“TENHO VERGONHA DOS RICOS DE PORTUGAL” - Lux - Iol
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Rui Moreno<br />
paulo coelho<br />
www.paulocoelhoblog.com<br />
“As pessoas não se encontram mais.<br />
Quando não se encontram, não conseguem crescer„<br />
DA IMPORTÂNCIA DO OLHAR<br />
No início, Theo Wierema era apenas um sujeito<br />
insistente. Durante cinco anos enviou religiosamente<br />
convites para o meu escritório em Barcelona,<br />
para uma palestra em Haia, na Holanda.<br />
Durante cinco anos, o meu escritório respondia<br />
invariavelmente que a agenda estava completa.<br />
Na verdade, nem sempre a agenda está completa;<br />
entretanto, um escritor não é necessariamente<br />
alguém que consiga falar bem em público.<br />
Além do mais, tudo o que preciso de dizer está<br />
nos livros e nas colunas que escrevo – por isso<br />
procuro sempre evitar conferências.<br />
Theo descobriu que eu iria gravar um programa<br />
para um canal de TV na Holanda. Quando desci<br />
para as fi lmagens, ele estava à minha espera no<br />
saguão do hotel.<br />
Apresentou-se e pediu-me para me acompanhar,<br />
dizendo:<br />
– Não sou uma pessoa capaz de ouvir “não”.<br />
Apenas acredito que estou a tentar alcançar<br />
o meu objetivo da maneira errada.<br />
Há que lutar pelos sonhos, mas há que saber<br />
também que quando certos caminhos se mostram<br />
impossíveis, é melhor guardar as energias para<br />
percorrer outras estradas. Podia simplesmente<br />
dizer “não” (já disse e já ouvi várias vezes esta<br />
palavra), mas resolvi tentar algo mais diplomático:<br />
colocar condições impossíveis de cumprir.<br />
Disse que daria a conferência de graça, mas<br />
o ingresso não poderia ultrapassar €2, e a sala<br />
teria de ter no máximo 200 pessoas.<br />
Theo concordou.<br />
– Você vai gastar mais do que vai ganhar – alertei.<br />
– Pelas minhas contas, só o bilhete de avião<br />
e o hotel custam o triplo do que receberá<br />
se conseguir lotar a casa.<br />
Além disso, existem custos de divulgação,<br />
aluguer do local...<br />
Theo interrompeu-me, dizendo que nada disso<br />
tinha importância: estava a fazer isso por causa<br />
daquilo a que assistia na sua profi ssão.<br />
– Organizo eventos porque preciso de continuar a<br />
acreditar que o ser humano está em busca de um<br />
mundo melhor. Preciso de dar a minha contribuição<br />
para que isso seja possível.<br />
Qual era a sua profi ssão?<br />
– Vendo igrejas.<br />
E continuou, para meu espanto:<br />
– Sou encarregado pelo Vaticano para selecionar<br />
compradores, já que há mais igrejas do que<br />
fi éis na Holanda. E como já tivemos péssimas<br />
experiências no passado, ao ver lugares sagrados<br />
transformarem-se em boîtes, condomínios,<br />
boutiques, e até mesmo sex shops, o sistema de<br />
venda mudou. O projeto tem de ser aprovado<br />
pela comunidade, e o comprador tem de dizer<br />
o que fará do imóvel: aceitamos geralmente<br />
apenas as propostas que incluem um centro cultural,<br />
uma instituição de caridade ou um museu. E o<br />
que é que isso tem a ver com a sua conferência,<br />
e as outras que estou a tentar organizar? As pessoas<br />
não se encontram mais. Quando não se encontram,<br />
não conseguem crescer.<br />
Olhando-me fi xamente, concluiu:<br />
– Encontros. O meu erro consigo foi justamente<br />
esse. Em vez enviar correspondência eletrónica,<br />
devia ter logo mostrado que sou feito de carne<br />
e osso. Quando não consegui receber resposta<br />
de determinado político, fui bater-lhe à porta,<br />
e ele disse-me: se você quiser alguma coisa,<br />
precisa antes de mostrar os seus olhos. Desde<br />
então, tenho feito isso, e só tenho colhido bons<br />
resultados. Podemos ter todos os meios de<br />
comunicação do mundo, mas nada, absolutamente<br />
nada, substitui o olhar do ser humano.<br />
Claro que acabei por aceitar a proposta.<br />
P.S. – Quando fui a Haia para a conferência,<br />
sabendo que a minha mulher, artista plástica,<br />
sempre desejou criar um centro cultural, pedi<br />
para ver algumas das igrejas à venda. Perguntei<br />
o preço de uma que normalmente abrigava<br />
500 paroquianos aos domingos: custava €1<br />
(UM euro!), embora os gastos de manutenção<br />
possam atingir patamares proibitivos.