olhos da cara.<br />
E é algo semelhante à razão, porque esta enxerga o nexo nas e entre as coisas.<br />
Inteligência vem de inter (entre) e legere (ler), e significa ler ou apanhar o nexo nas ou entre as<br />
situações. Entender é apreender o nexo, é perceber a situação. E, como o afirma José Ferrater<br />
Mora comentando Ortega, "... o mundo não é um conjunto de «coisas», mas antes um conjunto de<br />
situações" 56 .<br />
No estudo procedido atrás da conjuntura: o carro, seu dono e o mecânico, verificamos<br />
que, para o seu proprietário, o carro é uma "coisa" entre as demais de sua vida; para o mecânico,<br />
essa mesma "coisa" é um conjunto de situações, ou seja, uma conjuntura de peças conexas. Como<br />
o afirma Ortega, "a «coisa» é «em realidade» a soma ou integral de seus aspectos" 57 .<br />
Estivemos, até agora, vendo os casos mais simples de situações apreendidas pela<br />
intuição sensível. No entanto, há situações mais complexas que se apreendem pela intuição<br />
intelectual, pela intuição emotiva, pela intuição volitiva, etc. Einstein quando diz: "Penso noventa<br />
e nove vezes, e nada descubro; paro de pensar, entro em profundo silêncio, e eis que a verdade me<br />
é revelada", esta revelação subitânea é um ver a situação com o intelecto. A descoberta<br />
surpreende, e a surpresa é o começo da filosofia, ou, como diz Gusdorf, o primeiro filósofo foi o<br />
primeiro homem que se deixou colher pela surpresa. O mesmo diz Ortega: "Surpreender-se,<br />
estranhar, é começar a entender. É o esporte e o luxo específico do intelectual (...). Seu atributo<br />
são os olhos em pasmo. Por isso, os antigos deram a Minerva a coruja, o pássaro com os olhos<br />
sempre deslumbrados 58 . E escreve Vieira: "Dizem os filósofos que a admiração é filha da<br />
ignorância e mãe da ciência. Filha da ignorância, porque ninguém se admira senão das coisas que<br />
ignora, principalmente se são grandes; e mãe da ciência, porque, admirados os homens das<br />
mesmas coisas que ignoram, inquirem e investigam as causas delas até as alcançar e isto é o que se<br />
chama ciência" 59 . Quem não se admira de nada, não se surpreende com nada, não se sobressalta,<br />
esse não é filósofo. Por isto, como diz Gusdorf, "o metafísico tem, da criança, não só a candura,<br />
como também a puerilidade. Obstina-se em ver obscuridade onde tudo é claro para seus<br />
semelhantes".<br />
Esta é a razão por que o primitivo nome da filosofia é alétheia, e que significa<br />
descobrimento, patentização, desnudamento, revelação, Apocalipse. Alétheia guarda afinidade<br />
com t<strong>eo</strong>ria... palavra órfica que, originariamente, significa "contemplação apaixonada simpática",<br />
em que "o espectador se identifica com Deus". Daí a raiz "t<strong>eo</strong>" (deus). T<strong>eo</strong>ria era, também, a<br />
reunião dos que iam a consultar os oráculos, ou a embaixada sagrada que um Estado grego<br />
enviava para o representar nos grandes jogos públicos de outro Estado; cada membro desta<br />
embaixada ou reunião era um t<strong>eo</strong>ro. "Para Pitágoras, a «contemplação apaixonada simpática» era<br />
intelectual, tendo como resultado o conhecimento das matemáticas" 60 . Donde vem que t<strong>eo</strong>rema<br />
vem de t<strong>eo</strong>ria.<br />
Como se vê, sendo t<strong>eo</strong>ria o mesmo que contemplação ou visão, não só simpática, senão,<br />
também, apaixonada; paixão extática pela qual "o espectador se identifica com Deus", então,<br />
t<strong>eo</strong>ria, originariamente, significa experiência religiosa ou mística, forma de intuição<br />
intelectoemotiva. O ato de ver a situação, sempre vem carregada de emoção forte, porque não há<br />
ninguém que, de repente, de um piscar de olhos, de um estalo, veja claro uma situação, sem que se<br />
sinta pasmado, surpreendido, admirado. Repetindo o que já dissemos de Gusdorf: "O primeiro<br />
filósofo foi o primeiro que se deixou colher pela surpresa, e de modo definitivo, para toda a raça<br />
56 Ortega y Gasset, Origem e Epílogo da Filosofia, 91-92<br />
57 Ortega y Gasset, Origem e Epílogo da Filosofia, 192<br />
58 Ortega y Gasset, A Rebelião das Massas, 61<br />
59 Vieira, Sermões, XV, 151 <strong>–</strong> Ed. das Américas<br />
60 Bertrand Russell, Obras Filosóficas, I, 39<br />
55
dos filósofos, pois a ele se deve o arranque inicial" 61 . Donde ele tira que "suprimir a admiração<br />
eqüivale a cometer uma espécie de pecado contra o espírito" 62 .<br />
Assim como no nível da intuição sensível uma criança de três anos, ou um cão, ou um<br />
macaco, toma-se de alegria ao ver a situação e resolver, de pronto, o problema da cerca atrás<br />
referido, igualmente, o primeiro selvagem extasiou-se ao ter a intuição intelectoemotiva de Deus<br />
ao ver-se de fronte desta situação: não existo por mim mesmo, e, interrogando a natureza, verifico<br />
que ela me é inferior, dado que, excetuado meus semelhantes, nada nela tem consciência de si.<br />
Ora, se nada na natureza tem o que só eu possuo, que é a consciência de mim mesmo, segue-se<br />
que nisto lhe sou superior, e esta superioridade me confere o status de pessoa... em comparação às<br />
coisas que me cercam, que são meros objetos. O mundo, portanto, ao longe, ao largo, é a Coisa<br />
máxima ou a plenitude do Objeto frente ao qual eu sou a pessoa. Não me reduzo a Mundo,<br />
porque, em lhe sendo hierarquicamente superior, posso entendê-lo a ele, e não, ele a mim. O<br />
Mundo não se reduz a mim, porque ele me é superior em extensão, me envolve e me faz partícipe<br />
da sua substância que me forma o corpo. No entanto, como não me fiz a mim, nem existo por mim<br />
mesmo, quem me fez a mim é superior, sendo esse a Pessoa por excelência, ou Pessoa em grau<br />
excelso, Pessoa frente à qual eu não sou coisa, mas pessoa também, embora em grau diminuto. A<br />
essa Pessoa excelsa eu me inclino, ponho-me de joelhos, em respeitosa reverência, ao conferir-lhe<br />
o nome de Ente Supremo, meu Criador e Criador do Mundo.<br />
Não importa que na mente do primitivo esta intuição não se tivesse mostrado assim tão às<br />
claras: o certo é que dele até nós, o homem não se cansou de ver, sempre, a mesma situação do<br />
ternário: Homem, Mundo, Deus. Daí que, como diz Gusdorf, "o feiticeiro é o primeiro filósofo, e a<br />
religião é o berço da metafísica" 63 . Assim, desde o dia em que o primeiro selvagem se<br />
surpreendeu, tendo tido a sua alétheia, a sua t<strong>eo</strong>ria, esta como "contemplação apaixonada<br />
simpática"; desde quando percebeu que está ligado a Deus por suas potências superiores, e, ao<br />
mundo, por ser corpo, desde esse dia até hoje o homem não cessou de ter intuições sobre<br />
intuições, e "intuir", no latim, significa "ver", donde vem que intuição é o mesmo que<br />
contemplação.<br />
Espinosa escreve sua "Ética", como se fora um matemático a demonstrar seus t<strong>eo</strong>remas.<br />
No entanto, escreve Garcia Morente, "ao chegar quase ao término de seu livro, sente-se elevado,<br />
sente-se sublimado no propósito filosófico que desde o começo o anima, e escreve esta frase como<br />
o enunciado de um de seus t<strong>eo</strong>remas: «(...) Nós sentimos e experimentamos que somos eternos»".<br />
E continua Morente: "Aí se vê bem até que ponto toda esta crosta de t<strong>eo</strong>remas e de demonstrações<br />
estava recobrindo uma intuição, palpitante de emoção, uma intuição quase mística da identidade<br />
do finito com o infinito e da eternidade no próprio presente" 64 .<br />
Este sentir e experimentar que se é eterno, é o primado de que parte toda a filosofia<br />
espinosiana, do mesmo modo que o princípio de Descartes é o seu cogito, e o de Pascal consiste<br />
em "encontrar Deus sem procurá-lo", como o afirma Morente, e afirma-o para sublinhar que o<br />
saber intuitivo é um saber espontân<strong>eo</strong>, não procurado que, ou se tem, ou se não tem. Ou se vê ou<br />
não se vê a situação, seja isto para a criança, o cão e a galinha, na experiência da cerca, seja para<br />
um primitivo medíocre e um mero professor de filosofia, na experiência do absoluto, isto é, de<br />
Deus.<br />
"Aliás (diz Gusdorf), os filósofos clássicos, de quando em quando, confessam sua dívida.<br />
Nós é que não prestamos suficiente atenção aos momentos em que eles dão testemunho daquele<br />
elemento TRANSINTELECTUAL, sem o qual a razão nada mais seria que mero jogo de sutilezas<br />
formais" 65 . O destaque em versal é nosso. Assim, diz ainda Gusdorf, "os grandes pensadores dão a<br />
impressão de se terem familiarizado com uma captação privilegiada do real, na qual encontram a<br />
61 G<strong>eo</strong>rges Gusdorf, Tratado de Metafísica, 6<br />
62 G<strong>eo</strong>rges Gusdorf, Tratado de Metafísica, 6<br />
63 G<strong>eo</strong>rges Gusdorf, Tratado de Metafísica, 136<br />
64 M. Garcia Morente, Fundamentos de Filosofia, 50<br />
65 G<strong>eo</strong>rges Gusdorf, Tratado de Metafísica, 132<br />
56
justificação última de todos os esforços de expressão por eles envidados. Se o único pensamento<br />
do filósofo ou do artista permanece inexprimível, quer dizer que não se trata de pensamento,<br />
mas sim de APREENSÃO ORIGINÁRIA E TOTAL DA VERDADE, DA TOMADA DE SER<br />
INICIAL. Toda a obra subseqüente desenvolver-se-á como esforço imenso para recuperar esta<br />
primeira entrada em ação, e para a traduzir no domínio público da comunicação" 66 . Os destaques e<br />
versais são nossos, exceto em "tomada de ser", que é do autor.<br />
Esta "expressão originária e total da verdade"; esta "tomada de ser inicial" é a intuição<br />
que, como estamos vendo, significa ver a situação, em ver a situação que começa com o<br />
selvagem perante o mundo, ou seja: "o selvagem (...) interroga a natureza", tal qual faz o filósofo,<br />
o que resulta para um e para o outro, na "TOMADA DE SER INICIAL" que é acontecimento<br />
transintelectual, e, portanto inexprimível. Que sucede depois? Pois sucede que a obra subseqüente<br />
do pensador consiste em traduzir para a linguagem corrente de todo mundo, a sua visão, sob a<br />
forma de conseqüências que se deduzem, todas, a partir da premissa inicial. Por causa disto, vem<br />
uma recomendação de Gusdorf:<br />
"Não devemos deixar-nos iludir pela armadura lógica, visto ser impossível legitimar pela<br />
razão o absoluto sem inverter os papéis: se o absoluto obedece à lógica, a lógica, exercendo o<br />
cargo de criada investida na autoridade de ama, toma o lugar do absoluto" 67 . Daí que "a linguagem<br />
do absoluto, apesar de inválida (inválida para a razão), corresponde a uma experiência do<br />
absoluto, que é a experiência metafísica por antonomásia" 68 . Portanto, "a experiência metafísica só<br />
é possível se fundamentada na experiência religiosa. A religião precede a filosofia como<br />
articulação do senso do sacro; o absoluto é o sacro do metafísico. Só que o filósofo impõe<br />
tratamento diferente a matéria idêntica" 69 . Assim sendo, "a coberto das aparências mais modestas<br />
da atual filosofia geral, o filósofo, que já não se atreve a chamar Deus pelo seu nome, mantém a<br />
mesma ambição, desde que faz intervir em seu discurso a noção de absoluto. Pôr em discussão o<br />
absoluto eqüivaleria pois a falsear, desde o início, todo o empreendimento filosófico" 70 .<br />
Consequentemente, "na realidade, metafísica e religião ocupam o mesmo espaço mental. Tanto<br />
uma como outra visam articular uma fórmula de concórdia por meio de uma ascese de ação e de<br />
pensamento que faculta a reclassificação do finito em função da totalidade e realize a<br />
desalienação do homem. O metafísico põe no devido ponto liturgias do intelecto, mas promete a<br />
seu discípulo aquilo mesmo que o sacerdote prega a seus fiéis, a saber, a reabilitação na paz e na<br />
alegria, depois de terminadas as provações transitórias" 71 .<br />
Está fartamente assessorada por citações, sobretudo de Gusdorf, a tese proposta na<br />
filosofia do grau de Aprendiz: tanto o selvagem como o filósofo vêem o mundo em situação, daí<br />
intuindo o absoluto, que é Deus, para voltar ao mundo e justificá-lo. Assim, "a meta da filosofia só<br />
pode encontrar-se na justificação do mundo e no equilíbrio de uma t<strong>eo</strong>dicéia" 72 . T<strong>eo</strong>dicéia é termo<br />
criado por Leibniz, e significa "justiça de Deus". Se o mundo é mau, é preciso saber por que o é;<br />
se o mundo resulta de uma queda, de uma culpa, é necessário endireitá-lo, desvirando-o do seu<br />
avesso. Se o homem é dragontino, pedra bruta, cumpre-lhe a ele transformar-se, transfigurar-se.<br />
Daí que o ponto final ou "o termo verdadeiro de toda filosofia é uma transformação do mundo,<br />
que sirva de ponto de arranque de novos empreendimentos" 73 . "Pelo que, o filósofo e, mais<br />
geralmente, o homem de gênio, é um revelador do mundo, ou antes um transformador das<br />
66 G<strong>eo</strong>rges Gusdorf, Tratado de Metafísica, 130-131<br />
67 G<strong>eo</strong>rges Gusdorf, Tratado de Metafísica, 131<br />
68 G<strong>eo</strong>rges Gusdorf, Tratado de Metafísica, 130<br />
69 G<strong>eo</strong>rges Gusdorf, Tratado de Metafísica, 137<br />
70 G<strong>eo</strong>rges Gusdorf, Tratado de Metafísica, 129<br />
71 G<strong>eo</strong>rges Gusdorf, Tratado de Metafísica, 136<br />
72 G<strong>eo</strong>rges Gusdorf, Tratado de Metafísica, 46<br />
73 G<strong>eo</strong>rges Gusdorf, Tratado de Metafísica, 48<br />
57
significações" 74 . "Portanto, não haveria, em filosofia, nem fim nem começo rigorosamente<br />
assinaláveis. Todo começo é recomeço, todo fim é convite, apelo" 75 .<br />
Começamos este nosso estudo pela intuição sensível, pela criação de um problema, a<br />
cerca no quintal, para testar o nível de inteligência de uma criança, de um cão e de uma galinha.<br />
Antes, não havia problema para nenhum destes animais; depois, os desafiamos, impondo-lhes a<br />
situação problemática. O selvagem, desde que sai da fase do puro animismo, depara-se com o<br />
mundo-problema. Deste modo, "a filosofia nasce quando desperta deste sono do imobilismo<br />
mítico. O estado de problema atesta a inquietação de um indivíduo que verifica ser, em seu<br />
mundo, como que pessoa deslocada" 76 . Antes tudo estava bem, sem problemas nenhuns, nem para<br />
o selvagem, nem para a criança, nem para o cão, nem para a galinha; de repente, se apresenta a<br />
cerca do quintal para os três últimos, e o mundo à mão para o primitivo. Acabada a fase animista<br />
mítica, "encontra-se definitivamente comprometida a segurança do gênero de vida, donde a<br />
nostalgia, que a humanidade nunca deixará de sentir, da idade de ouro, na qual se tinha a<br />
impressão de que os cuidados ainda não tinham dado entrada no mundo. De ora em diante o<br />
universo oferece-se como tarefa a cumprir; impõe-se a necessidade de repor em ordem o mundo<br />
quebrado, ainda que seja com risco de vida. Começa então a aventura da liberdade, e por entre as<br />
angústias dos indivíduos a humanidade move-se, assumindo a responsabilidade de sua promoção<br />
ou de sua degradação. O fracasso, bem como a consciência que tem do pecado, ecoa na<br />
reflexão" 77 .<br />
O mundo em situação para o selvagem e para o filósofo, compara-se à situaçãoproblema<br />
criado para a criança, para a galinha e para o cão. Do primitivo ao filósofo, cada um<br />
apresenta a sua solução racional, mas o ponto de partida é sempre a intuição, por sua natureza<br />
transintelectual.<br />
O Irmão filósofo Johann Gottlieb Fichte, discípulo de Kant, partia da intuição volitiva do<br />
Eu absoluto em que alicerça todo o seu idealismo. Tudo tem início no homem que quer agir para<br />
realizar alguma coisa desejada, pretendida. O eu que quer, deste modo, se põe a si mesmo como<br />
fundamento primeiro o qual pode não ser o mais importante, porém é o prioritário na ordem de<br />
idéias.<br />
No entanto, o eu como fundamento pressupõe, de pronto, um outro fundamento mais<br />
remoto que é a Vida. Daí que o eu quer agir, porque é vivo, e a Vida é Ação. É daqui que havia de<br />
partir Fichte. Por que não o fez? Diz José Ferrater Mora no ensaio de Ortega que "Fichte chegou<br />
quase até o limiar da compreensão da vida humana. Mas se deteve <strong>–</strong> se deteve freado por um<br />
persistente e herdado intelectualismo" 78 . Todavia, continuemos com Fichte:<br />
Uma vez posto a si mesmo, vem o ato seguinte: o eu quer realizar a sua ação; porém, ao<br />
realizá-la, encontra obstáculos que dificultam, que resistem, que se contrapõem ao agente, ao eu,<br />
ao sujeito da ação. Os obstáculos obrigam o eu a pensar para vencê-los, para superá-los. Deste<br />
modo é que o eu se faz um solucionador de problemas, um autor de ações, um superador de<br />
obstáculos.<br />
Como se vê, antes do pensar está o agir, e, para agir, é preciso que haja, primeiro o eu, e,<br />
depois, o seu querer. O eu quer; os obstáculos se opõem a ele, resistem-lhe a ação. É aí, então, que<br />
o eu ou sujeito vai estudar os obstáculos, os objetos que lhe obstam a ação, donde vem que o<br />
intelecto vem depois do eu e da vontade.<br />
Pelo visto, o sujeito ao pôr-se a si mesmo, põe o mundo como objeto da ação. Deus é,<br />
então, o Eu absoluto que quis o mundo; e do seu querer, da sua vontade, o mundo surgiu. Aqui<br />
está o que vem a ser uma intuição volitiva. Outro filósofo do mesmo filão é Schopenhauer que até<br />
escreveu um livro: "O Mundo como Vontade e Representação".<br />
74 G<strong>eo</strong>rges Gusdorf, Tratado de Metafísica, 49<br />
75 G<strong>eo</strong>rges Gusdorf, Tratado de Metafísica, 51<br />
76 G<strong>eo</strong>rges Gusdorf, Tratado de Metafísica, 78<br />
77 G<strong>eo</strong>rges Gusdorf, Tratado de Metafísica, 78-79<br />
78 Ortega y Gasset, Origem e Epílogo da Filosofia, 88<br />
58
Platão, para quem "o Verdadeiro, o Bem, o Belo são três aspectos da mesma realidade<br />
suprema, da qual derivam todos os Valores" 79 , nunca começa seus diálogos por Deus, pelo Bem ou<br />
pelas Formas, como o afirma Goldschmidt que prossegue: "O platonismo autêntico nunca se<br />
oferece, de início, o luxo de algum «princípio» donde possa deduzir todo o resto. Ele sempre<br />
começa por onde todo mundo começa; todas as investigações se voltam, inicialmente, para as<br />
coisas mais familiares do universo em que vivemos; não há nenhuma pesquisa dialética que não<br />
tenha sido, no começo, uma simples conversação" 80 . No entanto, seu método discursivo, sua<br />
dialética 81 , era só para expor sua doutrina. Para si, no entanto, ele guardava o seu trunfo, a<br />
intuição donde partiu, chegando mesmo a declarar: "A intuição esclarece e sustenta a dialética em<br />
todos os seus níveis" 82 .<br />
Com isto, Platão dá exemplo de que o método indutivo, que vai das partes para o todo e<br />
do particular para o geral, é bom para expor idéias, mas não para concebê-las, originariamente. A<br />
tomada de ser original há que se fazer pela intuição. Todavia, para transmitir idéias, o método<br />
indutivo, ou dialético, ou discursivo é o melhor, porque é mais fácil associar idéias do que<br />
dissociá-las. Os macacos de Koehle conectavam partes para chegar a um todo; isto é, enfiavam<br />
uma vara curta no oco de outra para torná-la longa, e empilhavam caixões, antes espalhados, tudo<br />
para alcançarem as bananas. Contudo, não conseguiriam tirar as conseqüências de uma premissa.<br />
Assim sendo, o método dialético ou discursivo, se opõe ao método intuitivo. Discursivo vem de<br />
discorrer e de discurso, um e outro vocábulo que nos dá a idéia de uma série de atos ou esforços<br />
sucessivos para captar a essência do objeto. A intuição, em vez de uma série de tais esforços, capta<br />
a essência ou a realidade do objeto por um único ato da inteligência. Fale Garcia Morente:<br />
"O método discursivo é, pois, essencialmente um método indireto. Em lugar de ir o<br />
espírito direto ao objeto, passeia, por assim dizer, ao redor do objeto, considera-o e contempla-o<br />
de múltiplos pontos de vista: vai sitiando-o cada vez mais de perto, até que por fim consegue<br />
forjar um conceito que se aplica perfeitamente a ele.<br />
"Frente a este método discursivo está o método intuitivo. A intuição consiste exatamente<br />
no contrário. Consiste num único ato do espírito que, de repente, subitamente, lança-se sobre o<br />
objeto, apreende-o, fixa-o, determina-o com uma só visão da alma. Por isso a palavra «intuição»<br />
tem relação com a palavra «intuir», a qual, por sua vez, significa em latim «ver». Intuição vale<br />
tanto como visão, como contemplação" 83 .<br />
Vimos que a Vida é Ação, e que é por meio da ação ou movimento que um animal tenta<br />
resolver seus problemas, como, por exemplo, o de evadir-se duma jaula. Este método animal de<br />
solucionar problemas chama-se ensaio-e-erro. Vimos que meditar sobre um problema é praticar<br />
um ensaio-e-erro subjetivo, donde tiramos que a reflexão é uma ação reforçada, do mesmo modo<br />
que, pela recíproca, a ação, no ensaio-e-erro, é uma contemplação enfraquecida. Vimos que o<br />
pensamento discursivo ou dialético, consiste em supor alguma coisa que ainda vamos averiguar, o<br />
que vem a ser: antecipamos o saber que buscamos. No momento seguinte, negamos nossa tese<br />
com argumentos contrários, discutindo as afirmações anteriores, isto é, fazemos uma depuração.<br />
Esta segunda fase, contrária à tese anterior, e que por isso se chama antítese, serve de ponto de<br />
partida para ulteriores afirmações e negações. Nisto se cifra a meditação ou reflexão, quando o<br />
problema se mostra complexo. Pois a intuição, quem o suspeitaria?, é o prosseguimento deste<br />
processo de reflexão; vejamos:<br />
Quando, depois de grande e prolongado esforço de meditação sobre dado problema, não<br />
conseguimos atinar com nenhuma solução, e, por isto, acabamos por desistir; quando, porque<br />
desistimos de procurar a solução, abandonamos o problema, e entramos em estado de descanso, de<br />
quietação racional, de profundo silêncio mental, inesperadamente, a mágica acontece, a intuição<br />
79 V. Goldschmidt, A Religião de Platão, 30<br />
80 V. Goldschmidt, A Religião de Platão, 34<br />
81 Dialética significa: seguir pensando<br />
82 V. Goldschmidt, A Religião de Platão, 48<br />
83 M. Garcia Morente, Fundamentos de Filosofia, 46<br />
59
surge, explode, relampeja, aparece, heureca! Nosso cérebro assemelha-se a um supercomputador<br />
que se programa a si mesmo com os dados da meditação aliado às experiências da vida. Esse<br />
prodigioso computador... que não deixa escapar nada e computa tudo, não cessa o seu movimento<br />
nêurico, a sua ação subcortical, quando paramos de lucubrar. E quando dá com a resposta do<br />
problema, ele joga para o consciente. Daí Einstein afirmar: "Penso noventa e nove vezes, e nada<br />
descubro; entro em profundo silêncio, e a verdade me é revelada".<br />
São Francisco de Assis vem por uma estrada, a cavalo. Ao encontrar-se com um leproso,<br />
teve sua alétheia, seu relâmpago de intuição emotiva. Viu tudo claro diante de si; seu universo<br />
familiar de valores esboroou-se. Apeia-se, então, do seu cavalo, abraça e beija o homem,<br />
seguindo-se deste ato, toda a sua vida de abandono das riquezas, iniciando a prática de boas obras.<br />
Fale Gusdorf:<br />
"Kierkegaard notava um dia esta condição essencial de toda reflexão: «O importante, na<br />
vida, é ter visto uma vez, ter sentido uma vez alguma coisa tão incomparavelmente grandiosa que<br />
tudo o mais comparado com ela parece ser nada: alguma coisa que nunca mais esquece, embora<br />
tudo o mais tombe no olvido»" 84 . E prossegue:<br />
"Kierkegaard, num escrito autobiográfico, evoca o momento em que tomou consciência<br />
de uma espécie de maldição divina que se abatia sobre sua família, e que para ele devia continuar<br />
sendo a cifra de seu destino de homem e de filósofo: «Foi então que sobreveio o grande tremor de<br />
terra, a horrorosa catástrofe que, de improviso, me impôs uma nova lei de interpretação infalível<br />
de todos os fenômenos...». Por coincidência significativa (continua Gusdorf), a mesma imagem se<br />
impõe a Nietzsche em admiráveis páginas onde descreve o itinerário espiritual do espírito jovem<br />
ainda escravo das aparências e como que adormecido na caverna platônica: «Para servos desta<br />
categoria o golpe decisivo sobrevém súbito como tremor de terra: a alma, ainda bisonha, sente-se<br />
abalada, isolada, arrancada <strong>–</strong> não compreende o que está passando. É uma instigação, um impulso<br />
que se exerce e os empolga como uma ordem; surge uma vontade, um desejo de avançar a todo<br />
custo, não se sabe para onde; violenta e perigosa curiosidade perante um mundo ignoto chameja e<br />
despede labaredas em todos os sentidos...»" 85 . Ainda Gusdorf:<br />
"Outro filósofo da mesma espécie que Kierkegaard e Nietzsche, a saber, Júlio Lequier,<br />
propôs uma parábola empolgante deste encontro com a verdade absoluta, numa página a que deu o<br />
título de A Folha de carpa. (...). «Ao pensar nisto, prossegue Lequier, todo meu ser se revoltou,<br />
gritei de angústia e de pavor: a folha tombou de minhas mãos e, como se houvesse tocado na<br />
árvore da ciência, baixei a cabeça desfeito em lágrimas»" 86 . Mais:<br />
"Descartes descobre o objeto do absoluto num pedaço de cera, simples suporte ocasional<br />
de sua reflexão, exatamente como a folha de Lequier" 87 . "O absoluto é a transcendência presente, e<br />
que transfigura todas as coisas à luz de suas significações" 88 . Por esta razão "religião e metafísica<br />
parece porem em ação certas estruturas básicas do ser humano; o fato de presentemente se oporem<br />
em nossa área cultural não deve mascarar implicações essenciais que hoje em dia, ninguém deseja<br />
que se manifestem demasiadamente. Claro está que a experiência do sacro é o protótipo de toda<br />
experiência do absoluto" 89 . Ainda isto:<br />
"Pascal vê, num acidente de carruagem, escancarar-se-lhe diante um abismo, segundo<br />
uma tradição onde alguns pretenderam enxergar um mito, mas que, em todo caso, se afigura<br />
profundamente reveladora do gênio pascalino. (...). E o Zaratustra de Nietzsche reconhece sua<br />
própria imagem no saltimbanco que dança sobre corda" 90 .<br />
"O destino bate à porta; cumpre porém, nesse mesmo instante, captar o sentido do apelo<br />
ao valor, e em seguida permanecer fiel à nova orientação do ser profundo que assim se revela. O<br />
84 G<strong>eo</strong>rges Gusdorf, Tratado de Metafísica, 133<br />
85 G<strong>eo</strong>rges Gusdorf, Tratado de Metafísica, 133-124<br />
86 G<strong>eo</strong>rges Gusdorf, Tratado de Metafísica, 134<br />
87 G<strong>eo</strong>rges Gusdorf, Tratado de Metafísica, 135<br />
88 G<strong>eo</strong>rges Gusdorf, Tratado de Metafísica, 135<br />
89 G<strong>eo</strong>rges Gusdorf, Tratado de Metafísica, 135<br />
90 G<strong>eo</strong>rges Gusdorf, Tratado de Metafísica, 42<br />
60
metafísico é todo aquele que reconhece, na interrogação antológica, sua própria vocação" 91 .<br />
Gusdorf ainda:<br />
"O discurso do método sairá a público somente em 1637, dezenove anos após o encontro<br />
com Beeckman, a quem se deve o impulso primordial que jogou o moço aspirante a oficial<br />
«Renato de Poitou» na aventura que desembocaria em Descartes" 92 .<br />
"O destino bateu as três pancadas, e foi Descartes quem subiu ao palco do teatro do<br />
mundo, entrando para todo o sempre na história. Fenômeno idêntico se verifica em todas as<br />
provocações exteriores, que só fazem sentido, porque permitem, aos olhos dos próprios<br />
interessados, uma espécie de epifania da verdade. Malebranche folheia, numa livraria, o Tratado<br />
do homem de Descartes, e exclama: "também eu sou filósofo..."Rousseau, indo visitar Diderot,<br />
que se encontrava prisioneiro em Vincennes, num dia de verão de 1749, durante o caminho lê no<br />
Mercure de France a notícia do concurso sobre determinada questão, aberto pela Academia de<br />
Dijon, <strong>–</strong> e inopinadamente, apenas em face da solicitação de um assunto de torneio de eloqüência,<br />
Rousseau descobre ser Rousseau. Kant lê Hume, lê Rousseau, encontra a Revolução Francesa...<br />
De cada vez, é a mesma tomada de consciência profética, mediante a qual o pensador ascende da<br />
existência à essência. Semelhante revelação pode ser dom do acaso, todavia o acaso só favorece<br />
aqueles que disso são merecedores. O filósofo é aquele que, tendo chegado à essência, impõe-se a<br />
tarefa de regressar da essência à existência, fazendo da essência o sentido íntimo da existência. O<br />
fenômeno opera uma espécie de desnudez: desmascara, e ao mesmo tempo, mobiliza, as potências<br />
no Bosque adormecido. A conversão filosófica abre um como que acesso à eternidade; consagra a<br />
adoção do caráter inteligível, que resolve a crise transformando a vida" 93 .<br />
Todas estas citações são para explicar o que é a alétheia, primitivo nome da filosofia.<br />
Depois, como diz Maritain, "Pitágoras, observando que a sabedoria convém propriamente só a<br />
Deus, e desejando que não o chamassem de sábio, mas tão somente amigo ou desejoso da<br />
sabedoria, foi o primeiro que propôs o nome de Filosofia (... <strong>–</strong> amor da sabedoria)" 94 . Daí que "um<br />
filósofo é um homem humanamente sábio" 95 .<br />
Depois de sua alétheia, depois de suas intuições basilares, "Descartes começa a duvidar<br />
de tudo; é, desde esse momento, o homem «que marcha sozinho nas trevas», possuidor de um<br />
segredo que o separa do resto de seus semelhantes, o segredo da «ciência admirável» que lhe foi<br />
revelado na noite de novembro. É tal o poder de transfiguração desse segredo que, desde o<br />
momento em que o pressentiu, o moço Descartes, alistado como voluntário para a carreira das<br />
armas, deixa de se compreender, a um tempo admira-se e queixa-se de ser obrigado a meditar em<br />
pleno ambiente da estupidez militar (inter ignorantiam militarem), cônscio de aí não ter mais nada<br />
que fazer". E continua Gusdorf:<br />
"Kierkegaard e Nietzsche, querendo caracterizar esse momento, falaram também do<br />
«sismo» que faz vacilar em suas bases mais profundas o universo pessoal. Na verdade, trata-se de<br />
um sismo, de um abalo das certezas estabelecidas e das evidências do senso comum, que desfaz o<br />
equilíbrio da vida pessoal. Para de tal nos convencermos, basta salientar que Descartes, depois de<br />
tomar a decisão, formula uma moral provisória para seu uso pessoal. Espinosa faz outro tanto, na<br />
Reforma do entendimento, traçando para si, anteriormente a toda investigação teórica, uma<br />
higiene física e até mesmo monetária, a fim de mostrar que a reforma visada não se circunscreve<br />
ao domínio das idéias, mas implica a "instituição de vida nova". A pessoa deslocada, enquanto não<br />
encontra a fórmula de concórdia que consagre a r<strong>eo</strong>rganização de sua vida espiritual, deve retornar<br />
ao seu lugar, promulgando um estatuto provisório para uma existência de ora em diante inadaptada<br />
e, por assim dizer, fora do prumo num universo destituído de sentido" 96 .<br />
91 G<strong>eo</strong>rges Gusdorf, Tratado de Metafísica, 43<br />
92 G<strong>eo</strong>rges Gusdorf, Tratado de Metafísica, 44<br />
93 G<strong>eo</strong>rges Gusdorf, Tratado de Metafísica, 44<br />
94 Jacques Maritain, Introdução Geral à Filosofia, 19<br />
95 Jacques Maritain, Introdução Geral à Filosofia, 20<br />
96 G<strong>eo</strong>rges Gusdorf, Tratado de Metafísica, 45<br />
61
Tendo em vista quanto aqui se disse, a tarefa, do selvagem ao filósofo, consiste em<br />
justificar o mundo o qual se mostra mau, invertido no negativo, onde a Vida que se mostra<br />
egoísta... através de todos os entes vivos, dá a palma da vitória para o forte e/ou astuto, tudo isto,<br />
em face da justiça de Deus (t<strong>eo</strong>dicéia). Por isto é que a Maçonaria está certa ao construir o<br />
ternário declarando: "Desde que o selvagem percebe que não<br />
1 <strong>–</strong> EXISTE POR SI MESMO<br />
2 <strong>–</strong> INTERROGA A NATUREZA<br />
3 <strong>–</strong> FAZ RENDER... CULTO A UM ENTE SUPREMO...<br />
Eis o triângulo:<br />
HOMEM<br />
MUNDO<br />
DEUS<br />
Estes três elementos são indispensáveis à construção de uma filosofia. Deus é uma<br />
intuição, e intuição não se define por ser transintelectual da mesma natureza dos postulados. Deus<br />
é infinito, e o infinito não tem boca para articular palavras. Quem é que fala na revelação? Quem<br />
falou à intuição de Moisés? à de Buda? à de Zoroastro?, à de Lao-Tse? Digamos que foi um anjo:<br />
e quem falou ao anjo?, ao arcanjo?, ao serafim, que é o mais alto na hierarquia!?<br />
A linguagem de Deus é a linguagem do ser, linguagem muda, mas escrita no livro da<br />
Natureza. Essa linguagem é idêntica a de uma viga de cimento armado que estivesse como que<br />
dizendo para o engenheiro construtor: "Considerando a grossura e a disposição dos ferros com que<br />
me armaram; considerando a carga que vou suportar, é certo que vou romper-me e o edifício virá<br />
abaixo". Essa é a linguagem do ser para aquele que, como o engenheiro da viga, a pode entender;<br />
essa, a intuição que consiste em ver a situação de um lance de olhos. Essa é a inteligibilidade das<br />
coisas, inteligibilidade que vem de inteligência de inter e legere <strong>–</strong> ler ou apanhar entre as coisas, o<br />
nexo.<br />
Como é que Deus falava ao salmista Davi? Di-lo o próprio Davi: "Os Céus proclamam a<br />
glória de Deus, e o firmamento anuncia as obras de suas mãos" (Sl 18,1). A isto escreve Vieira: "O<br />
mais antigo pregador que houve no mundo foi o céu: (...). Suposto que o céu é pregador, deve de<br />
ter sermões e deve de ter palavras" 97 . Eis a linguagem dos seres-das-coisas pela qual esses seres<br />
falam à intuição do homem. A intuição é a comunicação dos objetos a nós, na linguagem muda,<br />
que se nos mostra como uma situação, como, por exemplo, a cerca do quintal, a viga de cimento,<br />
os céus de Davi. Esta linguagem do ser é entendida em todos os níveis, como diz o texto<br />
maçônico, do selvagem ao filósofo, tal qual o sermão que nos prega os céus, no dizer de Vieira:<br />
"De maneira que o rústico e o navegante, que não sabem ler nem escrever, entendem as estrelas; e<br />
o matemático, que tem lido quantos escreveram, não alcança a entender quanto nelas há" 98 .<br />
Davi intuía Deus olhando para o Mundo, e mundo quer dizer puro, porque é aí que está o<br />
livro de texto escrito na linguagem do Ser. Os três elementos persistem sempre, são irredutíveis<br />
entre si, e nenhum deles pode ser alienado: Davi, o Mundo e Deus. Davi não é o mundo; é pessoa.<br />
O mundo não é Davi, nem é Deus; é Objeto, é plenitude da Coisa. Deus não é Davi, nem é o<br />
Mundo; ele é a plenitude da Pessoa, o Eu absoluto, falando como Fichte.<br />
De um lado está a pessoa, quer seja ela um selvagem, quer seja um filósofo; esta pessoa é<br />
o sujeito, o agente, o ativo, o que não pode deixar de agir porque a Vida é Ação. Do outro lado,<br />
em oposição à pessoa, está o Mundo, ao perto, ao longe, que é o objeto, o paciente da ação, o que<br />
sofre a atuação promovida pelo eu-sujeito-agente. O primeiro modo de atuar sobe o Mundo é o<br />
reflexivo, e consiste em observá-lo. Nesta contemplação do Mundo, nós o enxergamos de duas<br />
maneiras que são: ao longe e em grande, e ao perto e em pequeno. Ao longe e em grande é a<br />
97 Vieira, Sermões, 1, 60-61<br />
98 Vieira, Sermões, 1, 62<br />
62
visão do salmista que canta: "Os céus proclamam a glória de Deus, e o firmamento anuncia as<br />
obras de suas mãos" (Sl 19,1).<br />
Olhando o mundo ao perto, em miúdo, deparamo-nos com a Vida que é Egoísmo, dado<br />
que cada ente biológico é um egoísta. Aí impera a força, a astúcia, a rapina, a violência, dores e<br />
angústias, tragédias e mortes. Por causa das dores do mundo (Schopenhauer até escreveu um livro<br />
com este título), desde sempre houve uma animosidade contra ele, mundo, e Deus foi intuído<br />
como anti-mundo. Daí que o reino de Deus não é deste mundo conforme o afirma, expressamente,<br />
Cristo (Jo 18, 36), e S. João não deixa por menos ao declarar que "o mundo todo está posto no<br />
maligno" (I Jo 5, 19), do que conclui S. Tiago: "quem é amigo do mundo constitui-se inimigo de<br />
Deus" (Tgo 4, 4). Este é também o pensamento de Buda, no Oriente, e de Pitágoras, no Ocidente.<br />
E quando Heráclito, na Grécia, demonstrou que o mundo é um devir, um vir-a-ser, onde<br />
tudo tendo sido uma coisa está indo a ser outra que se transforma em outra, indefinidamente,<br />
Parmênides lhe contrapôs a doutrina do Ser, como essência pura, inespacial, intemporal, imutável,<br />
etc. Daqui nasceu o dualismo metafísico semelhante ao dualismo cristão, ao pitagórico, ao<br />
bramânico, ao budístico, ao zoroastrino, etc. O Topos Uranos de Platão ou Ilha dos Afortunados<br />
em nada se difere (e já o demonstramos no livro "Grandes Pontífices") do Céu dos bemaventurados<br />
cristãos.<br />
As revelações, assim como as filosofias intuíram Deus como Criador de um Mundo,<br />
verdadeiramente Mundo que quer dizer puro, Mundo esse, celeste, avesso deste nosso que é<br />
imundo, impuro, referto de caducidade, de aflições, de angústias, de dores, de mortes. Deus<br />
aparece, então, como o reverso da Vida-na-terra, sendo esta egoísta por motivo duma inversão<br />
que ocorreu no empír<strong>eo</strong>, quando a terça parte dos Espíritos celestes, inverteram o impulso<br />
amoroso no seu contrário impulso egoístico. Esta queda está na raiz de todas as religiões e mitos,<br />
como sendo a única maneira de explicar a existência da dor e do mal em nosso universo.<br />
Como a intuição de Deus se revela como o avesso do espetáculo que nos apresenta a<br />
Vida-na-Terra, dessa intuição de Deus nasceu a MORAL sobre que se ergue e se edifica a<br />
CIVILIZAÇÃO. Por isto é que CIVILIZAÇÃO é o mesmo que DESANIMALIZAÇÃO, que<br />
DOMÍNIO DO HOMEM SOBRE A BESTA que é o mesmo que SANTIFICAÇÃO.<br />
Qual é, pois, o objetivo da CIVILIZAÇÃO? Diga-o Toynbee:<br />
"Mas se houve alguns raros homens ou mulheres transfigurados, nunca sucedeu tal coisa<br />
com uma sociedade civilizada. A civilização, tal como a conhecemos, é um movimento mas não é<br />
uma condição, é uma viagem mas não é um porto. Nenhuma civilização conhecida chegou a<br />
atingir o OBJETIVO da civilização. Nunca houve uma comunidade de SANTOS sobre a<br />
Terra" 99 . Os destaques e versais são nossos.<br />
XV - O que é o Espírito ?<br />
O homem possui dois saberes: um que lhe é ofertado pelo mundo, e que ele recebe desde<br />
o berço, sobretudo que lhe vem com a linguagem. A primeira oferta que temos do mundo não nos<br />
vem diretamente da visão dele, mas, por via social da linguagem. Platão chamava doxa, a este<br />
saber que não procuramos e que, no entanto, nos assalta a todos os momentos e nos invade, nos<br />
penetra formando nosso primeiro conhecimento. O outro saber é aquele que procuramos, e que<br />
nasce ao perguntarmos: o que é isto? O querer saber o que é isto, leva-nos à segunda classe de<br />
saber a qual, porque se opõe à primeira, se chama para-doxa, donde nasceu o vocábulo<br />
paradoxo. O paradoxo, nascido por oposição à doxa, Platão chama de epistéme que é a ciência,<br />
ou seja, um saber que procuramos.<br />
99 Arnold J. Toynbee, A Civilização Posta à Prova, 57<br />
63
Ora bem. Quando nós nos iniciamos na Maçonaria, o Orador nos lê a Declaração de<br />
Princípios, existente como preâmbulo da Constituição, após o que se nos pergunta se estamos<br />
dispostos e em condições de cumprir esses princípios, ao que respondemos: sim. E nessa<br />
declaração está que a Maçonaria admite a prevalência do espírito sobre a matéria. Assim, o<br />
espiritualista admite a prevalência do espírito sobre a matéria, no passo que, o materialista, em<br />
oposição, assenta que a matéria é primaz na ordem das coisas. A doxa, ou a epistéme estaria, aqui,<br />
com quem? Seria que o espiritualista está com a doxa, com a opinião, e que o materialista deteria<br />
a recíproca, a epistéme que é a ciência?<br />
Suponhamos que um profano, na hora de ser iniciado, afirmasse, não a prevalência, mas<br />
a EQUIVALÊNCIA, entre o espírito e a matéria; neste caso, como procederia o Venerável Mestre<br />
conduzindo a iniciação?<br />
Vamos discutir isto, tendo em vista que "a Maçonaria é uma Instituição essencialmente<br />
filosófica," e, ipso facto, ela se ocupa da "investigação constante da verdade". Como todos os<br />
maçons admitem a prevalência do espírito sobre a matéria, então, vale perguntar-lhes: o que é o<br />
espírito?<br />
Quando um materialista sustenta que o espírito resulta da matéria, que primeiro está o<br />
cérebro, e, depois, o pensamento, o espiritualista reage com todas as forças, afirmando a primazia<br />
do espírito sobre a matéria. Porém, se o espírito é primaz, na ordem das coisas, então a matéria<br />
procede do espírito? Se, todavia, dissermos que a matéria é independente, e existe por si mesma<br />
desde toda a eternidade, sendo separada de Deus, e estranha a ele, então ela é uma forma de anti-<br />
Deus, dado que se opõe ao espírito, assente que "Deus é espírito" (Jo 4, 24), de certo, diferente dos<br />
demais espíritos, porque estes podem mostrar-se como bons e como maus. Se os espíritos bons<br />
acham sua oposição, sua contraditória, sua negação nos espíritos imundos, impuros, perversos,<br />
malfazejos, dos quais, não menos que Cristo faz inúmeras referências, em que consiste a primazia<br />
do espiritual sobre o material?<br />
Haveria, então, um Deus que é espírito, e um anti-Deus que é matéria, oposta e negativa<br />
dele, não sendo ele, logo, a origem de tudo o quanto existe? E a luz que era no princípio, acaso<br />
não veio de Deus? E a luz não é energia que pode tornar-se matéria?<br />
Já Vieira, discursando sobre a dificuldade que consiste em Deus ter criado a luz ao dia<br />
primeiro, e o Sol, ao dia quarto, assenta, com São Tomás, que o Sol nasceu da sua luz. Mas o Sol é<br />
matéria; logo, a matéria nasceu da luz. Por conseguinte, se Deus criou a luz, ipso facto, criou<br />
também a matéria..., donde se segue que ela não é estranha a Deus... como entendia Aristóteles<br />
cujo mais insigne discípulo foi São Tomás.<br />
Sendo que Deus é o que criou a matéria, não pode ela ser má, que, se o fosse, sê-lo-ia<br />
também seu Criador. Em que, logo, se baseia a tão disputada primazia do espírito sobre a matéria,<br />
se esta, tal qual o espírito, procedeu de Deus? Mais:<br />
Quando Deus criou a luz, tirou-a do que? Do nada, diz Santo Agostinho. Se do nada, ela<br />
é nada, tenha o aspecto que tiver, porque tudo o que existe é seu aspecto anterior modificado.<br />
Acaso, então, o Universo é nada? acaso somos nada?, não indo nós e o Universo além de pura<br />
ilusão fósmea? Acaso, logo, Deus é um Grande Mágico que, em estalando o dedo, fez surgir esta<br />
enorme massa de angústias, de sofrimentos?, no dizer de Schopenhauer?<br />
Todavia, se, como disse o próprio Deus, na alegoria bíblica, "a luz era boa" (Gên 1, 4), e<br />
não podia ser má, porque procedeu Dele, então, a matéria, nascida dessa mesma luz que é boa,<br />
também não pode ser má. E não o é, de fato, pois, prosseguindo Deus na gênese das coisas todas<br />
feitas de matéria, foi acrescentando que tudo, mares, terras, ervas, árvores frutíferas, luminares<br />
(Sol e Lua), répteis, demais viventes, era bom.<br />
E os místicos de todos os matizes concordam com a bondade das coisas exceto a parte<br />
chamada "povos da Bíblia" no dizer de Maomé, que acham que tudo se corrompeu com o pecado<br />
de Adão, embora, esses mesmos povos da Bíblia concordem que o pecado vem da parte do<br />
espírito, e não, da matéria, do corpo. Isto deu o que fazer a Santo Agostinho que argumentava: se a<br />
64
alma não se transmite ao filho, e sim, só o corpo; e se o pecado original está na alma, como este<br />
pecado original da alma do pai se transfere ao filho?<br />
Como todo fautor de religião é um filósofo, Moisés meditou muito, nos campos de<br />
Madiã, ao tempo em que apascentava o rebanho de Jetro, como foi a origem das coisas. Antes<br />
dele, em Mileto, aí pelo sétimo e sexto século antes de Cristo, já se perguntava: qual é a substância<br />
primacial, fundamental, primária, na ordem das coisas? Para Tales era a água, para Anaximandro<br />
era o apeiron, coisa indefinida, nem ar, nem água, nem terra, nem fogo, mas os princípios genitais<br />
de tudo; para Anaxímenes era o ar; para Heráclito era o fogo; para Empédocles eram os quatro<br />
elementos juntos, ar, água, terra e fogo. Estes quatro elementos estiveram presentes na física<br />
(natureza) de Aristóteles, venceram toda a Idade Média, só vindo a cair nos começos da<br />
Renascença.<br />
Fosse Moisés miletano em vez de egípcio, quanto à cultura, ele passaria a pertencer ao<br />
elenco de filósofos de Mileto com sua luz que era no princípio. Contudo, Moisés tira esta sua luz<br />
primordial de Akhenaten o qual, segundo Charles F. Potter, foi "o primeiro pacifista, o príncipe<br />
realista, o primeiro monoteísta, o primeiro democrata, o primeiro herege, o primeiro<br />
internacionalista, o primeiro humanista e a primeira pessoa que tentou fundar uma religião" 100 .<br />
Não é o Sol que se devia adorar, e sim, um poder oculto que se esconde no Sol, e que, através dele<br />
se derrama pela natureza criando tudo, seja sem vida, seja vivente. Assim, "Akhenaten parece ter<br />
tido uma vaga concepção do que Bergson veio a chamar «élan vital», ou «impulso vital»” 101 . Esta<br />
energia vital procedente do Sol era representada como raios vindo dele, cada raio terminado em<br />
pequeninas mãos, algumas das quais segurando o ankh, símbolo da vida <strong>–</strong> um oval preso à letra T.<br />
«O ankh fora tomado de muitas religiões, e também se encontra na arte cristã, como a cruz<br />
ansata, ou cruz de ansa. Originariamente, sem dúvida, teve ela significação fálica»" 102 . Este Deus-<br />
Luz-Vida de Akhenaten, aparece na sarça ardente de Moisés, no Deus-Vivo, até que São João<br />
declara que Deus é luz (I Jo 1, 5) e que Deus é amor (I Jo 4, 8).<br />
Vimos, já, que nosso primeiro conhecimento deste mundo, após nascidos, nos vem do<br />
contorno social, e que nossa primeira tomada de consciência do universo se faz ao mesmo tempo<br />
em que dominamos a linguagem. A este conhecimento que nos vem do mundo à mão, ao mesmo<br />
tempo que do contorno social, por meio da linguagem, chamava Platão de doxa que quer dizer<br />
opinião, em oposição à qual o filósofo põe a para-doxa, donde paradoxo, que é a ciência ou<br />
epistéme.<br />
Este é o motivo de dizer Ortega que a filosofia é um xeque-mate que se dá à verdade<br />
estabelecida, e começa desde o momento em que pomos, como objetos de meditação todas as<br />
verdades que nos foram impostas desde o berço. Por causa disto, o filósofo é o homem da questão,<br />
que questiona tudo, não aceitando nada, sem que antes tenha passado pelo crivo da razão.<br />
É deste modo que, naturalmente, nasce a dialética que não é outra coisa senão o ato de<br />
seguir pensando. E seguir pensando é discutir conosco mesmo. Primeiro enunciamos um<br />
pensamento, e o desenvolvemos até certo ponto. Depois negamos tudo por meio de uma<br />
proposição contrária, que também desenvolvemos. Após isto, fazemos a síntese entre os<br />
argumentos contraditórios os quais, por isto mesmo, se chamam tese e antítese. E deste modo,<br />
propondo uma tese e logo sua antítese e depois a síntese, nosso pensamento caminha. Eis, então,<br />
que a dialética se define também como a arte de raciocinar. Apliquemos isto:<br />
Quando a Maçonaria põe no cabeçalho de sua Constituição que ela admite a "prevalência<br />
do espírito sobre a matéria"; e o Venerável Mestre pergunta ao candidato se ele "está de acordo e<br />
em condições de cumprir esses princípios", e ele responde que sim, podemos argumentar: para se<br />
estar de acordo ou contra alguma coisa, é preciso conhecê-la; logo o candidato conhece ou sabe o<br />
que é o espírito e o que é a matéria. Mas esse conhecimento que ele tem do espírito é opinião?,<br />
ou é ciência? É doxa?, ou é epistéme? Vejamos:<br />
100 Charles F. Potter, História das Religiões, 15<br />
101 Charles F. Potter, História das Religiões, 26<br />
102 Charles F. Potter, História das Religiões, 26<br />
65
G<strong>eo</strong>rges Gusdorf, em seu "Tratado de Metafísica" afirma que o teólogo é o primo irmão<br />
do filósofo, e que os fautores de religiões são os primeiros filósofos. Por que? A razão disto está<br />
em que a filosofia se define como sendo uma visão do mundo, da qual se infere uma forma de<br />
conduta. Quer dizer: todos gostaríamos muito de saber como é o mundo, como ele funciona, para<br />
podermos nos orientar e nos ajustar a ele de uma vez para sempre.<br />
O que difere o filósofo do fautor de uma religião, é o modo de expressar-se, o modo de<br />
expor sua doutrina. Como é que havia Moisés de dar sua alétheia 103 cujo relâmpago lhe veio<br />
quando ainda estava no Egito, e sobre a qual foi meditar, retirando, nos campos de Mediã,<br />
enquanto apascentava os rebanhos de Jetro, como havia de dar esta sua filosofia, senão sob a<br />
forma de mandamentos e de preceitos de toda espécie, fosse para regular a conduta moral, fosse<br />
para guiar os costumes? Como é que ele, o príncipe genial, educado nas universidades do Nilo<br />
com o melhores mestres do mundo, como é que ele havia de acabar, por exemplo, com o péssimo<br />
e anti-higiênico costume dos soldados hebreus, de andarem defecando por toda parte? Naquele<br />
tempo não se sabia nada de micróbios, e é por isto que eles não aparecem no Gênese; contudo,<br />
Moisés suspeitava haver doença advinda após se pisar em fezes humanas; e é, então que<br />
estabelece este preceito:<br />
Juntamente com suas armas, cada soldado terá de levar uma pazinha ou pausinho para<br />
com eles fazer um buraco no chão, fora do arraial, em lugar designado, e dentro dele defecar, feito<br />
o que, cobrirá tudo com terra. Não suceda que, vindo o Senhor visitar o acampamento, se depare<br />
com alguma sujeira, fique irritado, e desampare o tal que a fez, para que ele morra. (Deut 23,13).<br />
Ninguém repara que quando Moisés perguntou a Deus que lhe falava do meio da sarça,<br />
em chamas quem era, a resposta EU SOU O QUE SOU (Ex 3,14) é próprio para um filósofo que<br />
se tenha interrogado: QUEM É O SER? <strong>–</strong> Dize ao povo meu: o QUE É me enviou.<br />
O que é é oposto do que não é. Examinando as coisas, verificamos que umas são em<br />
outras, e estas, em outras. Por fim, tem que haver aquilo que não é em outro, para ser... em si<br />
mesmo. Esse é o SER que os filósofos procuram, e essa busca dura já vinte e cinco séculos ou<br />
mais.<br />
Falando São Paulo aos gregos, no Areópago, sustenta que Deus não está longe de nós,<br />
mas perto, uma vez que "nele vivemos, e nos movemos, e existimos"(Atos l7, 28). Este Ser<br />
continente incontido, isto é, que contém em si tudo, e não é abarcado por nada, foi havido como<br />
sendo o Espaço. Assim também, para Espinosa, tal como para São Paulo, "tudo o que é, é em<br />
Deus". Deus é o lugar em que se inserem as coisas, segundo Aristóteles. Tal, também, pensava<br />
Campanella. Para os N<strong>eo</strong>platônicos, o espaço era o próprio Deus. Kant supunha haver três<br />
intuições puras prioritárias (a prioris) que eram, espaço, tempo e causalidade, e que, sobre estas<br />
três, ou a partir delas, todos os processos intelectuais se elaboravam. Porém, o espaço objetivo<br />
tinha que ser infinito, e, sendo-o, estaria cheio duma matéria também infinita, pelo que essa<br />
matéria infinita se confundiria com Deus, donde se tira que Deus é espacial e material.<br />
Esta conclusão, embora repugnasse a Kant, estava certa, sendo errado supor que a matéria<br />
é vil, imunda, alheia à divindade. Para Moisés não o era; se o fosse, ele a não faria nascer da luz,<br />
pondo ainda na fala de Deus, que tudo o quanto ia criando de material, era bom. A vileza da<br />
matéria tem origem primeiro oriental, e, depois, grega, nascendo aqui do dualismo metafésico que<br />
estabelecia ser este nosso mundo, o mundo do não-ser. A própria palavra mundo significa puro,<br />
donde vem que imundo quer dizer impuro. São Francisco de Assis não via incompatibilidade<br />
entre si e seu corpo, e chamava a este de irmão corpo; e se o corpo era irmão, não podia ser<br />
considerado como inimigo.<br />
Temos de lutar contra nossa animalidade grosseira cuja baixeza pode chegar ao<br />
subanimal, superando, em muito, a ferocidade da besta mais feroz, a luxúria do capríd<strong>eo</strong> mais<br />
lascivo, a sordidez e a torpeza do animal mais sórdido e torpe. É, sobretudo, contra esse<br />
103 Iluminação interior, intuitiva, subtânea, pela qual a verdade é revelada num único ato da consciência, significando<br />
descoberta, revelação, desnudamento, apocalipse. Este primitivo e belo termo grego foi substituído por Pitágoras pela<br />
palavra filosofia.<br />
66
subanimalismo que se deve lutar, e, não, contra o corpo que, uma vez dignificado pela virtude,<br />
passa a ser o "santuário do Espírito Santo" (I Cor 6, 19), com o qual, portanto, podemos glorificar<br />
a Deus (I Cor 6, 20); corpo que é o campo de semeadura em animal, para a colheita em espiritual<br />
(I Cor 15, 40); corpo corruptível que cumpre ser revestido de incorruptibilidade (I Cor 15, 53).<br />
São Paulo não diz que "há corpos celestes e corpos terrestres"? (I Cor 15, 40). Não afirma haver<br />
corpo corruptível, e corpo incorruptível? Desde que há corpo há espaço com três dimensões, e se<br />
esse espaço não está vazio, se não é um oco, está cheio do quê?, senão de uma matéria espiritual<br />
(?!) incorruptível?<br />
O espiritual, portanto, a seu modo, também, é material, dado que os espíritos têm<br />
corpos, e não há corpos tridimensionais (espaço) sem matéria. E é dessa matéria, presente nos<br />
corpos dos espíritos, que é feito o Mundo Celeste que Cristo dizia chamar-se, também, a "Casa do<br />
Pai", onde há muitas moradas, nas quais ele prometia ir preparar os lugares para os seus (Jo 14, 2).<br />
Não há, logo, opor o espiritualismo ao materialismo, porque o próprio espiritualismo, também, a<br />
seu modo, é materialista, visto como existe uma matéria incorruptível que enche a forma<br />
corporal dos espíritos, habitantes, eles, de um mundo espiritual-material, ou, se se preferir,<br />
material-espiritual.<br />
Tudo o que existe (e existir vem de ex-sistere 104 que significa estar por fora, estar no<br />
tempo) possui matéria, e se não possuir matéria de nenhuma espécie, simplesmente não existe. É o<br />
caso dos entes de razão, das essências, dos objetos matemáticos, dos conceitos, os quais SÃO,<br />
mas não EXISTEM. Não há um tempo, por exemplo, em que o triângulo não era, e depois passou<br />
a ser. Ele é, desde sempre, podendo ser construído com a matéria (papel e lápis), e é só quando<br />
passa a existir objetivamente. Antes disso ele é um ente de razão, um objeto ideal. Por isto, tudo o<br />
que existe, existe por sua matéria. Se o espírito não possuísse matéria alguma, ele seria um ente de<br />
razão, que só existe na nossa mente durante o transcurso do pensamento rememorativo. Se nossos<br />
mortos não tivessem um outro corpo de matéria, de matéria incorruptível, no dizer de São Paulo,<br />
eles seriam simples memória em nossa mente, donde se segue que "morreu, acabou"! O<br />
espiritualista se enfurece contra o materialista? Saiba ele, então, que, sem a matéria, também<br />
"morreu, acabou"!<br />
Mas, o que é a matéria? Fale Ortega:<br />
"Quando Aristóteles se encontra com que tudo está «feito de alguma coisa» como<br />
cadeiras e mesas e portas estão feitas de madeira, chamará a esse ente de que (ó éx oy) estão feitas<br />
todas as coisas, a «madeira» (hylé) <strong>–</strong> entenda-se, a «madeira por excelência, a última e universal<br />
madeira». Ou «matéria». Nossa palavra matéria não é senão a madeira metaforizada" 105 .<br />
Matéria que é o mesmo que substância <strong>–</strong> de sub e estar (substans) <strong>–</strong> é a que está de<br />
baixo da essência ideal; matéria que é o mesmo que conteúdo o qual enche a forma ideal e a torna<br />
substanciosa ou substantivamente real. A essência é aquilo que a coisa é; a matéria é aquilo de que<br />
a coisa é feita. Quando perguntamos: o que é isto? A resposta é a essência ou inteligibilidade da<br />
coisa: isto é uma roda; isto é uma estante. Quando perguntamos: de que é feito isto?, queremos<br />
saber de que matéria ou substância é feita a coisa. Esta roda é de pedra; esta estante é de ferro.<br />
Se tudo o que existe, sem nenhuma exceção, é constituído por um par de opostos e<br />
complementares, opostos que são essência e substância, forma e conteúdo, como será possível<br />
dar primazia a uma destas partes, em detrimento da outra?<br />
Em face disto, perguntamos: o que é o espírito? É uma entidade viva, atuante, pensante,<br />
capaz de sentimentos e emoções, privada do seu corpo de matéria mais densa. De que é feito o<br />
espírito? Ele é constituído por uma substância ou matéria incorruptível, como o afirma São Paulo,<br />
matéria essa que lhe enche a forma corporal.<br />
104 Assim é como está na obra "Filosofia Universal"de Huberto Rohden, Vol. I, pág. 192. Todavia, J. Mesquita de<br />
Carvalho, em seu "Dicionário Prático da Língua Nacional", dá, como raiz do vocábulo existir, IST ou ST, donde,<br />
exISTere.<br />
105 Ortega y Gasset, Origem e Epílogo da Filosofia, 208-209<br />
67
Sendo que, como estamos vendo, até o espírito tem que possuir sua parte substancial,<br />
material, sem a qual ele não existe, em realidade, como é possível que a tese-essência, que a<br />
tese-alma e a antítese-substância NÃO SEJAM EQUIVALENTES na síntese-da-entidade que<br />
essas oposições formam?<br />
Se o materialismo não pode ser vencido pelo espiritualismo, porque este também, a seu<br />
modo, é materialista, dado que, nele, também há a matéria que dá existência às formas<br />
espirituais, e também ao mundo celeste no qual essas formas habitam, o jeito não é procurar<br />
vencê-lo, mas, superá-lo.<br />
Esta é uma das SÍNTESES que o nosso tempo nos impõe, consistindo ela, aliada às<br />
demais sínteses, à FILOSOFIA NOVA, exposta na obra "Grandes Pontífices". Vejamos como<br />
fazer esta síntese:<br />
Os filósofos de Mileto, no VI século a. C., se propunham a questão de qual seria a<br />
SUBSTÂNCIA primacial, fundamental, primeira na ordem das coisas. Para Tales era a água; para<br />
Anaximandro, o apeiron, uma substância indefinida; para Empédocles eram os quatro elementos:<br />
ar, água, terra e fogo. Para Heráclito era o fogo. Se houvéramos de incluir Moisés e São João entre<br />
os filósofos substancialistas, teríamos isto: para Moisés, a substância primária era a Luz, e, para<br />
São João, igualmente, além de ser a Luz ("Deus é Luz"<strong>–</strong> I Jo 1, 5), Deus, também, é o Amor<br />
("Deus é Amor" <strong>–</strong> I Jo 4, 8).<br />
O primeiro ato do Criador, para Moisés, foi criar a luz ao primeiro dia, e só no quarto dia<br />
é que foram criados o Sol, a Lua e as estrelas. De onde, pois, vinha a luz primeira? Faz trezentos e<br />
trinta e oito anos que Vieira levanta a questão de o Sol ter sido criado quatro dias após surgir a sua<br />
luz. Escreve ele: "São Tomás, e com ele o sentir mais comum dos teólogos, resolve que a luz que<br />
Deus criou o primeiro dia, foi a mesma luz de que formou o sol ao dia quarto. (...) No primeiro<br />
dia foi criado o sol informe; no quarto dia foi criado o sol formado. São os termos de que usa São<br />
Tomás. No primeiro dia foi criado o sol informe, porque foi criado em forma de luz; no quarto dia<br />
foi criado o sol formado, porque foi criado em forma de sol" 106 .<br />
De maneira que, conforme o deduz São Tomás, Moisés deixara implícito, antes de a<br />
ciência moderna o demonstrar, que a energia se transforma em matéria, e que, portanto, não há<br />
matéria, no Sol nem abaixo dele, que não houvesse sido luz no princípio. Ora, se a luz é a que era<br />
no princípio, e "Deus é Luz", como o afirma São João, podemos substituir, então, no texto do<br />
Evangelho de São João a palavra Verbo pela palavra Luz, e teremos:<br />
"NO PRINCÍPIO era a Luz, e a Luz estava com Deus, e a Luz era Deus. Ela estava no<br />
princípio com Deus. Todas as coisas foram feitas por ela, e sem ela nada do que foi feito se fez"<br />
(Jo I, 1 a 3).<br />
Temos dado, então, o primeiro passo ao estabelecer: o Sol nasceu da sua luz; ou então: a<br />
luz se fez matéria; ou ainda: matéria e energia são termos reversíveis entre si, e o fato desta<br />
reversão aterroriza o mundo hoje <strong>–</strong> a bomba atômica! Dando-se à seta o significado de "vai para",<br />
temos a primeira fórmula:<br />
MATÉRIA ENERGIA<br />
O segundo passo é saber que as energias são transformáveis umas nas outras. Todavia,<br />
nestas transformações, as energias se degradam dinamicamente, isto é, vão-se tornando energias<br />
pobres do ponto de vista de produzir trabalho mecânico. Ora, desde que matéria e energia são<br />
apenas modos de a substância manifestar-se, se a matéria se conserva, sendo indestrutível, ipso<br />
facto, a energia se conserva e é indestrutível. Como se não bastasse esta conclusão, Lavoisier<br />
estabeleceu que "na natureza nada se cria e nada se perde, mas tudo se transforma". Na química,<br />
este princípio diz: o peso dos reagentes é igual ao peso dos produtos da reação, mais ou menos a<br />
energia, ou produzida, ou consumida, conforme se a reação for exotérmica ou endotérmica. Na<br />
mecânica, a energia consumida é igual ao trabalho produzido mais as perdas em calorias, ou então,<br />
106 Vieira, Sermões, 1, 182 <strong>–</strong> Ed. das Américas<br />
68
em vez de trabalho que todo ele é atrito que desenvolve calor, a energia consumida é igual a<br />
energia produzida de nova espécie, mais as perdas em calor, pelo atrito, e mais o coeficiente de<br />
degradação. Então, temos isto: as energias são transformáveis umas nas outras; e nessas<br />
transformações elas se degradam; e embora se degradem, conservam-se constantes (princípio de<br />
conservação da energia). Se do nada não sai nada, e o que existe, vem de transformações, do quê,<br />
de que algo anterior nasceu a energia vital?, ou seja: de que energia antecedente surgiu a<br />
energia vital conseqüente? Antes não havia vida no universo, e depois ela passou a existir; do<br />
quê?<br />
Não aceitamos a tese de muitos, de que a filosofia seja a síntese das ciências, do mesmo<br />
modo que não se pode dizer que a inteligência resulta dos sentidos. Embora não haja inteligência<br />
sem os sentidos, ela é o centro de elaboração das imagens e impressões recebidas através deles. O<br />
que criou os sentidos foi a VIDA; e, ao ir criando os sentidos, como se pode verificar analisando<br />
os estágios por que ela passou, seja num embrião, seja na escala zoológica, concomitantemente,<br />
foi criando também o centro de elaboração, o centro nervoso que, mais tarde, se mostrou ser o<br />
cérebro no qual tem sede a inteligência. Esta é a que elabora os dados vindos dos sentidos, mas ela<br />
não é o produto, nem a síntese destes. Os filósofos realistas diziam: "nada há na inteligência que<br />
não tenha passado pelos sentidos". A isto, Kant acrescenta: "menos a própria inteligência".<br />
De igual modo, a filosofia tende a resumir-se nesta sentença paralela ao enunciado<br />
anterior kantiano: Nada haverá na filosofia que não tenha vindo das ciências, menos a própria<br />
filosofia. Como a filosofia é o centro de elaboração dos dados recebidos das ciências, tal qual a<br />
inteligência o é das sensações, podemos dizer: as informações sensoriais, estão para a<br />
inteligência, assim como as teses finais das ciências estão para a filosofia.<br />
São tão necessárias as ciências à filosofia, como as impressões sensoriais à inteligência,<br />
que, quando ainda não havia ciências como hoje, a filosofia supunha verdades científicas em suas<br />
hipóteses. Estas hipóteses científicas, forjadas pela filosofia, foram os pontos de partida das<br />
ciências. Agora, cumpre à filosofia organizar as teses vindas das ciências, construindo suas<br />
próprias hipóteses filosóficas.<br />
Fique, pois, bem claro que a filosofia é uma instância superior de elaboração de dados<br />
científicos, do mesmo modo que, paralelamente, os sentidos produzem as imagens sobre as quais<br />
cavalga a inteligência. A diferença entre um macaco arbór<strong>eo</strong> e um homem é que, neste, existe um<br />
prodigioso centro de elaboração (inteligência) o qual, no macaco, se mostra embrionário. Quanto<br />
aos sentidos, o homem pode até mostrar-se em desvantagem em relação a certos animais.<br />
Conseqüentemente, a filosofia continua tendo seu campo próprio, e é a ela que todas as<br />
ciências hão de recorrer ao assentar seus primeiros princípios e seus postulados, uns e outros<br />
indemonstráveis. Se tais primeiros princípios e postulados são indemonstráveis, e, no entanto,<br />
eles fundamentam as ciências, já se vê que eles não pertencem à esfera das ciências, e, sim, a da<br />
filosofia. Haja vista, por exemplo, que as ciências não podem fundamentar a MORAL; e sem<br />
moral não há civilização, e sem civilização não há ciências...<br />
As ciências, portanto, não vão além de suas sentenças finais que são generalizações.<br />
Estas generalizações são a matéria bruta da filosofia. Vejamos e utilizemos algumas destas<br />
sentenças:<br />
1 - A energia-substância 107 do Universo é constante, dado que "na natureza nada se cria e<br />
nada se perde, mas tudo se transforma" (Lavoisier). Em decorrência disto, temos que tudo o que<br />
existe é o seu aspecto anterior modificado.<br />
2 - As energias transformam-se umas em outras, e, ao se transformarem, elas se<br />
degradam dinamicamente, ou seja, vão perdendo a capacidade de produzir trabalho mecânico.<br />
Estes dois enunciados produzem uma contradição, um paradoxo... que a ciência não<br />
resolveu, que é:<br />
3 - A energia-substância do Universo é constante, e as energias se degradam.<br />
107 Termo criado por Einstein para ser o denominador comum entre todas as matérias e tidas as energias do<br />
Universo.<br />
69
Para onde vai, então, a energia degradada? Em que se transforma ela? Por um lado, as<br />
energias se conservam, isto é, não se perdem; por outro, elas se degradam. Logo, a energia<br />
produzida pela desintegração atômica, não se torna mais, in natura, na matéria donde proveio. Em<br />
vez disto, ela toca por diante em seu processo de degradamento dinâmico, a cada transformação.<br />
Se a energia se transforma em matéria, e, depois, pela desintegração atômica, essa<br />
mesma matéria se transforma em energia, e esta energia provinda da desintegração atômica, se<br />
degrada, temos esta conclusão: o processo transformativo universal é irreversível. Logo, a<br />
primeira energia que vai para a matéria, não é igual a segunda energia, a que nasce da matéria;<br />
se o fosse, teríamos um circuito fechado, e estaria, aí, o "eterno retorno" de Heráclito-Nietzsche.<br />
Assim, fica resolvida a contradição, e solucionado o paradoxo da ciência existente entre<br />
seus dois princípios: o da "conservação da energia", e o da "degradação dinâmica". A solução<br />
consiste em alterar a fórmula PROVISÓRIA já exposta, só porque aceita por todos, que é:<br />
ENERGIA MATÉRIA<br />
pela outra, a da irreversibilidade do transformismo universal, exposta assim:<br />
ENERGIA MATÉRIA ENERGIA DEGRADADA<br />
Eis o que faz a filosofia, elaborando sobre ou com os dados que a ciência lhe propicia<br />
com suas teses ou sentenças, tal qual faz a inteligência elaborando sobre ou com as impressões<br />
vindas do mundo através dos sentidos.<br />
Portanto, a "luz que era no princípio" de Moisés e de São João, não é a mesma luz que,<br />
vinda do Sol, move, agora, toda a máquina da VIDA no mundo.<br />
Se "todas as coisas foram feitas por ela (Luz), e sem ela nada do que foi feito se fez" (Jo<br />
1, 3); do que surgiu a vida? Se do nada não sai nada, e tudo o que existe é algo anterior<br />
modificado, de que algo anterior surgiu a vida? Pois não pode ser de outra coisa, senão da energia<br />
degradada... a qual não podendo mais movimentar as maquinas mecânicas, passam a acionar as<br />
máquinas vivas.<br />
Eis isto, então, posto em fórmula:<br />
MATÉRIA ENERGIA ENERGIA DEGRADADA VIDA<br />
Qual será o passo seguinte? Ficou demonstrado que tudo o que existe é o seu estado<br />
anterior modificado. Ora, da vida nascem os sentimentos por um lado, e a consciência e o<br />
pensamento, por outro. Então, os pensamentos e os sentimentos são originados da energia Vital<br />
nascida das energias degradadas. Todavia, o mais alto e mais sublime sentimento é o amor.<br />
Logo, o amor é a energia-substância na sua forma suprema, além da qual não há mais subir.<br />
Sendo o amor o fim da escalada ascendente, sendo tanto mais alto quanto mais se sublima; sendo<br />
ele o fim da cadeia de transformações; não havendo o superamor nem o transamor, pelo que ele se<br />
torna o termo final, sem referência a nada mais acima de si; não havendo mais nada com que se<br />
relacionar, sem termo de relação cessa de ser relativo, tornando-se absoluto. Sendo o amor<br />
absoluto, ele fica Deus, donde dizer São João que "Deus é amor" (I Jo 4, 8).<br />
Conseqüentemente:<br />
MATÉRIA ENERGIA VIDA SENTIMENTOS AMOR<br />
70
Acima, portanto, da grande síntese de Moisés, está a maior ainda, a mais que grande, a<br />
suprema síntese de São João, não sendo sem razão que ele é cognominado a Águia dos Apóstolos.<br />
Em conclusão do que vínhamos expondo, podemos repetir a pergunta fundamental da<br />
filosofia quando ela nascia, em Mileto, no VI século a. C.: "QUE SUBSTÂNCIA EXISTE?,<br />
primordial, primaz, na ordem das coisas? Substância que é em si mesma, e, não, em outra? Para<br />
Tales era a água; para Anaxímenes era o ar; para Heráclito era o fogo; para Empédocles eram os<br />
quatro elementos ar, água, terra e fogo. Saindo de Mileto agora: para Akhenaten primeiro, e<br />
depois, para Moisés, era a luz; para São João, além de ser também a luz, também era o amor.<br />
Atrás, no texto de São João, havíamos substituído Verbo por Luz. Agora, como ele afirma que<br />
"Deus é amor" (I Jo 4, 8), substituindo Verbo por Amor, teremos:<br />
"NO PRINCÍPIO era o Amor, e o Amor estava com Deus, e o Amor era Deus. Ele estava<br />
no princípio com Deus. Todas as coisas foram feitas por ele, e sem ele nada do que foi feito se<br />
fez" (Jo I, 1 a 3).<br />
Fechando o raciocínio numa conclusão monumental e última, da qual não há fugir, temos:<br />
aquela "matéria", aquela "energia-substância" que enche consigo o Espaço Infinito, constitui o<br />
que Espinosa chamava o Corpo de Deus; a SUBSTÂNCIA desse CORPO, é o Amor do qual tudo<br />
se fez, e para o qual tudo retorna, dado que ele é o ponto da circunferência onde os extremos se<br />
ligam, ou seja, é o Alfa e o Ômega; o Princípio e o Fim; o Primeiro e o Derradeiro. (Apoc 22, 13).<br />
Um homem, portanto, que dissesse de si mesmo que é materialista; como a matéria vem<br />
da energia, por enrolamento da onda em partículas, e estas tornam a ser energia, por desintegração<br />
atômica; se tal homem não for um retrógrado, passará a chamar-se a si mesmo de energista.<br />
Todavia, como as energias, em se transformando umas nas outras, vão-se degradando<br />
dinamicamente; como em se degradando, torna-se dinamicamente pobres; como, por isto, passam<br />
a ser outra coisa; assente que, na natureza, "nada se perde"... e "tudo se transforma"... donde se tira<br />
que a energia-substância do universo é constante, então, essa outra coisa saída da energia<br />
degradada, é a energia vital. Logo, o nosso homem que era antes materialista e, agora, energista,<br />
tem que passar a chamar-se vitalista. No entanto, a vida não é o fim; ela se sublima, no homem,<br />
em razão e sentimento ambos que se fundem na INTUIÇÃO do santo e do gênio. Os sentimentos<br />
ganham o topo da hierarquia, além do qual não há mais subir, quando chegam ao nível do amor.<br />
Este amor, como é o topo da hierarquia, não pode relacionar-se a nada mais acima de si, pelo que,<br />
não sendo relativo, é ABSOLUTO, e, sendo absoluto, é Deus. O nosso homem que era<br />
materialista, e se fez energista, e se passou a vitalista, e se tornou sentimentalista, é, agora, o<br />
que? O Amor, em grego, se chama Eros, donde vem que o nosso homem, se entendeu tudo, dirá,<br />
de si, que é erosista. Este será o homem do futuro, o que superou o materialismo, aceitando-o<br />
como primeiro degrau de sua auto-realização eterna. Não há, pois, vencer o materialismo, como<br />
cumpre fazer com um inimigo, mas, assimilá-lo, digeri-lo, superá-lo.<br />
É a revolução franciscana que implicita o seguinte: visto como nenhum espírito pode<br />
prescindir duma matéria, nem desvencilhar-se de um corpo, ainda que ele seja um Serafim, ainda<br />
que seja o próprio Deus ("Deus é espírito"- Jo 4, 24 e II Cor 3, 17), então, a matéria em si, não<br />
pode ser inimiga, mas, irmã, tal qual o é o corpo, donde se tira que o mal não está na matéria,<br />
senão na animalidade grosseira, no egoísmo fechado, na vilania, na imundicie.<br />
Isto que expomos, com base nos Evangelhos, tem pleno apoio em Platão, dado que o seu<br />
Topos Uranos coincide ipsis litteris com o Mundo Espiritual dos pensadores cristãos.<br />
Querendo, Platão, descrever o mundo ideal de Parmênides, que foi havido como sendo o<br />
mundo da realidade, que lhe saiu? Acaso, o Topos Uranos ficou, como Parmênides o exigia, um<br />
mundo fixo, imutável, intemporal, incausal, inespacial, etc., como o impõe os objetos ideais que<br />
são as formas arquétipas, com forte odor de g<strong>eo</strong>metria?<br />
Diz Platão que o Demiurgo (parelho ao Verbo) cria as almas na cratera. Criar é<br />
transformar algo em algo, e isto é o devir ou vir-a-ser heracliteano. Aí está o movimento do<br />
Demiurgo, o que implica tempo, e ainda o espaço em que ele se move, e a substância (matéria)<br />
que ele emprega na feitura das almas. Como a cratera é única para todas as almas, elas saem<br />
71
indiferenciadas, semelhantes às bonecas prensadas numa fábrica; após isto, as almas são postas<br />
frente às formas imperecíveis ou arquétipos eternos. Outra vez os verbos de ação ou de<br />
movimento (tempo), e o espaço intermediando as almas e as formas arquetípicas.<br />
E por aí se vai, mostrando que o topos uranos, ou mundo celeste de Platão, em tudo se<br />
parece ao dos cristãos. Até a queda das almas existe, e é quando elas, segundo Platão, são postas<br />
nos vários planetas, com o fim de diversificar-se, pois, jamais, retornam ao estado de<br />
indiferenciação. Aí, nos planetas, elas se esquecem do que contemplaram no lugar celeste, e,<br />
através das reencarnações em corpos de matéria corruptível, elas vão-se recordando do prístino<br />
passado, ao mesmo tempo que adquirindo a sabedoria e a diferenciação.<br />
Assim, o topos uranos de Platão e o mundo celeste dos cristãos se eqüivalem, quanto a<br />
que um e outro é constituído de matéria a qual enche consigo um espaço próprio onde entes<br />
espirituais, feitos de corpos de matéria incorruptível, se movimentam. A salvação da alma, em<br />
Platão, se dá pela conquista da sabedoria, no passo que, para Cristo, a alma se salva quando se<br />
torna amorosa. Cada um, por seu modo, diz a mesma coisa, porque o amor é sábio, visto que não<br />
erra, e, pela mesma razão de não errar, a sabedoria é santa, donde vem que ser sábio é ser santo e<br />
vice-versa.<br />
Segundo Platão, portanto, as almas (espíritos) rompem o ciclo das reencarnações ao<br />
tornar-se sábias. Esta Sabedoria, em Platão, eqüivale ao Amor ou Eros que, como cristãos, nos<br />
cumpre a nós desenvolver.<br />
Tal, o substancialismo erosista que dominará o mundo do terceiro milênio em diante, o<br />
que não implica ser preciso, a ninguém, mudar de religião.<br />
CONCLUSÃO FINAL: considerando que matéria, energia, vida, pensamento<br />
(dinamismo mental), vontade, sentimento, afeto, amor, tudo é ENERGIA-SUBSTÂNCIA;<br />
considerando que nada existe que não seja feito dessa ENERGIA-SUBSTÂNCIA, e isto sem<br />
nenhuma exceção; considerando que um ESPÍRITO, qualquer que seja a sua hierarquia, e por fim<br />
o próprio DEUS, o que é mais, é constituído por ela, pela ENERGIA-SUBSTÂNCIA;<br />
considerando que essa ENERGIA-SUBSTÂNCIA, na sua expressão mais excelsa, é o AMOR,<br />
donde vem que Cristo põe esse AMOR como começo e fim deste nosso GRANDE CICLO<br />
CRIACIONAL ao dizer: "Eu sou o Alfa e o Ômega, o princípio e o fim, o primeiro e o derradeiro"<br />
(Apoc 22, 13); perante todas estas considerações bem fundamentadas, pergunta-se:<br />
Que sentido tem afirmar a prevalência do espírito sobre a matéria? Ainda que espírito se<br />
traduza por alma, ainda assim, pode haver alguma forma objetiva sem sua substância?, ou alma<br />
sem seu corpo? Não será, então, que se deva fizer que são EQUIVALENTES corpo e alma, como<br />
sói ser a tese e a antítese, ambas, sempre, no mesmo nível hierárquico, por isto mesmo, da mesma<br />
importância, do mesmo valor?<br />
Eis aqui uma amostra do que tem a fazer a "Sublime Instituição", para que não seja letra<br />
morta sua "Declaração de Princípio", na qual afirma que é uma "Instituição essencialmente<br />
filosófica", e que, em decorrência disto, se ocupa da "Investigação constante da verdade"!<br />
Esta filosofia, aqui e alhures exposta, tinha que surgir no mundo, para norteá-lo na<br />
transição por que ele hoje passa, pois cumpre ao filósofo dar dignidade à palavra, aceitando a<br />
incumbência de ser o humilde instrumento pelo qual se cumpre a promessa que diz: "Eis que faço<br />
novas todas as coisas" (Apoc 21, 5).<br />
XVI - Conflito de Gerações<br />
Sendo o homem, por essência, um animal cultural, visto que se rege por cultura, em vez<br />
de por instintos, como os outros animais, vale perguntar: como se dissemina a cultura entre os<br />
homens, e como ela se transmite de uma geração a outra? Pela EDUCAÇÃO. Disto se tira que<br />
72
todo o contato humano é educativo, se ele promove o bem, a integração; ou deseducativo, se dele<br />
resulta a desintegração, o mal.<br />
A educação, pois, é o fenômeno da disseminação da cultura entre os duma geração, e da<br />
transmissão dessa mesma cultura de uma geração a outra.<br />
Os fenômenos, no entanto, grosso modo, podem ser físicos 108 e humanos, havendo entre<br />
ambos esta diferença: os fenômenos físicos, isto é, da natureza, como a refração, a combustão, a<br />
locomoção, o movimento dos astros etc., são repetitivos, no passo que os fenômenos humanos são<br />
sucessivos. Os fenômenos econômicos, políticos, sociais, históricos, educativos etc., sucedem-se,<br />
no tempo, mas não se repetem. Como não há repetições, as previsões neste terreno são<br />
impossíveis. Neste campo, tudo são probabilidades e tendências.<br />
A educação, como vimos, é um fenômeno social que consiste na transmissão da cultura,<br />
sobretudo, de uma geração a outra; e como os fenômenos sociais não são repetitivos, a geração<br />
que recebe a cultura dos ancestrais, não a recebe exatamente como lhe é transmitida. Há variações,<br />
adaptações e mudanças neste recebimento, disto resultando o conflito entre as gerações. Logo, este<br />
conflito é um bem, se dele nascer o progresso, e um mal, se dele decorrer a decadência.<br />
O conflito não é, então, nem um bem nem um mal em si mesmo; ele apenas é a<br />
conseqüência de o fenômeno da educação, como humano que é, não ser repetitivo. Suponhamos<br />
que o fosse, como é o ensinamento de sobrevivência que, sobretudo, os mamíferos e as aves<br />
transmitem às suas crias. Sendo repetitivo, não apresentaria variações, nem mudanças, nem<br />
progresso, com o que não teríamos saído de primitivos antropóides.<br />
Então, a variação que produz o conflito é um bem? Pode não o ser. Quando uma<br />
civilização cai, isto ocorre, também, por causa das variações..., não num sentido de progresso<br />
social, mas, de embrutecimento, de decadência, qual o estamos vendo hoje.<br />
O "Diário de S. Paulo" em uma de suas edições de dezembro de 1971, publicou o<br />
seguinte, com o título de "ESSA MOCIDADE"... Posteriormente no jornal de 13 de outubro de<br />
1982, o Estado de S. Paulo, republicou a mesma matéria. Ei-la:<br />
"Falando do conflito das gerações diante de uma associação de classe, o médico inglês<br />
Ronald Bibson começou sua conferência por quatro citações.<br />
Primeira <strong>–</strong> "Nossa juventude adora o luxo, é mal educada, caçoa da autoridade e não tem<br />
o menor respeito pelos mais velhos. Nossos filhos hoje são verdadeiros tiranos. Eles não se<br />
levantam quando uma pessoa idosa entra, respondem a seus pais e são simplesmente maus".<br />
Segunda <strong>–</strong> "Não tenho mais nenhuma esperança no futuro de nosso país se a juventude de<br />
hoje tomar o poder amanhã, porque essa juventude é insuportável, desenfreada, simplesmente<br />
horrível".<br />
Terceira <strong>–</strong> "Nosso mundo atingiu seu ponto crítico. Os filhos não ouvem mais seus pais.<br />
O fim do mundo não pode estar muito longe".<br />
Quarta <strong>–</strong> "Essa juventude está estragada até o fundo do coração. Os jovens são<br />
malfeitores e preguiçosos. Eles jamais serão como a juventude de antigamente. A juventude de<br />
hoje não será capaz de manter nossa cultura".<br />
"Somente após ter lido as quatro citações, todas aprovadas pela assistência, foi que o<br />
conferencista revelou a origem delas: A primeira é de Sócrates, 470-399 antes de Jesus Cristo; a<br />
segunda, de Hesíodo, 720 antes de J. C.; a terceira é de um sacerdote egípcio que viveu no ano<br />
2.000 antes de J. C.; e a quarta, descoberta só recentemente sobre um vaso de argila, nas ruínas da<br />
Babilônia, tem mais de 4.000 anos de existência".<br />
Jacob Bazarian, num artigo intitulado "A rebelião da juventude", saído no Estado de S.<br />
Paulo do dia 13 de outubro de 1982, conta que houve uma mesa-redonda em 15/06/82, com a<br />
participação de diferentes especialistas, para estudar o problema enfocado sob o título de "Geração<br />
Abandonada", do jornalista Luiz Emediato e do psicólogo Jacob Goldberg. O resultado da mesaredonda<br />
é dado, como ficou dito, por Jacob Bazarian que transcreve as quatro citações do médico<br />
inglês Ronald Bibson.<br />
108 A física, em sentido lato, abrange toda a natureza, esta que se opõe à metafísica que consiste na idealidade.<br />
73
Bazarian começa assim: "Logo de início é necessário frisar que a chamada rebelião da<br />
juventude não é um problema especificamente nacional, brasileiro, mas universal. E, em segundo<br />
lugar, o fenômeno é tão velho quanto a sociedade humana". E conclui mais adiante:<br />
"Como se vê, a rebelião dos jovens é universal e tão velha quanto a sociedade humana. É<br />
necessário acrescentar que o fenômeno é periódico e aparece de modo mais agudo nas épocas de<br />
crises e mudanças sociais radicais. E, por fim, é passageira para cada geração no sentido de que a<br />
geração descontente e revoltosa acaba adaptando-se ou acomodando-se às exigências da<br />
sociedade".<br />
Se o fenômeno da rebelião dos jovens é periódica, "e aparece de modo mais agudo nas<br />
épocas de crises e mudanças sociais radicais", se há mudanças sociais radicais, como dizer que "a<br />
geração descontente e revoltosa acaba adaptando-se ou acomodando-se às exigências da<br />
sociedade"?<br />
Que sociedade? se esta se renova através dos jovens, e são estes os fautores de tais<br />
reformas sociais radicais, contra o conservantismo, contra o misoneísmo, da velha geração?<br />
Como hão de adaptar-se, de acomodar-se, se as mudanças sociais radicais promovem-nas eles, e,<br />
não, os velhos? Onde há radicalismo, há ruptura com o passado, e, rompendo com o passado, os<br />
jovens hão de adaptar-se ou acomodar-se com o quê?<br />
O que haveria de produzir de bom aquelas juventudes de diferentes épocas e de diferentes<br />
lugares, das citações de Bibsom se elas eram radicalmente anarquistas? Quem não repara que<br />
aquelas mocidades (qual a nossa hoje) marcaram o fim de suas civilizações? Que elas puderam ser<br />
horríveis, adoradoras do luxo, mal educadas, tirânicas, insuportáveis, desenfreadas, estragadas até<br />
o fundo de seus corações, malfeitoras, preguiçosas etc., conforme as citações de Bibson, PORQUE<br />
NÃO PRECISAVAM TRABALHAR PARA GANHAR O PÃO DE CADA DIA? E acaso não é<br />
nas épocas, como esta nossa, de riqueza, de fastígio, que as civilizações soçobram no<br />
embrutecimento, corrompem-se, caem? E os pobres de hoje?, tema associado à fome, preferido<br />
por todos os demagogos de todos os tempos e de todos os lugares, para seus parlapatórios? "Os<br />
pobres tê-los-eis sempre convosco", já o disse Cristo (Jo 12, 8)..., quaisquer que sejam os regimes,<br />
dado que os homens são dragontinos... Por isto mesmo, não são os pobres, e sim, os ricos e<br />
poderosos que, com toda sorte de abusos e torpezas, fazem naufragar as civilizações, não havendo,<br />
por este motivo, nenhuma civilização que se finasse, justamente, quando, às duras penas, estivesse<br />
saindo da pobreza.<br />
Não é que estejamos a defender um estado de vida pobre, nem admitindo que a virtude<br />
coexiste com a pobreza, nem que a tecnologia seja a raiz de todos os males,... cujo único remédio<br />
seria voltar ao artesanato, como queria Gandhi. A raiz de todos os males consiste na falta de<br />
sabedoria, na perda da capacidade de idear, no não saberem, os homens de todas as civilizações<br />
que se finaram, o que fazer com os ócios, com o acúmulo de bens, com a facilidade de vida; em<br />
terem, tais homens, perdido o tino para distinguir, entre eles próprios, quais os autênticos, que são<br />
si mesmos, e quais os demagogos, dispostos sempre a bajular as massas, tudo isto nada tendo a ver<br />
com programas e formas de governo, bonitos sempre... no papel. Todo o mal do mundo esteve<br />
sempre, e o está agora, na ignorância..., seja a ignorância rica, seja a ignorância erudita, seja a<br />
ignorância tecnológica, esta última, própria dos homens de ciência os quais, segundo Ortega, são<br />
sábios-ignorantes: sábios, porque bons conhecedores de sua "porciúncula do universo"; mas<br />
ignorantes, porque se comportam frente ao que ignoram, qual seja o caso da rebelião dos jovens,<br />
"não como ignorantes, mas com toda a petulância de quem na sua questão especial é um sábio" 109 .<br />
Também, pois, para estes, vale o dito do pintor grego Apeles: "não suba o sapateiro acima das<br />
sandálias!".<br />
"Civilização do bode expiatório (diz Joelmir Beting), preferimos atribuir aos avanços da<br />
tecnologia moderna e não aos fiascos das ciências sociais a culpa por todos os males do mundo.<br />
109 Ortega y Gasset, A Rebelião das Massas, 174<br />
74
Bancar o avestruz da anedota, convenhamos, é uma atitude politicamente confortável. Tão<br />
confortável como a de Pilatos, ao lavar as mãos" 110 .<br />
Que ciências sociais? Caro Joelmir, se tais ciências de cujos enunciados não se formulam<br />
leis nenhumas, e, por isto, se resolvem em disputas, quais as escolásticas, entre vintenas de escolas<br />
antagônicas? Que é de proveitoso, de útil, que tais "ciências sociais" produziram? Como podem<br />
tais ciências sociais segurar a civilização no resvaladouro para o abismo, se, desde Aristóteles,<br />
ficou estabelecido que MORAL vem de mores, que quer dizer costumes, e ÉTICA, de ethos, que<br />
também quer dizer costumes, uma e outra, moral e ética, em sendo costumes, são relativas? Onde<br />
se há de fundamentar a sociedade, se seus alicerces são movediços, relativos, sem nenhuma<br />
Instância Superior, fora do homem, para apelar? As ciências têm seus primeiros princípios<br />
indemonstráveis; as matemáticas têm seus postulados e axiomas, igualmente indemonstráveis, e,<br />
apesar disto, há ciências e há matemáticas. Com a MORAL não ocorre o mesmo, porque ela é<br />
costume que se muda sempre, baseado em quê?, senão nos achismos de cada tolo? Cada futilidade<br />
que se quer implantar aqui, o argumento decisivo do macaco que somos, é dizer que isso já existe<br />
nas nações mais desenvolvidas... Fica a frase suspensa pela reticência, porque o macaco, harto,<br />
entende... que desenvolvimento significa progresso tecnológico e riqueza, esta, advinda desse<br />
progresso! Eis aí o padrão, o paradigma, o metro, para se averiguar se isto ou aquilo é bom: é só<br />
verificar se isto ou aquilo existe nos "países desenvolvidos"!...<br />
E quando uma sociedade como a nossa, que não quer nada com a filosofia, que<br />
desampara os seus filósofos os quais, apesar disso, continuam laborando no silêncio, no<br />
anonimato, não sabe o que fazer com o seu fastígio, e começa levar a breca, reúne os seus homens<br />
não filósofos em mesas-redondas para quê? Para cada um, olhando pela fresta de sua viseira de<br />
especialista, para não dizer antolhos, dizer: "eu acho..."?<br />
E se alguém, filósofo <strong>–</strong> não mero professor de filosofa que só repete o dito nos<br />
compêndios; mas, filósofo <strong>–</strong> tiver a solução do problema, como há de apresentá-la aos demais, se<br />
lhe não permitem falar? Como há ele de vencer as BARREIRAS DA COMUNICAÇÃO, se os<br />
fariseus dela (se bem se comparam aos do tempo de Cristo, os quais, em fechando as portas do<br />
reino dos céus, não entravam nem deixavam outros entrar) não resolvem nem deixam outros<br />
resolver?<br />
"N<strong>eo</strong>-cínicos de formação, os «hippies» freqüentam a universidade como bons filhotes da<br />
fartura, e são capazes, intelectualmente, de produzir riquezas. Mas não há maneira de fazê-los<br />
ganhar a vida pelas vias convencionais. Eles brincam de ser pobres porque sabem que numa<br />
sociedade rica, como aquela em que vivem, poderão deixar de brincar de pobreza quando tocados<br />
pela idade, decidirem mudar de vida. É o que já faz a primeira leva deles, sobreviventes do ócio,<br />
do tédio, do cio e da doença, a sarna, por exemplo 111 . Bravo! Joelmir! Até que, enfim, houve quem<br />
tocasse com o dedo na ferida! Quem quiser, consulte agora Arnold J. Toynbee, "Um Estudo de<br />
História", e veja como e por que caíram as vinte civilizações que ele analisa. Hesíodo e Sócrates,<br />
um e outro fala da horrível mocidade de sua época? Desejaríamos ouvir falar dessa mesma<br />
mocidade quando acabou escrava, para nunca mais levantar o topete, sob o tacão de Felipe da<br />
Macedônia, de Alexandre Magno, e, por último, dos romanos. Falem-nos da mocidade egípcia,<br />
petulante, atrevida, que não ouvia mais os pais, permitindo colher-se o mau presságio de que o fim<br />
do mundo não podia estar muito longe, como, de fato, não o estava; falem-nos, pois, dela, quando,<br />
por quinhentos anos, esteve sob a dominação dos hicsos dos quais, ainda puderam os egípcios<br />
libertar-se, até que Roma os anulasse para todo o sempre! E a Babilônia? Que foi feito dela?<br />
Falem-nos daquela juventude babilônica constituída de malfeitores e de preguiçosos, quando Ciro,<br />
o persa, pôs, a todos, jugos invencíveis!<br />
Se outras civilizações já ruíram, e desapareceram no pó, sobrando apenas poucos<br />
documentos indecifráveis, que garantia temos nós de que a nossa, andando pelos mesmos<br />
caminhos do embrutecimento e da imoralidade das que se foram, milagrosamente, ficará em pé?<br />
110 Joelmir Beting, Na Prática a T<strong>eo</strong>ria é Outra, 18<br />
111 Joelmir Beting, Na Prática a T<strong>eo</strong>ria é Outra, 127<br />
75
Tróia é de ontem, e, contudo, sumiu-se de uma maneira tão sumida, que os relatos de<br />
Homero, em relação a ela, foram tidos por lendas. Coube a Heinrich Schliemann descobri-la, e a<br />
história desta descoberta é tão fascinante, fantástica, que mais parece um conto de fadas. Perfurou<br />
o chão, Schliemann, e descobriu o que ele pensou fosse Tróia. Pois era a quinta cidade enterrada e<br />
sumida, a contar da superfície da terra. E comprovou-se haver mais duas cidades ainda, com o que<br />
se totalizou o número de sete, e, posteriormente, outros arqueólogos encontraram mais duas,<br />
perfazendo o número de nove cidades soterradas! Tróia era, então, a sexta cidade, a contar de<br />
baixo para cima. Depois que até as notícias de nove cidades se perderam, (!) cidades opulentas,<br />
regurgitantes de gentes, dentre as quais, muitas ricas, outras nobres, outras famosas, cada cidade,<br />
quando decadente, com uma mocidade de ricos e de nobres, a qual, por isto mesmo, ociosa,<br />
preguiçosa, atrevida, insolente, perversa, ainda se duvida que a nossa civilização, embora em<br />
processo de apodrecimento acelerado, não se vai com a breca? Qual naqueles tempos, tal hoje.<br />
Fale Ortega:<br />
"Este personagem (o homem-massa), que agora anda por toda a parte e onde quer impor<br />
sua barbárie íntima, é, com efeito, o garoto mimado da história humana. O garoto mimado é o<br />
herdeiro que se comporta exclusivamente como herdeiro. Agora a herança é a civilização <strong>–</strong> as<br />
comodidades, a segurança; em suma, as vantagens da civilização" 112 . Mais:<br />
"As pessoas, comicamente, se declaram «jovens» porque ouviram que o jovem tem mais<br />
direitos que obrigações, já que pode demorar o cumprimento destas até as calendas gregas da<br />
madureza. Sempre o jovem, como tal, considerou-se isento de fazer ou haver feito façanhas.<br />
Sempre viveu de crédito. Isto se acha na natureza do humano 113 . Mais isto:<br />
"A juventude de agora, tão gloriosa, corre o risco de arribar a uma madureza inepta. Hoje<br />
goza o ócio florescente que lhe criaram gerações sem juventude" 114 . Ainda isto:<br />
"Vivemos em um tempo que se sente fabulosamente capaz para realizar, mas que não<br />
sabe o que realizar. Domina todas as coisas, mas não é dono de si mesmo. Sente-se perdido em sua<br />
própria abundância. Com mais meios, mais saber, mais técnicas que nunca, o mundo atual vai<br />
como o mais infeliz que tenha havido: puramente ao acaso" 115 .<br />
As civilizações caem, diz Toynbee, quando, havendo respondido todos os reptos, deixam<br />
de responder o último. Pois a nossa sofreu um repto que não foi respondido ainda, e, se o foi, o<br />
homem da resposta não pôde vencer a barreira da comunicação; ainda não lhe deram a palavra...<br />
Nossa civilização ia mais ou menos bem sob o signo do CRIACIONISMO. Todas as religiões e<br />
todas as filosofias (exceto a de Spencer) são criacionistas. De meados do século XIX para cá, foi<br />
imposto à nossa civilização ocidental o repto do EVOLUCIONISMO. Eis aí a tese (Criacionismo)<br />
e a antítese (Evolucionismo) clamando, urgentemente, pela síntese. E sem esta Resposta ao Repto,<br />
sem esta SÍNTESE, a civilização cairá, primeiro no marasmo, no "interregno" de Toynbee, ou<br />
"diarréia" do irreverente Gustavo Corção, e, depois, será o golpe final que virá, como sempre<br />
aconteceu, com uma guerra catastrófica. Enquanto isto, continuar-se-ão fazendo mesas-redondas e<br />
simpósios, tais quais se fizeram em Roma, na Grécia, na Babilônia, no Egito.<br />
O problema do grande conflito de gerações, não do conflito normal que ocorre sempre,<br />
mas do conflito incomum que estamos vivendo hoje, foi resumido na seguinte sentença do artigo<br />
do "O Estado de S. Paulo", datado de 22 de agosto de 1982, sob o título: "Você sabe onde está<br />
seu filho?”, sentença que pusemos em destaque: "A juventude só encontrará seu caminho<br />
quando toda a sociedade for modificada". A isto responde um jovem descrente, na coluna "dos<br />
leitores": "Uma total reformulação do mundo (como se isso fosse possível). Na verdade a<br />
"Geração Abandonada" e todos nós, em geral, somos vítimas de um mundo que não deu certo" 116 .<br />
112 Ortega y Gasset, A Rebelião das Massas, 158<br />
113 Ortega y Gasset, A Rebelião das Massas, 260-261<br />
114 Ortega y Gasset, A Rebelião das Massas, 331<br />
115 Ortega y Gasset, A Rebelião das Massas, 98<br />
116 Augusto Gomes, O Estado de S. Paulo de 27 de outubro de 1982<br />
76
O mundo, quer dizer, sistema, deu certo até aqui, caro Augusto Gomes, vencendo todos<br />
os REPTOS, com felicidade. Agora surgiu o REPTO da EVOLUÇÃO... cuja RESPOSTA está<br />
tardando a vir, em razão do que o mesmo mundo entrou em entropia, a qual, como sói acontecer,<br />
tende para um máximo. E como entropia quer dizer reversão, retorno, arrepio de carreira, trata-se<br />
de reversão ao ponto de onde esse mundo saiu..., que foi a barbárie. É elementar, caro Gomes!<br />
Entropia, termo tomado à termodinâmica, aplica-se a quaisquer sistemas físicos,<br />
representando a tendência de todos os SISTEMAS FECHADOS, ou QUE SE FECHAM, a<br />
apresentar um estado confuso, aleatório, caótico, por ter-se esgotado o potencial para as<br />
transformações. Assim, a desordem (assaltos, assassinatos, terrorismos, abusos da polícia, justiça<br />
caquética); a falta de padronização (os achismos, no lugar da lei e da moral); a falta de objetivo<br />
(ninguém sabe o que fazer com a riqueza criada, nem para onde ir); a ausência total de um ideal<br />
superior (lenta agonia das religiões, e velório ululante da filosofia, ambas, moribundas e mortas,<br />
fontes realimentadoras do sistema); tudo isto mostra que nossa civilização entrou em processo<br />
entrópico. Causa mor? O não ter sabido ou podido REPLICAR ao REPTO do E V O L U C I O N<br />
I S M O.<br />
Modificação, portanto, "total reformulação", implica planejamento, projeto. E onde, o<br />
projeto? O projeto consiste numa nova filosofia... que resolva, na SÍNTESE, as contradições entre<br />
a TESE (Criacionismo) e a ANTÍTESE (Evolucionismo). E onde, essa nova filosofia? Todavia,<br />
essa obra pode já estar pronta: como fazê-la chegar a todos, se aqueles que podem abrir as portas<br />
da comunicação querem saber, primeiro que tudo, de currículos, só em função dos quais sabem<br />
julgar? Currículos universitários (acaso não vêem isto?) quanto melhores, piores..., para o caso<br />
presente, dado que o enquadramento universitário condiciona o poder criador, em razão do que os<br />
gênios sempre se dão mal nas escolas. Ora, onde é preciso criar o novo, os pontífices da<br />
comunicação, para concederem a palavra, exigem que o inovador esteja, até às tampas, cheio,<br />
saturado, dos arcaísmos culturais, e ainda, por cima, das inutilidades (para o caso)<br />
contemporâneas. Nenhum diploma prova a inteligência e a criatividade de ninguém, e a maioria<br />
deles serve só para demonstrar que, conforme Dewey, "A memória é a grande simuladora de<br />
inteligência".<br />
De Cristo, também, se pediam currículos: "Não é este o filho do carpinteiro?, etc. Donde<br />
lhe vem tal sabedoria? (Mat 13, 54). "Pode vir alguma coisa boa de Nazareth"? (Jo 1, 46). A<br />
sabedoria, a doutrina, não interessa nada; o tudo que interessa é a procedência, o currículo. Então<br />
Cristo sentenciou: "Não há profeta sem honra, a não ser na sua pátria e na sua casa" (Mat 14, 57).<br />
Isto bate com F<strong>eo</strong>dor Chaliapin que dizia: "Ninguém é grande homem para o seu criado de<br />
quarto". E Vieira: "Não basta que as coisas que dizem sejam grandes, se quem as diz não é<br />
grande". (...) "Talvez acertou a dizer o rústico, o que tinha dito Salomão; mas no rústico não<br />
merece ouvidos, em Salomão é oráculo" 117 . Por causa disto se fecharam a Cristo as portas do<br />
Templo de Salomão, e ele, se quis comunicar sua Doutrina, teve de o fazer pregando às margens<br />
do mar de Tiberíades ou no campo. De igual modo, quando se acabar esta civilização, o que sobrar<br />
dela, se sobrar, levantar-se-á noutra base, seguindo a nova filosofia que, agora, então, se revelará<br />
através de papéis e livros amarelecidos, sujos, empoeirados, semicomidos de traças.<br />
Verdadeiramente, desta nova filosofia poder-se-á escrever: NOVAE SED ANTIQUAE. Nova<br />
para ser seguida; antiga porque resto de uma civilização que se finou...<br />
A verdade é que, doa isto a quem doer (e quanto mais doer, melhor), a moral é absoluta,<br />
não, relativa, do mesmíssimo modo que são absolutos e não, relativos, os primeiros princípios das<br />
ciências e os postulados das matemáticas. Pode-se ir pedindo o porquê de tudo; mas o último<br />
porquê é um postulado indemonstrável... até mesmo, o que é mais, para as matemáticas. A moral<br />
se chamou, desde sempre, "Mandamentos de Deus", pertencentes, portanto, à esfera das religiões,<br />
até que, com a decadência da religião grega, Aristóteles trouxe a moral para o campo da filosofia,<br />
fazendo-a derivar-se de costumes. Este pecado original teve seu reforço, na Renascença, quando<br />
se lançaram as bases do pensamento moderno, fazendo-nos crer que a Razão é deusa, e que a<br />
117 Vieira, Sermões, 8, 145-146 <strong>–</strong> Ed. das Américas<br />
77
ciência e a tecnologia poderiam produzir um paraíso na Terra. Alguns lugares da Terra, de fato, se<br />
fizeram paraíso..., mas habitados por homens-feras, não obstante a "beatice da razão", no dizer de<br />
Ortega. A Doutrina da Evolução criou milhões de materialistas, e ateus, e agnósticos, e, no<br />
entanto, como ela é a metade da Verdade, não pode ser negada, e, sim, precisa ser digerida e<br />
assimilada com a outra metade do Criacionismo. Como encher o vazio da alma do homem<br />
moderno que se recusa, e com razão, a remastigar os alimentos rançosos ou bolorentos quanto à<br />
forma, oferecidos pelas religiões? Uma filosofia nova se impõe, e ela derramará nova luz,<br />
clareando os textos antigos, todos interpretados segundo uma ótica acomodada à selvageria e à<br />
animalidade do homem, incapaz, portanto, de reformá-lo, tornando-o sábio, não erudito, mas<br />
sábio... Soou a hora, como se vê, de cumprir-se o dito: "Eis que faço novas todas as coisas" (Apoc<br />
22, 13).<br />
Do mesmo modo como não há matemáticas sem postulados que, por indemonstráveis, se<br />
fazem absolutos; do mesmo modo que, sem primeiros princípios, igualmente indemonstráveis,<br />
não há ciências nenhumas, também, sem um Metro fora do homem, sem um Modelo, sem um<br />
Parâmetro, uma Regra, para serem postos no lugar dos achismos, o conflito hodierno de jovens e<br />
velhos alucinados não se resolve. Sem uma Instância Superior tudo fica relativo, passando cada<br />
"homem a ser a medida para todas as coisas" como o entendia Protágoras.<br />
Por causa desta verdade apodística, peremptória, inexorável, sem contestação possível,<br />
todo o achismo, em matéria de moral, é luciferismo, ou seja, uma tentativa, qual a do arcanjo<br />
Luzbel, de usurpar o posto privativo só de Deus, o só que pode fundamentar a moral. Por isto, a<br />
queda do lendário Adão foi, antes de tudo, moral, visto como ele, conforme a alegoria, desprezou<br />
o preceito único que lhe impusera Deus, para seguir o achismo de Satã.<br />
Mesmo não se tratando de moral, seja em que assunto for, quando um homem diz: "eu<br />
acho", neste ponto ele se põe como medida, como fundamento, em função do qual ele vai aferir<br />
aquilo que lhe é proposto. Porque nenhuma sociedade, NENHUMA! pode sobreviver, se o arbítrio<br />
anárquico de cada um se fizer lei e moral, Protágoras foi levado a defender a lei, a convenção e a<br />
moralidade tradicional 118 . Deste modo, o mesmo Protágoras que foi, por excelência, o filósofo do<br />
ACHISMO..., achou, para surpresa de todos, que não se pode sair, por aí, achando isto, e achando<br />
aquilo, como agora é moda fazer-se. Por que? Ora, por que?... (responderia o filósofo), porque<br />
sem lei e sem moral, não há sociedade. Urgia, pois, defender a sociedade de seu tempo, contra a<br />
imoralidade dos que, como hoje, raciocinando com os estômagos, de flatulências cheios, eructam<br />
frases como esta: "Quando pela porta da rua entra a fome, sai pela janela a moral!". O dito causa,<br />
hoje, o efeito de axioma (!) a outros ventrófilos achistas que sacodem as cabeças em sinal de<br />
aprovação. Prevenindo isto, Protágoras antecipava o mesmo pensamento de Gusdorf que, falando<br />
de Sócrates, escreve: "Sócrates, na prisão, dialoga com as leis do Estado e vence-as, obedecendolhes.<br />
A morte é sua derradeira vitória, pois é imensamente preferível, mesmo dentro de uma<br />
perspectiva utilitarista, ser Sócrates caído em desgraça do que porco satisfeito" 119 .<br />
As civilizações têm convivido sempre com a fome, porém, nenhuma, até hoje, sobreviveu<br />
sem moral. Por que? Porque a MORAL é o Estatuto Mor sobre o qual se há de erigir o Direito<br />
Positivo, e, sobre este, os demais códigos e regras sociais.<br />
Urgia defender, Protágoras, a sociedade de seu tempo contra os que, achando, diziam:<br />
tudo está bem, sem nenhum perigo..., e na santa paz! A rebelião da juventude é perfeitamente<br />
compreensível e normal..., tendo existido sempre em todos os tempos e em todos os lugares. Os<br />
jovens de hoje, como de sempre, não têm outra escolha a não ser aceitar as regras do jogo,<br />
fincando os pés firmes na vida, adaptando-se, acomodando-se às exigências da sociedade... que<br />
segue o seu caminho sem precisar de Deus... que "se tornou numa hipótese desnecessária"<br />
(Laplace), e, que vai, passo a passo, forjando sua moral, conforme o impõem os costumes. Contra<br />
isto, punha,, Protágoras, uma Instância Superior, como necessária, para regular a moral, a lei e o<br />
convencionalismo tradicional. Foi ele, portanto, obrigado a aceitar a existência de Deus, embora<br />
118 Bertrand Russell, Obras Filosóficas, I, 90<br />
119 G<strong>eo</strong>rges Gusdorf, Tratado de Metafísica, 51<br />
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não o pudesse demonstrar, racionalmente, porque Deus é uma INTUIÇÃO A PRIORI, tal qual os<br />
POSTULADOS, sejam eles os das ciências, sejam os das matemáticas. No grande conflito, essa<br />
Instância Superior, a que cumpre recorrer, é a MORAL cujos alicerces precisam ser justificados<br />
por filosofia nova, por novo pensamento. Não se trata de a filosofia alicerçar a moral, e sim, de<br />
dar dela testemunho, de falar a respeito dela, sem a definir, do mesmo modo que Cristo, em sendo<br />
perguntado pelo asneirão do Pilatos: "o que é a verdade?", não a definiu, porque ela é indefinível,<br />
e da qual só se pode dar testemunho, e que, por isso mesmo, ele já tinha dito: "vim ao mundo a fim<br />
de dar testemunho da verdade" (Jo 18, 37). Falamos do Espaço e do Tempo, sem os definir: O<br />
Espaço, porque, infinito; o Tempo, porque, eterno. Ninguém sabe o que é a Vida, a Energia, o Sol;<br />
contudo, podemos falar a respeito de tudo isto e mais ainda, isto é, dar deles testemunho.<br />
Este é o caminho, e não há outro, para se resolver o problema do grave conflito, do<br />
incomum conflito de gerações; da solução dele, ou da não solução, vai depender, não menos, se o<br />
nosso mundo sobrevive, agora, à crise, ou se vai para o caos.<br />
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